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AutonomiA, AlegriA e p Articip Ação inf Antil H i S t Ó r i A S D o cccria centro cultural da criança

Histórias do CCCria: autonomia, alegria e participação infantil

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"No CCCria a criança tem acesso a diversas formas de expressão. Na brinquedoteca, ela brinca de família, de escola, se fantasia, organiza festas e muito mais, pois sua imaginação é ilimitada."

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AutonomiA, AlegriA epArticipAção infAntil

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Rio de Janeiro, 2011

AutonomiA, AlegriA epArticipAção infAntil

HiStÓriAS Do

cccriacentro cultural da criança

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HISTÓRIAS DO CCCRIA – Autonomia, Alegria e Participação Infantil

COORDenAçãO DO PROjeTO Jo Ceccon

COORDenAçãO DA PublICAçãO e PROjeTO gRáfICO Claudius Ceccon

eDIçãO DOS TexTOS ORIgInAIS Lorenzo Aldé

TexTOS Jo Ceccon, Claudia Ceccon, Maria Lucia Lara, Monica Mumme, Rosane M. Gomes e Anna Rosa Amâncio

fOTOS Jo Ceccon, Mariana Chianca, Claudia Ceccon

DeSIgn gRáfICO Silvia Fittipaldi – Magic Art

Direitos reservados e protegidos:

CECIP - Centro de Criação de Imagem PopularLargo de São Francisco de Paula 34 – 4o andar Centro20051-070 – Rio de Janeiro – [email protected](+55 21) 2509 3812

Proibida a reprodução total ou parcial sem a prévia autorização dos editores. Lei n. 9610, de 19/02/1998.

cecipR e a l i z a ç ã o a p o i o

O Centro Cultural da Criança foi implantado pelo CECIP, em parceria com o CEACA-VILA, no âmbito do Projeto BRA-2005-035, Espaço Protegido, com o apoio da Fundação Bernard van Leer.

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Histórias do CCCria, Centro Cultural da Criança : autonomia, alegria e participação infantil / [coordenação do projeto Jo Ceccon ; fotos Jo Ceccon,Mariana Chianca, Claudia Ceccon]. - Rio de Janeiro : CECIP, 2011.

112p. : retrats. ; 21 cm

Inclui bibliografia e índiceISBN 978-85-

1. Centro Cultural da Criança. 2. Educação de crianças - Brasil. 3. Educação pré-escolar - Brasil. 3. Crianças - Assistência em insti-tuições - Brasil. I.Ceccon, Jovelina. II. Centro de Criação de Imagem Popular.

11-3073. CDD: 372.210981 CDU: 372.2(81)

27.05.11 01.06.11 026799

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SUMÁRIO

Apresentação

CCCria: Onde os direitos são pra valer

Desafio aos educadores: aprender desaprendendo

Uma ciranda para resolver conflitos

Da criança-problema ao problema do olhar

Com leitura e com afeto

Os caminhos de uma pesquisa

Conclusão: Como transformar em política pública?

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Foto: Claudia Ceccon

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Durante dois anos, a equipe de educação in-fantil do CECIP participou de uma pesquisa sobre as transições que as crianças fazem diariamente, entre sua casa, sua escola e o Centro Cultural da Criança - CCCria. “Tran-sitar: fazer caminho, passar, andar”, diz o velho Aurélio. “Transição: passagem de um lugar, de um assunto, de um tom, de um trata-mento (...) para outro.” No CCCria as crian-ças vivem experiências novas, capazes de influenciá-las para o resto de suas vidas. Na transição para sua casa e para a escola, onde as regras são outras, elas vivem um processo de tomada de consciência de si mesmas e de seus direitos.

Enquanto preparávamos esta publicação, foi instalada uma Unidade de Polícia Paci-ficadora (UPP) no Morro dos Macacos. Este fato cria novas condições para os moradores, agora livres das violências e ameaças cons-tantes que existiam anteriormente. Ao mes-

mo tempo, demonstra que continuam a ser necessários espaços seguros onde as crian-ças possam brincar livremente, tendo acesso a toda uma gama de bens culturais que lhes abre portas para um futuro no qual esperan-ças e sonhos podem tornar-se realidade. O CCCria é modelo que atende a uma demanda permanente.

Nesta coletânea de artigos vocês encontrarão um relato de experiências, observadas e vi-vidas em diferentes espaços, que nos trouxe-ram inúmeros aprendizados e reflexões.

O artigo “Onde os Direitos São pra Valer” traça um histórico do CCCria: o que nos motivou a criar esse espaço, os princípios e valores que regem essa iniciativa e os diver-sos desafios que se apresentam no cotidiano dos educadores, das crianças e da própria Instituição. Claudia Ceccon, que coordenou a pesquisa, nos presenteia com a fala das

APRESENTAÇÃO:

APRENDIzADOS E REFLEXÕES

Jo CeCCon

Formada em Educação Infantil pelo Instituto Bennett, Rio de Janeiro, e em Psicomotricidade pela Universidade de Genebra, Suíça. No CECIP, coordenou as publicações Creche Saudável e Trocando em Miúdos as Diretrizes Nacionais de Educação Infantil e o projeto Centro Cultural da Criança.

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crianças, cuja espontaneidade e criatividade nos indicam que estamos no caminho certo.

Partimos do princípio de que a criança pre-cisa, e tem direito, a ter livre acesso a um es-paço onde ela possa brincar e aprender, onde esteja livre para ler, conviver, fazer suas es-colhas com autonomia, experimentar dife-rentes formas de expressão e se sentir prota-gonista das suas próprias decisões. Onde ela possa curtir integralmente sua infância - que, como sabemos, é um período inesquecível e fundamental na história de todos nós.

Será que os educadores estarão preparados para esse desafio? Esse é o assunto da entrevis-ta realizada com Maria Lucia Lara, que atuou diretamente na preparação da equipe. Ela nos conta como é difícil desaprender, para voltar a aprender outras formas de relacionamento com a criança, em que sua autonomia é respeitada, sem perder a própria identidade de educador.

A criança do CCCria é incentivada a exercer plenamente sua autonomia - e é também in-centivada a reconhecer os direitos do outro.

Monica Mumme trouxe para o CCCria uma nova forma de resolver os conflitos e confrontos que acontecem no dia-a-dia das crianças.Os educadores sentiam dificulda-de em lidar com essas situações e necessi-tavam de uma orientação que os ajudasse a melhorar a sua prática. Monica introduziu a experiência das cirandas restaurativas, in-centivando o exercício da escuta da criança como parte de uma metodologia que permite melhor resolver essas situações com o grupo, o que acabou por tornar-se uma prática diária da Instituição.

No CCCria a criança tem acesso a diversas formas de expressão. Na brinquedoteca, ela brinca de família, de escola, se fanta-sia, organiza festas e muito mais, pois sua Fo

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imaginação é ilimitada. Essa mesma ima-ginação também se manifesta em outros espaços, cada qual abrindo novas possibi-lidades à criança, seja o da música, o da expressão corporal, da leitura ou das artes plásticas. Quando observamos uma criança no CCCria, nossos olhares frequentemente divergem das observações que foram feitas desta mesma criança em outros espaços que ela frequenta. Rosane M. Gomes nos leva a refletir e a questionar nossos olhares e perceber a influência da relação afetiva, da liberdade da escolha e do acreditar na crian-ça como capaz de ser protagonista das suas próprias ações.

Um dos maiores desafios da equipe do CC-Cria era a dinamização da biblioteca. Numa comunidade não leitora, onde poucas famí-lias têm livros em casa e é restrito o acesso a livrarias ou bibliotecas públicas, qual seria o caminho da biblioteca do CCCria? Anna Rosa Amancio descreve essa trajetória, mos-trando como foram sendo criadas as estraté-gias utilizadas para despertar o interesse das crianças pela leitura e como a sensibilidade e o afeto que impregnam esse espaço fazem parte de uma visão inovadora do que pode ser uma biblioteca para crianças.

Finalizando esta coletânea de artigos, Clau-dia Ceccon relata brevemente como a pes-quisa foi desenhada, como foi implementa-da, como emergiram os indicadores e com que cuidados foram analisados os dados obtidos.

Boa leitura!

Agradecimentos

à Fundação Bernard van Leer, que apoiou o projeto durante os primeiros cinco anos;

à equipe do CEACA-Vila, representada pela D.Ana Marcondes Faria, que acredi-tou na proposta do CECIP para as crianças da sua comunidade;

aos educadores, que se disponibilizam dia-riamente a grandes emoções e desafios e

à equipe do CECIP, que sempre colaborou para que este projeto tivesse sucesso e que me permitiu realizar um ideal possível.

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1 CCCRIA: ONDE OS DIREITOS SÃO PRA VALER*

Claudia CeCCon

* Uma versão deste artigo foi pu-blicada na revista Early Childhood Matters (nº113), em novembro de 2009, com o título “Where rights are taken seriously!”, numa edição comemorativa dos 20 anos da Convenção dos Direitos das Crianças, “Realising the rights of young children: progress and challenges”. E, na versão em es-panhol da mesma revista, Espacio para La Infância (nº 32), com o título “Los derechos de los niños en la primera infancia: avances y retos”, com o nome “Donde los derechos se toman en serio”.

Disponível no site da Fundação Bernard van Leer (www.bernard-vanleer.org).

Em 1990, após ampla discussão com a sociedade civil, foi instituído no Brasil o Estatuto da Criança e do Adolescente (lei federal nº 8.069). Entre outros importantes avanços na área de direitos da infância, o Estatuto passou a reconhecer a educação infantil como um direito da criança pequena, sendo dever do Estado providenciar essa educação em creches (de zero a 3 anos e 11 meses) e pré-escolas (de 4 a 6 anos).

2011, aumentar tanto a cobertura quanto a qualidade do atendimento continua sendo um grande desafio a ser enfrentado.

Mesmo considerando os avanços nesta área, é importante ressaltar que a partir dos 4 anos – e dali em diante – a criança fica apenas meio período na escola. Ou seja, durante aproxima-damente quatro horas por dia a criança está sendo atendida, mas o resto do tempo fica por conta da família. Nas comunidades mais carentes, onde muitas vezes os adultos traba-lham o dia inteiro, isto significa estar sozinha em casa, ou sob os cuidados de irmãos um

Em 1996, a Lei de Diretrizes e Bases da Edu-cação Nacional (nº 9.394) contribuiu para que a Educação Infantil se articulasse com o sistema educacional do país, tornando-se a primeira etapa da Educação Básica, defi-nida como “o desenvolvimento integral da criança até 6 anos, no seu aspecto físico, psi-cológico, intelectual e social, completando a ação da família e da comunidade”. Cinco anos depois, dados do Censo 2001(IBGE) mostravam que apenas 10,6% das crianças de zero a 3 anos e 57% das crianças de 4 a 6 anos estavam efetivamente frequentando alguma instituição de educação infantil. Em

Formada em comunicação visual pela PUC-RJ, é mestre em Educação pela North Carolina University e PhD em Liderança Educacional pela Western Michigan University, EUA. Claudia Ceccon é membro da direção do Cecip.

