Historia Direito e Escravidao

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    HISTÓRIA,DIREITO EESCRAVIDÃOA Legislação Escravista no

    Antigo Regime Ibero-Americano

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    HISTÓRIA,DIREITO EESCRAVIDÃOA Legislação Escravista no

    Antigo Regime Ibero-Americano

    WALDOMIROLOURENÇO DASILVA JUNIOR

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    HISTÓRIA, DIREITO E ESCRAVIDÃO A LEGISLAÇÃO ESCRAVISTA NO ANTIGO REGIME IBERO-AMERICANO

    Projeto, Produção e Capa Coletivo Gráfico Annablume

    Conselho Editorial Eduardo Peñuela Cañizal

    Norval Baitello juniorMaria Odila Leite da Silva Dias

    Celia Maria Marinho de AzevedoGustavo Bernardo Krause

    Maria de Lourdes Sekeff (in memoriam)Pedro Roberto JacobiLucrécia D’Alessio Ferrara 

     1ª edição: janeiro de 2013

    © Waldomiro Lourenço da Silva Júnior

     ANNABLUME editora . comunicaçãoRua M.M.D.C., 217. Butantã 

    05510-021 . São Paulo . SP . Brasil

    Tel. e Fax. (5511) 3539-0226 – Televendas 3539-0226www.annablume.com.br

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação - CIP

    S586 Silva Júnior, Waldomiro Lourenço da.

    História, direito e escravidão: a legislação escravista no Antigo Regime ibero-americano. /

     Waldomiro Lourenço da Silva Júnior. – São Paulo: Annablume; Fapesp, 2013.198 p.; 14 x 21 cm.

    ISBN 978-85-391-0502-1

    1. História. 2. Escravidão. 3. Direito. 4. Legislação. 5. História da Escravidão. 6. Aspectos

    Legais da Escravidão. 7. Escravidão na América Castelhana. 8. Escravidão na América

    Portuguesa. 9. Espanha. 10. Portugal. I. Título. II. A legislação escravista no Antigo Regime

    ibero-americano. III. Escravidão, tradição legal e a sua gênese. IV. Alforria, liberdade e

    cidadania: a fundamentação legal da manumissão. V. A política de controle da rebeldia

    escrava: entre o semeador e o ladrilhador.

    CDU 93:94

    CDD 981

    Catalogação elaborada por Ruth Simão Paulino

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     À memória de meus avós Antonio e Lourdes

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    María C. Navarrete e Stuart B. Schwartz, pela atenção cedi-da e pelos textos que generosamente me enviaram por correioeletrônico. Aos professores da Faculdade de Direito da USP,

    Luiz Carlos de Azevedo, Ignácio Poveda Velasco e José ReinaldoLima Lopes, pela acolhida e pela iniciação no campo dos estu-dos jurídicos, essencial para o desenvolvimento da investigação. Aos membros da banca, os professores Carlos Alberto de MouraRibeiro Zeron e Silvia Hunold Lara, pelas preciosas arguiçõesefetuadas em meio ao processo, no exame de qualificação, e nomomento final da defesa, que tanto contribuíram para a con-cretização do estudo. A todos e por tudo, o meu muito obriga-do! Evidentemente, os possíveis equívocos são de minha inteiraresponsabilidade.

    Da mesma maneira, sou devedor aos meus colegas pesqui-sadores, Alain El Youssef, André Marques, Fernanda Luciani,Gustavo Acioli, Leandro Câmara, Renata Diório, Tâmis Parron,Roberto Gomes, Vivian Costa e Ynaê dos Santos, sempre dispos-tos a compartilhar comigo seus livros, o material de suas pesqui-

    sas, informações sobre congressos e seminários, suas experiências,suas inquietações, suas críticas e a sua amizade.Não posso deixar de reconhecer que contei com o amparo

    dos funcionários das bibliotecas da Universidade de São Paulo,nomeadamente, das Faculdades de Economia e Administração,de Direito e de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Presto aquiuma singela homenagem ao trabalho de todos. Meu muito obri-gado, ainda, aos companheiros professores, alunos e funcioná-

    rios dos Colégios Nossa Senhora de Fátima e Metodista de SãoBernardo do Campo, cujo intercâmbio de ideias e experiências,no ínterim entre uma pesquisa e outra, marcaram indelevelmen-te minha trajetória, abrindo espaço para que eu desempenhassetambém o papel de professor.

    Mesmo sem exercerem influência direta sobre a elaboraçãodo trabalho, outras pessoas contribuíram de variadas formas para

    a sua realização e merecem ser citadas. Entre elas estão Alexandre Araújo, Antonio Martins, Caio Padovani,Cláudio Bispo, Dou-

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    glas Sanches, Felipe Marin, Isabel Barroso, Isabela Carrizo, Mar-co Schoriza, Maria Augusta, Rodrigo Salvador e Ronne Gomes.

    Por fim, mas definitivamente de modo não menos importan-

    te, agradeço àquela pessoa que deu novo sentido à minha vida. Àminha esposa e companheira, Ana Paula, pelo apoio, pela amiza-de, pela compreensão, pela paciência (e haja paciência!), enfim,por tudo que estamos construindo juntos, dedico este modestoestudo.

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    Sumário

    Introdução ............................................................................13

    Capítulo 1. Escravidão, tradição legal e a sua gênese .............. 351.1. Generalização e contraponto: a tradição legal nahistoriografia ...................... ........................ .......... 351.2. A tradição legal e o processo histórico de sua gênese .... 44

    1.3. A tradição recriada: escravização e a incorporação donovo ................................................................................59

    Capítulo 2. Alforria, liberdade e cidadania: a fundamentaçãolegal da manumissão ............................................................. 67

    2.1. Repensando “os silêncios da lei” ............................... 672.2. A manumissão e suas modalidades ...........................772.3. O sentido da liberdade e o acesso à cidadania ........... 90

    Capítulo 3. A política de controle da rebeldia escrava: entre osemeador e o ladrilhador......................................................113

    3.1. Sujeição, resgate e prevenção ..................................1163.2. Patrulhas, guerras e a consolidação de capitães erancheadores ...................... ........................ .........1343.3. Para além do uso da força: o tratamento dos escravos .....144

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     Arremate - O problema da codificação ................................ 153

    Fontes .................................................................................161

    Bibliografia ..........................................................................169

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    Introdução

     A relevância do estudo do direito para a interpretação histó-rica de uma determinada sociedade pode ser ajuizada pela noçãode que “ele nomeia , qualifica e hierarquiza todo divórcio entrea ação do indivíduo e o  princípio fundamental dessa sociedade”(Villar, 2006, p.22). Em se tratando dos impérios ultramarinosde Espanha e Portugal, pode-se afirmar sem receio que a explora-

    ção do trabalho compulsório e, particularmente, da mão-de-obraescrava africana, compunha peça-chave do princípio fundamental  que alicerçava o conjunto de suas relações sociais e econômicas.Tal percepção põe à mostra o cabimento e a necessidade de seexplorar cada vez mais a fundo o quadro jurídico relacionado aofenômeno histórico da escravidão no contexto ibero-americano.

    Isso posto, o que se busca promover nas páginas do presentetrabalho é a análise da tradição legal e do ajuste processual do

    conjunto normativo relacionado à escravidão negra estabelecidanas Américas espanhola (castelhana) e portuguesa, que esteve emvigor entre o início do século XVI e a primeira metade do século XVIII. A unidade do período, em termos jurídicos, encontra-sena prevalência dos princípios do direito comum, o ius commune .Está em jogo aqui o entendimento do nexo interior e dos propó-sitos embutidos na normatização do cativeiro, além da apreensão

    das congruências, variações e desvios orquestrados na prática so-cial e dialeticamente refletidos nos textos jurídicos. A proposição

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    elementar resultante do trato com as fontes e com a bibliografiaé a de que o amálgama entre o repertório jurídico tradicional, oartifício legislativo constante e a vivência do mundo da escravi-

    dão forjou um modo particular de produção do direito escravista,típico ao Antigo Regime ibérico.

    O primeiro passo discursivo a ser dado consiste em esclarecerde que maneira será efetuada a aproximação entre as experiênciashistóricas recortadas, as quais, evidentemente, se realizavam emdistintos territórios nacionais. Em tempos de fragmentação dosestudos históricos, eminentes historiadores como John H. Elliotte Serge Gruzinski atentaram para a necessidade da realização deconexões históricas (Elliott, 1999, pp.229-247; Gruzinski, 2001,pp.85-100; 2001a, pp.175-195; 2003, pp.321-342). As conside-rações do último autor merecem especial destaque, pois, não obs-tante seu tom generalizante, focalizam especialmente a superaçãodos limites pátrios e a recuperação da história comum existenteentre Portugal, Espanha e seus impérios.

    Gruzinski defende as vantagens daquilo que Subrah-

    manyam denominou connected histories  frente à história compa-rada, que, ao invés de alagar os horizontes dos historiadores, te-ria acabado, no pior dos casos, por suscitar “um ressurgimentoinsidioso do etnocentrismo”. Ainda mais problemático, em seuentendimento, teria sido a pouca continuidade observada pelasempresas que inspiraram estudos comparativos. Nesse sentidoe pensando na produção historiográfica concernente à Améri-ca Latina, o autor faz menção a algumas poucas tentativas de

    comparação realizadas entre México e Peru (muito embora nãoas cite textualmente), como também ao livro Raízes do Brasil ,no qual são comparados aspectos da colonização portuguesa eespanhola. O ensaio de Sérgio Buarque de Holanda tornar-se-ia“uma obra tão brilhante quanto isolada no panorama da pro-dução latino-americana”. No cenário atual, muito mais vanta- joso em termos analíticos seria partir para a reconstituição dasmúltiplas amarrações edificadas em um quadro originalmentetransnacional. Nas palavras do autor:

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    “Diante de realidades que convém estudar a partir de múltiplasescalas, o historiador tem de converter-se em uma espécie de ele-tricista encarregado de restabelecer as conexões internacionais e

    intercontinentais que as historiografias nacionais desligaram ouesconderam, bloqueando as suas respectivas fronteiras” (Gruzinski,2001a, p.176).

