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HISTÓRIA E CULTURA ESCOLAR DA ESCOLA RURAL MISTA DE
SERRARIA (1955- 1970)
Maria José dos Santos Provásio1
Maria Eduarda Ferro2
Palavras-chave: História da Educação; Cultura Escolar, Educação no Campo.
A cultura escolar é descrita como um conjunto de normas que definem
conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas
que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses
comportamentos. Dominique Julia
Jesus e Maria são meus pais celestiais, ó Maria eu sou vossa e vós sois
minha ... isso foi um trabalho meu no caderno de caligrafia e tornou-se
minha oração... isso de toquinho hem... de pequena. Izalfran Maria da Silva
Lembrei da minha mãe agora (...) nossa (...) ela adorava essas freiras. Elas
ajudavam muito, era Deus no céu e as freiras na terra. Helena Eduardo Silva
Introdução
O presente artigo apresenta os resultados de uma pesquisa realizada sobre a cultura
escolar da Escola Rural Mista de Serraria, localizada no povoado da Serraria, atual distrito de
Indápolis, Dourados (MS). O interesse em realizar esta pesquisa ocorreu mediante atividades
e estudos realizados no decorrer da graduação em Pedagogia que aproximaram a primeira
autora da referida escola, chamando atenção para a possibilidade e a importância de uma
pesquisa sobre a sua história.
O recorte temporal demarcado para este estudo inicia-se com a fundação da Escola,
quando do estabelecimento das primeiras práticas educativas dirigidas pelas Irmãs Vicentinasi
naquela localidade (1955), e tem como marco final o momento em que a escola foi assumida
pelo governo do estado (1970), recebendo o nome de “Grupo Escolar São Joséii” (SÃO JOSÉ,
2008).
Os estudos sobre a história da educação rural no Brasil constituem uma área de
investigação que ainda se situa na “marginalidade”. Nóvoa denuncia o caráter “nebuloso” da
1 Estudante do curso de Pedagogia da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS),
Unidade Universitária de Dourados, e-mail: [email protected]. 2 Professora orientadora, docente do curso de Pedagogia da Universidade Estadual de Mato Grosso do
Sul (UEMS), Unidade Universitária de Dourados, e-mail: [email protected].
2
história da educação por legitimar alguns grupos e, paralelamente, ignorar muitos sujeitos. Ao
privilegiar estudos sobre as regiões urbanas as pesquisas educacionais deixam lacunas sobre
grandes zonas das práticas pedagógicas e dos atores educativos, “(...) esquecendo a
importância do meio rural, ignoram sistematicamente outros, como se eles não fizessem parte
da história da educação”. (NÓVOA apud ALMEIDA, 2005, p. 278).
Com a Proclamação da República (1889) observou-se o levante por mudanças
estruturais na sociedade brasileira cujos efeitos se fizeram sentir no século seguinte. A
afirmação do trabalho assalariado e o incremento das atividades urbanas, aliados ao início da
industrialização conduziram a debates em torno da educação e do seu caráter público,
universal e laico. A educação torna-se “questão de Estado” quando passa a ser concebida
como instrumento de apoio às transformações econômicas, sociais e políticas.
Nitidamente rural, o Brasil assim se manteve até a década de 1920. Com a
diversificação da economia, observou-se o decréscimo da população rural que emigrou para
as áreas urbanas. No dizer de ROMANELLI (1998) o desenvolvimento das relações
capitalistas faz emergir a valorização da escrita e da leitura como condição para a
concorrência no mercado de trabalho. A nova ordem econômica imprime a adoção de novos
valores culturais condizentes com a modernização pela via da industrialização e tal ideário
refletiu nas escolhas e caminhos educacionais a serem percorridos.
Nesse contexto emergem propostas distintas de educação para as áreas urbanas e para
as áreas rurais. Enquanto a educação das cidades devia preparar os indivíduos para
interagirem e se adaptarem às condições exigidas pela nova ordem social e econômica, o
ensino rural era atraído por olhares nacionalistas e como meio de contenção do êxodo rural.
Embora a educação rural tenha se difundido no Brasil a partir de meados das décadas de 1940
e 1950, a sua função era promover apenas conhecimentos básicos. A história da educação
rural é marcada por muitas adversidades, conforme Almeida (2005) aponta,
(...) Poucas e precárias escolas, distantes umas das outras, dificuldade de
comunicação, ausência de orientação pedagógica e didática, falta de verbas
públicas na escolarização, deficiências na formação de professores,
currículos por vezes inadequados, poucos materiais pedagógicos, falta de
livros, entre outros (p. 286).