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pouco mais velhos, ou na rua. Estas situações podem vir a representar uma série de riscos. Entre eles, estar vulnerável a violências tanto fora quanto dentro de casa. Fora, no constante embate entre policiais e traficantes, principal-mente em ambientes urbanos empobrecidos, ou no aliciamento de crianças por estes úl-timos. Dentro de casa, um estudo realizado pela ONG Abrapia1 (1998/99) no Rio de Ja-neiro, usando dados de 1.1692 casos, revela que entre os registros de violência doméstica 93,5% foram cometidos por familiares (sem distinção de classe social), em 52% dos casos pelas próprias mães. Em relação à idade das crianças que sofreram abusos sexuais, 82% tinham entre 2 e 10 anos de idade.

A experiência aqui descrita se passa no Mor-ro dos Macacos, zona Norte do Rio de Janei-ro. No seu estudo sobre a região, a arquiteta Cláudia Magnani3 (2007) constatou a pre-sença de mais de 17 mil moradores no Com-plexo do Morro dos Macacos, englobando os morros dos Macacos, do Parque Vila Isabel e do Pau da Bandeira. “As ocupações no Com-plexo do Morro dos Macacos começaram na década de 20, induzidas pelo processo de expropriação dos trabalhadores e motivadas pelo fato de que naquela área, longe do Cen-tro e da zona Sul, o risco de expulsão era menor”, afirma ela. O Morro dos Macacos é, portanto, uma comunidade bastante antiga, marcada pela falta de serviços públicos de qualidade, pela violência tanto dos policiais que entram na favela de forma agressiva quanto dos traficantes que a ocupam, assim como das facções rivais que periodicamente a invadem. No entanto, existem movimentos comunitários que procuram criar uma cultu-ra de paz, ocupando-se prioritariamente de crianças e jovens. Um exemplo é o Centro Comunitário Lídia dos Santos, o Ceaca-Vila4, que iniciou suas atividades em 1978 inaugurando uma creche – a creche Patinho Feliz – para atender à demanda das mães que precisavam trabalhar e não tinham com quem deixar seus filhos pequenos, e que vem des-de então se dedicando à melhoria da quali-dade de vida dos moradores da comunidade.

Preocupado com a situação das crianças que saíam das creches comunitárias, que aten-dem em tempo integral, e iam para as pré-escolas municipais, onde passavam a ficar apenas quatro horas, o CEACA-Vila formou

1. Agência Brasileira para a Proteção à Infância e Adolescência

2. http://www.observatoriodainfancia.com.br/IMG/pdf/doc- 99.pdf

3. Magnani, C.M. (2007) Lixo e deslizamento: um estudo de caso do Morro dos Macacos. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública.

4. http://www.ceaca.org.br

5. http://www.cecip.org.br

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uma sólida parceria com o Centro de Criação de Imagem Popular. O CECIP5 é uma ONG carioca, inspirada nas ideias de Paulo Frei-re, que se dedica à educação, comunicação e formação de agentes de mudança. Juntas, as duas instituições pensaram na criação de um espaço seguro para estas crianças frequenta-rem no período em que não estivessem na escola. Com o apoio da Fundação Bernard van Leer, começaram a planejar como seria esse lugar. Nada parecido com uma escola ou uma creche, disso tinham certeza. A equi-pe de Educação Infantil do CECIP sugeriu a ideia de fazer um Centro Cultural, todo ele voltado para as crianças de até 10 anos.

Para definir como seria o espaço, houve um processo de envolvimento da comunidade – recrutando adolescentes para fazer uma pes-quisa que perguntasse às próprias crianças o que elas entendiam como centro cultural, e como gostariam que fosse o centro cultural de sua comunidade. Depois de muito traba-lho, em 2006 nascia o Centro Cultural da Criança (CCCria), um lugar seguro e diverti-do, onde as crianças desenvolvem sua auto-

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nomia e onde podem brincar, desenhar, ler, dançar, cantar, tocar instrumentos, utilizar computadores e aprender a conviver.

O primeiro ano foi de construção – tare-fa desafiadora dentro de uma comunida-de. Utilizando o segundo andar da creche comunitária Patinho Feliz, foi criado um espaço amplo, bonito, com uma torre que mais lembra um castelo. Por lá passam diariamente 200 crianças, em dois turnos, além das crianças de 2 e 3 anos da creche Patinho Feliz, que sobem regularmente para desfrutar dos recursos disponíveis. O projeto arquitetônico, o cálculo das es-

truturas, a construção, o cuidado em todos os detalhes foram fruto de parcerias entre engenheiros, arquitetos e moradores da co-munidade, numa troca muito rica.

Enquanto a obra progredia, construía-se também uma metodologia inovadora. O Centro Cultural seria um lugar onde a forma de conviver seria muito diferente do que as crianças experimentam em outros espaços. Lá, elas viveriam uma experiência de pro-tagonismo infantil – ou seja, seriam livres para escolher aonde ir, o que fazer, quanto tempo se dedicar a cada atividade, de forma autônoma e res-

Maria, Denzell, Wilson e João Pedro conversam sobre “pum”. Maria diz

que o pum sem barulho é mais fedorento e os outros riem muito.

Pergunto se alguém sabe porque soltamos pum. Maria responde com uma teoria mui-to engraçada: diz que quando respiramos o ar entra, passa pela barriga, apodrece e sai pelo bumbum. João solta uma gargalhada.

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Luis Flávio se aproxima e participa da con-versa. Diz que são gases e eu aproveito para perguntar onde é o lugar mais certo para soltar pum. Nesse momento, um deles se levanta e força para soltar um. Maria pede para ele sentar porque estou falando de educação. Um deles diz que tem que ir ao banheiro. Acrescento que algumas coisas que comemos fazem com que tenhamos gases. Maria conclui: “Então, é a comida que apodrece na barriga!”. Digo que não, apenas jogamos fora pelo xixi, cocô e pum o que não serve para nós.

As crianças são cheias de curiosidade a res-peito do funcionamento do corpo. Num ambiente onde não se sentem censuradas em relação a esse tema, suas perguntas e hi-póteses são expressas com naturalidade.

ponsável, respeitando os limites de ocupa-ção das salas e os adultos que facilitam as atividades.

Princípios e valoresO entendimento da criança como um ser que produz cultura e merece ser respeita-do como sujeito de direitos está na base de todo o trabalho. Entre os princípios estabe-lecidos desde a gestação do CCCria, está o protagonismo: “Acreditar na capacidade que todos possuem de agir e tomar deci-sões, expressando a própria autonomia”.6

Este conceito de autonomia se alinha com a definição que Kamii (1994, p. 672) atribui a Piaget: “Autonomia é a habilidade de pen-sar por si mesmo e decidir o que é certo e o que é errado no âmbito moral, e o que é fal-so ou verdadeiro no âmbito intelectual, con-siderando todos os fatores relevantes, inde-pendente de recompensas ou punições”.

Outros princípios essenciais são a cidadania – a ideia de que vivemos em sociedade e de que isto exige de cada um o conhecimento de seus direitos, assim como o respeito ao outro e aos direitos do outro – e, claro, a importân-cia do brincar.

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6. CCCria – Centro Cultural da Criança – O Castelo das Crianças Cidadãs, p. 48 (2009)

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Estes e outros conceitos inovadores foram esmiuçados pela equipe de Educação Infantil do CECIP, traduzidos em práticas e rotinas, embasados em textos a serem partilhados e discutidos durante a formação da equipe de educadores – na sua maioria pessoas da comunidade que já tinham experiência com crianças e com alguma forma de arte, e en-frentaram o enorme desafio de reinterpretá-la à luz de novos princípios.

Como alguns desses princípios são vividos no CCCriaNo primeiro ano de funcionamento do Cen-tro Cultural da Criança, houve um caso em-blemático. Um grupo de crianças mais ve-lhas foi procurar a coordenação com uma questão: se o Centro Cultural era para crian-ças de 2 até 10 anos, não seria justo sair ao completar 10 anos. Afinal, só se deixa de ter 10 anos no aniversário seguinte, quando se faz 11. As crianças defenderam este argu-mento com paixão. O pedido foi considerado justo pela equipe, e dali em diante convivem no Centro Cultural crianças de 2 anos até 10 anos, 11 meses e 29 dias. Ao fazer 11, aí não tem jeito, tem que sair.

Direito à Autonomia: Voz e vez

As crianças usam plaquinhas coloridas que sinalizam o número de vagas em cada sala – todas as que vi entrar traziam a plaquinha na mão e a colocavam dentro de um pote. (relato de uma pesquisadora)

No Centro Cultural, as crianças têm autono-mia para entrar nas salas na hora que que-rem, contanto que haja lugar. As portas têm uma janelinha que permite que elas olhem para dentro da sala e vejam qual atividade está sendo desenvolvida. Também na porta estão penduradas plaquinhas de acrílico co-loridas, correspondentes ao número de vagas disponíveis no momento. As crianças sabem que, ao entrar, devem pegar a plaquinha e colocar dentro de um cestinho. Ao sair, re-

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colocam a plaquinha na porta. Se não houver plaquinha na porta, significa que a sala no momento está cheia, e que será preciso es-perar ou escolher outra sala. Essa estratégia ajuda a criança a exercer sua autonomia de forma organizada.

Juliana7 me mostra um desenho, se dirige à porta, e ao sair hesita se coloca ou não a plaquinha de volta na porta. Decide que não, e justifica para a educadora: “Só vou ali dar o desenho pra tia e já volto”. (relato de uma pesquisadora)

Nesta cena, a criança mostra que entende e interpreta a regra – se vai voltar em seguida, ainda está ocupando sua vaga. Colocar ou não a plaquinha não é, portanto, um ato me-cânico. Simboliza o desejo de ocupar aquele espaço naquele momento.

Em algumas salas, onde as atividades por sua natureza implicam um determinado tempo – como nas salas de inglês e informá-tica – as crianças sabem que há um núme-ro de vagas, mas que tem hora para entrar. Desde muito cedo elas mesmas se organi-zam para frequentá-las, programando seus outros interesses ao redor desses horários.

7. Todos os nomes das crianças e educadores citados neste artigo foram modificados para preservar sua identidade.

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Depois do lanche, Denzell e um amigo jogam bolinha de gude

no refeitório. Tiago gostaria de en-trar, mas não tem gude e fica olhando de fora. Denzell está cheio de bolas de gude, que mostra com orgulho e fa-zem um barulhinho quando ele anda.

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Pesquisadora: O que é que você faz quando chega no Centro Cultural?Mira (7 anos): Que é que eu faço? Eu pri-meiro pego o crachá. Depois eu sempre fico esperando a tia Gina, aí depois eu vou pra sala de bateria, a sala de inglês, a sala de brinquedo, sala de livro e... de dança, e de-pois, a última, sala de artes.

Pesquisadora: E como é que você escolhe? Assim... “Hum, o que vou fazer hoje?”...Mira: Eu? Eu quero ir brincar hoje. En-tão cada dia eu quero fazer alguma coisa. Então, por exemplo: eu cheguei no Centro Cultural, aí eu quero brincar na sala de

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conflito. Mas podem também resolver sair daquela sala e ir para outro lugar, para beber água ou ir ao banheiro, sem para isso ter que pedir a alguém.