     Apesar de acenar para a possibilidade de se trabalhar com co-nexões históricas em escala reduzida, como quando analisa certosafrescos pintados por índios de origem mexica  no final do século XVI, o autor sustenta que a consideração de “conjuntos políticoscom ambições planetárias que se constituíram em momentos da-dos da história” pode ampliar muitíssimo os horizontes de umadada pesquisa, de forma, aliás, mais fecunda do que pela defi-nição de objetos a partir de recortes artificialmente criados pelohistoriador. Com efeito, elege como campo de observação umdesses conjuntos, a Monarquia Católica ou, mais precisamente, ocomplexo de reinos e territórios agrupados sob a Coroa espanho-

    la a partir de 1580, quando Portugal passou também a integraras possessões de Felipe II, durante a chamada União das CoroasIbéricas. Essa gigantesca unidade imperial, composta por regi-ões das mais diversas partes do globo, que abrangia, portanto,espaços variadíssimos de circulação, trocas e conflitos, carregariapotencialidades analíticas quase inesgotáveis. Ao observador, ca-beria percorrer a imensa trama de interconexões políticas, econô-micas e culturais existentes no interior daquele grande “aglome-

    rado planetário” em toda a sua complexidade, transpondo nãoapenas as fronteiras existentes entre as nações, mas, igualmente,aquelas estabelecidas entre as disciplinas (Gruzinski, 2001a, pp.178-195).

    De fato, as histórias conectadas se interpõem como umaimportante alternativa para a reconstituição das relações, inter-câmbios e influências mútuas estabelecidas entre indivíduos, so-ciedades e estados. A perspectiva delineada por Gruzinski, comomencionado, respeita as linhas gerais da elaboração de Sanjay

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    Subrahmanyam, estudioso da parte oriental do império portu-guês. Por isso é importante também trazê-lo à baila. No artigointitulado Connected Histories: Early Modern Eurásia , o historia-

    dor indiano lida com um objeto histórico bem definido, em umdialogo direto e crítico com Victor Lieberman, organizador dovolume no qual o texto estava sendo publicado; embora preo-cupado com o enquadramento mais geral da história da Eurásiano início da modernidade, opta por analisar mais detidamenteo golfo de Bengala nos séculos XVI e XVII, definido por elecomo um locus of early modern interaction. Espaço aberto parao desenvolvimento de importantes redes de trocas comerciais, aregião formaria um notável entreposto; ponto de trânsito regulare concomitante de cortesãos, membros de elites militares, religio-sos e outros grupos sociais, abarcando uma unidade de interaçãomais firmemente estabelecida do que o próprio Oceano Índicotomado em seu conjunto (Subrahmanyam, 1997, pp.745-746).

     A finalidade de Subrahmanyam é chamar atenção para o fatode que a história eurasiática não é um mero derivado ou sub-

    produto da intervenção de agentes exógenos, nomeadamente,da expansão europeia. Alega ser necessário abandonar as pers-pectivas desenroladas a partir das obras de dois grandes mestres,Karl Marx e Walt Rostow, cujo foco estaria centrado fundamen-talmente na averiguação de quais, dentre as nações modernas,teriam obtido sucesso e quais teriam falhado rumo à construçãodo capitalismo industrial. Assim, as formulações de Lieberman,alinhavadas ainda nesta seara, estariam longe de ser revisionistas,

    como era a sua pretensão. Avessamente, seguiriam carregandoum grau elevado de conservadorismo, acenando somente para acomparação do sudoeste asiático com os “grandes jogadores” dachamada early modern history , isto é, Japão e Europa ocidental.De tal modo, outras possibilidades de comparação em âmbitointra-asiático findavam negligenciadas.

    Daí em diante, Subrahmanyam exibe todo o seu ceticismocom relação a exercícios comparativos voltados para geográficasque configuram os países na atualidade ou aquelas fornecidas por

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    area studies . Como alternativa metodológica, expressamente emoposição às histórias comparadas e ao “determinismo geográfico”de cunho ocidentalizante, cujo emprego lhe parece indissociá-

    vel, propõe as histórias conectadas, tendo em vista abranger nãoapenas as inter-relações supranacionais estabelecidas no tempoe no espaço, mas, também, a extensão ou o desenvolvimentoregional de certos fenômenos globais, esquivando da fixação dehierarquias ou de polos de superioridade (Subrahmanyam, 1997,pp.744-745).

    Contudo, ao fim e ao cabo, não fica demonstrada a existên-cia de uma exclusão necessária entre comparação e conexão emtermos de metodologia historiográfica. É inegável que, desdeHeródoto, não faltam exemplos de discursos comparativos quecontribuíram para construir ou reforçar visões etnocêntricas. Emartigo sobre o assunto, a historiadora Maria Ligia Coelho Pradofaz menção a certas abordagens que contrapuseram, por exem-plo, o modelo de civilização europeu às sociedades do Oriente,colocadas, no mais das vezes, em posição de inferioridade; ou que

    afirmaram a superioridade da cultura política e das instituiçõesdemocráticas anglo-saxônicas sobre as de outras nações (Prado,2005, pp.14-15). O que exemplos como esses evidenciam é queo recurso à comparação pode derivar – sob certas perspectivase atendendo a determinados propósitos – em classificações uni-lateralmente valorativas e hierarquizantes. Mas de modo algumsignificam que a história comparada deva ser genericamente pre-terida. Até porque não existe um procedimento estabelecido a

     priori , amplamente aceite, que seja necessariamente adotado portodo e qualquer estudo comparativo executado no campo da ci-ência histórica.

    O restabelecimento de conexões, algo atraente do ponto devista analítico, pode ser plenamente conciliado à comparação,como inclusive sugeriu J. H. Elliott, antes mesmo de a ideia dasconnected histories   ter sido trabalhada pelo pesquisador indiano(Elliott, 1999, p.230). O desenvolvimento de uma comparaçãosubstantiva, nos moldes propostos pelo sociólogo Philip McMi-

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    chael, é um dos caminhos possíveis nesse sentido (McMichael,1999, pp.385-97). Mas, antes avançar rumo ao esclarecimentodesta última proposta, que compõe a linha metodológica adotada

    no presente trabalho, é preciso completar a discussão levantada apartir dos apontamentos efetuados por Serge Gruzinski, ponde-rando sobre dois pontos de destaque em sua elaboração, a saber,a consideração de unidades políticas de dimensões globais e aquestão da falta de continuidade no âmbito dos estudos compa-rativos.

    Sobre o primeiro ponto, vale reproduzir o seguinte excerto:“Porém, a pesquisa pode ser estendida a horizontes muito maisamplos que não seriam definidos em função de recortes contem-porâneos, mas tendo em conta conjuntos políticos com ambiçõesplanetárias que se constituíram em momentos dados da história”(Gruzinski, 2001a, p.178). Não há dúvida de que o estudo degrandes configurações geopolíticas como a que envolvia a Mo-narquia Católica constitui um empreendimento altamente com-plexo e prenhe de possibilidades para os historiadores e demais

    cientistas sociais. No entanto, acenar para uma provável primaziadas análises realizadas sobre esse tipo de objeto, supostamentepor sua amplitude e genuinidade histórica, sobre aquelas desen-volvidas a partir de recortes espaciais e cronológicos “contempo-râneos”, perfaz algo altamente questionável tanto do ponto devista teórico quanto no que tange a amarração do próprio argu-mento do autor.

    Gruzinski não desconsidera a atuação do investigador na

    exploração das perspectivas abertas pelo objeto, pelo contrário,indica possíveis caminhos a serem percorridos. Mas, ao dar a en-tender que a consideração de tais configurações planetárias ofe-rece maiores possibilidades, toca num aspecto fundamental dotrabalho historiográfico que é o da construção do objeto de co-nhecimento. Tanto a unificação monárquica quanto a reemersãodas fronteiras entre portugueses e espanhóis, a partir de 1640,são realidades objetivas, vividas concretamente na história. É di-fícil entender por que os horizontes estariam porventura mais

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    limitados caso se partisse de um recorte que não tratasse pro-priamente da grande unidade, mas que, por exemplo, destacasseou articulasse pontos entre a formação dos Estados Nacionais, a

    expansão ultramarina, a constituição e o desmembramento dasCoroas, e assim por diante. A divisão política estabelecida entrePortugal e Espanha é um processo histórico tão rico quanto a suaunião temporária, e não inibiu necessariamente a ocorrência deconexões ou zonas recíprocas de interação política, econômica ecultural. O próprio Gruzinski atenta para a permeabilidade exis-tente entre as fronteiras (2001a, p.192).

    É claro que se pode interpretar a assertiva do autor comose referindo ao momento exato de existência dos tais conjuntosplanetários, enfatizando, por exemplo, os proveitos a serem ex-traídos do momento de união, ao invés de abordar Espanha ePortugal do período, a partir das feições políticas atuais. O quenão deixa de ser válido. Mas o interessante aqui é pontuar que areconstituição das conexões estabelecidas antes, durante e depoisda montagem da Monarquia Católica e da União Ibérica deman-

    da ações criativas, de construção objetiva do historiador, o que re-quer sempre um olhar que extravase as fronteiras nacionais, aindamais quando elas estiverem oficialmente levantadas e dispostas demaneira semelhante ao que se encontra na contemporaneidade:o “historiador eletricista” tem grandes possibilidades de atuaçãono que se refere também a esses momentos, e a comparação podeser, sim, um bom instrumento. No final das contas, talvez SergeGruzinski tenha caído em sua própria armadilha, pois privilegiar

    o estudo de “conjuntos políticos com ambições planetárias” aca-ba sendo também uma forma de se restringir a limites nacionaishistoricamente datados.

    Quanto à questão da falta de continuidade, é um problemaconcreto em se tratando da história comparada. Antropólogos,sociólogos e cientistas políticos, em razão até do escopo de suasdisciplinas, mostram-se tradicionalmente mais afeitos à compa-ração do que os historiadores. Não por acaso, grandes nomes dahistoriografia como Henri Pirenne, Marc Bloch e Fernand Brau-

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    del, que em algum momento defenderam a realização de estudoscomparativos, defendiam também a colaboração da história comas demais ciências sociais (Pirenne, 1923; 1931, pp. 5-22; Bloch,

    1967, pp. 44-81; Braudel, 1986, v.1).1 Além disso, é interessanteperceber que a ampliação dos enfoques analíticos para além dosespaços que delimitam o território de cada país, argumento le-vantado em defesa das connected histories , servira igualmente de justificativa para a realização de estudos comparativos. O pro-blema é que, desde a formação da história “científica” no sécu-lo XIX até os dias correntes, as histórias estritamente nacionaistêm permanecido fortemente arraigadas no mundo acadêmico(Prado, 2005, pp.13). Ora, se esse “nacionalismo historiográfi-co” constituiu ao longo de várias décadas um importante entravepara a história comparada, por que não o seria para um eventualdeslanche das histórias conectadas? Tratar-se-ia de uma questãode método?

