13
Quipu, vol. 14, núm. 1 enero-abril de 2012, pp. 55-67. História do ensino de matemática no Brasil: História das influências da França e dos Estados Unidos nos cursos secundário e primario brasileiros * Universidade Federal de São Paulo, Brasil. Grupo de Pesquisa de História da Educação Matemática. [ 55 ] Summary The study attempts to show how historically were made appropria- tions of foreign educational proposals for teaching mathematics to pri- mary school and secondary education in Brazil. The analysis reveals the importance of textbooks as instruments of dissemination and circula- tion of French and American cultural models, to different school cul- tures are made for teaching mathematics in both grades of schooling. Para que serve a história da educação matemática? É possível pensar que uma das formas primeiras de levar em conta o diálogo entre campos de pesquisa diferentes seja a de responder questões como: Para que serve determinado saber? Essa é, aliás, a primeira pergunta que o leigo sempre faz a uma dada produção científica. Assim, em face de qualquer in- formação, vinda de campo de trabalho que nos é estranho, logo surge à mente perguntar sobre a utilidade de certos estudos. Esse tipo de interrogação pode ser visto não somente como uma forma de validar os esforços de pesquisa do outro, apenas a partir de uma concepção utilitária e imediatista da ciência. Uma dimen- WAGNER RODRIGUES VALENTE* http://www.revistaquipu.com

História do ensino de matemática no Brasil: História das ... · Cayley usou matrizes para descrever transformações geométricas lineares, rotações, translações e semelhanças

  • Upload
    letram

  • View
    214

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Quipu, vol. 14, núm. 1enero-abril de 2012, pp. 55-67.

História do ensino de matemática no Brasil: História das influências da França e dos Estados Unidos

nos cursos secundário e primario brasileiros

* Universidade Federal de São Paulo, Brasil. Grupo de Pesquisa de História da Educação Matemática.

[ 55 ]

Summary

The study attempts to show how historically were made appropria-tions of foreign educational proposals for teaching mathematics to pri-mary school and secondary education in Brazil. The analysis reveals the importance of textbooks as instruments of dissemination and circula-tion of French and American cultural models, to different school cul-tures are made for teaching mathematics in both grades of schooling.

Para que serve a história da educação matemática?

É possível pensar que uma das formas primeiras de levar em conta o diálogo entre campos de pesquisa diferentes seja a de responder questões como:

Para que serve determinado saber? Essa é, aliás, a primeira pergunta que o leigo sempre faz a uma dada produção científica. Assim, em face de qualquer in-formação, vinda de campo de trabalho que nos é estranho, logo surge à mente perguntar sobre a utilidade de certos estudos. Esse tipo de interrogação pode ser visto não somente como uma forma de validar os esforços de pesquisa do outro, apenas a partir de uma concepção utilitária e imediatista da ciência. Uma dimen-

WAGNER RODRIGUES VALENTE*

http://www.revistaquipu.com

Quipu, enero-abril de 201256

são positiva dessas interrogações deve estar na necessidade de sabermos em que medida um dado conhecimento específico pode contribuir para a transformação de situações problemáticas da vida presente. E, talvez, um diálogo mais profí-cuo possa ser estabelecido entre leigos e a produção científica, bem como entre pesquisadores de áreas diferentes, quanto mais seja possível descrever a impor-tância de um dado campo de investigações na resolução de problemas atuais. Trata-se, pois, academicamente, de perguntarmos sobre a relevância de tal tema ou assunto que vem sendo estudado. As dificuldades da chamada pesquisa de base – ou pesquisa pura – em participar desse diálogo é sempre muito grande. Não raro, ela vai buscar na história elementos para convencimento de sua im-portância. O caso da Matemática é emblemático. Há exemplos mencionados por historiadores desse saber que percorrem, praticamente, toda a sua trajetória.

Assim, poder-se-ia perguntar: para que serviram os trabalhos de Apollonius sobre as cônicas?

Em 1604, isto é, 1800 anos depois, o matemático e físico alemão Johannes Kepler leu os trabalhos de Apollonius e escritos islâmicos sobre o mesmo assunto, e estu-dou as suas aplicações no domínio da óptica (espelhos parabólicos). Em 1609 fez a afirmação brilhante (mas impossível sem o recurso à antiga teoria) de que as órbitas dos planetas deveriam ser descritas como elipses e não como círculos e epiciclos. Estavam lançados os principais alicerces para a teoria da gravitação de Newton.1

E as matrizes? Qual a sua utilidade?