Duas meninas de aproximadamente 8 anos estão brincando na varandinha da brinque-doteca, sentadas numa mesinha. Julya faz um desenho de uma menina loira, de ca-belos compridos. Pergunto se aquilo é um escritório, e elas me respondem que não, que é um salão de beleza. Tem uma caixa de papelão debaixo da mesa com vidrinhos de esmalte. Chegam alguns meninos e sen-tam nas outras mesas da varandinha. O ambiente, que estava calmo, fica agitado, com disputa de cadeiras, empurra-empur-ra, risos. Uma menina maior mexe em vá-rios objetos e finalmente pega a caixa de papelão. Julya e a amiga reclamam com a educadora, que no momento está ocupada do outro lado da sala. Julya parece mui-to chateada e fica paradinha, ainda dese-nhando, pensando. De repente diz que vai mudar de sala. “Aqui tá muita bagunça!”. Sai e escolhe a sala de artes.(Relato de uma pesquisadora)

Essa autonomia é um grande diferencial do Centro Cultural da Criança. Seguindo os en-sinamentos de Constance Kamii, o Centro Cultural busca trabalhar a autonomia moral e intelectual da criança. Ou seja, desenvol-ver nelas a capacidade de pensar sobre situ-ações, ter independência nas escolhas, con-siderando o que é justo, verdadeiro, ético, e agir de acordo, assim como refletir sobre as consequências.

Brincam da seguinte forma: um jogador começa e joga a bolinha. Outro, sem sair do lugar, tenta acertar aquela bola. Se não acertar, é a vez do primeiro tentar sua jogada e acertar a bolinha do amigo.

Depois de três ou quatro vezes, Denzell acerta e sorri, feliz da vida. Mas não leva a bolinha. O amigo fala: “Era à brinca. Vamos à vera?” Denzell aceita não levar a bolinha do amigo. A brincadeira con-tinua, o menino quer muito ficar amigo de Denzell. A quantidade de bolinhas de gude parece ter a ver com essa amizade. É brincando que as crianças aprendem a ser solidárias, parceiras, amigas, a ter prazer de ficar juntas.

brinquedo – aí eu vou lá e brinco. Aí eu quero ler livro, aí eu vou lá e leio. Quero desenhar? Vou lá e desenho.

A criança segue os seus desejos, sem haver a necessidade da interferência do adulto nes-sa movimentação. O educador de cada sala propõe sempre uma atividade, mas a criança escolhe se inserir ou não. Na sala de artes, por exemplo, algumas crianças podem estar fazendo uma atividade com a educadora, en-quanto outras fazem massinha, ou desenham. Quando solicitado, o educador interfere, e muitas vezes as crianças solicitam a sua pre-sença na hora, por exemplo, de lidar com um

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A forma com que os adultos organizam as salas e atividades e a forma como intera-gem com as crianças também proporcionam essa autonomia. Algumas vezes, as próprias crianças promovem a reflexão sobre seus atos – e isso é facilitado talvez pela mis-tura de idades, pois as crianças de 2 a 10 anos convivem a todo momento, ensinando e contando umas com as outras. Isso em si já é uma vivência de cidadania. Ariana (5 anos) está colorindo uma folha de papel, usando todo o espaço, em faixas verticais coloridas. A educadora coloca um pote de massinha na mesa. Ela se apro-pria dele. Uma das crianças da mesa fala: “Ariana, você tá com tudo!”. Ela pensa, e distribui um pouco para o colega, mas a massinha está muito dura e é difícil de tirar pedaços grandes. (Relato de uma pesquisadora)

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Direito de brincar

O Centro Cultural foi feito pensando na im-portância do brincar. A brincadeira, a alegria e a fantasia das crianças são estimuladas em todos os ambientes. Na sala da brinquedote-ca, além de muitos jogos e bonecas, há um canto com fantasias, com as quais as crian-ças se transformam em todo tipo de persona-gem. Elas colocam panos entre as estantes e o ambiente vira uma tenda, uma casa, um castelo. O roteiro e o tempo da brincadeira

Mesmo sendo pequena, Ariana entende que não pode ficar com tudo, não seria justo, e aceita dividir. Só não consegue dividir me-lhor porque a massinha está dura, e também porque não quer perder demais – afinal ela só tem 5 anos, e dividir é um processo que ela ainda está aprendendo.

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são ditados por elas. Na biblioteca, as crian-ças leem, tem contação de história, mas o es-paço também é utilizado para encenar peças de teatro que elas inventam, ou histórias que ouviram e reinventam.

Ariana pega o livro dos três porquinhos e senta com os colegas atrás da boca-de-cena, onde pega um dos fantoches – dois porquinhos são de plástico, um é de feltro. Começam a contar a história, com os três porquinhos se apresentando. Uma criança fala que Fred gosta de brincar e de bater nas crianças. Todos riem. A educadora in-terage muito com as crianças, e mantém o interesse na brincadeira-história contada. Ariana decide ser lobo, ficando do lado de

fora da casinha. A educadora pede o livro e começa a ler para as crianças; elas repetem e dramatizam com fantoches ou, no caso do lobo, com Ariana de corpo e alma. Na hora em que o lobo sopra as casas, Ariana pula, sacode as trancinhas, assopra, dá risada, parece estar gostando muito de ser lobo mau.Os três porquinhos às vezes são qua-tro, às vezes nem são porquinhos – o que interessa é brincar com as palavras.

As crianças formaram um grupo de rap cha-mado Grupo da Pimenta. Elas usam o espa-ço da biblioteca para ensaiar seus raps, que apresentam para a comunidade. As letras falam de meio ambiente e dos direitos das crianças.

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E nem só nas salas se brinca. As crianças conquistaram outro espaço – que era peque-no e que teve de ser ampliado: o pátio ex-terno. O combinado é que no período antes do lanche cada criança tem que escolher uma sala. Depois do lanche, podem escolher uma sala ou o pátio, onde acontecem, numa área de 60 metros quadrados, jogos de futebol, pulação de corda, pique-parede, bambolê e brincadeira de elástico. Tem gritaria, corre-corre, gargalhadas? Muito. Tem bagunça, atropelos, conflitos, brigas? Também. O aprendizado maior é ouvir as crianças nas suas reivindicações. Conversar, entender, refazer os combinados, sempre visando uma convivência saudável, solidária.

Direito de conviver, com normas que fazem sentido

Assim como a escola, o lar e a rua, o Centro Cultural também tem suas normas – e estas não são tão diferentes das regras de outros espaços. Na fala das crianças, pode: “brin-car, conversar, ser amigo, ser unido, correr, desenhar, mexer no computador, aprender a falar inglês, ler livros, brincar de futebol, de queimado”. não pode: “brigar, xingar, falar palavrão, bater, morder, fazer bagunça nas salas, jogar papel higiênico no vaso”.

A diferença entre este e outros espaços que as crianças frequentam é que aqui as regras foram criadas com elas, com as palavras de-las, bem concretas, e são muitas vezes re-tomadas, relembradas, reeditadas para que continuem a fazer sentido para todos.

Através de produções – desenhos, colagens, cartazes – as normas se fazem presentes nas falas e nas paredes do Centro Cultural, e são retomadas em conversas coletivas e indivi-duais. A ideia é que sejam claras e justas, e por isso sejam seguidas por todos, sem haver necessidade de recompensas nem castigo, ameaça ou punição.

Isto é, para os educadores, um grande de-safio. Num lugar onde cem crianças inte-ragem com esse grau de liberdade, con-flitos acontecem, normas são quebradas, o que leva a um trabalho de reconstrução permanente. Imersas numa cultura onde o mais forte sempre manda – seja na esco-la, em casa ou na comunidade – as crian-

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ças precisam aprender uma nova lógica: fazer porque é certo, “é o combinado”, e não por medo de apanhar. Assim como elas, os adultos também precisam agir co-erentemente com uma lógica da qual es-tão no processo de se apropriar. Para isso, precisam constantemente questionar suas

práticas, refletir sobre suas ações à luz dos princípios em que o Centro Cultural foi construído. Estas reflexões são feitas mensalmente nas reuniões de atualização da equipe. Nelas, há espaço para a dúvida, para o relato de experiências, para pensar e chegar a soluções coletivamente.

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Desafios Não faltam desafios para a gestão de uma ini-ciativa tão inovadora. Selecionamos alguns deles como material para debate e reflexão, considerando os vários atores envolvidos: a instituição que administra o Centro Cultural, os educadores que nele trabalham e as crian-ças, razão de ser do projeto.

Desafio institucionalSustentabilidade com qualidade

A sustentabilidade é um desafio constante. O Centro Cultural existe graças a parcerias fi-nanceiras que não são inesgotáveis. A busca por recursos para sustentar uma equipe de 14 funcionários contratados, com todos os di-reitos trabalhistas garantidos, prover um lan-che diário para as crianças, comprar material de consumo para as várias oficinas e fazer a constante manutenção é um fardo muito pe-sado. Uma ação nesse sentido foi inscrever o Centro Cultural da Criança em um programa de incentivo do Ministério da Cultura, cha-mado Ponto de Cultura. A conquista deste título garante não apenas recursos direta-mente para o Centro Cultural, mas também a possibilidade de fazer parte de uma rede ampla de centros culturais. O certificado também ajuda na busca de novos parceiros.

Outro tipo de sustentabilidade é a metodoló-gica. A metodologia do Centro Cultural foi em grande parte construída e implementada pelo CECIP. As diretrizes pedagógicas é que diferem o CCCria de outros programas de

ações complementares à escola que se vê por aí. São o seu DNA. No entanto, com a cons-tante rotação de profissionais – uma equipe que já se renovou três vezes em um perío-do de menos de dois anos de funcionamento –, como manter os princípios que o tornam tão peculiar? A publicação do “Castelo das Crianças Cidadãs”, livro impresso pela Im-prensa Oficial de São Paulo/ IMESP, foi um passo importante para consolidar a experiên-cia e registrar a metodologia, mas mantê-las vivas na prática ainda é um desafio.

Desafio para o educadorIncentivar a autonomia para quem vive a heteronomia

Como proporcionar uma experiência de auto-nomia, quando só se conhece a heteronomia? Kamii coloca esse desafio como o caminho de uma vida inteira. Mas é preciso querer trilhá-lo, fazer o esforço de refletir e mudar a prática à luz de novas (e melhores, espera-se) ideias. Isso parte da compreensão profunda da me-todologia para, como educador, traduzi-la nas pequenas e grandes ações do dia-a-dia. Enten-de-se o educador como um dinamizador, um problematizador, um facilitador de aprendiza-gens múltiplas e ricas. Um profissional cujo papel é ouvir com amorosidade, como diria Paulo Freire, ajudando a organizar a partici-pação das crianças na avaliação da situação e na tomada de decisões. Para os educadores, momentos de grandes avanços são seguidos de retrocessos. O pro-cesso pode muitas vezes ser frustrante, em-bora em sua grande maioria eles declarem ter

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crescido pessoal e profissionalmente, e afir-mem que nunca se sentiram tão desafiados e recompensados no trabalho. Manter esta cha-ma acesa é um enorme desafio.