A Escola Rural Mista de Serraria surgiu em meio a esse contexto, contudo, não
representou uma iniciativa do Estado. Contemporânea a ela houve apenas uma instituição de
ensino no povoado de Serraria, hoje distrito de Indápolis. A referida instituição, denominada
Escola Dom Bosco, também de caráter confessional, era conduzida pela missão salesiana e
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destinada a formação de noviços, além de responsabilizar-se também pela educação de
meninos, independente dos mesmos terem ou não vocação religiosa. Nessa localidade, que
concentrava a sede da Colônia Agrícola de Dourados, a igreja católica marcou presença com a
criação de capelas em zonas rurais e vilarejos, um trabalho de assistência à saúde e à educação
(SANTOS, 2007).
A Colônia Agrícola Nacional de Dourados (CAND), um exemplo de frente pioneira
consonante com a Marcha para o Oesteiii
, foi criada pelo Decreto-lei nº 5941/1943, porém só
foi instituída em janeiro de 1944. Carli (2008) enfatiza que os discursos de Vargas tocaram os
trabalhadores rurais e movimentou a população do país, atraindo para a região da CAND
paulistas, mineiros, nordestinos, japoneses, paraguaios, todos em busca de adquirir terra para
subsistirem por meio da agricultura. Seguida por empreeendimentos de companhias privada
de colonização, na década de 1950 e 1960 multiplicaram-se as colônias agrícolas em todo o
sul de Mato Grossoiv
, atraindo para região consideráveis contingentes populacionais. Esse
fenômeno mudou o cenário rural e urbano da região de Dourados, provocou uma forte
corrente migratória, um grande número de trabalhadores e de famílias, em geral com baixo
poder aquisitivo. Referindo-se ao processo de colonização pela CAND, Fernandes e Freitas
(2004, p. 45) afirmam que “(...) exigências da acumulação capitalista – entre elas, a
reprodução da força de trabalho, a socialização desta e a produção da “harmonia” social
necessária – e em sintonia com o projeto nacional, é que se vai verificar a promoção de
políticas sociais na região, entre as quais a política de educação”.
A Escola Rural Mista de Serraria, era conduzida pelas Irmãs Vicentinas que lá
chegaram no ano de 1955 para assumir o trabalho de evangelização como professoras e
dirigentes de um hospital (SANTOS, 2009). Até o início da nossa pesquisa não havia
informações sistematizadas sobre o trabalho educativo realizado nos primeiros anos de
funcionamento dessa entidade educativa. A própria escola não mais detém documentos desse
período, o que para além das preocupações com a preservação da memória histórica,
representa um problema administrativo quando são solicitados documentos comprobatórios
daqueles que lá estudaram.
Durante o processo de elaboração do projeto que originou essa pesquisa conversamos
com uma das ex-alunas da instituição e apuramos que, de início, as Irmãs não contavam com
um prédio próprio para o desenvolvimento das atividades de ensino. “Eu sou do tempo em
que as aulas ainda aconteciam em uma casa ao lado, como se fosse um galpão, depois é que
foi construída a escola e nós passamos a ter aulas lá” (SILVA, 2011). Com 65 anos na ocasião
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dessa conversa, a ex-aluna não soube precisar com exatidão o período em que “estudou com
as Irmãs”, mas sua idade e seu relato nos dão conta de que foi contemporânea à
implementação das primeiras experiências educativas institucionalizadas da região. Sua fala
também nos levou a pensar sobre o valor atribuído pela comunidade à oportunidade de
escolarização. “Vivíamos uma pobreza danada, levávamos a merenda, o arroz e o feijão em
uma latinha, mas não víamos a hora de ir para a escola (...) quando o pai chamava para ir para
a roça catar feijão, dava uma raiva, queríamos ir para a escola”. A ex-aluna também se
reportou às práticas religiosas valorizadas no cotidiano escolar “lá nós rezávamos, tudo
direitinho... por fim, nossa diversão era ir na missa”. Essas narrativas nos fizeram acreditar
que vestígios da cultura escolar da instituição poderiam ser acessados pela memória de seus
protagonistas históricos.
As primeiras “pistas” de que dispúnhamos sobre a categoria de análise que
pretendíamos perseguir – a cultura escolar expressa nos fazeres da instituição – nos fizeram
crer que a Escola de Serraria tinha, em sua origem, a marca de um imbricado trabalho de
educação e evangelização. Tais pistas instigaram-nos a ouvir outros ex-alunos sobre o papel
atribuído a essa iniciativa religiosa em uma localidade marcada pela inexistência de serviços
públicos educacionais, um espaço à margem dos ideais republicanos de educação pública,
laica e universal em voga nos discursos de então. Por todo o exposto, nos interessamos em
puxar o fio da memória das pessoas que vivenciaram esse momento, a fim de produzir
registros e sistematizar informações sobre essa parte da história da educação brasileira.