    Elaborado há cerca oitenta anos, o artigo de Marc Bloch so-bre a história comparada continua sendo uma referência incon-

    tornável. O ceticismo de Subrahmanyam não se aplica aos apon-tamentos do fundador dos Annales , que criticara de maneira vee-mente a reserva da comparação histórica ao exame de fenômenosrelacionados à nacionalidade ou a contrastes políticos entre osEstados modernos, o que, além de uma grossa simplificação, po-deria muito bem, em seu entendimento, perpetrar anacronismoscrassos. O historiador define de maneira relativamente simpleso que caracteriza um estudo comparativo no campo da história:

    escolhem-se dois ou mais fenômenos ou situações sociais entre osquais pareça haver certas analogias; então, traça-se sua linha deevolução, notando suas semelhanças e diferenças, explicando-asna medida do possível. Desse modo, duas condições tornariama comparação possível em termos historiográficos, a saber, certa

    1 Sobre os momentos distintos da historiografia francesa nos quais se inse-riam os referidos autores, cf. Burke, 1997.

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    similaridade entre os eventos observados e alguma dessemelhançaentre os contextos nos quais surgiram (Bloch, 1967, pp.44-46).

     A partir deste encaminhamento preliminar, brotariam dois

    usos possíveis do método, “diferentes em princípio e em resulta-dos”. O primeiro consistiria na seleção de fenômeno semelhanteocorrido em sociedades separadas no tempo e no espaço. Essamodalidade poderia viabilizar: o preenchimento de lacunas exis-tentes na documentação através de hipóteses baseadas em ana-logias; a explicação de determinadas sobrevivências que, vistasisoladamente, permaneceriam ininteligíveis; e, ainda, a aberturade novos campos de pesquisa. Nesse caso, porém, não haveria apossibilidade de uma explicação baseada na revelação de influên-cias mútuas e de origens comuns. Eis a atribuição principal do se-gundo uso, que se trata da consideração de fenômenos ocorridosem sociedades vizinhas e contemporâneas, passíveis de exercereminfluências constantes e recíprocas, e cuja existência possa ser, aomenos em parte, remetida a uma origem comum. No entenderde Bloch, embora de horizontes mais limitados, essa última abor-

    dagem seria a mais promissora em resultados por tornar possívela realização de uma classificação mais rigorosa e crítica em relaçãoaos objetos comparados, podendo-se esperar conclusões menoshipotéticas (Bloch, 1967, pp.46-48).

    Contudo, é possível relativizar o desequilíbrio sugerido entrea comparação de sociedades coevas e próximas geograficamente ea de sociedades afastadas no tempo e no espaço. A diferenciaçãofeita pelo notável historiador está relacionada, por um lado, à

    crítica que faz a perspectivas que, partindo do primeiro tipo decomparação, derivaram em postulados sobre a universalidade decertos aspectos relacionados à “condição humana”, e, por outro,à sua familiaridade com o segundo procedimento (Bloch, 1967,p.47). As numerosas hipóteses e explicações que levantou atravésda comparação de fenômenos ocorridos em diferentes socieda-des europeias durante o medievo conduziram o autor a enxergarmaiores vantagens neste último emprego do exame comparati-vo (Bloch, 1993; Sobre isto, ver: Sewell Jr, 1967; Prado, 2005,

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    pp.15-19). Tanto as possibilidades quanto as limitações dos usosapontados podem variar, entre outros fatores, conforme o estágiodas pesquisas sobre as sociedades, processos ou eventos compara-

    dos, a perícia e orientação teórica (e mesmo política) do observa-dor, e a disponibilidade de fontes. A historiografia relacionada àescravidão antiga, por exemplo, tem gerado bons frutos ao tecercomparações com traços do escravismo moderno (Bradley, 1987;1996).

    Segundo John Elliott, os exames comparativos que vêm tra-zendo resultados de maior relevo são os de caráter intercultural,isto é, aqueles que se debruçam sobre fenômenos comparáveispresentes em contextos culturais distintos. Aproximando-se aocampo de estudos da escravidão, o historiador faz menção aoinfluente e controverso livro de Frank Tannenbaum, Slave andCitizen (1946), ressaltando que as críticas dispensadas contra oseu esquema interpretativo não devem obscurecer as suas impor-tantes contribuições para o estudo do tema, na medida em queele “aguçou nossa percepção da escravidão nas Américas e esti-

    mulou questões novas e mais pertinentes tais como a de por quea manumissão foi mais facilmente obtida na Ibero-América quenas colônias britânicas” (Elliott, 1999, p.240). Vale notar que asconsiderações de John Elliott sobre história comparada tinhampara ele um sentido prático; faziam parte de suas reflexões defundo para a obra de grande fôlego que estava desenvolvendo,o volumoso estudo comparativo publicado anos depois sob o tí-tulo Empires of the Atlantic World. Britain and Spain in America,

    1492-1830 . Nele, é estabelecida uma aproximação analítica naqual são identificadas e problematizas as principais semelhançase diferenças havidas entre os impérios britânico e espanhol. Umdos elementos contrastantes assinalados pelo autor foi precisa-mente o peso diferenciado da prática da alforria (Elliott, 2006,pp.106-108; 287).

    Com base nos elementos levantados, é possível afirmar queuma abordagem comparativa que revele, coteje, articule e conec-te aspectos comuns e desenvolvimentos discrepantes, extravazan-

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    do os limites fronteiriços estabelecidos entre os Estados nacionaiscontemporâneos, tem muito a contribuir para o enriquecimen-to das reflexões históricas, em um sentido lato, e para o estudo

    do trabalho escravo, em particular. Não obstante os regimes deescravidão do Novo Mundo não deverem ser tratados em ter-mos de moderação ou severidade relativas, as variações quantoao acesso à liberdade, bem como o status  e a proporção de afro-descentes livres nas sociedades americanas, são fatores que aindapermitem contrastá-los ou alinhá-los (conectá-los). Se é acertadaa percepção de que a Igreja Católica, enquanto instituição, poucoinfluiu nos padrões de alforria verificados na América ibérica, omesmo não pode ser dito com tanta segurança sobre a legislação.Mesmo que não tenha havido um encorajamento linear por partedo Estado, o fato é que, diferentemente do que aconteceu nascolônias inglesas, as coroas ibéricas não chegaram concretamentea impor restrições legais à libertação dos cativos.

    Embora a escravidão africana tenha encontrado um desen-volvimento assimétrico nas colônias ibéricas nas Américas, ascen-

    dendo e diversificando-se com maior rapidez e intensidade emterritório lusitano, as feições mais genéricas de seus regimes erammuito próximas: altos índices de alforria derivavam na constitui-ção de uma população substancial de descendentes de escravos,livres ou libertos, que era paulatinamente incorporada ao todo dasociedade, mantendo-se, ao mesmo tempo, comprometida como regime escravista, fosse por obrigações que continuavam tendopara com os antigos senhores fosse por tornarem-se, eles mesmos,

    proprietários de escravos. É claro que associar tal arranjo unila-teralmente ao peso da tradição jurídica dos Estados ibéricos éatribuir-lhe uma força, um protagonismo social, que a legislação per se  nunca teve.

    Como sustenta Stuart Schwartz, a escravidão foi um sistemae não um conjunto de relações puramente econômicas (Schwartz,2001, p.218). As relações de produção e a busca pela maximi-. As relações de produção e a busca pela maximi-zação dos lucros eram mediadas por uma série de fenômenospolíticos, morais, ideológicos, filosóficos, jurídicos, religiosos e

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    cotidianos que exerciam influências recíprocas. Destarte, as di-nâmicas que engendravam a reprodução sistêmica das sociedadesescravistas americanas operavam sob determinadas configurações

    culturais, que eram diferenciadas e que interferiam diretamentena conformação estrutural dos regimes. A legislação escravistaluso-hispânica não deve ser encarada como o fator preponderan-te, mas como um componente fundamental de uma engrenagemhistórica complexa; como a expressão de uma esfera da existência(o direito) determinada e determinante em relação ao todo. Ana-lisar a formação e a estruturação de tal componente é o objetivodeste estudo, e a perspectiva adotada é comparativa.

    O procedimento de investigação proposto por McMichael seadéqua ao tipo de abordagem ora pretendido pela maneira comoinstrumentaliza a análise de instâncias ou partes inter-relacio-nadas de um mesmo todo-histórico. O autor diferencia o quedefine como incorporating comparison (comparação incorporada)da chamada encompassing comparision  (comparação globalizan-te), que presume o governo das partes pelo todo (Tilly, 1984).

    Na comparação incorporada, o todo não é um dado, mas umaconstrução analítica; emerge da análise comparativa das partes,que são entendidas como estágios de sua formação. A ideia bá-sica consiste em não reduzir os objetos comparados a simplesfenômenos nacionais, resgatando a sua correlação com movimen-tos mais amplos no tempo e no espaço. Dessa forma, o métodocomparativo vai além dos inquéritos formais, isto é, do simplesconfronto de fatores históricos tidos como blocos distintos. Uma

    vez que uma comparação convencional, formal, visa cuidar de fe-nômenos paralelos, o procedimento destacado encara fenômenossociais comparáveis como diferentes resultados, momentos ouestágios de um processo historicamente integrado (McMichael,1999, pp.385-97).

     A apreciação construtiva da relação entre o todo e as partesé, portanto, o ponto central do método. O todo não é concebidoenquanto um sistema abrangente que determina ou governa aspartes. Nesse caso, seria como adotar como ponto de partida a

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    possível conclusão do inquérito, assumindo, por exemplo, o se-guinte: já que havia um sistema colonial ou um escravismo típicoaos países ibéricos, estudemos, então, o seu sistema legal relativo

    à escravidão. A construção metódica do todo – o escravismo dospaíses ibéricos – a partir da comparação de suas partes – os apa-ratos legislativos de Portugal e Espanha – é justamente o alvo dacomparação incorporada. O todo emerge do próprio processoanalítico, não precede ou existe independente de suas partes, asquais nada mais são do que momentos de sua formação. Assim,a comparação torna-se a substância do inquérito e não a sua es-trutura.