Desafios para a criançaTransitar entre as regras dos vários espaços

A criança, em casa ou na escola, convive com regras que ela não criou, às quais deve obede-cer sem pensar ou questionar, e com conse-quências que variam de uma simples bronca a violências verbais e até corporais. Ela apren-deu estas regras e aprendeu a viver com elas. No Centro Cultural da Criança, a experiência é outra. As regras que elas aprenderam em outros espaços, na sua maioria, também se aplicam aqui. Só que não foram impostas; são normas criadas em comum acordo e por esse motivo existe uma expectativa de que ali elas sejam respeitadas porque é justo. Da mesma forma, a possibilidade de ir e vir e a confian-ça que os adultos depositam na capacidade de a criança fazer boas escolhas reforçam nelas um sentimento de autonomia e competência. As relações entre educadores e crianças são permeadas pela afetividade – o que aumen-ta seu sentimento de pertencimento. Aí estão todas as condições para que esta criança se desenvolva de forma plena e feliz. O conflito acontece, por exemplo, quando a família não entende que irmãos que frequentam o Centro Cultural resolvam que fazer fila por ordem de chegada é a maneira mais justa de serem servidos – e não por idade, como sempre foi o costume na família. O conflito acontece

quando a criança chega à escola e é obrigada a pedir permissão para cuidar de suas neces-sidades básicas – como beber água ou ir ao banheiro – e se depara com um adulto pouco afetivo, que desconfia dela e se dá o direito de negar o seu pedido, em nome de uma regra estabelecida de forma aleatória, com a descul-pa de prevenir o caos que poderia acontecer se cada criança bebesse água na hora em que está com sede. O desafio é envolver mais esta escola, esta família, para que possam enten-der que a criança autônoma aprende e convive melhor, e é mais feliz.

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Participar e expressar seus desejos de forma organizada

O Centro Cultural é baseado na ideia da parti-cipação das crianças nas decisões que as afe-tam diretamente. Esta cultura não existe em nenhum outro espaço que elas frequentam. Fazê-las entender a riqueza de possibilidades que isso traz, e que realmente serão ouvidas e levadas a sério, é um desafio. Ajudá-las a se organizar – crianças tão pequenas – demanda tempo e paciência. Mas esse é um desafio que vem sendo muito bem-sucedido. Houve um período em que as crianças participavam de assembleias onde eram discutidas as regras e questões que estavam incomodando. Depois as assembleias aconteciam por sala. Desco-briu-se que o que elas realmente gostavam eram os abaixo-assinados – onde uma ideia discutida por um grupo era então passada para todos, antes de ser posta em prática. Um exemplo: em julho de 2009, época de férias escolares, duas crianças decidiram que queriam uma colônia de férias no Centro Cultural. A dupla se dirigiu à coordenação

reivindicando o seu desejo. A coordenação questionou a legitimidade – a ideia era só da dupla ou todos queriam isso mesmo? Rapida-mente elas se organizaram, foram de sala em sala expondo suas ideias, o grupo foi crescen-do, as ideias se aperfeiçoando, fizeram uma lista de tarefas e trouxeram a proposta de colônia toda planejada para a coordenação. O evento aconteceu como as crianças ha-viam planejado, com muita festa e emoção. As crianças nos demonstram diariamente como são capazes, criativas, amorosas, res-ponsáveis. Quando começamos, o protago-nismo infantil era uma aposta de um grupo de educadores apaixonados pela pequena infân-cia. Agora, ele é fato comprovado na prática. Inspiração para quem quiser aprender.

Referências

■ CECIP (2009). CCCria – Centro Cultural da Crian-ça – O Castelo das Crianças Cidadãs; Imprensa Oficial de São Paulo – IMESP.

■ Kamii, C., Clark, F. & Dominick, A. (1994). The Six National Goals: A Road to Disappointment. Phi Delta Kappan v.75 pp. 672-7.

■ Site da Agência Brasileira para a Proteção à In-fância e Adolescência: <http://www.observatorio-dainfancia.com.br/IMG/pdf/doc-99.pdf >

■ Site do CECIP: http://www.cecip.org.br/

■ Site do CEACA-Vila: http://www.ceaca.org.br

■ Magnani, C. M. (2007). Lixo e deslizamento: um estudo de caso no Morro dos Macacos / Rio de Ja-neiro, Brasil. Tese, Escola Nacional de Saúde Pú-blica Sergio Arouca.

AgradecimentosÀ equipe do CECIP: Jovelina Ceccon, Ma-ria Lucia Lara, Anna Rosa Amâncio, Rosa-ne Monteiro e Madza Ednir, pelas suges-tões e encorajamento. A Mariana e Thomaz Chianca, pela leitura e aperfeiçoamentos.

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2DESAFIO AOS EDUCADORES: APRENDER DESAPRENDENDO

* Pedagoga pela Universidade Notre Dame, Rio de Janeiro, com pós-graduação em Educação Infantil pela PUC-RJ. Membro da Equipe de Facilitadores Educa-cionais e da Equipe de Educação Infantil do CECIP.

Por isso, o desafio de implantar um Centro Cultural em que as crianças desenvolvessem a capacidade e a responsabilidade de seguir seus desejos começou pela seleção e forma-ção dos educadores que trabalhariam com elas. Foi preciso vencer medos e inseguran-ças, deixar de lado a educação que eles pró-prios tiveram, em casa e na escola, e ter aber-tura para aprender a educar de outro jeito.

Nesta entrevista, Maria Lucia relembra todo o processo de preparação da equipe e fala

das dificuldades práticas de viver o protago-nismo infantil no dia-a-dia.

Quais foram os maiores desafios na implantação do Centro Cultural?A seleção das educadoras foi complicada, mas instigante. Começava no CEACA, com análise de documentos, de currículo e tudo mais. Eles faziam uma pré-seleção e passa-vam para a gente os escolhidos. Entrevista-mos essas pessoas que nos chegaram e de-pois elas fizeram uns dois meses de oficinas.

entRevista: maRia luCia laRa*, da equipe de eduCação infantil do CeCip,a Claudia CeCCon

Mesmo com sua longa experiência prévia em educação infantil, Maria Lucia Lara nunca tinha vivido nada parecido com o CCCria. Aliás, ninguém da equipe tinha vivido. O conceito de protagonismo costuma ser pensado em relação a jovens, raramente a crianças pequenas, e muito menos aplicado na prática.

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O primeiro bloco foram oficinas com mó-dulos organizados em conteúdos: cidada-nia, metodologia, arte — não só o trabalho artístico mas a criatividade no sentido mais amplo —, trabalho corporal, interação do grupo, trabalhar em equipe. E teve também uma formação em observação. Nós indica-mos locais que fazem trabalhos interessantes e elas escolheram, de acordo com sua iden-tidade e interesse, onde queriam observar: um ambiente de sala de arte, um ateliê, uma biblioteca, um espaço que realiza trabalho corporal. Foram escolhendo e visitando es-ses locais.

Não houve uma oficina voltada para o protagonismo?Não, porque o protagonismo perpassava tudo. O protagonismo era a própria meto-dologia. Fizemos um módulo falando da metodologia em si, nos referimos a Paulo Freire e à questão das interações com de-terminados valores: o respeito, a concepção da criança como um ator social, podendo ser sujeito de sua própria aprendizagem e fazer escolhas. Elegemos princípios para caracterizar o que era a metodologia do protagonismo. Eles giravam em torno da autonomia, da criança consciente dos seus direitos, capaz de aprender a se expressar, a expressar seus desejos. Nós bolamos estra-tégias para que as educadoras vivenciassem atividades em que tinham que expressar os seus desejos, tinham que fazer escolhas. Es-sas eram características dos princípios con-tidos no protagonismo.

Como elas reagiram a essas atividades?Era complicado, porque muitas delas não tinham experiência em fazer determinadas escolhas, em tomar posições, decidir, opinar, fazer a apreciação crítica de um objeto. Foi muito interessante porque percebemos que, para muitas, era uma situação nova ter que sustentar um posicionamento baseado em suas crenças.

Algumas se emocionaram, contando passa-gens de suas vidas diante de situações como aquelas, foi muito rico. A seleção foi um pro-cesso de muito aprendizado, muito trabalho-so, porque exigia que estivéssemos atentos tanto às subjetividades quanto aos comporta-

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mentos, à personalidade de cada uma, refleti-da nas reações e interações entre elas.

Havia também a questão da bagagem que elas traziam. O interessante é que às vezes a bagagem de vida da pessoa não se aproxima-va em nada do “protagonismo”, mas mesmo assim a gente percebia que havia ali, naquele ser, uma abertura, uma condição de querer, de desejar, de se abrir para novas experiên-cias. Enquanto outras pessoas não demons-travam isso.

Essa característica tem a ver com algum fator, como idade ou formação?Não. Nem com idade, nem com gênero, nem com formação. A pessoa que mais se desta-cou e que mais tempo ficou junto conosco tinha formação de professora, mas nenhuma experiência com uma escola mais aberta, nunca tinha ouvido falar de protagonismo. Mas era aberta e desejosa, naquele momen-to de vida, de ter novas experiências, de ter críticas ao fazer profissional dela. Era aque-la pessoa já inquieta com a rotina profissio-nal. Ela estava prontinha, madura, no ponto para absorver aquela coisa toda. Essa moça se abriu tão plenamente que hoje é capaz de descortinar um novo capítulo para sua vida. E isso é dito por ela: que sua vida foi um capítulo antes do Centro Cultural e um capí-tulo depois do Centro Cultural. Inscreveu-se uma nova história na vida profissional dela, ela lê o mundo de outra forma, com outros olhos. Nela ficou sintetizada a riqueza desse processo de seleção e de formação.

É difícil ensinar a prática do protagonismo?Muito, foi um esforço muito grande. Não tem nenhum lugar que pratique a metodologia do Centro Cultural da Criança, ainda mais com essa faixa etária. Onde ler? Onde estudar? Como conceber o protagonismo como práti-ca se você não tem isso acontecendo? Como mostrar para as pessoas que é possível, se elas não estão vendo nada no entorno que experi-mente isso? Muito pelo contrário, dizer que uma criança de 4 a 10 anos vai gerir o seu tempo de atividade era uma coisa assim tão absurda que as pessoas diziam: “Não, eu só vivi escola onde me disseram o que tenho que fazer, que cor eu tenho que colorir, pra onde

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eu vou, a que horas, que horas eu saio do re-creio, que horas eu entro, que dever vou fazer agora, com que lápis de cor. Como dizer que a criança vai escolher o que vai fazer? Ela vai escolher entre fazer argila e fazer tinta? Não sou eu que vou dizer pra ela o que ela vai fa-zer agora? Não é possível. Ela não vai fazer, ela não vai agir, ela não vai produzir. E todas as crianças dessa sala não vão produzir a mes-ma coisa no mesmo momento? Como é que todos não vão fazer colagem?”.