Cultura escolar e história oral
É importante definirmos o que pretendemos quando anunciamos uma pesquisa que se
debruça sobre a concepção de cultura escolar. Empregamos aqui os ensinamentos de Julia
(2001, p. 10-11),
(...) poder-se-ia descrever a cultura escolar como um conjunto de normasv
que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto
de práticasvi que permitem a transmissão desses conhecimentos e a
incorporação desses comportamentos; normas e práticas coordenadas a
finalidades que podem variar segundo as épocas (finalidades religiosas,
sociopolíticas ou simplesmente de socialização).
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O historiador ressalta que a proposta de estudo da cultura escolar não pode se apartar
de uma mirada precisa das relações conflituosas e pacíficas com o conjunto das culturas que
lhe são contemporâneas: cultura religiosa, cultura política ou cultura popular.
(...) Normas e práticas não podem ser analisadas sem se levar em conta o corpo
profissional dos agentes que são chamados a obedecer a essas ordens e, portanto, a
utilizar dispositivos pedagógicos encarregados de facilitar sua aplicação, a saber, os
professores primários e os demais professores. (...) Enfim, por cultura escolar é
conveniente compreender também, quando isso é possível, as culturas infantis (no
sentido antropológico do termo), que se desenvolvem nos pátios de recreio e o
afastamento que apresentam em relação às culturas familiares (JULIA, D. 2001, p.
10-11).
Julia nos adverte sobre a tendência em utilizarmos como recurso para pesquisas sobre
a cultura escolar especialmente textos normativos e projetos pedagógicos, superestimando-os.
Tal prática concebe a cultura escolar como uma espécie de “entidade isolada”, contra a qual
as restrições e as contradições do mundo exterior viriam se chocar. Construímos uma “visão
idílica da potência absoluta dos projetos pedagógicos” (p.12) essa concepção não se coaduna
com a história sociocultural da escola, pois despreza as resistências, as tensões e os apoios
que os projetos têm encontrado no curso de sua execução. Para evitar a ilusão de um “total
poder da escola”, convém voltarmos nossos olhares ao seu funcionamento internovii
É preciso
que perguntemos sobre os acordos estabelecidos entre a cultura imposta e a cultura popular.
Para examinarmos elementos da cultura escolar de maneira rigorosa JULIA (2001)
ensina que convêm recontextualizarmos as fontes de que dispomos. Assim o pesquisador nos
lembra “A história das práticas culturais é, com efeito, a mais difícil de se reconstruir porque
ela não deixa traço: o que é evidente em um dado momento tem necessidade de ser dito ou
escrito?” (p. 15) Contudo, ao recuperar as palavras de Armando Momigliano, “as fontes
podem ser encontradas se temos a tenacidade de ir procurá-las” (apud JULIA, 2001, p. 19), o
autor nos incita a não exagerarmos o sobre o silêncio dos arquivos.
Logo nas primeiras tentativas de aproximação dos arquivos da instituição fomos
informadas acerca da inexistência de documentos administrativos referente ao recorte
temporal eleito. Isso se deve, segundo informações prestadas pela funcionária responsável
pela secretaria da instituição, em parte à transferência da documentação para Cuiabá, durante
a década de 1970, por ocasião da divisão do estado de Mato Grosso. De todo modo, sabemos
que a necessidade de espaço muitas vezes acarreta a perda ou o descarte de documentos
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valiosos para os estudos da pedagogia histórica e a inexistência de uma política para esse fim
acaba por dificultar o trabalho dos pesquisadores.
Essa circunstância nos reforçou a necessidade do emprego de outros procedimentos
como a produção de instrumentos de análise por meio de entrevistas com o emprego das
técnicas da história oral (MEIHY, 1996). Assim sendo, com auxílio de um roteiro
semiestruturado, foram entrevistados cinco protagonistas históricos (quatro mulheres e um
homem) que vivenciaram a Escola Rural Mista de Serraria em seus primeiros anos de
existência. Todos os entrevistados foram alunos da escola entre os anos de 1955 a 1965, ou
seja, na primeira década de funcionamento da instituição. Uma particularidade merece ser
registrada, três das quatro mulheres entrevistadas também trabalharam quando adultas como
professoras na escola.