     A escravidão desenvolvida nas colônias ibéricas, ainda quenão tenha sido unívoca, carregava traços característicos, sobre-tudo na lógica que permeava a sua reprodução. A experiência ju-rídica   relacionada ao cativeiro constituiu um elemento crucialna conformação do regime de escravidão estabelecido no NovoMundo por lusos e castelhanos. Daí, vale a pena reforçar, o rele-vo do estudo específico das leis para a compreensão do processo

    de implantação e recriação da prática da escravidão no universoibero-americano. Embora se busque aclarar as semelhanças e asdiferenças mais marcantes entre os dispositivos legais portuguesese espanhóis, o seu tratamento é feito aqui, sobretudo, a partir daanálise de sua inter-relação e da percepção de que estavam conec-tados a um processo histórico mais amplo que lhes conferia umsubstrato comum. Mas é preciso esclarecer que processo afinalera esse.

    Uma chave interpretativa muito pertinente, e profundamen-te díspar daquela impressa na obra de Tannenbaum, vem sendotrabalhada para pensar as especificidades da escravidão ibérica. Oseu ponto de partida está centrado na consideração da pluralida-de dos ritmos de tempo desenrolados no espaço atlântico. Comosabido, a exploração do dito espaço se deu em momentos dis-tintos para os ibéricos e para os habitantes do noroeste europeu.Enquanto Portugal e Castela se lançaram na expansão marítimaentre os séculos XV e XVI, Inglaterra, França e Países Baixos só

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    o fizeram na passagem do século XVI para o século XVII. Essedistanciamento temporal existente entre as empresas derivariana formação de estruturas históricas específicas, conformadas

    em sistemas coloniais com características dissonantes: o sistemaatlântico ibérico e o sistema atlântico do noroeste europeu (Berbel,Marquese & Parron, 2010, pp.21-93).

     A edificação do sistema atlântico ibérico se daria a partir dacombinação de elementos da experiência histórica luso-castelha-na: o processo de Reconquista e a inserção no circuito comercialmediterrânico. Como se sabe, a formação de ambos os reinosenquanto monarquias nacionais soberanas se deu entre os séculos XI e XV em meio ao enfrentamento do inimigo mouro comume a lutas intestinas. A retomada de territórios dominados pelosmuçulmanos viabilizaria o ingresso de portugueses e castelhanosna rede de comércio orientado a partir do Mediterrâneo, mas,por outro lado, não poria fim às suas rivalidades. As disputaspolíticas e econômicas entre os dois reinos cristãos logo se es-praiariam para o Ultramar. Com o aporte técnico e financeiro

    de mercadores de outras nacionalidades – genoveses, sobretudo–, Castela e Portugal partiriam no século XV para a exploraçãodo chamado “Mediterrâneo Atlântico” e da região litorânea docontinente africano, com vistas a promover o sortimento do mer-cado de luxo dos centros urbanos europeus. Em fins da centúria,era possível notar uma forte clivagem na orientação tomada poraqueles empreendimentos ultramarinos. Em decorrência de umasérie de tratados firmados entre as décadas de 1470 e 1490, os

    espanhóis se dedicariam à conquista e à ocupação das ilhas Caná-rias e, em um segundo momento, das ínsulas caribenhas enquan-to os lusitanos explorariam as demais ilhas atlânticas e a costa da África, monopolizando desde logo o tráfico negreiro.

     A compartimentação espacial, mais do que a existência deajustes diplomáticos entre os dois reinos e o fim temporário dasescaramuças, evidencia como a sua expansão foi mutuamente de-terminada. Em outras palavras, havia um desígnio comum aoempreendimento expansionista de ambas as coroas, cuja materia-

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    lização interior acompanhava de perto os passos da antagonista,gerando um repertório de práticas muito aproximado. A buscapor metais esteve presente desde o início, o que se concretizou

    primeiramente por meio do escambo com os africanos e, emseguida, através da exploração de veios auríferos nas ilhas cari-benhas. A montagem de engenhos açucareiros nos arquipélagosatlânticos conjugada à edificação de feitorias comerciais ao longoda costa ocidental africana sedimentaria o complexo de produçãoelementar transplantado para as regiões onde não se fez possívela extração de ouro e prata. Na passagem do século XV para oséculo XVI, os estados ibéricos dispunham já de um conjunto deinstituições e práticas que serviriam de base para a incorporaçãodos territórios do continente americano (Alencastro, p.29; Ber-bel, Marquese & Parron, 2010, pp.21-32).

     A estruturação do sistema atlântico ibérico, é preciso enfa-tizar, não se assentou apenas na coincidência temporal existentena execução de suas operações atlânticas, mas nos fatores eco-nômicos, políticos e culturais articulados nesse ritmo de tempo

    unificado. Conforme Berbel, Marquese e Parron, quatro pontosfundamentais condicionavam aquelas operações, amarrando osistema:

    “[...] a inscrição dessas metrópoles e suas respectivas possessões ul-tramarinas nos circuitos mais amplos da economia-mundo euro-péia, os mecanismos de reprodução da força de trabalho, o quadrosocietário colonial e o quadro ideológico legitimador do império e

    da escravidão.” (2010, p.33).

    Não há espaço aqui para explorar cada um desses pontos,a não ser pelo que diz respeito à relação entre a reprodução daforça de trabalho e o quadro societário colonial, tendo em vistaconferir ainda mais clareza à intenção que move esta investigação. Após uma primeira etapa de estabelecimento na região caribe-nha, os castelhanos desencadearam o movimento de conquistada América continental (1519-1640), logrando a descoberta de

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    substanciosos depósitos de metais preciosos. A exploração de pra-ta no México e no Peru seria caracterizada, mormente, pela uti-lização da mão-de-obra ameríndia (encomienda , mita  e trabalho

    assalariado). Já em regiões como Santo Domingo e Porto Rico,dedicadas ao fabrico de açúcar, os escravos africanos estiverampresentes desde os primeiros tempos da ocupação. Em momentoseguinte, os negros cativos seriam empregados também na extra-ção de ouro e na realização de tarefas domésticas, além de pratica-rem atividades variadas nas regiões urbanas e onde o declínio dapopulação indígena os fizessem necessários (Berbel, Marquese &Parron, 2010, pp.35-36). Após o “período das feitorias” (1502-1534), Portugal, a outra face da moeda, iniciou o processo decolonização da América meridional a fim de garantir o domíniosobre a região (Johnson, 1997, pp.241-281). Assim o Brasil seriainserido nos quadros da política imperial lusitana, sem o mes-mo peso que as Indias Occidentales  para a monarquia castelhana.2 Não sendo encontrada de imediato uma riqueza mineral equi-valente à dos territórios espanhóis, a alternativa foi reproduzir

    o modelo açucareiro experimentando previamente na Madeirae em São Tomé, em especial, aproveitando-se as condições declima e solo favoráveis. As dificuldades verificadas no empregoda mão-de-obra indígena e as vantagens propagadas quanto aorecurso aos cativos africanos abririam caminho para o tráficotransatlântico em direção aos grandes polos açucareiros que logose estabeleceriam no nordeste brasileiro.3 Nas primeiras décadasdo século XVII, os escravos negros tornaram-se predominantes

    na indústria do açúcar, enquanto nas regiões periféricas seguiria

    2 Até meados do Seiscentos , os circuitos comerciais da África (ouro e escra-vos) e da Ásia (especiarias) atrairiam mais a atenção da coroa portuguesa(Lockhart & Schwartz, 2002, p.43).

    3 Para diferentes interpretações sobre as motivações do recurso aos escra-

    vos africanos, ver: Novais, 1979; Menard & Schwartz, 1996; Alencastro,2001, pp.117-154.

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    a exploração do cativeiro dos “negros da terra” (Perrone-Moisés,1992, pp. 115-132; Monteiro, 1994; Zeron, 1998).

     As oscilações demográficas da população ameríndia e a repro-

    dução mercantil dos escravos africanos se acomodariam à confi-guração societária tradicional dos ibéricos, no interior da quala miscigenação e a manumissão eram elementos fundamentais(Boxer, 1967). A mudança de condição e a assimilação social dosegressos do cativeiro, ainda que de forma segmentada e opressiva,era algo corrente e esperado; estava firmemente enraizado e sereproduziu no Novo Mundo desde o início da ocupação. Emoutras palavras,

    “[...] a prática da manumissão, somada ao impacto devastador daconquista sobre as populações indígenas e ao precoce aporte da mi-gração forçada de africanos, alimentou o fenômeno da mestiçagementre os diversos grupos étnicos em interação, sendo reversamentepor ele alimentada.” (Berbel, Marquese & Parron, 2010, p.38).

    No delinear desse processo, é possível começar a observarcomo padrões culturais assentados em práticas sociais duradou-ras, tradicionais, deram o tom ao movimento que levou à mon-tagem do sistema colonial coordenado pelos estados ibéricos.Sob tal enquadramento, a escravidão negra, tomada como umelemento nuclear de uma vasta estrutura histórica, será abordadapor meio da análise integrada (incorporada) dos aspectos relacio-nados à dinâmica processual de transmissão e recriação  impressa

    nos textos normativos, cuja lógica deve ser brevemente esboçada.De partida, é preciso acusar que tanto a ordem legislativa portu-guesa quanto a castelhana foram marcadas por continuidades edescontinuidades em relação aos estatutos europeus ou às medi-das publicadas em momento pretérito. As normas eram emitidaspara solucionar problemas que iam surgindo, para obter maioresproventos para a Coroa, conservar a ordem e assim por diante.Em diversas ocasiões, eram lançadas disposições que inovavamou mesmo contradiziam o conteúdo dos textos originários. En-

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    tretanto, ao perceber que o objetivo de sua publicação não haviasido alcançado ou que poderiam causar abalos à ordem constitu-ída, o poder central não hesitava em derrogá-las, ratificando uma

    vez mais o teor dos antigos dispositivos jurídicos, encarnados,mais diretamente, nas Siete Partidas  e nas Ordenações do Reino.Com efeito, em um movimento constante de fluxo e refluxo, Par-tidas  e Ordenações se consagrariam como esteios legais perenes,para os quais sempre se poderia retornar em caso de insucesso napromulgação das normativas que extrapolavam seu conteúdo oumesmo para suprir os vazios deixados pela nova legislação.