Vai virar bagunça!Vai virar bagunça! Esse é que era o medo. Apostar nisso... às vezes elas tinham ex-pressões corporais e de olhares que eram muito fortes para nós. Quando a gente sen-tava para observar as salas ou para dialogar com as educadoras sobre o fazer delas, nos diziam como era aquele desafio, e a gente trazia uma sugestão — “Será que se você fizesse assim, será que se você trocasse isso de posição assim...” —, elas nos olhavam, gesticulavam, ficavam com a boca tensa, com o olhar... aquilo era um desafio pra nós. Pensávamos: “Gente, como vou fazer ela compreender, ela acreditar que deve ex-perimentar?”. Ainda que ela venha me dizer depois que não deu certo, como eu vou criar nela esse desejo, de ter vontade de experi-mentar, arriscar? É como se você estivesse dizendo: “Bota o pé na água, que a onda não vai levar seu pé, não. O tubarão não vem comer seu pé. Bota!”. E ao mesmo tempo a gente pensava assim: “E se o tubarão vier?” (risos). Se o tubarão vier, como é que eu vou dar colo pra ela? Porque às vezes o tu-barão vinha.

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Claro, porque são crianças, então às vezes viravam a mesa, a sala virava uma bagunça, teve um dia em que eles jogaram argila pela sala — pra testar, claro, estavam experimen-tando uma coisa que nunca viram. E aí como é que faz pra discutir com as crianças sem

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isso? Como é que você faz isso sem botar de castigo, sem gritar com elas, sem bater com a régua na mesa?

Qual é a outra maneira? As educadoras não conheciam, nunca tiveram essa vivência, nem em casa nem na escola. Então você es-tava abrindo uma cortina e oferecendo para provar algo que era muito novo.

Ao mesmo tempo era um desafio pra gen-te também, porque eu estou jogando com a vida dessa pessoa, com os valores dela, es-tou dizendo pra ela experimentar outro valor. Isso é muito sério, não é brincadeira, você vai mexer com coisas muito profundas, que são da alma humana. Parece uma coisa mui-to simples, mas não é.

Por que a primeira equipe formada se desfez? Ela se desfez parcialmente, por diferentes motivos. É parte da vida da comunidade. Uns não deram conta do movimento do tráfico na comunidade. Teve caso de um ti-roteio em que a pessoa ficou tão tensa, tão tensa, que disse: “Não, não dá pra mim, não vou suportar isso”.

Ela não era moradora da comunidade? Nós tivemos poucas inscrições de mora-dores da comunidade, principalmente na primeira leva. Eu acredito que não tinha na comunidade nenhuma pessoa que se identi-ficasse, que entendesse o que era a proposta.

Mas não sei o que ocorreu no processo de seleção no CEACA. Não posso garantir se

ser aquela coisa de botar todo mundo com a cabeça baixa?

Tem outra forma de fazer pensar, de corrigir, de colocar limite, de dizer que não pode su-jar a parede desse jeito, que argila não é pra

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optavam por quem era da comunidade, por quem não era. Isso é uma polêmica muito grande para quem trabalha em comunidade.

Por quê?Porque às vezes ser da comunidade implica em situações que da noite para o dia fazem você perder esse profissional. Por exemplo: alguém cisma que ele não vai poder mais subir. Isso aconteceu mais de uma vez com funcionários do Centro Cultural. Tanto com educadores quanto funcionários de serviços gerais. Porque numa comunidade como a do Morro dos Macacos há facções e às vezes a pessoa está envolvida, não diretamente, mas indiretamente – tem alguém da família do outro lado, enfim... tudo isso é muito ruim, dá dó. É complicado. Eu, que tenho mais de 40 anos de vivência na comunidade, não sei

dizer com clareza em que momento é me-lhor ter as pessoas da comunidade ou não. Há prós e contras.

A rotatividade dos funcionários é um desafio para o futuro?Eu tenho muita preocupação com essa rota-tividade. Eu sei que isso não acontece só lá, mas fico com pena que aconteça, porque fica difícil consolidar. A gente agora está crian-do estratégias para que isso fique consoli-dado, independentemente das presenças. O que está acontecendo é que, nessa rotati-vidade, sempre tem alguém que vai poder passar o bastão. Esse negócio de passar o bastão as culturas africanas têm muito, essa coisa de quem vai deter o conhecimento.

Eu visitei quilombos, vi e vivi o momen-to em que o mais velho estava falecendo. Tinha um quarto fechado onde ninguém entrava e onde ele passava os seus conhe-cimentos, segredos, tradições, aquela coisa toda, para o filho mais velho.

A sorte é que no Centro Cultural dá tem-po de, antes de rodar um, rodar outro, essa cultura ser incorporada. Hoje, a metodolo-gia está mais consolidada. Eu tenho muita esperança numa pessoa que é da comuni-dade, que já é uma referência e que vai mantendo o bastão, mantendo a tocha ace-sa, mantendo ela brilhando.

O Centro Cultural traz benefícios para a comunidade?Acho que um dos maiores benefícios é por ser um espaço seguro. Você imagina quantas

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incursões nós já tivemos, do “caveirão” ou de outros, na hora em que as crianças estão lá dentro. Ora, pense que algumas crianças po-deriam não estar vivas hoje se não tivessem o Centro Cultural. Isso é fato, não é utópico, isso é real. E para o futuro da comunidade?Para o futuro tem dois ganhos. Um é o re-sultado para as crianças que já passaram pelo Centro Cultural e as que estão passando hoje. Tenho certeza, sem sombra de dúvida, que a maioria delas será menos vulnerável ao tráfico, ao chamariz do tráfico. Porque te-rão tido a oportunidade de experimentar por mais tempo aquilo que é bom pra elas. Para poder, na hora de decidir, ouvir aquela vozi-nha da mãe, ou de alguém da igreja, aquela voz da consciência lá do fundo da alma di-zendo que aquilo lá é vida pra pouco tempo, é vida mais difícil, marginal mesmo, que vai lhe dar muitas preocupações.

Quanto mais horas ela fica dentro de um lu-gar onde experimenta ser amada, principal-mente amada e respeitada, na hora da vul-nerabilidade isso pesa muito. Por isso minha agonia de saírem aos 11 anos, se pudessem ficar mais...

Qual é o outro ganho?O outro é a questão do desenvolvimento da criança. Ela tem muito mais chance de se dar bem na escola, de ter sucesso na escola, de não ser contingente de evasão. Porque as di-ficuldades da criança são minimizadas com as possibilidades de se utilizar das diferentes linguagens com que ela convive no Centro.

E essas habilidades, com esse respeito e esse amor traduzido em respeito, com esse ouvir, com essa alegria de viver ali, são pilares para ela. Hoje a gente está com eles pequenini-nhos, mas eu sei que vou encontrá-los bem adiante e o número de crianças que vão es-capar será muito maior do que quando você só tem uma creche, quando você só atende até os 4 anos. Antes do Centro Cultural esse intervalo de 4 a 10 estava vazio, preenchido certamente por nada, ou por imagens muito dolorosas, quando não pelas surras. Porque ficam em casa aprontando e levam boas sur-ras. Esse vazio foi preenchido, e muito bem preenchido. O maior ganho foi esse, eu não tenho dúvidas, não preciso de números para me comprovar isso.

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Como é que o conceito de protagonismo infantil foi introduzido no Centro Cultural?Bom, estávamos nós lá, terminando o pro-jeto na Creche Patinho Feliz [primeira par-ceria do CECIP com o CEACA, na área de educação infantil] e sabíamos que não podí-amos dar fim a esse projeto, tinha que conti-nuar. Foi aí que a gente começou a desenhar o Centro Cultural. Começou-se pelo que era conhecido: quantas horas, quantas crianças, funcionar num horário contrário à escola, como vai ser a estrutura de funcionamen-to. Começou com essa simplicidade. Então toca a ver na internet modelos de centros de cultura pelo país, conseguimos prospectos e sentávamos à mesa com vários modelos de funcionamento. E dando tratos à bola no que a gente imaginava, porque não existia nada pronto para essa faixa etária. O primeiro de-safio foi criar uma estrutura de funcionamen-to que estivesse integrada ao protagonismo. Não era qualquer estrutura, porque as estru-turas que se conhecia não combinavam com o protagonismo.

Mas essa ideia de protagonismo você leu em algum lugar?Primeiro tínhamos como referência Paulo Freire — as crianças serem críticas, serem conscientes, elas mesmas fazerem a leitura de mundo ajudadas por educadores. Tínha-mos isso e queríamos mais do que isso. Que-ríamos atualizar essas leituras. Quando nos deparamos no impasse da palavra, protago-nismo, eu corri logo para procurar entender, estudar, me apropriar e poder estar mergu-lhada nisso. O primeiro nome que me veio

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associado a esse conceito foi o de Antonio Carlos Gomes da Costa. Eu fiquei totalmen-te instigada, tomada de interesse, porque sou toda das crianças menores, toda minha vida, todo o meu estudo está dirigido para as crianças da educação infantil, e ele não in-cluía a criança pequena. Ele defendia o pro-tagonismo, mas se questionava se isso seria possível com uma criança tão pequena. Aí eu já queria provar que era possível. Já esta-va envolvida: se ele colocou isso nós temos que provar. Por que elas não podem? Por que não com essa faixa etária? Quanto mais cedo melhor. Tudo é melhor na base! A gente sabe que até os 3 anos o cérebro se distende muito mais, é o momento de abrirmos janelas de oportunidades.

Esperar pra quê? O juvenil já está velho! Já passou! Então fiquei instigada por ele e co-mecei a ler outras coisas, mas todas as lite-raturas que encontrei falavam do protagonis-mo juvenil, você não encontra protagonismo infantil. Só agora, bem recentemente, de cin-co anos para cá, você começa a ver essa ex-pressão atrelada à educação infantil, e assim mesmo com uma porção de ressalvas. No CECIP tivemos acesso às coleções da Fun-dação Bernard van Leer, com suas pesquisas, suas questões ligadas às crianças. Elas indi-cavam leituras sobre crianças e autonomia, mas isso era pouco pra gente. Autonomia não diz tudo. E aí é que nós começamos a construir. Criamos um módulo onde coloca-mos o que acreditávamos como princípios do protagonismo — porque se a gente quer que a criança seja protagonista, ela precisa desenvolver certas habilidades para isso. Co-

locamos o que achávamos importante, ten-tando fazer com que as pessoas não ficassem muito chocadas. Elas ficavam, achavam que a gente era um ET.

E como transformar esses princípios em prática?Aí, é outro desafio. Bolar estratégias para que as pessoas vivessem aquelas habilidades e fizessem uma transposição para a vivência com as crianças. Ah, mas gerou muita dis-cussão, muita cabeça soltando fumaça na mesa, com pessoas que tinham experiências, e muitas experiências, pessoas muito concei-tuadas. Imagina com as coitadas das educa-doras que estavam sendo selecionadas!

Aí mesmo que era um nó, foi um deus nos acuda. As pessoas nos questionavam mes-mo, mas a beleza foi que a cada questiona-mento, quando éramos sabatinadas por es-tarmos colocando aquelas estratégias como possíveis ações a fazer com as crianças, nós corríamos para nos fortalecer naquilo que era nossa experiência.