As pessoas entrevistadas foram Antônio Claret dos Santos (53 anos), Helena
Eduardo Silva (65 anos), Izalfran Maria da Silva (63 anos), Ramona Penzo da Silva (60 anos)
e Terezinha Sousa dos Santos (58 anos). As entrevistas foram gravadas e logo em seguida
transcritas. A análise desse material em conjunto permitiu que identificássemos diversos
aspectos que se repetem nas falas dos cinco entrevistados, dentre os quais daremos destaque
neste artigo as questões referentes a “Religiosidade, Civismo e Caridade.
A Escola Rural Mista de Serraria: religiosidade, civismo, caridade
A Escola Rural Mista de Serraria foi fundada pelas Irmãs da igreja católica no
ano de 1955, quando chegaram à região de Indápolis (na época denominada Serraria) para
trabalhar no hospital Nossa Senhora de Fátima. Com o passar do tempo as religiosas
perceberam a necessidade de desenvolver um trabalho educacional com as crianças da
região já que até então não existia nenhuma entidade que realizasse este trabalho.
De acordo com informações que tivemos as primeiras práticas educativas
realizadas pelas Irmãs aconteciam embaixo de uma árvore localizada no lote do Sr. Sérgio
Teixeira, que havia oferecido às Irmãs uma de suas casas para que funcionasse uma
escolinha, contudo, o espaço não comportava o número de crianças e as Irmãs Ângela
Cavalcante e Jovina tiveram que lecionar debaixo dos pés de mangas e laranjas. Quando
chovia, corriam para abrigar-se na casa do Sr. Sérgio.
Com o tempo o número de crianças foi aumentando e seria inviável continuar
naquelas condições. Diante disso a Irmã Ângela Cavalcante (Imagem 01), uma das
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professoras pioneiras da Colônia Agrícola Nacional de Dourados (CAND) enviou um
documento ao então governador de Mato Grosso, João Ponce de Arruda, por intermédio do
então deputado José Cerqueira, que estivera visitando a região. Atendendo a solicitação da
religiosa os políticos se engajaram na luta para conseguir um espaço onde as Irmãs
pudessem continuar desenvolvendo o trabalho que haviam começado. Com a doação de
um terreno foi possível construir a escola e assim as Irmãs continuaram desenvolvendo
aquele trabalho considerado de extrema importância para aquela comunidade (Imagem 02).
A elaboração do roteiro semiestruturado para as entrevistas procurou contemplar
uma gama de elementos que trouxessem à tona múltiplos aspectos da infância e da
escolarização dos entrevistados. Não seria exagero afirmar que, embora cada sujeito
guarde as especificidades de sua história de vida, há aspectos que foram recorrentes nas
falas de todos os entrevistados, sendo possível delinear um perfil geral das famílias por
eles representadas. Grosso modo podemos apresentá-los como crianças oriundas de
famílias numerosas (cuja exceção será apenas uma das entrevistadas cuja mãe tornou-se
viúva precocemente), com uma média de doze filhos por núcleo familiar. “Em casa,
naquele tempo, a família que tinha menos era dez filhos” (Ramona). Tais núcleos
constituem-se por migrantes, oriundos de diferentes estados brasileiros que deslocaram-se
para a região de Dourados motivados pela política empreendida pelo governo federal de
distribuição de lotes. Trata-se, portanto, de pequenos produtores rurais.
Consideramos essas informações importantes porque elas nos ajudam a compor o
cenário no qual viveram nossos entrevistados, bem como, auxiliam-nos no entendimento da
menção recorrente a alguns elementos presentes nas infâncias por eles narradas, como: a
ausência de escolaridade dos pais, a realidade do trabalho infantil como auxílio nas atividades
produtivas de subsistência e, enfim, as condições economicamente restritas e materialmente
precárias como a ausência de energia elétrica e água encanada. “(...) naquela época, com nove
anos, já tava com a cabeça inchada de tanto trabalhar né... e hoje não pode, mas naqueles
tempos né ...”, recorda-se Antonio.
Antes de nos determos à discussão sobre as marcas de religiosidade, caridade e
civismo observadas nos relatos dos entrevistados, convêm apontarmos para alguns aspectos
recorrentes nas falas dos entrevistados sobre a educação informal, ou seja, recebida no
ambiente doméstico e a educação formal vivenciada no ambiente escolar.
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Imagem 01: Religiosas responsáveis pelas atividades da Escola Rural Mista de Serraria. Da
esquerda para direita: Irmã Ângela, Irmã Clara e Irmã Saraiva. Acervo da Escola São José, fotógrafo
não identificado, s.d. Identificação da foto feita por Maria Santos da Silva, ex professora da Escola
São José.