    Em razão das limitações inerentes a este gênero de estudo,optou-se por um recorte temático que propiciasse a apreciaçãode algumas das feições mais candentes do fenômeno destacado. Assim, os temas abordados com maior minúcia, quanto à suainserção no ordenamento jurídico, serão a manumissão e as po-líticas de controle da rebeldia escrava. A eleição de tais temas justifica-se por duas razões fundamentais. A primeira diz respeitoao seu peso destacado na configuração dos regimes de escravidão

    implantados na América ibérica. Nas páginas anteriores, foramlançados sinais a respeito da centralidade da prática da manumis-são no escravismo atlântico português e castelhano, cujo impactose fez presente não apenas na maneira como se deu a assimilaçãosocial dos antigos escravos, mas na própria manutenção do siste-ma de escravidão. As políticas de controle também constituíamelemento vital, pois concorriam para que houvesse um ambienteminimamente estável para a exploração do trabalho escravo. É

    provável que esta afirmação possa ser aplicada aos diversos con-textos onde houve escravidão; portanto, o que interessa aqui é ve-rificar o seu desenvolvimento específico no caso ibero-americano.Cumpre esclarecer que estão sendo compreendidas aqui comopolíticas de controle o conjunto de práticas adotadas pelos go-vernos no sentido de coibir fugas, levantes e as diversas formasde rebeldia manifestadas pelos cativos, o que não se restringiaà montagem de aparatos repressivos. É possível identificar umasérie de medidas ou procedimentos que, de modo mais ou me-

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    nos explícito, buscavam atacar não apenas os efeitos, mas, tam-bém, as causas da rebeldia, dentre quais, pode-se citar a própriaausência de impedimentos à libertação dos escravos. Tratam-se,

    portanto, de dois temas essenciais, cuja configuração se dava demaneira bastante imbricada. A segunda razão levada em conside-ração para o recorte encontra-se na existência de disposições so-bre ambas as matérias editadas antes e depois do estabelecimentoda escravidão no Novo Mundo. A sua consideração possibilita aanálise do trâmite dialético que envolvia a elaboração e a vigênciadas normativas, numa vinculação processual entre a gênese e aconfiguração renovada da tradição legal ibero-americana referen-te à escravidão negra entre as balizas cronológicas fixadas.

    Como indicado na abertura desta introdução, o período estu-dado se estende basicamente do início do século XVI à primeirametade do século XVIII. Esta delimitação temporal fundamenta-se na observância do contexto conceitual e doutrinal sobre o qualse realizava a produção legislativa. Trata-se do período em queprevalecia a cultura jurídica do direito comum  ou  ius commu-

    ne , cuja base era a compilação bizantina conhecida como CorpusIuris Civilis  ou, mais simplesmente, Código de Justiniano, quenitidamente embasou a constituição da ordem legal escravistadas metrópoles ibéricas. Como destaca Nuno Espinosa Gomesda Silva, nesse período “o rei legislará para esclarecer, completarou, até, afastar as soluções romanas, mas o direito romano serásempre ponto de referência” (1980, p.35).

    O corpus   documental é composto primordialmente pelo re-

    pertório de fontes jurídicas presentes nas compilações inseridas novolume Nuevas Aportaciones a la Historia Juridica de Iberoamerica ,da série Proyectos Históricos Tavera, acessíveis em formato digital(Andrés-Gallego, 2000). Do lado português, foram consultados ostextos normativos integrantes das Ordenações Manuelinas (1521),das Ordenações Filipinas  (1603), além da legislação extravagante  eConsultas do Conselho Ultramarino com as subsequentes resolu-ções  régias. Tudo isso disponível na coletânea intitulada “Legislaçãosobre escravos africanos na América portuguesa”, organizada pela

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    historiadora brasileira Silvia Hunold Lara. Do lado castelhano,foram examinadas disposições contidas no Fuero Juzgo (654), nasSiete Partidas   (1265), além de normativas do período, de caráter

    geral e particular, inseridas na compilação “Leyes para esclavos: elordenamiento jurídico sobre la condición, tratamiento, defensa yrepresión de los esclavos en las colonias de la América española”,editada pelo historiador espanhol Manuel Lucena Salmoral.4

    Todavia, para satisfazer o escopo da pesquisa, tratou-se derecorrer, na medida do necessário, a publicações mais completase a textos indisponíveis no Cd-Rom. Além de certas carênciaspontuais observadas na seleção espanhola, buscou-se suprir a la-cuna representada pela ausência de normas locais na coletânea deleis portuguesas. Isto porque Lucena Salmoral reuniu não ape-nas as disposições editadas pelo governo metropolitano, comotambém aquelas produzidas pelas instâncias governativas estabe-lecidas nas Índias. Em verdade, a enorme profusão legislativa,a destacada sofisticação dos instrumentos normativos formula-dos localmente, a marcante discussão presente na historiografia

     jurídica hispânica acerca da importância da legislação criolla  naconformação do direito indiano, bem como o peso efetivo dasdisposições lançadas por cabildos , audiencias, virreyes  e gobernado-res na regulação das questões relacionadas à escravidão, tornariamaltamente problemático o não recolhimento das normas produzi-das no ambiente colonial espanhol (Lucena Salmoral, 2000, p.7;para mais informações: Altamira y Crevea, 1944-1945, pp.1-77e 345-389; Sánchez-Arcilla Bernal, 1999, 2v). Silvia Lara, por

    seu turno, agrupou apenas a legislação metropolitana, o que é justificável pela competência legislativa limitada das esferas co-loniais lusitanas. Assim, a compilação organizada pela autoradeixou de lado “cartas, bandos e outras determinações expedidaspelos governadores-gerais, vice-reis e pelas Câmaras coloniais –

    4 Cabe apenas observar que as fontes castelhanas reproduzidas no corpo dotexto foram traduzidas para o português a fim de facilitar a leitura.

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    que não possuíam alçada ou jurisdição para a criação de normasmas somente para sua execução” (Lara, 2000, p.48). De fato, opoder de ordenar leis para a colônia era uma prerrogativa do mo-

    narca português, que somente em casos particulares consentiaaos governadores o decreto de atos normativos, como bandos eregimentos, sendo lícito às Câmaras legislarem apenas a respeitode matérias bastante específicas da administração municipal (Trí-poli, 1936, pp.45-46). Todavia, mesmo que em escala e comple-xidade comparativamente reduzidas, não se pode negar que partedo direito positivo vigente na América portuguesa era produzidoin loco. Com efeito, para melhor compreender a regulação da es-cravidão no interior da América portuguesa e compará-la com aspolíticas estabelecidas nas Índias de Castela, tratou-se de incluirao repertório de fontes estudadas documentos produzidos pelasautoridades coloniais lusitanas, tivessem eles cunho propriamen-te legal ou expressassem a perspectiva dos agentes locais diantedo que estava sendo determinado a partir do Velho Mundo. Taldocumentação não é inédita e encontra-se publicada em anais e

    revistas históricas, conforme discriminado ao longo do trabalho ena seção dedicada à fontes ao final da publicação.O livro está, então, dividido em três capítulos, sendo finalizado

    por um arremate de caráter interpretativo. No primeiro capítulo,busca-se analisar a gênese da tradição, isto é, a constituição do arca-bouço legislativo que embasou a regulação da escravidão negra na América ibérica. No capítulo segundo, a partir de uma discussãoteórica a respeito do sentido da liberdade no contexto sócio-jurídi-

    co recortado, desenvolve-se uma análise dos fundamentos legais damanumissão e de seu impacto societário em termos de constituiçãodo que à época poderia ser compreendido enquanto cidadania. Oterceiro capítulo é dedicado à questão das políticas de controle nosmoldes assinalados, isto é, aos recursos utilizados para conferir es-tabilidade à ordem social escravista. O capítulo de arremate segueuma linha de complementaridade em relação ao tópico inicial. Decaráter mais formal, e à luz das análises empreendidas nos demaiscapítulos, busca-se nele fornecer uma explicação satisfatória para

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    inexistência de um Código Negro para o contexto ibero-americanono período assinalado. A ideia, enfim, é desnudar ao máximo alógica embutida no modo ibérico de produção das leis e do direito

    escravista, de uma maneira mais ampla.5 O empreendimento executado não abarca uma apreciação

    diacrônica de todas as fontes consultadas ao longo da pesquisa,mas, antes, uma abordagem qualitativa voltada para a constru-ção de uma visão de conjunto. Como será possível observar, sãorealizados constantes avanços e recuos no tempo e no espaço. Opropósito embutido nesse expediente é o de recompor o processode formação da tradição legal, discernir permanências e trans-formações na ordem jurídica. As limitações do trabalho o leitorterá, é claro, a oportunidade de pontuar. Mas uma delas pode seradiantada, qual seja, a ausência de instrumentos efetivos que per-mitam proceder uma variação nas escalas de observação a pontode ser possível aferir mais eficazmente o que se poderia chamar decumprimento das leis, isto é, até ponto, por exemplo, as hedion-das punições previstas aos escravos prófugos foram aplicadas ou

    quantos teriam sido os “libertos ingratos” restituídos aos antigossenhores, conforme previa a lei. De fato, esta é uma limitação aser reconhecida, ainda que a sua solução seja enormemente difi-cultada pelo recorte efetuado. Felizmente, a natureza mesma dasfontes, o caráter epistolar de grande parte da legislação, o proces-so explanatório que envolvia a outorga, a reiteração e a eventualrevogação das medidas, a retórica utilizada e até as ausências e“silêncios” observados – tudo isso colaborou para que o estudo

    não se tornasse totalmente inócuo nesse sentido. O que se espera,afinal, é que a comparação delineada forneça uma aproximaçãoalgo significativa acerca do fenômeno da escravidão, gerando, nopanorama mais otimista, novas possibilidades de estudo.