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Mas ainda assim houve resistência entre os educadores?Alguns ficaram muito incomodados de não conseguir enxergar, ou apostar, ou compre-ender mesmo a possibilidade de fazer dife-rente. Houve um educador que era inclusive uma pessoa de formação artística, criativo, com experiência com crianças um pouco maiores. Ele não conseguiu entender a pos-sibilidade de deixar a criança fazer uma es-colha dentro da sala de arte que não fosse a que ele estava propondo, e em que ele não direcionasse o como fazer. Aquilo era vio-lento demais pra ele, ele não conseguia dar dois passos. É como se você tivesse posto

um sapato de salto alto em mim. Com ele foi a mesma coisa, e o que me chamou muito a atenção é que ele era professor de arte, mas não conseguia dar dois passos com aquelas informações, com aquela atividade, com aquele material todo que estava lá disponível para ele. Na hora em que foi manusear aque-les materiais ele não conseguiu.

Ele disse: “Não dá!”. Às vezes na teoria você aceita, mas na prática é mais complica-do. Teve uma experiência com uma profes-sora de arte que foi muito interessante. Ela disse assim: “Gente, então tudo o que eu fiz até agora é ao contrário? É exatamente na

Ariana pega uma Barbie e diz que é ela. Josiana não parece gostar muito. As duas disputam a boneca, até que Ariana entra debaixo da mesa e pega várias bonecas que estavam guardadas. As duas parecem satisfeitas e começam a separar as Barbies e as bonecas pequenas (fofoletes), que seriam as filhas/bebês.

Uma menina aparece e chama as duas para a gincana, mas elas se negam e continuam a brincar. Começam a separar os móveis e a ar-rumar suas casas. Ariana narra tudo o que está fazendo: “Aqui vai ficar o sofá, falta uma mesa, ali vou colocar a cama”. Em alguns momentos há disputas pelo mobiliário, mas tudo parece ser negociado e resolvido entre elas, sem a ne-cessidade da intervenção de um adulto.

Depois de tantas arrumações, Ariana pergunta: - Viu, tia, como arrumamos a casa? - Vi, ficou muito legal, agora podem começar a brincar.- A brincadeira já começou!, responde ela, com expressão de espanto.

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Casas de Boneca

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contramão que eu tenho que andar?”. Isso foi lindo, foi o momento em que ela deu o clique. Que era na contramão mesmo! Foi a partir dali que ela caminhou, claro que com dificuldades, mas ela compreendeu. Isso é que é o bonito da educação, o trabalhar, o educar tem muito a ver com isso. E você vai junto – e é um barato. Com todas as incom-pletudes dos educadores, eles vão se com-pletando, deslanchando, se descobrindo e trabalhando dentro dessa metodologia do protagonismo. Vão sacando a essência, os macetes, aquela coisa toda. Porque também é o esforço de uma equipe enorme, temos muitos parceiros.

Como você percebe que a metodologia do protagonismo está sendo bem-sucedida?O desenvolvimento das próprias crianças é o grande sinal. Elas costumam expressá-lo de diferentes maneiras, com perguntas diver-tidas ou com respostas as mais incríveis. A gente devia fazer um livro com as respostas das crianças. Elas têm saídas engenhosas, têm dito coisas surpreendentes para os adul-tos, têm feito coisas que você fala “Nossa, que incrível! Isso já é resultado do trabalho”. A coordenadora trouxe uma que é a pérola das pérolas: as crianças do Centro Cultural foram convidadas, por uma organização par-ceira do CCCria, para irem ao Museu Aero-Espacial.

Na casa de Ariana, a mãe deita na cama, levan-ta e lava as mãos, deita de novo, lava as mãos novamente, vai para o fogão e se deita de novo. De repente a menina percebe que a mãe deitou sem lavar as mãos, então levanta a mãe, lava as mãos, deita a mãe, suspira e diz: “Agora, sim”.

Josiana percebe que Ariana tem dois espelhos e ela nenhum. Ariana não abre mão de ime-diato de seu espelho, mas aceita colocá-lo em uma posição que atenda um pouco à casa da sua vizinha. Ariana dança, canta e diz que sua casa está muito bonita. As duas continuam a arrumar as casas, colocam paninho nas camas, trocam os móveis de lugar, tapetinhos... Josia-na oferece um berço para o filhinho de Ariana, que o aceita com muita alegria, coloca o bebê no berço, fica balançando e cantando. Diz a

toda hora que a casa está arrumadinha, e não para de arrumar. Josiana, aos pouquinhos, con-segue levar o espelho definitivamente para sua casa. Aparentemente Ariana não percebe ounão se importa.

A educadora avisa que é hora de arrumar para poderem lanchar.- Ah! O problema é que a gente nem brincou! lamenta Ariana.

Apropriando-se dos componentes da arrumação da casa e dos cuidados maternais, essas meninas aprenderam a compartilhar, a negociar, a orga-nizar objetos nos espaços disponíveis, além de desenvolver seu potencial criativo. Quem brinca (e quem observa a brincadeira) aprende muitas coisas sobre as interações entre os sujeitos.

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Depois de conhecerem o espaço, os recrea-dores do museu fizeram brincadeiras com as crianças e pediram que desenhassem algu-ma coisa sobre o passeio. Uma das crianças do CCCria disse que não queria desenhar. Eles então insistiram tentando convencê-la a desenhar. Ela pegou uma folha de papel, um lápis, e após alguns minutos entregou a folha. A recreadora se surpreendeu quando leu o que estava escrito: “EU NÃO QUERO DESENHAR”. A criança tinha perfeita cons-ciência de que não era obrigada a fazer o que não queria. Sabia que tinha o direito de dizer não. Soube fazer respeitar sua vontade.

As crianças fazem com que as pessoas en-xerguem toda sua competência e capaci-dade, porque o que acontece no CCCria é que são reveladas inúmeras capacidades das crianças. Crianças que não liam e ago-ra leem, crianças que não haviam revelado seus talentos, e os talentos acabaram apare-cendo, crianças antes tímidas, passivas, que encontram meios de expressar a enorme criatividade que estava represada.

As crianças brilham no CCCria?Sim, elas brilham. Então, não há lugar que possa ser melhor que isso, não é? Você poder acender a luz de todas as crianças, porque to-das as crianças têm luz. Quem vai acender?

Não é nem quem, mas como você vai ajudá-la a acender? Porque quem acende é ela - você apenas vai ser um instrumento para que ela mesma acenda a sua própria luz, deixar o espaço para que isso aconteça.

O protagonismo infantil acontece do jeito que tinha sido pensado por vocês, ou mudou de alguma maneira? Eu acho que ele teve aprimoramentos prá-ticos, na hora da interação. Por exemplo, a questão das plaquinhas coloridas, que fun-cionam como senha para a entrada na sala. Percebemos que precisava ser cuidada por mais tempo, sua função ser sempre renova-da, para que as novas crianças e educadores que chegam tomem consciência do valor das plaquinhas coloridas para a leitura autônoma da criança.

Não que essa prática não possa ser interiori-zada, mas precisa ser interiorizada conscien-temente, com significado. Porque se você automatiza na base do “porque o outro fez, porque o outro fez, porque o outro fez...”, o sentido vai se perdendo. O significado das plaquinhas coloridas é importante nessa lei-tura autônoma que a criança faz. Para ela po-der dizer “aqui tem vaga, aqui não tem”. Isso aconteceu, tanto que as crianças fizeram usos múltiplos, principalmente nas salas que eram mais disputadas.

Absorveram códigos da sociedade - códigos transgressores que elas já conheciam, usados pelos adultos na sociedade. “Eu sei que gen-te grande faz isso, ou que meus irmãos mais velhos fazem assim, e eu vou fazer a mesma coisa agora, porque preciso ganhar a parada com essas plaquinhas”. Somos nós, os adul-tos, que dissemos pra eles que se faz isso: que bota a plaquinha escondida aqui, que negocia o lanche, que dá tanto por alguma coisa, que isso vale tanto.

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A criança quando nasceu não sabia disso, aprendeu conosco. Isso é uma maestria da criança, demonstra a competência de leitura crítica que ela está fazendo dos códigos da sociedade em que ela vive.

Mas é difícil fazer com que os educadores compreendam isso e possam se apropriar dessa experiência que as crianças fizeram, e ajudá-las a transformar essas regras, para

voltar à regra original das plaquinhas co-loridas, ou mesmo mudar as regras, mas sabendo como empregá-las. A gente não está acostumado a fazer isso, não é nossa prática. Essas regras são desafios que foram postos no papel, mas não tinham os compo-nentes do real uso, da real apropriação que a criança faz nas situações de tensão, em que inventa outras maneiras de lidar com as regras.

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As plaquinhas eram vendidas por um real?O que fazer com essa situação? Já que é muito rica do ponto de vista de inteligência, ouvir a criança, o quanto ela está te dizen-do sobre o código dos adultos. E, ao mesmo tempo, como se trabalha para que ela con-tinue a ser protagonista, continue dizendo essas coisas pra gente? Porque, se eu abafo isso, ela não vai espontaneamente continu-ar dizendo, ela vai dizer aquilo que a gente quer ouvir. Ela não vai contar do jeito como as crianças do Centro Cultural contaram pra gente, sem nenhuma censura. E ao mesmo tempo estão abertas para nos ouvir.

O que e como dizer pra essa criança, que ela continue confiando, agindo da maneira que acha que deve agir, pra que a gente continue o nosso diálogo e possamos crescer juntos? O educador precisa dar uma resposta no ato, sem ferir os princípios do protagonismo. Ali, na lata. Pra mim isso é o máximo. Me deixa feliz estar lá, podendo viver isso. Tem ho-ras que eu me junto às crianças, fico do lado delas, porque acho um barato o que elas es-tão pensando. Quantas inteligências, quantas habilidades, quanto posicionamento crítico essas crianças fazem!

Algumas pessoas que visitam o CCCria ficam com a impressão de que é uma grande bagunça. O que você acha disso?Tem dias que é bagunça mesmo, na área ex-terna, com os que escolhem ficar fora da sala. Isso acontece com mais frequência à tarde, quando há um número maior de crianças. Mas é uma bagunça de crianças em movi-mento, barulho, correria. Às vezes o CCCria está lotado e acontece de ter um número me-nor de educadores. Além disso, as atividades de corpo e música não são todos os dias. Quando as crianças brincam de brigar e se machucam, é preciso a intervenção do adul-to, para garantir a segurança física das crian-ças. Também fazem parte dessa “bagunça” pequenas transgressões, como entupir a pia ou molhar o banheiro.

O que não abrimos mão é de conversar e re-ver com eles os combinados. É sempre um com a corda, ou com bola de futebol, ou bola de gude, e claro que de vez em quando

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passam uns relâmpagos que atropelam tudo, mas onde tem criança com liberdade vai ter que ter isso, não tem jeito.

Eu acho que os adultos ainda se tumultuam muito com barulho, com grito, com tudo. Claro, é adulto. Na maioria das vezes são bagunças produtivas. Criança sem fazer ba-gunça não é criança, não é?

Como você define o protagonismo infantil?Essa é muita engraçada: eu não sei! Eu acho que protagonismo infantil é o retrato

do CCCria. É você ser o responsável, ser o agente da sua própria ação, estar no centro da cena, não é?