Imagem 02: Fachada da Escola Rural Mista de Serraria. Acervo da Escola São José, fotógrafo não
identificado, s. d.
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De modo geral foi possível perceber que as infâncias narradas pelos entrevistados
nos reportaram a um tempo em que o trato com a criança era muito diferente do apregoado na
atualidade. “(...) Era tudo rígido na escola, em casa... Só do pai olhar você já entendia tudo.
As vezes falava alguma coisa, a gente já chorava. Hoje não, o filho discute com o pai né...
antes era tudo complicado” (Ramona). Também fazendo referência ao modo como era tratada
no ambiente doméstico, Helena e Antônio recordam:
Naquele tempo os pais eram bravos hem... a gente não via a hora de sair de
casa. Os pais eram muito rígidos. A gente morria de medo... minha mãe,
quando mandava a gente ir no mercado pra comprar qualquer coisa dizia: eu
vou cuspir no chão se quando você chegar estiver seco você vai levar uma
surra. E ela batia mesmo... É, era assim (Helena).
(...) minha mãe batia... A mãe quando pegava... meu Deus do céu... O pai era
bom demais. A mãe falava: pode brincar à vontade, quando você for tomar
banho eu te pego! No banheiro ela pegava, quando ia tomar banho ela
pegava (...) É, só eu não apanhei da mãe ... minhas irmãs tudo apanhou, tem
um irmão que apanhou com doze anos, é a mãe era... se aprontava ela batia
(Antonio).
Conforme esclareceu Izalfran, a educação dada na escola tinha continuidade em
casa e vice versa. “Porque o respeito imperava ali né. Como se os pais era autoridade máxima
na sua vida. Saia de casa os seus pais eram os professores. Entrou no portão você tinha que
seguir a norma de sua casa, da sua família”.
Todos os cinco entrevistados relataram que gostavam da escola, que gostavam de ir
para escola, ainda que esse fosse um ambiente permeado por certa rigidez. Tal rigidez se
expressava na exigência de um comportamento adequado, nos métodos de ensino e
aprendizagem fundados na leitura em voz alta, na memorização da tabuada e nos exames orais
dos conteúdos de português (verbos) e matemática (tabuada). A figura do professor também
foi por eles identificada como um modelo de autoridade a ser respeitada: “(...) uma palavra
dita por um professorviii
era uma ordem, uma norma que teria que ser aplicada, era uma norma
a ser obedecida” (Izalfran).
(...) tinha que aprender, então você saía para o recreio se aprender, se não
aprendesse não ia sair. E naquele tempo tinha bofetada com a régua, cada
vez que você errava um pouquinho levava uma reguada na cabeça (...) mas a
reguada não queria dizer que você não sabe (...) você tem que aprender, a
maneira da pessoa ficar com medo e aprender (...) não machucava não, é no
sentido de aprender senão você vai levar uma reguada (...) era assim, eles
colocava ajoelhada ou pra parede, era o processo de castigo antigamente...
tinha mesmo... só que o aluno aprendia, quem não queria levar castigo se
preocupava em estudar realmente com aquele castigo. Ajudou muito porque
todo mundo estudava. O que marcou muito foi a... na primeira série eu não
conseguia falar a palavra circunflexo. Meu Deus do céu, eu quase morri do
coração, não conseguia falar essa palavra, era criança, seis, sete ano ... até
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conseguir falar as silabas mais complexas passei a maior dificuldade.
Também, então. cada vez que a pessoa errasse .... hahahahaha...ia levar uma
reguada. Eu já nem queria ir pra escola com medo da reguada, mais eu
aprendi, consegui, aprendi, foi difícil, foi, não foi fácil, foi difícil ... só que
eu percebi que a professora queria o bem do aluno, ele queria que
aprendesse, saísse do primeiro ano pra segunda série ou segundo ano, mas
que soubesse realmente ler e escrever. (Terezinha)
O que merece destaque, a nosso ver, é o fato de, mesmo que sejam relatados
momentos de pressão psicológica e de uma aprendizagem forçada e até mesmo baseada no
medo, a escola ainda representava uma possibilidade melhor ou mais atrativa do que o
trabalho na roça ou a lida com os afazeres domésticos.
A gente era em 14 filhos, todo mundo trabalhava na roça.... 14 filhos, ai eu
chegava da escola, eu não queria ir pra roça, e pegava aquela trouxa de roupa
e lá o poço era de sari, corria aquela trouxa de roupa, puxando água e papai
dizia: pode largar isso ai e vamos pra roça, na época de colher feijão, sabe...
menina era complicado... Eu não via a hora de ir pra escola pra ficar livre, pq
minha mãe era só na máquina de costura, costurava pra fora e meu pai
levava a gente pra roça e tinha que cuidar fogão de lenha... aqueles meninos
tudo pequenos, três, quatro meninos pequenos... quase todo ano nascia um
né... (Helena).