    5 Toma-se aqui de empréstimo a maneira como a historiadora Silvia Laraempregou a categoria “modo de produção” para se referir às instituições e

    mecanismos concernentes à produção legislativa, que remete à compreen-são da lógica encravada em sua amarração (Lara, 2000, p.14).

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    CAPÍTULO 1

    Escravidão, tradição legal e a sua gênese

    Como se sabe, não chegou a ser criado um código específicopara a escravidão negra na América portuguesa e as sucessivastentativas castelhanas nesse sentido, empreendidas na segundametade do século XVIII, foram malogradas. Entretanto, é cer-to que houve uma tradição legal concernente à escravização dosafricanos e de seus descendentes, tanto para o Brasil como para as

    “Índias de Castela”. A finalidade deste capítulo é perscrutar a gê-nese e a conformação de tal tradição, algo que remete ao cerne desua ordenação legislativa. Como será possível averiguar ao longodo trabalho, apesar das notáveis especificidades existentes entreos diplomas legais vigentes baixo às bandeiras de Castela e dePortugal, a maneira historicamente imbricada como se deu o seuprocesso de gestação, o compartilhamento de certos pressupostosbásicos e a lógica análoga que permeava o seu funcionamento

    são elementos que permitem falar em uma tradição legal ibéricasobre a escravidão afro-americana.

    1.1. GENERALIZAÇÃO  E  CONTRAPONTO:  A   TRADIÇÃO  LEGAL  NA  HISTORIOGRAFIA 

     A pressuposição de uma tradição legislativa acerca da escra-

    vidão particular aos estados ibéricos não é novidade na historio-grafia. Na primeira metade do século XX, com enorme destaque

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    para especificidades no campo jurídico, estabeleceu-se um fortecontraponto entre a escravidão desenvolvida nas possessões por-tuguesas e espanholas, tomada em bloco, e aquela implantada na

     América anglo-saxônica. Críticas posteriores discutiram a valida-de desse contraponto, acenando para a unicidade do fenômenoda escravidão no Novo Mundo. Da tendência generalizadora deambos os pontos de vista resultou, entre outras coisas, uma notá-vel carência de estudos que comparassem diretamente o sistemaescravista luso com o hispânico.

     A oposição entre o escravismo ibérico e o anglo-americanoganha destaque pronunciado no mencionado livro de Frank Tan-nenebaum, Slave and Citizen, publicado originalmente em 1946.Essa obra, como se sabe, estabeleceu um influente paradigmapara os estudos comparativos envolvendo a escravidão negra nas Américas. No esquema do autor, haveria uma divisão em trêsgrupos: um formado por britânicos, americanos (do norte), ho-landeses e dinamarqueses; outro, por portugueses e espanhóis; e,um último, por franceses, que ocupariam uma espécie de lugar

    intermediário. O primeiro grupo distinguir-se-ia por não possuiruma experiência na prática escravista ou um repertório de leisrelativas à escravidão; suas instituições religiosas estariam pou-co atentas à situação dos negros. O grupo ibérico, em distinção,concentraria tanto a experiência prévia quanto a tradição legisla-tiva correspondente, bem como a convicção generalizada de quea personalidade espiritual do escravo transcendia a sua condição. Aos franceses também faltaria a experimentação no trato com

    a instituição e um conjunto de leis pertinentes, muito emboracomungassem dos mesmos princípios religiosos de portuguesese espanhóis (Tannenbaum, 1946, p.65, nota 153). Apesar des-sa classificação mais ampla, a obra concentra-se na polarizaçãoibéricos versus   anglo-saxônicos. A ideia central que a permeiaé a de que as diferenças de ordem moral e legal determinaramtanto as relações coevas ao mundo da escravidão como as confi-gurações interétnicas tecidas após a emancipação. Uma pretensasituação mais favorável encontrada pelos cativos nas possessões

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    luso-hispânicas resultaria em um menor preconceito racial nospaíses latino-americanos. A sociedade racista e estratificada dosEstados Unidos seria decorrência de um regime bem mais severo

    e restritivo quanto aos “direitos” dos escravos.Para descrever a escravidão portuguesa e a espanhola, Tan-

    nenbaum tomou como base uma constatação histórica proceden-te, qual seja, a de que aquela instituição persistiu na PenínsulaIbérica no período em que havia praticamente desaparecido dorestante da Europa ocidental. Em verdade, para o autor, maisimportante do que a continuidade da prática escravista teria sidoa sobrevivência de uma longa tradição legal acerca da escravidão,herdada do Código de Justiniano e condensada na célebre com-pilação do rei d. Afonso, o Sábio, as Siete Partidas , organizadaentre os anos de 1263 e 1265. Este “código”, forjado no interiorda doutrina cristã e pautado no princípio de que a escravidãocontrariava o direito natural , reconheceria a humanidade dos ca-tivos, garantindo-lhes condições mínimas de existência e o acessoà liberdade através da manumissão. Mais adiante, no processo de

    expansão ultramarina, todo aquela tradição seria transferida parao novo continente juntamente com os ibéricos, intermediandoa absorção social dos africanos enquanto escravos e tornando-os, por conseguinte, beneficiários de uma antiga herança jurídicaque fazia do cativeiro uma situação transitória. De tal modo, es-tariam sendo fincados os alicerces para um mundo pós-aboliçãoaberto à integração e desprovido das barreiras de cor criadas nasantigas colônias controlas pelos britânicos (Tannenbaum, 1946,

    pp.48-53; 127).Deve-se sublinhar que a oposição entre a severidade do es-

    cravismo anglo-americano e a brandura do regime ibérico nãofoi criação de Frank Tannenbaum. A visão idílica da escravidãoluso-brasileira foi construída em grande medida a partir de rela-tos de viajantes que percorreram o Brasil durante o século XIX,tais como Auguste de Saint-Hilaire, Henry Koster, João MaurícioRugendas, George Gardner, John Luccock, entre outros. Nessestextos, o tratamento dispensado aos escravos no Brasil não raro

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    era caracterizado como pouco rígido, e até bastante benevolente.Tais narrativas divulgariam para o exterior, ainda no oitocentos , osuposto “paraíso racial” brasileiro, servindo de base, já naquele

    tempo, para formulações que buscavam ressaltar o “inferno ra-cial” norte-americano. Como indica Celia Marinho de Azevedo,os abolicionistas estadunidenses estiveram entre os que se vale-ram do dito contraponto. Ao contrastar sua sociedade com a bra-sileira, aqueles homens buscavam destacar a singular severidadedos senhores de escravos sulistas e o forte racismo já perceptívelàquela altura (Azevedo, 2003, pp.147-198). Além disso, nas Cor-tes de Lisboa (1821-22) e na Assembleia Nacional Constituintedo Rio de Janeiro (1823), deputados brasileiros valeram-se deargumentos similares para defender a continuidade da escravidãono Brasil (Berbel, Marquese & Parron, 2010, pp.95-181).

    Tampouco foi Tannenbaum o primeiro a acenar para umalegislação espanhola comparativamente mais benéfica para osescravos. A obra oitocentista do cubano José Antonio Saco, His-toria de la esclavitud de la raza africana en el Nuevo Mundo, por

    exemplo, baseava-se firmemente nessa concepção:

    “É justo reconhecer [...] que a legislação espanhola foi muito maismorna e benéfica para com os negros escravos que a de outras na-ções européias que tiveram colônias no Novo Mundo. Daí proveio aabundancia de libertos que desde os primeiros tempos da conquistahouve nos domínios espanhóis” (Apud Tardieu, 2000, p.229).

     Assim, os autores do século XX que se dedicaram a demons-trar que a prática escravista e as relações raciais latino-americanaseram qualitativamente distintas das norte-americanas, na reali-dade, estavam reavivando argumentos ideológicos que haviamestado em voga um século antes, em círculos bastante diversos earticuladas outros propósitos. A releitura efetuada dessa linha deargumentação baseou-se em larga medida nos ensaios de Gilber-to Freyre, os quais, como não poderia deixar de ser, estiveram portrás da maneira como Tannenbaum caracterizou o papel distinto

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    ocupado pelos negros na América Latina, com destaque para oslivros, O mundo que o português criou, de 1940, e Brazil: An Inter- pretation, de 1945 (Tannenbaum, 1946, pp.3-4; 119).

    Mesmo que não tenha sido de todo inovadora, a obra deFrank Tannenbaum, como assinala Silvia Lara, “deu novo alentoà visão idílica da escravidão no Brasil e inaugurou, de certa ma-neira, uma série de estudos comparativos entre as diversas regiõesescravistas” (Lara, 1988, p.98). O trabalho do historiador StanleyElkins pode ser enquadrado nessa série. O autor opôs uma Amé-rica do Norte capitalista, secularizada e sem controles institucio-nais relacionados às práticas escravistas, às colônias portuguesase espanholas, baseadas em culturas conservadoras, paternalistas,norteadas por instituições legais e eclesiásticas que teriam geradouma escravidão muito mais “moderada”. A diferença não estariatanto no bem-estar dos escravos latino-americanos, mas em seureconhecimento enquanto seres humanos (1959). Herbert Klein,em seu trabalho comparativo sobre Cuba e Virginia, adotariauma perspectiva semelhante (1967).

     A reação não tardou a aparecer. A partir da década de 1960,a dicotomia estabelecida entre a escravidão latino-americana e aanglo-americana passou a ser criticada de maneira sistemática.Diversos estudiosos se dedicaram a comprovar que nenhuma co-lônia ou território escravista detinha o monopólio da branduraou da crueldade; que o uso da violência constituiu instrumentobasal e recorrente para manutenção da estrutura de dominaçãosenhorial de um canto a outro do continente; que o tráfico tran-

    satlântico conferiu certa uniformidade ao fenômeno da escravi-dão; que fatores como oscilações de mercado, superprodução,guerras externas, entre outros, influíam na intensidade da explo-ração da força de trabalho dos negros cativos (Harris, 1964; Sio,1965, pp.289-308; Davis, 1966; Mintz, 1969, pp.27-37). Não édemais salientar que para a construção deste panorama foi fun-damental o diálogo tecido com os trabalhos dos cientistas sociaisda chamada “Escola de São Paulo”, os quais descortinaram para ocaso brasileiro uma realidade duríssima, muito distante das ima-

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    gens delineadas na obra de Gilberto Freyre (Ianni, 1962; Cardo-so, 1962; Viotti da Costa, 1966; Beiguelman, 1967).6 

    O expressivo estudo de David Brion Davis pode ser destaca-

    do como um dos expoentes do viés crítico e as suas reflexões acer-ca da legislação relativa à escravidão são particularmente relevan-tes. Para o historiador, as diferenças nacionais e culturais teriamsido sobremaneira exageradas por autores como Tannenbaum eElkins. Ele atenta para o fato de que “todos os proprietários ame-ricanos de escravos compartilhavam certos pressupostos e pro-blemas centrais”. Exceto no que diz respeito às barreiras legaispara a alforria, as características principais da escravidão norte-americana podiam ser facilmente encontradas entre espanhóis eportugueses. Em toda parte o negro seria tido como um bemmóvel e transferível, cuja força de trabalho e bem-estar era con-trolada de forma irrestrita por outra pessoa (Davis, 2001, p.277).