Acho que é colocar a criança na cena princi-pal da vida de criança. E qual é a cena princi-pal da vida da criança? É brincar, é ser feliz, é ler o mundo às avessas, é fazer bagunça.

O protagonismo infantil é tudo isso, é con-seguir se desenvolver, crescer, aprender as coisas do mundo de uma maneira bem di-vertida, de uma maneira bem feliz, se pos-sível.

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3UMA CIRANDA PARA RESOLVER CONFLITOS

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Conflitos? Que palavra é esta e qual o significado que damos a ela? Para responder a estas perguntas, vou convidar vocês a refletirem à luz do que crianças pensam e fazem para que, de forma lúdica e espontânea, construam seus próprios significados sobre o que chamamos de conflitos.

amigos, que continuam o que estavam fazen-do sem se importar com sua presença. Logo em seguida, um outro menino se aproxima e pede para brincar. Rapidamente, o menino que já recebeu uma resposta negativa sobre sua participação, lhe responde com um não e complementa, dizendo “Eu sou o guarda da brincadeira e você não pode participar”. Algumas crianças do grupo olham para os dois e acenam afirmativamente com a cabe-ça, legitimando assim o mais novo guardião, que passa a ser mais um membro da brinca-deira. O outro menino sai tranquilo, aceitan-do o limite do grupo e encontra uma outra atividade para fazer.

Vou contar uma história da vida real que contribuirá para ressaltar alguns elementos fundamentais sobre convivência e resolução de conflito.

Um grupo de crianças brinca alegre e feliz, mergulhado no incrível mundo da imagina-ção. Esta brincadeira desperta o interesse e curiosidade de um menino que assiste, à dis-tância, à animação da garotada. Não que-rendo ficar de fora, chega perto do grupo e pede para participar. Escuta um não como resposta e a justificativa de que não há lu-gar para ele. Frustrado e sem saber o que fazer, fica em pé, ao lado, observando seus

Psicóloga pela Faculdade de Psicologia IBMR. Tem 20 anos de experiência como professora e coordenadora de creches e escolas. Atualmente, no CECIP, coordena o Núcleo de Educação para a Paz.

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Conhecemos muitas histórias onde o início de uma trama como esta normalmente leva a outro desfecho: briga, confusão, desarmonia e a algo violento e conflituoso. É muito pos-sível que cada um de nós já tenha experimen-tado pelo menos uma situação de exclusão na vida. E que não tenha tido a possibilidade de usar seu potencial criativo para encontrar a melhor solução para aquele momento.

Então, o que aprendemos com este outro fi-nal, que nem sempre está presente em nossas vidas?

Na história que contamos, podemos observar que as crianças são protagonistas da situa-ção e que conseguem, a partir do exercício da convivência, experimentar formas lúdi-cas de aprender a interagir. O olhar atento e

confiante de um adulto, que acompanhava o desenrolar do processo sem intervir, possi-bilitou que as crianças colocassem em prá-tica seus recursos inventivos para lidar com o conflito, sem serem invadidas durante seu processo de aprendizado.

O que estas crianças fizeram de forma espon-tânea, buscando aprender no ato de conviver maneiras de se relacionar, é o que adultos procuram reaprender, praticando os princí-pios e valores da Justiça Restaurativa. O que se busca é o resgate da justiça, como valor que orienta as relações entre as pessoas e norteia os encaminhamentos que devem ser feitos quando atos violentos são cometidos.

A Justiça Restaurativa foi introduzida for-malmente no Brasil em fins de 2004, pelo Ministério da Justiça, através de sua Secreta-ria da Reforma do Judiciário, que elaborou o projeto “Promovendo Práticas Restaurativas no Sistema de Justiça Brasileiro”. O Minis-tério da Justiça, com o PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, apoiou três projetos-piloto de Justiça Restau-rativa, um deles no Estado de São Paulo.

Em meados 2006, a partir da articulação en-tre a Secretaria de Estado da Educação de São Paulo, por meio da Fundação para o De-senvolvimento da Educação (FDE), da Co-ordenadoria de Ensino da Grande São Paulo (COGSP) e do Poder Judiciário, foi iniciada a parceria entre Justiça e Educação em He-liópolis, Guarulhos e São Caetano do Sul. Trata-se de um processo de formação de Li-deranças Educacionais e de implementação

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de Práticas Restaurativas que está criando as condições favoráveis para que a proposta, transformada em política pública, faça parte de uma nova dinâmica de convivência no es-paço escolar.

Em 2009, iniciou-se um novo projeto, desta vez junto à Secretaria de Educação de São José dos Campos e à Vara da Infância e Ju-ventude local. O trabalho envolve cerca de 140 pessoas, educadores e gestores de dez escolas da região, representantes dos Conse-lhos Tutelares e da Secretaria de Saúde, entre outros.

Os princípios e valores da Justiça Restaura-tiva formam um conjunto harmônico que é posto em prática, convidando cada pessoa a se conectar consigo mesma e com o outro, a ser verdadeira, tanto com seus sentimentos e necessidades quanto com os dos outros, aceitando o fato de que podem ser diferentes. Esses princípios e valores incluem responsa-bilizar-se pelo o que foi feito, se perceber como seres humanos, com suas virtudes e li-mitações, e ser propositivos, com ações que demonstrem que é possível estabelecer outra dinâmica para uma relação rompida.

Trabalhar a resolução de conflito, na pers-pectiva da Justiça Restaurativa, significa incluir todos os envolvidos, convidando-os a participarem como sujeitos de direito, po-dendo e devendo expressar suas opiniões nos temas que os afetam e, portanto, se responsa-bilizando pelos acordos a que se chegar, de restauração das relações rompidas.

É importante acreditarmos que nossas crian-ças têm capacidade de criar, a partir de suas experiências, um repertório incrível de estra-tégias para conviverem de forma harmônica, estabelecendo vínculos afetivos pautados no respeito a si e ao outro.

Na história da humanidade, há relativamen-te pouco tempo o conflito passou a ser visto como algo transformador em nossas vidas. Este potencial transformador nos ensina sobre nós e o outro, como pessoas que têm um potencial criativo e inventivo diante do conflito. Reconhecer esses sentimentos, e expressá-los conectando-nos com nossas necessidades mais verdadeiras e legítimas, é uma decisiva mudança de paradigma.

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O conflito faz parte de nossas vidas como pessoas. Lidar com ele é um aprendizado importante e necessário. Para que a violên-cia não seja a forma de resolver conflitos, é preciso colocar em prática o diálogo e uma maneira criativa de lidar com as situações desconfortáveis. Essa nova maneira é o diá-logo criativo que, ao mesmo tempo, ajuda a escutar o outro e nós mesmos, de forma ativa e participativa.

Crianças, quando estimuladas a conviverem, sendo co-autoras das formas criadas para pos-sibilitar esta convivência, têm mais condições de, gradativamente, desenvolverem compe-

tências e habilidades para lidarem com confli-tos, agora e no futuro, de forma não violenta. Saber estar com as pessoas passa necessaria-mente por saber aceitar suas potencialidades e fragilidades. Tem a ver com o respeito às diferenças e o reconhecimento das singulari-dades que são características de cada pessoa. É poder exercitar a difícil arte de entender que o outro pode pensar de forma distinta e que isso, ao contrário de ser ameaçador, é um fator de enriquecimento para todos.

Imaginem crianças brincando em um espa-ço onde suas escolhas sobre o que querem fazer são acolhidas. Um espaço com crian-

Estamos na sala de Corpo, aguardando o começo de uma peça de teatro que as crianças vão apresentar. Julya está sentada no meu colo e, olhando atentamente para mim, repara numa obturação que tenho no segundo molar, no fundo da boca.

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Tira os dentes pra mim ver?

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ças convivendo a partir de regras que foram construídas com elas, ouvindo, discutindo e aceitando suas opiniões, regras que, portan-to, fazem sentido e orientam sua forma de estar com outras crianças. Um espaço onde a expressão de suas necessidades e senti-mentos é considerada e serve de base para a elaboração de um projeto pedagógico co-erente e adequado para o desenvolvimento de novas habilidades e competências.

Esse espaço existe.

E foi nele que a história contada aconteceu. O Centro Cultural da Criança é um ambiente

que tem como princípio a escuta, a empatia, a compreensão mútua e, sobretudo, o convite constante para que todos, crianças e adultos, se responsabilizem por suas escolhas e en-tendam, na prática, o que significa aprender a conviver.

No relatório da Comissão Internacional so-bre Educação para o século XXI, organiza-do pela UNESCO, Jacques Delors ressalta o aprender a conviver, a viver juntos, entre os quatro pilares da educação do futuro. Ele considera que (...) “Sem dúvida, esta apren-dizagem representa, hoje em dia, um dos maiores desafios da educação”.

- E isso aí, tia?

Eu digo que é um dente que estava estragado e que o dentista consertou.

- Dói, tia?

Respondo que agora não, mas que antes doía. Um menino que estava ao lado se aproxima para ver também. Abro bem a boca, e as duas crianças ficam observando com atenção cada um dos meus dentes. Parecem muito mais interessadas na minha boca do que na peça de teatro que vai começar.

Julya agora insiste em desenhar no meu cader-no. Explico que não dá, porque estou escre-vendo. De repente ela vira pra mim e fala:

- Tia, tira os dentes pra mim ver?

Eu não entendo bem.

- Como assim, tira os dentes?

Ela faz o gesto de tirar uma dentadura, “as-sim ó, tira os dentes”. Eu rio, digo que meus dentes são meus mesmo, não saem assim da boca.

A relação de intimidade e o vínculo afetivo permitem à criança entrar em contato com informações que aguçam sua curiosidade.

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Se realmente acreditamos que este é um de-safio que deve ser enfrentado e resolvido e nos comprometemos com essa tarefa, é ne-cessário refletir sobre em que bases são esta-belecidas as relações com os outros e de que forma ensinamos as crianças a lidar com os conflitos.

O compromisso se expressa por meio de ações. Deixar aflorar o potencial criativo, que todo ser humano tem diante do confli-to, é estimular nas crianças a produção de conhecimento que nasce do aprendizado de conviver com outras crianças; é acompanhar as transformações aprendidas e experimen-tadas quando conflitos são resolvidos sem violência; é legitimar processos que as con-vidam a agirem conectadas com seus senti-mentos e necessidades; é, enfim, acreditar na capacidade que as crianças têm de aprender a criar suas formas de convivência pacifica.

Mas como é aprender a resolver conflitos de forma não violenta?

Quando se trabalha com a perspectiva de se resolver conflitos de maneira não punitiva, é necessário convidar as pessoas de qual-quer idade que entram em uma situação de confronto a restabelecer o diálogo rompi-do durante o conflito. Para isso, precisam se escutar e buscar, por meio das palavras que neste momento expressam sentimentos e necessidades não atendidas, reencontrar

gradativamente os laços rompidos pelo ato violento. Existem muitos tipos de violência, e não é apenas a física que merece ser cuida-da. No livro Conflitos na Escola: modos de transformar1, definições sobre o que vêm a ser conflito e violência nos auxiliam a com-preender melhor essas distinções: “O ato de violência se caracteriza pela imposição da força de um ser mais forte sobre outro ser mais fraco. A força pode ser física – a mais evidente – mas também pode ser psicológi-ca, econômica, política, assumindo um sem-número de disfarces, como sedução, coação, indução e omissão. Esses atos podem ser praticados não apenas por indivíduos, mas também por grupos, instituições, governos”.