Decorreram 60 anos desde o desenvolvimento da teoria das matrizes, como uma parte da matemática pura (1860), até à sua aplicação na Física. No princípio Arthur Cayley usou matrizes para descrever transformações geométricas lineares, rotações, translações e semelhanças. Em 1925, Heisenberg usou matrizes como ferramenta matemática («mecânica matricial») para descrever sistemas atômicos em mecânica quântica.2

Estes e inúmeros outros exemplos retirados da História da Matemática pelos matemáticos Felix Browder e Saunders Mac Lane estão postos no texto A rele-vância da Matemática. O título do artigo é revelador: será preciso ver para que serve a Matemática, para dizer sobre a sua importância… E essa serventia foi buscada nos exemplos históricos, na distâncias relativas que fizeram trabalhos produzidos numa esfera “pura” até serem utilizados como elementos para uma melhor compreensão da realidade.

1. Browder, F. E., Mac Lane, S., A relevância da Matemática, Lisboa, APM, 1988, p. 20.2. Ibídem, p.21.

http://www.revistaquipu.com

História do ensino de matemática no Brasil: História das influências da França... 57

Vistos esses exemplos, no âmbito matemático, atente-se para a história da educação matemática. Como campo de estudos muito recente, contido em área maior – a da Educação Matemática – a história da educação matemática carece, dessa forma, de justificativas. Para que serve a história da educação matemáti-ca? Qual o seu objeto de estudo? Uma possível resposta à segunda interrogação é a de que o pesquisador da história da educação matemática tem por ofício saber como historicamente foram construídas representações sobre os processos de ensino e aprendizagem da Matemática e de que modo essas representações passaram a ter um significado nas práticas pedagógicas dos professores em seus mais diversos contextos e épocas.

De qualquer forma, permanece a primeira interrogação. Dentro da especifi-cidade desse tipo de pesquisa como manter o diálogo com as urgências da edu-cação matemática? Dito de outro modo: visto que o ensino e aprendizagem da Matemática constituem-se desde há muito como algo problemático, o que têm a dizer os estudos históricos da educação matemática? Noutros termos, ainda: Para que serve a história da educação matemática? Qual a sua relevância?

Em entrevista publicada pela revista Sciences Humaines - SH, em seu núme-ro 18, dos meses setembro/outubro de 1997, uma última questão formulada ao historiador cultural francês Roger Chartier está reproduzida abaixo, bem como a resposta dada. A pergunta refere-se à utilidade da história para os tempos pre-sentes.

SH: Em conclusão, o senhor pensa que possamos, a partir dos estudos históricos, compreenderem o presente?

CHARTIER: Eu creio que isso é um contorno retórico dos historiadores, para justi-ficar a sua posição, dizer que o passado pode esclarecer o presente. Para mim, essa idéia é sem fundamento, pois eu penso que a história está fundada sobre a descon-tinuidade. Os eventos não se repetem e não há possibilidade de se voltar atrás no tempo e não há modelo dado pela história. Na Antiguidade os exemplos históricos serviam de guia para o presente. Esse não é o caso de hoje. Mas, por outro lado, um trabalho sobre os Templários, o império carolíngeo ou sobre o século XVII... tem uma relação com o presente, não por uma homologia possível das situações, mas porque esse trabalho pode levar o leitor a se apropriar de instrumentos críticos que podem ser úteis para o estudo de sua própria sociedade.3

A que serve, para o professor de matemática, os resultados da produção científi-ca sobre história da educação matemática? É presença comum, para responder a essa questão, o uso da mesma retórica construída pelos historiadores, menciona-da por Chartier. Em muitos estudos sobre história da matemática e/ou educação

3. Chartier, R., “Sciences Humaines”, Paris, núm. 18, 1997: 29 (Tradução nossa).

http://www.revistaquipu.com

Quipu, enero-abril de 201258

matemática ela se faz presente. Assim, o professor de matemática conhecendo a história da educação matemática compreenderia o estágio atual de seu ofício. Ou, de modo mais simples: a história da educação matemática é importante para entender os problemas do presente…

Tais assertivas não deixam de ser um canto da sereia, numa área onde a ne-cessidade de resolver problemas imediatos tende a absorver propostas de cunho extremamente pragmático. Valem, via-de-regra, os projetos que apontem sem mediações para a melhoria direta do ensino e aprendizagem da Matemática es-colar. A eles, o crédito de relevante é dado sem delongas. Daí, a justificativa retórica de que a história da educação matemática serviria para a compreensão dos problemas presentes… Mas, como diz Chartier, isso não se dá dessa forma. Não há uma transmissão direta, linear, do passado para o presente. A história não é regida por leis de causa e consequência. Então, para que serve a história da educação matemática ao professor de matemática?