A Escola Rural Mista de Serraria era uma entidade religiosa de caráter
assistencialista. Diante das falas das pessoas entrevistadas tornou-se evidente a
permanência de hábitos e condutas religiosas que, cultivados nos tempos de escolarização,
permanecem presentes até os dias atuais. Quando indagamos os entrevistados sobre a
prática da oração no cotidiano escolar, Terezinha recorda: “tinha nossa oração normal
diária né todo santo dia pedir a proteção de Deus por cada um de nos né”. Também
perguntamos se os alunos eram convidados a participar de eventos religiosos e Izalfran
respondeu afirmativamente recordando-se “é, e assim na segunda feira era cobrado dos
alunos... Cadê você que eu não vi na missa? Então não tinha desculpa era cobrada a
presença dele na missa, na catequese, na escola e nos encontros que era preciso”.
Terezinha e Izalfran mencionam que todos tinham que participar dos eventos
realizados pelas Irmãs e que praticamente não se registravam ausências, “(...) todos já
assumiam aquilo com responsabilidade né” (Izalfran), “(...) a Irmã preparava cada um de nós
pra primeira comunhão, pra crisma, batizado, tinha preparação” (Terezinha). Sobre a
cerimônia da primeira comunhão, é válido observar que, dentre as poucas fotografias
remanescentes dos primeiros anos de atividade da escola, encontra-se juntamente um registro
dessa natureza (imagem 03).
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Imagem 03: Irmã Saraiva na Igreja da Vila São Pedro em dia de primeira comunhão. Acervo da
Escola São José, fotógrafo não identificado, s. d. Identificação da foto feita por Maria Santos da Silva,
ex professora da Escola São José.
A entrevistada Ramona também recordou dos hábitos cristãos cultivados na
instituição, “todos os dias rezavam para entrar, e sempre o teatro era direto que tinha a
mensagem religiosa”. Os hábitos religiosos presentes na escolaridade de Ramona marcaram
muito fortemente a sua formação, como podemos observar em seu relato, “(...) até hoje
quando vou dar aula tenho que rezar antes de começar. E hoje acabou, não tem mais, mas não
consigo trabalhar se não fizer isso.” Interessante observar que a própria entrevistada
reconhece não haver obrigatoriedade na manutenção do hábito de orar antes de dar início a
aula, mas ainda assim continua exercendo-o já que este foi incorporado aos seus princípios, a
sua filosofia de vida.
Antônio também se reportou a prática da oração diária, “quando batia o sino ia pra
sala ai fazia a oração”. O mesmo entrevistado recordou-se também das festas juninas que
marcavam a celebração dos dias de santos, “Santo Antônio, São João, São Pedro (...) é o mês
tudinho né...”. As festas juninas também foram mencionadas por Helena como um evento que
marcava o mês de junho e mobilizava toda a comunidade que se reunia para ajudar nos
festejos.
De acordo com os relatos dos entrevistados havia um vínculo muito grande das
Irmãs com as famílias daquela comunidade,
a população, o convívio com elas era de família, de mães espirituais (...) o
convívio com todas elas assim era família, aquela gratidão por elas era uma
coisa assim permanente, nunca deixou de ser (...) a população, todo mundo
12
voltado pra elas e elas voltadas pra nós, nossas famílias tinha uma
retribuição de tudo isso, um retorno, coisa muito bonita (Izalfran).
Antônio também se refere as práticas de caridade implementadas pelas Irmãs, “a
Irmã ajudava muito, ela era muito boa, ajudava muito fazia campanha (...) saia pedir né
(...)”. Sobre a mesma questão o relato de Terezinha é ainda mais ilustrativo. Sua família foi
literalmente acolhida pelas Irmãs quando a sua mãe, ainda muito jovem (33 anos) ficou
viúva tendo quatro filhas com idades entre 5 meses e 5 anos para criar,
na época minha mãe criou a gente sozinha, ficamos um ano aqui com as
Irmãs. Depois a Irmã arrumou um serviço pra minha mãe trabalhar na
escola né, porque ela queria um serviço pra poder cuidar da gente. Foi a
maneira que ela consegui pra levar estudos pra todo mundo (...).