    O autor pondera sobre o efetivo peso dos textos jurídicospara a diferenciação dos sistemas de escravidão. Conforme o seuentendimento, dera-se muita importância ao reconhecimento

    efetuado nas Siete Partidas  de que a liberdade seria uma condiçãonatural do homem e ao fato de serem garantidos certos “direitos”aos escravos. Para ele, a argumentação criada em torno disso per-de embasamento ao se constatar que os mesmos princípios foramincorporados pelas leis norte-americanas e que o “código” espa-nhol tornava os cativos e suas posses totalmente subordinados aoarbítrio dos senhores, os quais teriam inclusive o direito de matá-los em determinadas circunstâncias. Além do que, uma parcela

    da legislação inicial espanhola e portuguesa voltada para protegeras populações indígenas teria sido erroneamente estendida aosnegros. Não obstante, o autor não deixa de observar as diferenças

    6 O ponto de partida para essa série de estudos reside em pesquisas realizadasainda no final da década de 1950 por Roger Bastide e Florestan Fernandes,as quais estão inseridas no livro Brancos e Negros em São Paulo, de 1958. Os

    seguintes trabalhos obtiveram resultados semelhantes, podendo ser enqua-drados na mesma tendência: Stein, 1957; Boxer, 1967; Queiroz, 1977.

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    existentes com respeito aos entraves legais para a manumissão,reconhecendo que os negros tiveram mais oportunidades paraalcançar a liberdade nas possessões ibéricas do que nas colônias

    inglesas e nos Estados Unidos (Davis, 2001, pp.258-59; 277).Em que pese a pertinência geral dos apontamentos críticos

    efetuados por Brion Davis, as possibilidades diferenciadas paraa consumação da manumissão, um dos argumentos centrais deTannenbaum para definir o contraste entre a América Latina ea Anglo-saxônica, não foi por ele rebatido, nem poderia. Assimsendo, não teria o autor de Slave and Citizen mais nada a nos en-sinar sobre o direito escravista? Na verdade, essa questão serviu demote para um fórum acadêmico veiculado pela Law and HistoryReview  há alguns anos atrás. O debate foi travado em torno doartigo “Slavery and claims-making in Cuba: The Tannenbaumdebate revisited”, escrito pelo historiador cubano Alejandro dela Fuente, o qual, a partir de um balanço a respeito do estadoatual das pesquisas envolvendo direito e escravidão, problematizaalgumas das principais críticas efetuadas ao livro em questão (De

    la Fuente, 2004, pp. 339-69).7

     De la Fuente advoga a relevância hodierna do ensaio de Tan-nenbaum não apenas por ele ter estabelecido os termos do deba-te, mas, especialmente, por haver assinalado a importância dasnormas legais na demarcação das condições que abalizavam asexperiências de vida dos escravos. A despeito dos significativos es-forços para demonstrar que os regimes escravistas foram similaresem sua essência e que as diferenças eventualmente observadas de-

    correram de condições materiais e não da legislação, o problemada proporção da população liberta, sempre maior nas Américas

    7 Há uma versão do texto em castelhano: “La esclavitud la ley, y la reclama-Há uma versão do texto em castelhano: “La esclavitud la ley, y la reclama-ción de derechos en Cuba: repensando el debate de Tannenbaum”, 2004a,pp.37-68. Ver também os demais textos que integraram o fórum: Díaz,

    2004, pp.371-376; Schmidt-Nowara, 2004, pp.377-382, De la Fuente,2004, pp.383-388.

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    espanhola e portuguesa do que nos Estados Unidos, continuaproeminente.

    Brion Davis levou essa questão em consideração, afirmando,

    porém, que reconhecer a maior frequência da manumissão na América Latina e o fato de os descendentes de escravos terem sidoaí melhor integrados à sociedade não significa necessariamenteadmitir esse ponto como central. Nas palavras do autor:

    “A não ser que o cativo latino-americano sempre tivesse uma chan-ce razoável de tornar-se livre e de ser aceito como igual ao branco,e a não ser que os norte-americanos estivessem sempre firmementeem oposição ao princípio da alforria, recusando conceder ao ho-mem livre os mesmos direitos e as proteções mais elementares, adiferença poderia ser muito bem mais de grau do que de espécie”(Davis, 2001, p.299).

    No entender de De la Fuente, esse tipo de argumento nãosolapa o insight de Tannenbaum de que a frequência com que se

    realizava a manumissão influenciou, mais do que qualquer outroaspecto, o resultado final dos regimes de escravidão. De acordocom o historiador, embora as sociedades pós-emancipação latino-americanas não tenham sido a utopia racial uma vez pensada, elasforam diferentes dos Estados Unidos num aspecto fundamental:não criaram uma segregação institucionalizada (2004, § 15).

     As pesquisas realizadas não deixaram dúvidas acerca do cará-ter essencialmente violento da escravidão no continente america-

    no como um todo. Não está mais na ordem do dia questionar sea escravidão na América Latina foi ou não violenta. Mas, comodestacou a historiadora Keila Gringerg, as censuras efetuadas àobra de Tannenbaum e aos estudos desenvolvidos a partir delanão podem representar a desistência quanto à efetivação de es-tudos comparativos envolvendo os regimes de escravidão nas Américas (Grinberg, 2001, p.2). Desde que passe ao largo deespeculações sobre uma pretensa causalidade entre a brandurada escravidão latino-americana e a “democracia racial”, o escopo

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    comparativo tem muito a contribuir para o entendimento do es-cravismo moderno.

     Além do que, certas indicações presentes em Slave and Citizen 

    podem, sim, conservar valor razoável, gerando, se devidamenterevisadas, bons temas de pesquisa historiográfica. Naquele mes-mo texto, Alejandro de la Fuente sublinha um deles ao colocarem destaque as brechas legais existentes para a reivindicação de“direitos” por parte dos escravos. Pensando mais especificamentena escravidão cubana, o estudioso tenta encurtar a distância entreos dispositivos legais e a atuação social dos negros cativos a partirdo conceito de “reclamação de direitos”, ao mesmo tempo emque salienta o exagerado poder de transformação social atribuídopor Tannenbaum à legislação. Seriam, desta maneira, os escra-vos, ao efetuarem pressões e clamarem por certos benefícios ouretribuições, que confeririam significado concreto aos preceitosabstratos regulados pelas leis positivas (2004, § 29).

    Não obstante seja passível de questionamento o grau efetivoem que ocorreu a transplantação dos estatutos jurídicos antigos e

    os seus benefícios concretos para os escravos, é preciso reconhecerque tanto a continuidade do cativeiro na Península Ibérica du-rante os tempos medievais quanto a existência de um correspon-dente arcabouço legal influíram diretamente na configuração deuma tradição legal que embasou a ordenação da escravidão prati-cada nas colônias de Espanha e Portugal no Novo Mundo. Sabe-se que isso não impediu o recurso constante à violência. Mas édifícil acreditar que a formação de uma tal tradição não concor-

    reu em nada para a constituição de traços particulares aos regimesimplantados por aqueles estados. As maiores chances criadas paraa ocorrência de alforrias é um claro indicativo do contrário.

    Como sublinhado, Frank Tannenbaum acusou a ocorrênciade uma tradição legislativa sobre a escravidão como um fator dis-tintivo do regime ibérico. Contudo, em seu anseio por explicaras diferenças entre as relações raciais na América Latina e nos Es-tados Unidos, o autor perdeu de vista nuanças importantes. Emartigo cujas enunciações serão melhor discutidas mais adiante,

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    a historiadora Silvia Lara destaca que Tannenbaum generalizoude modo irrestrito a sua análise da legislação espanhola para oquadro português (Lara Ribeiro, 1980/81, 375-398). Assim, é

    preciso avançar com cautela, atentando para as particularidadesda ordem legal e do desenvolvimento da escravidão nos territó-rios coloniais ibéricos.

    Por outro lado, pode-se afirmar com equivalente vigor quea apreciação apartada dos ordenamentos jurídicos arquitetadosno seio dos reinos de Castela e de Portugal para a regulação daescravidão perde muito de sua complexidade. A história hámuito havia aproximado a experiência dos estados peninsulares,muito antes, registre-se, da referida amarração sistêmica de seuexpansionismo atlântico. As marcas deixadas na “Península cris-tã” pelas seguidas ocupações realizadas por romanos, visigodos emuçulmanos e a concomitante persistência da prática do cativei-ro imprimiram um substrato comum ao seu repertório jurídico-institucional (Blackburn, 2003, p.68). As influências inter-reinosforam igualmente fundamentais, não podendo deixar de ser leva-

    das em conta. Vale assinalar, por exemplo, que a independênciapolítica de Portugal em relação ao reino de Leão, no século XII,não correspondeu a uma imediata autonomia jurídica; a legisla-ção castelhana exerceria influência direta na conformação do sis-tema normativo lusitano, constituindo as Siete Partidas  uma dasfontes elementares para a formulação de sua primeira compilaçãode cunho normativo mais vasto, as Ordenações Afonsinas , datadasdo século XV (Caetano, 1981; Costa, 1996).