O trabalho do historiador da educação matemática refere-se àquele de cons-trução de ultrapassagens de relações ingênuas, míticas, românticas e memoria-lísticas sobre as práticas do ensino de matemática realizadas noutros tempos. A utilidade de sua produção – cujo resultado é uma história da educação mate-mática – é a de considerar que, um professor de matemática que mantenha uma relação a-histórica com os seus antepassados profissionais possa, com a apro-priação dessa história, se relacionar de modo menos fantasioso e mais científico com esse passado. Isso tende a alterar as suas práticas cotidianas, que passam a ser realizadas de modo mais consistente.

As considerações elencadas acima, sobre a relevância da história da edu-cação matemática para o professor dessa disciplina, evidentemente, constituem uma aposta no devir, cujo cerne ancora-se no princípio de que mais conhecimen-to implica em melhores práticas de ensino: a alteração da relação que o profes-sor de matemática tem com o passado profissional de seu ofício leva, assim, a uma mudança de qualidade de suas práticas na realidade presente.

Ao tomar conhecimento da história da educação matemática, o professor de matemática beneficia-se daquilo que é o núcleo do trabalho do historiador, que no dizer de Chartier inscreve-se nas profecias sobre o futuro, por mais estranho que isso possa parecer:

Para situar melhor as grandezas e misérias das transformações do presente, talvez seja útil apelar para a única competência de que podem vangloriarem-se os histo-riadores. Têm sido sempre lamentáveis profetas, mas, às vezes, ao recordar que o presente está cheio de passados sedimentados ou emaranhados, puderam contribuir com um diagnóstico mais lúcido das novidades que seduziram ou espantaram os seus contemporâneos.4

4. Chartier, R., Escuchar a los muertos con los ojos, Buenos Aires, Madrid, Katz Editores, 2008, p. 15 (Tradução nossa).

http://www.revistaquipu.com

História do ensino de matemática no Brasil: História das influências da França... 59

Para as representações construídas por matemáticos e experts do ensino em diferentes tempos históricos sobre a matemática que deveria ser ensinada nas escolas, entram em ação as apropriações, feitas pelos professores, dessas repre-sentações. Serão elas – as representações – as responsáveis por guiar práticas que irão dar significado às ações didático-pedagógicas dos mestres em sala de aula. O conhecimento dessas representações sobre o passado da educação ma-temática deve possibilitar a realização de práticas de ensino e aprendizagem de melhor qualidade em tempos presentes.

Do ponto de vista das representações sobre o passado do ensino de mate-mática, aquelas ligadas à própria matemática que se ensina são muito fortes na condução das práticas pedagógicas dos professores. No geral, concentram-se na idéia de uma produção matemática descolada da realidade, fruto do saber e ima-ginação de gênios. Além disso, situam os conteúdos matemáticos que ensinam, longe dos contextos onde são feitas as seleções políticas, econômicas, sociais e, sobretudo, culturais desse saber.

Longe de querer tratar de toda essa problemática, de fato, tão complexa, este texto tem a intenção de analisar, aspectos da trajetória do ensino de mate-mática no Brasil, destacando as heranças recebidas de países como a França e os Estados Unidos, a partir do uso de livros didáticos. Como ocorre a seleção da matemática que deverá ser ensinada de forma elementar no Brasil, nos cursos secundário e primário? Com isso, reitera-se o suposto de que o professor que tiver uma relação histórica com o passado do ensino de matemática, melhor poderá exercer o seu ofício profissional.

A matemática do ensino secundário e a influência francesa no Brasil

Corre o ano de 1699. Preocupada com a defesa da Colônia, a Coroa Portu-guesa decide impulsionar a formação de militares em terras de além mar.