A gratidão da família de Terezinha se expressa tanto em palavras, “(...) foi a maior
caridade que elas fizeram pra nós. Só Deus pra poder agradecer tudo isso, como agradecer a
Deus pela bondade delas? Foram pais e mães (...)”, como na fidelidade de sua mãe à
oportunidade de emprego concedida pelas religiosas, com as quais trabalhou por trinta anos
consecutivos exercendo diferentes funções como merendeira, faxineira e inspetora de alunos.
Ficou evidente nos relatos dos cinco entrevistados que a escola valorizava muito e
incutia em seus ensinamentos atos de civismo. Todos fizeram referência espontaneamente ao
“Sete de Setembro”, Ramona rememora “naquele tempo fazia o desfile de sete de setembro”
Izalfran também recorda: (...) o sete de setembro era um desfile... eram desfiles maravilhosos.
Também foram relatadas as práticas de atenção e respeito aos símbolos nacionais no cotidiano
escolar, “não entrávamos quanto alunos ou quanto professor, sem em posição de sentido, com
todo o respeito. O hino nacional era cantado antes de entrar em sala de aula, em fila lá fora
(...) todos os dias feita a oração e o hino nacional, porque que antigamente era exigido isso até
o aluno saber a letra do hino nacional” (Izalfran).
Ainda em relação ao hino nacional, Terezinha descreve que: “o professor passava
na sala, passava no quadro pra gente copiar, e tinha que decorar, ninguém com papel na mão”.
Antônio também se lembra dos desfiles de sete de setembro, “tinha desfile eu lembro que
viemos aqui (cidade de Dourados) uma vez no desfile. De primeiro era obrigatório todo
mundo, todo colégio tinha que desfilar agora hoje não é mais, aquela época tinha”.
Antonio também destacou que sempre hasteavam a bandeira e cantavam o Hino
Nacional e que os professores falavam que tinham que ter respeito pela bandeira. Mesmo
antes do Estado assumir sua responsabilidade perante o funcionamento da escola, os
ensinamentos transmitidos por ela eram de patriotismo.
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Imagem 04: Desfile de sete de setembro. Acervo da Escola São José, fotógrafo não identificado, s. d. .
Imagem 05:. Professora Ângela Dirce e seus alunos. Acervo da Escola São José, fotógrafo não
identificado, s. d. Identificação da foto feita por Maria Santos da Silva, ex professora da Escola São
José.
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Considerações finais
A Escola Rural Mista de Serraria foi uma instituição religiosa de caráter
assistencialista. O trabalho de escolarização e evangelização desenvolvido pelas Irmãs da
igreja católica na localidade de Indápolis foi de extrema importância para a época porque não
havia nenhuma entidade que o fizesse. O fato da Escola Rural Mista de Serraria ser a
assumida pelo estado de Mato Grosso apenas em 1970, quando passou a chamar Grupo
Escolar São José, ilustra a omissão do poder público em relação a escolarização da população
daquela região.
Percebemos que até hoje as pessoas que estudaram com as Irmãs se lembram delas
com muito carinho. A cultura religiosa produzida durante o tempo em que as Irmãs dirigiam a
escola foi tão forte que os entrevistados demonstraram conservar na memória e em práticas
atuais os hábitos religiosos que adquiriram com elas no tempo em que conviveram.
Ao final deste artigo registramos que muitos questionamentos permanecem em nós.
Um deles é justamente em relação a inexistência de uma pesquisa de maior fôlego sobre a
história da Escola Rural Mista de Serraria. Continuamos nos indagando sobre o porquê da
existência de estudos que abordam a história da Escola Dom Bosco e o porquê da carência
de análises sobre a história e as práticas educativas da Escola Rural Mista de Serraria, atual
Escola São José. Essa inquietação nos motiva a dar continuidade a investigação.
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15
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História da Educação. Invenções, tradições e escritas da História da Educação no Brasil, 2011,
Vitória, ES. Anais. Vitória, ES: UFES, 2011.
SANTOS, Claudete Soares de Andrade. Os colonos e a Igreja Católica no contexto da
Colônia Agrícola de Dourados (1940-1970). Dourados (MS): UFGD, 2007. Dissertação
(Mestrado em História), Universidade Federal da Grande Dourados, 2007.
SANTOS, Osvaldo dos. Organizações comunitárias e pastorais da paróquia Nossa
senhora auxiliadora de Indápolis (MS). Campo Grande: UCDB, 2009. Dissertação
(Programa de Pós Graduação em Desenvolvimento Local), Universidade Católica Dom
Bosco, 2009.
MEIHY, José Carlos Sebe. Manual de História Oral. Edições Loyola, São Paulo, 1996.