    1.2. A TRADIÇÃO LEGAL E O PROCESSO HISTÓRICO DE SUA  GÊNESE

    Existia na concepção jurídica geral da época do Antigo Re-gime uma clara tensão entre o respeito aos textos fundadorescanônico-romanos e a necessidade de inovação, de atualização datradição a fim de compatibilizá-la com o ambiente extratextual,isto é, a sociedade na qual os textos deveriam ser aplicados (Hes-panha, 2005, p.113). A constituição do direito indiano – termo

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    consagrado pela historiografia hispânica para descrever a ordem jurídica operante nos territórios da América e da Oceania quepertenceram à Monarquia Universal espanhola, comumente cha-

    mados Índias – e do que se poderia chamar de direito colonialluso-brasileiro levou essa mesma tensão a reboque. É evidenteque o contexto inaugurado pela expansão ultramarina foi segui-do de progressivas adequações e rearranjos jurídicos, tanto dolado português quanto do lado castelhano. Mas, como realçado,o desenvolvimento do arcabouço normativo relacionado à escra-vidão, que encontrou vigência na América ibérica, precede emmuito a empresa colonial, tendo acompanhado o processo mes-mo de formação política daqueles países, estando inserido, desdeo nascedouro, em seu repertório legislativo-doutrinal. Em sínte-se, embora o corpo legal associado à escravidão no Novo Mundotenha adquirido traços característicos e renovados, não fez tabularasa dos preceitos contidos na legislação anterior. Assim sendo, aanálise do processo de sua gestação demanda um exercício maiscomplexo do que simplesmente identificar o momento em que

    os escravos negros aparecem nas fontes normativas.Os textos normativos tratados na sequência, o serão por te-rem alguma importância no processo de constituição do orde-namento jurídico relativo à escravidão atlântica, compondo umexercício analítico dividido em três etapas. A primeira consisteem tornar explícitos os traços mais gerais da criação normativa,esclarecendo a maneira como se concebia a titularidade do direi-to. A segunda, em verificar o tratamento dado a um caso particu-

    lar relacionado à pratica do cativeiro em textos produzidos comoreação a contextos objetivamente distintos, mas que, no tempolongo, eram de algum modo incorporados à tradição. A terceira,em refinar as características do repertório legal relacionado es-pecificamente à escravidão dos negros no Novo Mundo ibérico.

    O exame deve ser iniciado pelo quadro castelhano, do qual oportuguês aparecera como uma espécie de ramificação, para aospoucos ir assumindo atributos específicos. O aspecto elementara ser observado é o de que o ordenamento atinente à escravidão

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    hispânica emanou de fontes jurídicas medievais de base romanis-ta plasmadas fundamentalmente no Fuero Juzgo e nas Siete Parti-das , que serviram de direito subsidiário até fins do período colo-

    nial (Lucena Salmoral, 2000, pp.07-25). O primeiro dispositivoexpressa a etapa inicial de formação do sistema jurídico romano-germânico e o segundo marca a penetração do ius commune  naPenínsula Ibérica. Embora as Partidas tenham encontrado maiorirradiação sobre os marcos regulatórios americanos, a considera-ção de ambos os conjuntos é fundamental para o entendimentodo processo de constituição do ordenamento jurídico em tela.

    O Fuero Juzgo, também conhecido como Código Visigótico,Liber Iudiciorum, Liber iudicum,  forum iudicum, Lex Visigotho-rum recesvindina , entre outras denominações, é uma compilaçãode leis proferidas por reis visigodos que foi aprovada no VIIIConcílio de Toledo, realizado no ano de 654 durante o reinadode Rescenvindo (649-672). As disposições legais que o compõeestão agrupadas em doze livros, segundo uma orientação temá-tica, e trazem a nota antiqua  ou antiqua noviter emendata , bem

    como a menção ao monarca que as ditou. Trata-se de uma ex-pressão mais acabada das chamadas leges barbarorum, em que oantigo direito consuetudinário de ascendência germânica (Volks-recht ) passava a receber o influxo de princípios extraídos do di-reito romano vigente quando da queda do Império Romano doOcidente (Azevedo, 2007, pp.92-98).

    O que chegou até nós foi a sua forma vulgata , uma ediçãorevisada que sofreu certas alterações relacionadas ao que se po-

    deria chamar de “direito público” e aos deveres dos monarcas,sendo-lhe adicionadas normativas dos reis Egica (687-702) eVitiza (702-710), outras leis extravagantes, e certos aditamentosdoutrinais. Esse “código” encontraria aplicabilidade em váriospontos da Península Ibérica no correr do medievo, tendo sidoconservado pelos moçárabes em suas comunidades no interiordas cidades muçulmanas e nos territórios cristãos de onde par-tiu o movimento de Reconquista. Ao que se sabe, foi no reinode Leão que obteve a sua maior penetração, tendo sido aplicado

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    também com frequência onde viria a ser território português (Sil-va, 1980, pp.145-148).

    No século XIII, em função da crescente atividade legislativa

    dos monarcas e do desencadeamento do processo de recepção dodireito romano justinianeu, o Código Visigótico  perderia pro-gressivamente a sua autoridade, sendo substituído pelas Partidas  como título preliminar no enquadramento doutrinal dos reinoshispânicos. Ainda assim, o Fuero Juzgo conservou algo de sua re-levância em terras castelhanas, sendo prescrito pelo rei como fue-ro municipal para cidades reconquistadas como Córdoba (1241)e Sevilha (1248). Na qualidade de direito local, seria incluído naordem de precedência estabelecida pelo Ordenamiento de Alcalá ,de 1348, e ratificada pelas Leyes de Toro, de 1505.8 Ao menos até1614, ao lado dos demais documentos legais castelhanos, teria,em tese, plena vigência nos novos territórios anexados à Coroaespanhola.

    O Fuero Juzgo recolheu a legislação sobre servidumbre  dosreis godos Leovigildo (573-586), Sisenando (631-636), Chin-

    dasvinto (642-649), Ervigio (680-687), e Egica (687-702), ese preocupou especialmente com a regulação relativa à fugados escravos, tanto assim, que um livro inteiro foi dedicado aessa matéria (Lucena Salmoral, 2000, p.15). Trata-se do LivroIX, De los siervos foidos, é de los que tornan, o qual é compos-to essencialmente por medidas contra aqueles que ajudassem,acolhessem, encobrissem ou não denunciassem escravos fugi-tivos ou ainda que se beneficiassem conscientemente do seu

    trabalho. As penas oscilavam entre o pagamento de multas,o ressarcimento do senhor lesado com escravo equivalente aoque fugira (um, no caso do fugitivo ser encontrado, dois oumais, caso não fosse), além, é claro, do açoitamento. Outrosaspectos como o casamento dos escravos e a manumissão, tra-

    8 Primeiramente, que se aplicassem as normas contidas do próprio Ordena-miento, em seguida os fueros  municipais e por fim as Partidas .

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    tada como franqueamento, também encontraram tratamentoem normas dispersas pelos Livros III, De los casamientos e delas nasciencias , e V, De las avenencias e de las compras , respec-

    tivamente.9 Uma medida que oferece um bom caminho para reflexão é

    precisamente a que impunha castigos para aqueles que libertas-sem escravos alheios: Livro IX, tít. I, n. II, Se alguno suelta elsiervo que suele fuir :

    “Quem solta o servo10 alheio fugido de ferros ou de outra ligadu-ra, pague X. soldos ao senhor do servo pela loucura que fez, se éhomem livre, e se não houver onde os pague, receba C. açoites, econstranja-o o juiz que demande aquele servo, e que o entreguea seu senhor; e se o não puder encontrar, que o juiz o faça pagaroutro tal servo; e se não o puder haver, seja ele seu servo. E se algumservo faz tal cosa sem vontade de seu senhor, receba C. azotes. E senão puder encontrar o servo que soltou, seja ele servo do senhor doservo que soltou. E quando que quer que o encontre, entregue-o

    a seu senhor, e o outro servo torne a seu senhor. E se o fizer comvontade de seu senhor, o senhor faça a emenda, que é de acima dita,que deve haver o homem livre” (1815, p.151). Não é demais observar que a titularidade do direito baseada

    nos princípios da igualdade e da unidade das pessoas é algo muitorecente. Em toda a tradição jurídica a que aqui nos reportamos,direitos, deveres e penalidades, prerrogativas e privilégios, eram

    atribuídos de maneira hierarquizada, em conformidade com asdefinições sobre o estado ou qualidade dos membros da socieda-de. Tanto para o direito romano quanto para a tradição do direito

    9 Consultar a edição fac-símile, Fuero juzgo en latin y castellano: cotejado conlos mas antiguos y preciosos códices de Madrid , por Ibarra, Impresor de Cá-mara de S. M., 1815.

    10 O termo servo, sierv o, em castelhano, refere-se aqui ao indivíduo em con-dição de cativeiro, seguindo a designação latina servi .

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    comum “o universo dos titulares de direito não era um universode pessoas, no sentido que o senso comum dá (e já então dava) àpalavra, mas de ‘estados’ (status )” (Hespanha, 2005, p.42).

     A norma reproduzida acima já exemplifica muito bem essemodelo. Em princípio, é possível notar uma diferenciação bá-sica com respeito ao estado de liberdade (status libertatis ) dostransgressores, isto é, havia castigos distintos para os homenslivres e para os escravos que cometessem o crime de soltar ser-vo alheio. O cativo que cometesse tal crime “sem vontade deseu senhor” deveria receber cem açoites; além disso, teria quepassar a servir o dono “do servo que soltou” ao menos até queo prófugo fosse restituído, o que compelia cada um a manterna linha os membros de sua escravaria. O homem livre, agin-do diretamente ou ordenando a escravo seu que libertasse o deoutrem, ficaria obrigado a pagar dez soldos de indenização aosenhor “do servo pela loucura que fez”, devendo receber cemaçoites se não tivesse como satisfazer esse valor. O juiz deveria,ademais, constrangê-lo a devolver o fugitivo ou a pagar outro

    escravo equivalente. Caso não pudesse cumprir com esta deter-minação, converter-se-ia ele próprio, homem livre, em escravodo tal senhor.

     As Partidas   silenciam sobre esta matéria em particular, masna legislação lançada para a América é possível encontrar puni-ções corpóreas até mais pesadas contra os indivíduos que liber-tassem escravos de terceiros. Nas ordenanzas  baixadas em SantoDomingo no ano de 1522, cujo texto será retomado mais adian-

    te, foi determinado que “nenhum negro nem escravo nem outra pessoa alguma  seja ousado de desferrar, soltar e desaprisionar ne-nhum escravo sem licença de se