Era preciso ter no Brasil, oficiais bem treinados no manuseio das peças de ar-tilharia e com competência para construírem fortes. A costa brasileira, imensa, exigia inúmeras construções para preservar as terras conquistadas e proteger as riquezas que dela se iam extraindo. Cria-se, então, a Aula de Fortificações. Ape-sar dessa deliberação, muitas dificuldades surgiram para que o curso de pronto tivesse início. O principal deles era a falta de livros; livros para a instrução militar. Mais precisamente, livros adequados ao curso criado. Ainda em 1710, tem-se notícia de que a Aula de Fortificações não havia iniciado. Em matéria de artilharia, morteiros e bombas nada existia escrito em português. Que natureza tem esses livros? Verdadeiros tratados, pesados e sob a forma de volumosos tomos, que têm como conteúdo, um curso de matemática, seguido de instruções de manuseio de armas. Toda essa literatura é francesa. Pode-se imaginar quão inviável teria sido trazer à Colônia, caixas desses tratados estrangeiros, caríssi-mos, e confiá-los às mãos de alunos que mal sabiam ler.

http://www.revistaquipu.com

Quipu, enero-abril de 201260

As intenções portuguesas, relativamente à formação de militares, construto-res de fortificações, e adestradas na artilharia, podem finalmente ser realizadas quando do deslocamento de um militar português, José Fernandes Pinto Alpoim, ao Brasil. É justamente graças à Ordem Régia de 19 de agosto de 1738 que o ensino militar conhece uma nova fase: torna-se obrigatório a todo oficial. Em outros termos, nenhum militar poderia ser promovido ou nomeado se não tives-se aprovação na Aula de Artilharia e Fortificações.

Alpoim ministra o curso desde 1738 até sua morte em 1765. Nascido em Portugal em 14 de julho de 1700, seguiu os passos do pai, iniciando os estudos militares na Academia de Viana do Castelo, prosseguindo-os, posteriormente, em Lisboa. Acumulando experiência pedagógica, em suas aulas ministradas desde a época em que foi lente substituto na Academia de Viana do Castelo, Alpoim escreveu dois livros que se tornaram os primeiros livros didáticos de matemática escritos no Brasil: Exame de Artilheiros e Exame de Bombeiros, respectivamente em 1744 e 1748.5

A análise dessas obras revela como o ensino de matemática retirava da gue-rra, da necessidade de proteção, o sentido do ofício de ser professor de mate-mática.

Diferentemente dos primeiros livros de matemática utilizados pelos alunos artilheiros e bombeiros – livros de Alpoim – novos livros aportam no Brasil a partir das determinações do Marquês de Pombal, homem forte de Portugal, nas décadas finais do século XVIII. Essas obras estão representadas pelos textos de autores como Bélidor e Bézout.6 A adoção desses autores franceses leva em conta que as armas francesas são as melhores preparadas na Europa e, portanto, devem servir como referência para todos os outros países. No caso de Bézout, em especial, ele é um autor a ser adotado em diversos cursos não militares e permanecerá no Brasil, como referência, até o final do século XIX.

A adoção de Bézout e Bélidor inaugura no Brasil a separação entre Aritméti-ca e Geometria. Assim, é gerado o embrião de duas disciplinas autônomas den-tro das escolas. Será essa Matemática, inicialmente ligada diretamente à prática que, desenvolvida pedagogicamente nas escolas técnico-militares, organizada, dividida e didatizada para diferentes classes passa, como se analisa a seguir, para os colégios e preparatórios do século XIX, orientando autores brasileiros a escreverem os primeiros livros didáticos nacionais.7

5. Valente, W. R., Uma história da matemática escolar no Brasil, 1730-1930, São Paulo, Annablume, 2007.

6. Cite-se, como exemplo: Bélidor, B. F., Novo Curso de Mathematica, para uso dos oficiais engenheiros e de artilharia, Trad. Manuel de Souza, Lisboa, Oficina de Miguel Manescal da Costa, 1742. E, ainda: Bézout, E., Cours de mathématiques à l´usage des gardes du pavillon et de la marine, Paris, J. B. G. Musier, 1764-1769.

7. Valente, W. R., Uma história da matemática escolar... op. cit.

http://www.revistaquipu.com

História do ensino de matemática no Brasil: História das influências da França... 61

Os debates educacionais no Brasil, pós-Independência (1822) privilegiam a criação de uma Universidade. As discussões ocorrem no único fórum existente àquele tempo: o novo Congresso Nacional. De fato, não é criada uma Universi-dade, apenas dois cursos jurídicos, em 1827, para onde se dirigem os filhos da elite do novo país. Tempos mais adiante, novos cursos superiores são criados. De outra parte, dez anos mais tarde, em 1837, é criado o Colégio Pedro II, nos moldes dos liceus franceses.