ROMANELLI, Otaíza de Oliveira. História da Educação no Brasil (1930-1973). Petrópolis:
VOZES, 1998.
SÃO JOSÉ, Escola Estadual. Projeto Político Pedagógico, Indápolis, Dourados (MS), 2008.
Entrevistas:
SANTOS, Antônio Claret dos. Entrevista com ex-aluna da Escola Rural Mista de
Serraria. Dourados, 06 mai. 2012. Entrevista concedida à Maria José dos Santos Provásio e
Maria Eduarda Ferro.
SANTOS, Terezinha Sousa dos. Entrevista com ex-aluna da Escola Rural Mista de
Serraria. Dourados, 19 abr. 2012. Entrevista concedida à Maria José dos Santos Provásio.
SILVA, Helena Eduardo. Entrevista com ex-aluna da Escola Rural Mista de Serraria.
Dourados, 19 abr. 2011. Entrevista concedida à Maria José dos Santos Provásio e Maria
Eduarda Ferro.
SILVA, Izalfran Maria da. Entrevista com ex-aluna da Escola Rural Mista de Serraria.
Dourados, 19 abr. 2012. Entrevista concedida à Maria José dos Santos Provásio.
SILVA, Ramona Penzo da. Entrevista com ex-aluna da Escola Rural Mista de Serraria.
Dourados, 05 mar. 2012. Entrevista concedida à Maria José dos Santos Provásio.
i Filhas da Caridade, Filhas de Caridade de São Vicente de Paulo, Companhia das Filhas da Caridade de São
Vicente de Paulo, Servas dos Pobres, Irmãs de São Vicente de Paulo, Irmãs de Caridade ou simplesmente
Vicentinas são termos empregados para referir-se a uma congregação religiosa católica, de vida apostólica e
comunitária, fundada em 1633 por Vicente de Paulo (1581-1660) e Luísa de Marillac (1591-1660). O objetivo
maior da fundação da Congregação feminina consiste no exercício efetivo da caridade. A caridade divide-se
entre o amor a Deus e o amor aos homens (amor próprio e amor ao próximo). Vicente de Paulo prescreveu os
atos e valores que considerava necessários para que as Irmãs vicentinas exercessem a caridade: fazer o bem a
todos; não contradizer ninguém; ajudar a todos os enfermos; auxiliar o próximo em seus sofrimentos; ser
humilde para ser honrada; praticar o bem de coração e com sinceridade. O amor ao próximo pela via caritativa
estaria presente nas ações junto a todos os necessitados, como os doentes, abandonados, órfãos e idosos, etc. As
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Filhas de Caridade seriam então responsáveis por diversos trabalhos caritativos. A Congregação entrou no Brasil
no século XIX e dentre as ações por ela assumida encontram-se os trabalhos educativos. (LAGE, 2011). ii Embora a Escola Rural Mista de Serraria tenha se transformado em Grupo Escolar São José apenas na década
de 70 do século XX, convêm esclarecer que, desde os seus primeiros anos de funcionamento a instituição
atendia turmas das quatro séries iniciais do atual ensino fundamental. Ou seja, as práticas educativas ali
promovidas não eram realizadas em salas multisseriadas, como ocorria, com frequência, em localidades rurais.
Essa informação, confirmada por todos os entrevistados dessa pesquisa, de certo modo contrariou a hipótese
inicial das pesquisadoras, que supunham tratar-se de práticas em turmas multisseriadas. A existência de turmas
organizadas em séries provavelmente se explica pela grande quantidade de crianças em idade escolar que
residiam naquela região. As famílias dos entrevistados eram bastante numerosas, sendo então viável o
estabelecimento de turmas distintas. iii
Esse slogan foi criado pelo governo Vargas, no final da década de 1930, para divulgar um programa de
colonização dirigida que visava ocupar os espaços com pouca densidade populacional (Amazonas, Goiás e
Mato Grosso). A política conhecida como Marcha para Oeste, anunciada por Vargas no início de 1938, tinha
como objetivo expandir, desenvolver e ocupar áreas de fronteira. iv A referida região pertencia ao antigo estado de Mato Grosso, hoje, Mato Grosso do Sul. O estado de Mato
Grosso do Sul foi criado em 11 de outubro de 1977, pela Lei Complementar nº 31 e instalado em 1º de janeiro
de 1979. v Destaque do autor.
vi Destaque do autor.
vii Destaque do autor.
viii Nota-se aqui que a entrevistada emprega a palavra professor, no masculino, ainda que a maior parte do corpo
docente fosse composta por mulheres. Entretanto é válido destacar que também foi mencionada a existência de
um professor homem (Professor Joaquim).