A criação do Colégio Pedro II, revela o esforço de introduzir no país a re-ferência de formação do homem culto, saído de um curso de formação geral, bacharel. A partir de então, várias são as tentativas de exigência do bachare-lado como condição de acesso aos cursos superiores. Isto é, diversos projetos acenavam com a obrigatoriedade do diploma do secundário seriado para in-gresso nas faculdades. Reformas e reformas do ensino que ora propunham rigor máximo nas exigências para entrada no superior; ora queriam deixar o ensino livre de qualquer amarra oficial, de algum modo intentavam organizar o ensino secundário. Essas batalhas, quase sempre, no século XIX, foram causas per-didas. Via de regra, os alunos permaneciam no Colégio Pedro II estudando as disciplinas dos preparatórios e, ao cabo dos exames, abandonavam a instituição, com os exames parcelados realizados, rumo à matrícula no ensino superior. O ensino secundário seriado não se difundia. As exigências de escolaridade de nos-sas classes favorecidas estavam voltadas para a formação do doutor- deferência social dada a todo aquele que tivesse cursado estudos superiores. E, quanto mais rápido isso pudesse se realizar, tanto melhor. O caminho dos preparatórios era muito mais rápido do que o da seriação escolar secundária. Preparar-se para o ensino superior, para o ingresso nas faculdades, representava estudar os pontos dos exames. Esses pontos organizavam, por exemplo, toda a Matemática escolar e seu ensino.

Os pontos dos exames parcelados serão referência, também, para a elabo-ração de toda uma literatura escolar. E ela é elaborada a partir de obras francesas para o ensino de matemática.

O trabalho didático-pedagógico de ensino de matemática, a esse tempo, consiste, então, em fazer com que seus alunos fixem os pontos. Com a lista deles, o candidato preparava-se para as provas escritas e orais. A preparação lançava mão das apostilas elaboradas a partir dos pontos. Saber cada um deles de cor era o modo de ser bem sucedido no ingresso ao ensino superior. Essa a tarefa maior de nosso parente profissional dos tempos de preparatórios. Cada faculdade selecionava os pontos a serem estudados pelos candidatos dentro do conjunto das disciplinas. Um a um os exames deveriam ser eliminados. A cada um deles, um certificado. De posse do conjunto de certificados, que atestavam a conclusão das disciplinas, o candidato ganhava o direito de matrícula no ensino superior.

Nesse sistema, o professor de matemática brasileiro permaneceu e sedimen-tou sua prática por cem anos! O ensino secundário, no Brasil, durante esse pe-

http://www.revistaquipu.com

Quipu, enero-abril de 201262

ríodo tem a marca dos cursos preparatórios, dos cursos não regulares e seriados. E sua referência são as obras francesas, de onde são retirados os temas, os pon-tos, os exercícios que farão parte dos exames de acesso aos cursos superiores.8

A matemática do ensino primário e a influência estadunidense no Brasil

Tratar da matemática do ensino primário, em termos de livros didáticos, no Brasil, e de sua caracterização a partir de finais do século XIX, leva a con-

siderar a influência estadunidense de configuração de uma cultura de ensino de matemática diferenciada daquela do ensino de secundário.

De modo abreviado, mas representativo, é possível dizer que o tratamento e a seleção de conteúdos da matemática a serem ensinados nos primeiros anos escolares, até finais do século XIX, utiliza, em boa medida, um processo de re-dução. Explica-se: tomam-se os livros destinados ao curso secundário e, a partir deles, procede-se de modo a cortar, reduzir conteúdos, ficando-se com idéias iniciais, para elaboração de obras destinadas ao curso primário. Essa prática é muito reiterada na produção das primeiras obras, dos primeiros autores brasilei-ros de livros didáticos brasileiros.

Esse procedimento começa a sofrer alteração e dar lugar a outro tipo de pro-dução, a partir da criação dos chamados Grupos Escolares. E com eles, tem-se visibilidade da influência estadunidense nos discursos direcionados às práticas pedagógicas dos professores primários, sobretudo, aqueles encontrados nos li-vros didáticos destinados aos anos iniciais da escolarização. Os Grupos Escola-res representam um novo paradigma de organização do ensino. São criados no estado de São Paulo, a partir de 1893, espalhando-se como modelo de ensino primário para todo o país, ao longo das décadas iniciais do século XX. Repre-sentam fruto das ações de republicanos paulistas, amparados pelo protagonismo econômico que o estado de São Paulo passa a ter nas décadas finais do século XIX, assim permanecendo até os dias de hoje.

As ações desenvolvidas pelos reformadores paulistas, em prol do ensino pri-mário, a partir da década de 1890, incluem a interferência nas práticas pedagógi-cas. Evidencia-se a ênfase na formação profissional. As ações dos reformadores, que é possível caracterizarem como orientações para as práticas pedagógicas visam o professor que já trabalha nas escolas primárias. Urge modificar o ensi-no nas escolas paulistas. Revistas pedagógicas, cadernos e materiais de ensino constituem os meios para levar adiante as transformações na instrução pública, enquanto é mantida a estrutura curricular similar àquela da escola secundária.

8. Valente, W. R., “Quem somos nós, professores de matemática?”, Cad. Cedes, vol. 28, núm. 74, 2008: 11-23. Disponível em http://www.cedes.unicamp.br

http://www.revistaquipu.com

História do ensino de matemática no Brasil: História das influências da França... 63

É interessante notar que, desde, pelo menos, os tempos da segunda fundação da Escola Normal de São Paulo, em 1875, as referências para ensino de mate-mática direta ou indiretamente estão ligadas às obras francesas. Obras clássicas de autores franceses, que parametrizam a matemática do curso secundário e do ensino de preparatórios, a partir das décadas iniciais do século XIX, são utiliza-das também no ensino normal. Elas muitas vezes são tomadas de modo indireto, constituindo manuais para a elaboração de programas e livros para a formação matemática de normalistas. Acrescente-se a isso a própria formação dos pro-fessores de matemática desse tempo: escolas de engenharia.9 Isso caracteriza o que se pode chamar de permanência da cultura escolar matemática do curso secundário no ensino normal.

Em época imediatamente anterior à criação das escolas normais primárias, o ensino de matemática ganha novas bases e novos autores internacionais são considerados como autoridades para definição de métodos e conteúdos da ma-temática que participará da formação do professor primário em São Paulo. A discussão sobre o ensino de matemática refina-se teoricamente, sobretudo, a partir de novas referências vindas dos Estados Unidos. Antes disso, porém, cabe mencionar uma primeira baliza teórica estadunidense, que está presente desde as reformas da década de 1890. Pode-se encontrá-la nos discursos, na legislação educacional, nas revistas pedagógicas e nos livros didáticos para o ensino de aritmética. Trata-se de Parker. Nome que aparece nesses meios de circulação das orientações pedagógicas para o professor do ensino primário.

Francis Wayland Parker (1837-1902), segundo Lawrence Cremin, constitui um dos pioneiros do progressive movement in American education. E, ainda, segundo o mesmo autor, nos dizeres de John Dewey, Parker representa o “father of progressive education”.10 Ainda de acordo com Cremin, em meio às suas atividades pedagógicas, Parker tem oportunidade, com o recebimento de uma herança familiar, de viajar à Europa e tomar contato com o desenvolvimento teórico das pesquisas pedagógicas. Vistas as novidades dos trabalhos europeus, em matéria de ensino nas primeiras letras, resolve financiar e promover ações similares nos EUA. Suas idéias e inovações curriculares fazem sucesso. So-bretudo a partir de 1883, quando Parker assume a direção da Escola Normal de Cook County, em Chicago. Nesse novo ambiente, o educador formaliza as suas propostas pedagógicas a partir de elementos vindos de Pestalozzi, Froebel e Herbart.11 Nesse ano publica Talks on Teaching e, em 1894, Talks on Pedagogics. Este último livro, Cremin considera como possivelmente o primeiro tratado nor-te-americano de pedagogia a ganhar renome internacional.12

9. Uma trajetória profissional do professor de matemática no Brasil pode ser lida no texto Valente (Ibídem).

10. Cremin, L. A., The transformation of the School – Progressivism in American Education, 1876-1957, New York, Alfred A. Knopf, 1961, p. 129.

11. Montagutelli, M., Histoire de l´enseignement aux États-Unis, Paris, Belin, 2000, p. 161. 12. Cremin, Op. cit., p. 134.

http://www.revistaquipu.com

Quipu, enero-abril de 201264

As propostas sobre o ensino de matemática, defendidas pelos reformadores da instrução paulista, têm no nome de Parker uma garantia de mudança, de ruptura com o modelo considerado ultrapassado do ensino de matemática pela memorização, pelo verbalismo e pela ordenação lógica dos conteúdos a ensinar. Esse respeito e admiração pelo norte-americano, do ponto de vista do ensino de matemática, se evidenciam na indicação reiterada de uso das chamadas Cartas de Parker.

Tangenciando o anacronismo, talvez seja possível dizer, que esse material didático viabiliza algo parecido a um estudo dirigido. Organizado e técnico, possibilita submeter o ensino a uma sequência programada de perguntas do pro-fessor, à espera de respostas dos alunos para avançar na leitura de cada uma das Cartas de Parker.

Tempos mais tarde, novas mudanças ocorrem, ao que parece, após a visita do diretor da Escola Normal, Oscar Thompson, em 1904, aos Estados Unidos, em termos das referências didático-pedagógicas que orientam o ensino e a for-mação de professores em São Paulo. Em seu retorno, traz na bagagem obras de autores estadunidenses que irão referenciar a produção didática para o ensino de matemática no Brasil. Um dos autores brasileiros a levar em conta os textos vindos dos Estados Unidos é o professor René Barreto. Em sua obra Barreto informa que busca preencher a lacuna mencionada, nas sequências das ações de Thompson, apresentando o seu livro didático. Informa, ainda, como organizou o texto a partir da literatura didática estrangeira, “principalmente a americana”. Finaliza observando que seu trabalho é resultado de uma compilação de autores. Assim, as novas referências para o ensino de matemática são explicitadas:

A maneira de distribuir a matéria, os conselhos e as observações – tomei-os em grande parte aos professores Hall, Wentworth e William Milne, em suas notáveis obras. Meu contingente pessoal, aquilo que nasceu de minha própria experiência e observação é, certamente, a parte de menor extensão e monta.13

É tarefa complexa caracterizar as mudanças em termos metodológicos que oco-rrem nas propostas para o ensino de matemática com a apropriação das obras vindas dos Estados Unidos. Entre nós, na continuidade das reformas republica-nas, o contraponto construído é ao ensino verbalístico, que se ampara na memo-rização, que segue o modo sintético, isto é, a ordenação lógica dos conteúdos matemáticos.

A apropriação que faz René Barreto, ao que parece, implica na necessida-de de convencer o professor de que não deve apanhar conteúdos matemáticos da aritmética e segmentá-los através de uma lógica da própria aritmética. A

13. Barreto, R., Série Graduada de Mathematica Elementar, São Paulo, Escolas Profissionais Selesianas, 1912, p. 6.

http://www.revistaquipu.com

História do ensino de matemática no Brasil: História das influências da França... 65

graduação do ensino deve ter outro significado. É necessário seguir o método analítico: do todo para as partes; não mais seguir o caminho de cada elemento matemático para o todo da aritmética a ser ensinada. Criadas as situações de diá-logos com os alunos, de uso da numeração para contagem de objetos, retarda-se ao máximo a formalização escrita. Além disso, a aritmética não mais está só, tratando de temas exclusivos da numeração. Nas situações e diálogos está pre-sente a geometria, o desenho, compondo o que bem chamou René Barreto de “Mathematica”.

Em síntese, a influência dos Estados Unidos através de obras didáticas des-tinadas ao ensino de matemática para o curso primário ressalta um ingrediente até então longe das discussões sobre a seleção e organização dos conteúdos matemáticos, a estarem presentes nas salas de aula do curso primário: a meto-dologia de ensino. Na simbiose entre conteúdos matemáticos elementares com as primeiras influências da psicologia nascente surge uma nova matemática para o curso primário. Não é ela uma redução daquela do curso secundário. Trata-se de um saber próprio para crianças, no entendimento do contexto das décadas iniciais do século XX.14

Considerações finais

As herenças e referências de ensino de matemática para os cursos secundário e primário, no Brasil, como se buscou mostrar, revelam aspectos que podem

justificar como foram sendo construídas culturas escolares diferentes para esses dois níveis de ensino. E essas culturas não se distinguem simplesmente pelo fato de tratarem de conteúdos matemáticos diferentes, para cada nível escolar.

Desse modo, é possível afirmar que o curso secundário não é diferente do primário, tão somente porque ensina conteúdos matemáticos de maior nível de complexidade matemática. A distinção deles, assim, não se dá em termos ma-temáticos. A distinção construída historicamente se dá em termos de ensinos diferentes.

No caso do curso secundário, longinquamente criado a partir das Univer-sidades medievais, herdeiro de uma cultura do curso superior, onde as práticas pedagógicas centram-se nos conteúdos, é tarefa do professor o discurso, a expla-nação sobre os conteúdos matemáticos. Já o curso primário, também visto em perspectiva de longa duração, sua origem está nos interesses da Igreja Católica, na formação de fiéis, dando-lhes a condição de prática da escrita e leitura, so-bretudo do catecismo. Nesse sentido, a tarefa pedagógica é o trato de ensinar a como fazer: como escrever e ler. E, tratando-se de matemática, considerar os ensinos da aritmética e da geometria como ingredientes da vida cotidiana.

14. Valente, W. R., A matemática na formação do professor do ensino primário, 1875-1930, São Paulo, Annablume/Fapesp, 2011 (no prelo).

http://www.revistaquipu.com

Quipu, enero-abril de 201266

Essas remotas origens dos cursos secundário e primário sedimentam apro-priações e transformações. No Brasil, aportam, no século XIX, de modo a serem constituídos esses níveis escolares de ensino.

Em termos específicos da Matemática, do ensino de matemática, a ligação com essa antiga tradição e origem, se dá pela constituição de culturas diferen-tes de ensino desse saber. De parte do curso secundário, conteúdos vindos dos livros franceses orientam toda a organização e seleção da matemática escolar. No caso do curso primário, as preocupações metodológicas do “como ensinar” rompem com a organização do ensino ligado à lógica dos conteúdos matemá-ticos, aproximando esse ensino dos estudos sobre se dá o desenvolvimento da criança, não mais vista como adulto em miniatura.

Essa cisão de origem – conteúdos e metodologia – parece ser indicativa de elementos representativos de culturas escolares diferentes: a cultura escola do ensino secundário, propedêutica, de passagem aos cursos superiores, referencia-da pelo Colégio Pedro II, do Rio de Janeiro, baseada na lição vinda dos clássicos manuais franceses de ensino de matemática, onde estão presentes a Aritmética, a Álgebra e a Geometria; e a cultura escolar do ensino primário, do ensino para o povo, das preocupações com a ampliação da escola elementar, com a insuficiên-cia do modo individual de ensinar, em meio à massificação da forma simultânea difundida pelos grupos escolares, criação original paulista que se espalha pelo Brasil.

De qualquer forma, a educação paulista nutre-se dos Estados Unidos para organizar os seus discursos e práticas nas reformas do ensino. Se de um lado o ensino secundário tem por referência os liceus franceses, com o Colégio Pedro II apropriando-se de sua organização, no uso de autores de livros de matemática consagrados como Bézout, Legendre, Lacroix dentre outros; no caso do ensino primário, São Paulo toma a dianteira na construção do modelo “grupo escolar”, circunscrevendo-o de materiais didáticos para a prática pedagógica do ensino de matemática, cuja referência é dada pelos autores estadunidenses. Essa apro-priação vinda dos Estados Unidos assenta-se na existência, já de longo tempo, das escolas que formam as elites paulistas: instituições protestantes que fazem circular métodos, materiais e livros vindos daquele país.

Bibliografia

Barreto, R., Série Graduada de Mathematica Elementar, São Paulo, Escolas Profissionais Selesianas, 1912.

Browder, F. E., Mac Lane, S., A relevância da Matemática, Lisboa, APM, 1988, pp. 17-44 (Cadernos de Educação Matemática).

Chartier, R., “Sciences Humaines”, Paris, núm. 18, 1997.______ , A história cultural – entre práticas e representações, Rio de Janeiro,

Bertrand Brasil S.A., 1990.______ , Escuchar a los muertos con los ojos, Buenos Aires, Madrid, Katz Edi-

http://www.revistaquipu.com

História do ensino de matemática no Brasil: História das influências da França... 67

tores, 2008.Cremin, L. A., The transformation of the School – Progressivism in American

Education, 1876-1957, New York, Alfred A. Knopf, 1961.Montagutelli, M., Histoire de l´enseignement aux États-Unis, Paris, Belin,

2000.Revista de Ensino da Associação Beneficente do Professorado Público de São

Paulo, São Paulo, Tipografia do Diário Oficial, 1902-1918.Valente, W. R. (Org.), A educação matemática na escola de primeiras letras: um

inventário de fontes, São Paulo, FAPESP, 2010 (DVD). ______ , “O ensino intuitivo da Aritmética e as Cartas de Parker”, Anais do V

Congresso Brasileiro de História da Educação, São Cristóvão, Universida-de Federal de Sergipe; Aracaju, Universidade Tiradentes, 2008.

______ , “Quem somos nós, professores de matemática?”, Cad. Cedes, vol. 28, núm. 74, 2008: 11-23. Disponível em http://www.cedes.unicamp.br

______ , A matemática na formação do professor do ensino primário, 1875-1930, São Paulo, Annablume/Fapesp, 2011 (no prelo).

______ , Uma história da matemática escolar no Brasil, 1730-1930, São Paulo, Annablume, 2007.

http://www.revistaquipu.com