No Centro Cultural da Criança começamos a praticar uma vivência que possibilitasse a restauração de laços rompidos em confli-tos do dia-a-dia. Demos início a uma expe-riência de resolução de conflitos chamada Cirandas Restaurativas. Sentadas em roda, formando um círculo, de modo que todas possam se olhar, crianças contam o que sen-tiram na hora do conflito e ouvem como a outra se sentiu nessa mesma ocasião.

Durante este encontro, buscamos a conexão com os sentimentos e necessidades de todas as crianças envolvidas: a responsabilidade pelo ato cometido, a empatia e compreen-são mútua, o diálogo e a escuta ativa. Nada se dá em um passe de mágica. As falas acontecem seguindo uma ordem acorda-da previamente e o avanço desta conversa acontece na medida em que os participantes compreendem o sentido do que se está tra-

1. Livro Conflitos na Escola: modos de transformar. Autores: Claudia Ceccon, Claudius Ceccon, Madza Ednir, Boudewijn van Velzen, Dolf Hautvast, organizado pelo CECIP, 2009.

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tando. Ao término, todas as crianças que es-tão na roda propõem uma solução, que deve levar a um acordo sobre como a relação será restaurada.

Há quem pergunte: crianças conseguem fa-zer isso? É uma boa pergunta, e a resposta é sim. As crianças conseguem, sim, chegar a acordos que respeitam cada uma das partes envolvidas e são aceitos como justos por to-dos. Mas, para que isso aconteça, é necessá-rio que sejam estimuladas a ser protagonistas de suas vidas, exercitando-se no dia-a-dia a fazer escolhas, responsabilizando-se por elas e, sobretudo, tendo adultos que confiam em

seu potencial, não se furtando a exercer seu papel de facilitadores desse processo vivido pelas crianças, de desenvolvimento e forma-ção como cidadãs conscientes de seus deve-res e direitos.

Trabalhar essa proposta no Centro Cultural tem significado trazer para as crianças a ex-periência do exercício da justiça, da convi-vência, do aprendizado e da descoberta de que podem criar um novo tipo de relaciona-mento. E assim desenvolver capacidades e habilidades para estar juntos, em harmonia e respeito mútuo, inspirados nos princípios de uma Cultura de Paz.

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4DA CRIANÇA-PROBLEMA AO PROBLEMA DO OLHAR

Rosane monteiRo gomes

O que leva uma criança a transitar bem de um espaço a outro, enfrentar adversidades, ultrapassar limites pessoais ou obstáculos concretos sem sofrer danos que deixem marcas indeléveis na construção de sua subjetividade?

Essa é uma pergunta que envolve questões complexas e certamente não encontra res-postas rápidas sem que se corra o risco de reducionismo ou pretensão. Este artigo pro-põe-se a refletir sobre o assunto e provocar um debate sobre a capacidade de resiliência da criança, quando se vê diante de situações adversas, vividas nos lugares corriqueiros de sua vida: na escola, em casa, na comunidade e nas relações familiares e com seus pares.

Para além da habilidade pessoal de enfrenta-mento das adversidades, é preciso levar em conta a forma como a criança é vista pelas pessoas que estão em seu círculo de convi-vência, os vínculos afetivos construídos e a

rede de atenção à criança. Por vezes, ela é vista como “criança difícil, agitada, nervosa” pelas pessoas que a cercam. O desafio que se coloca é: Será que podemos contribuir para que crianças como estas potencializem suas habilidades e desenvolvam recursos internos para superar as adversidades?

Em que medida estamos reforçando as suas dificuldades, se não as acolhemos e aposta-mos em suas capacidades? Para abordar essas questões, convido o leitor a conhecer duas organizações – o CEACA e o CECIP – e um lugar chamado Centro Cul-tural da Criança, o CCCria, no Morro dos Macacos, Vila Isabel.

Psicóloga pela Universidade Gama Filho. Fez pós-graduação em Psicologia Jurídica na Univer-sidade Estadual do Rio de Janeiro. Atualmente é mestranda em Políticas de Educação na UNIRIO e coordenadora dos projetos de educação infantil do CEACA-VILA.

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A comunidade se organiza

O CEACA-Vila nasceu há 20 anos, fruto da mobilização de agentes comunitários na favela do Morro dos Macacos, comunidade desfavorecida economicamente, situada no bairro de Vila Isabel, no Rio de Janeiro. Esse grupo militante organizou-se para criar alter-nativas de serviços para a própria população, especialmente para as crianças que necessi-tavam de um local protegido enquanto seus responsáveis iam trabalhar.

O primeiro empreendimento foi a criação da Creche Comunitária Patinho Feliz, e em seguida o atendimento abrangeu crianças e adolescentes que recebiam reforço escolar nos períodos em que estavam fora da escola. Estas ações foram gradativamente tomando

maior vulto em função das demandas cria-das, culminando na institucionalização da ONG.

Atualmente o CEACA-Vila se configura como uma organização de médio porte, aten-dendo um número significativo de crianças, jovens e adultos em cursos profissionalizan-tes e oficinas sócio-educativas – onde con-templa atividades lúdicas, culturais, esporti-vas e artísticas, além de manter a proposta de apoio escolar.

educação e Cidadania

O CECIP - Centro de Criação de Imagem Popular é uma organização da sociedade ci-vil, sem fins lucrativos, independente e não-partidária. Foi criado em 1986 por um grupo de profissionais reconhecidos pela qualidade de sua atuação em diversas áreas. Iniciou sua trajetória desenvolvendo um projeto em uma comunidade na Baixada Fluminense, produ-zindo vídeos que atendiam à demanda da po-pulação e projetando-os em praça pública.

O trabalho tornou-se um foco da cultura lo-cal, o que possibilitou a criação de uma TV comunitária – a TV Maxambomba – que, por 15 anos, foi modelo para iniciativas seme-lhantes em outros locais, fomentando em seus moradores a construção da identidade de sua própria história. Proporcionou também a va-lorização das produções artísticas e culturais construídas entre seus pares, possibilitando maior consciência crítica sobre a potenciali-dade dos veículos de comunicação e o forta-lecimento dos próprios meios de informação.

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O projeto atingiu outras comunidades, envol-vendo associações de moradores e levando a proposta para dentro das escolas, conduzi-da por adolescentes. Professores aderiram à ideia, o que possibilitou o uso de novas tecno-logias em sala de aula.

O CECIP propõe-se a “contribuir para o fortalecimento da cidadania, produzindo in-formações e metodologias que influenciem políticas públicas promotoras de direitos fun-damentais”. Sempre buscando aliar educação e cultura, cria produções audiovisuais e pu-blicações e atua na formação de agentes de mudança e campanhas públicas, em resposta às demandas da sociedade.

Foi com esse viés que a equipe de Educação Infantil do CECIP desenvolveu um trabalho na Creche Patinho Feliz ao longo de um ano. Ao término desse período, solidarizou-se com o anseio da presidente do CEACA-

Vila em atender crianças que saíam da cre-che e ficavam sem um lugar protegido da violência urbana no período em que esta-vam fora da escola. Consolidou-se assim a parceria entre CECIP e CEACA, com a criação do CCCria.

um sonho sonhado junto...

O Centro Cultural da Criança foi construído em 2006, concebido especialmente para crian-ças de 2 a 10 anos, com o apoio da Fundação Bernard van Leer e de outras organizações que se encantaram com a ideia e se juntaram ao projeto. O CEACA e o CECIP transformaram este sonho compartilhado em realidade.

A equipe de Educação Infantil do CECIP, mentora do CCCria, tinha o desafio de pensar uma solução para um grande problema que a comunidade do Morro dos Macacos enfrenta-va, e que era uma preocupação constante tra-zida por dona Anna Marcondes, presidente do CEACA e líder comunitária: criar um espaço protegido para as crianças. Não queriam nada parecido com reforço escolar, nada que lem-brasse escola. Pensaram num lugar de brincar, de aprender, de se divertir. Assim nasceu a ideia de fazer um Centro Cultural para crian-ças. Mas como seria este centro cultural? So-mando esforços, as duas organizações, com a ajuda dos adolescentes da comunidade, fize-ram um levantamento do que os moradores (crianças, adolescentes e adultos) gostariam que tivesse em um centro cultural para crian-ças. Assim estruturou-se o projeto: balizado pela demanda da própria comunidade.

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O CCCria é pensado como “um lugar”, mais do que como “um projeto”, pois sua metodologia é pautada no protagonismo infantil e fomenta princípios inovadores em relação à convivên-cia de adultos e crianças. Cada um é respeitado em seu direito de ser ouvido, de interferir nas propostas do cotidiano, de brincar conjunta-mente e ter acesso a bens culturais que possam mudar a visão de mundo dos participantes.

Trata-se de uma proposta onde está implíci-to que a formação e o desenvolvimento da pessoa acontecem quando há troca afetiva, promoção de espaços de reflexão sobre as vivências diárias, responsabilização sobre os próprios atos e respeito às regras construídas em comum acordo.

Quando a criança entra no Centro Cultural, envolve-se em muitas aventuras que lhe permitem exercitar suas habilidades e de-senvolver novas competências. Tem à sua disposição um espaço digital, é estimulada a ter contato com produções culturais através da biblioteca, da brinquedoteca, da oficina de arte, da música e da expressão corporal. Focando sempre na ludicidade, o CCCria funciona em contra-turno ao horário da es-cola, mas não há rigidez no tempo nem na frequência da criança no espaço. Além disso, a criança é livre para escolher o local em que deseja estar, desde que respeite o número de vagas disponíveis nas salas. As regras foram construídas em assembleia com a participa-ção ativa das mesmas. Na rotina de trabalho observa-se que o educador exerce o papel de mediador do processo de construção do pro-tagonismo da criança.

Começam os desafios

Frequentemente, em espaços onde há crian-ças, os adultos se referem a algumas delas como “criança difícil”, “criança-problema”, “criança impossível”. No Centro Cultural não é diferente. Um exemplo é Paulo (nome fictício), menino de 7 anos. Ele tem uma história densa, que nos permite perceber o entrelaçamento de vários aspectos socio-culturais e institucionais que influenciam na forma como lida com as situações em nível pessoal e social. Seu caso ajuda também a refletir sobre o risco de tomar os problemas que envolvem a criança como justificativa para identificá-la como o problema.

Meu encontro com Paulo divide-se em dois marcos: quando atuava como psicóloga do CCCria (2007-2008) e durante a pesquisa “Centro Cultural da Criança (2008-2010)”, período em que não apenas experimentei

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uma mudança de papel, mas a possibilidade de ter um novo olhar sobre crianças como ele, que, apesar de “tudo conspirar contra”, são capazes de ultrapassar obstáculos de for-ma altamente criativa.

A “criança-problema” e o olhar do especialista

Desde que ingressei na ONG CEACA-Vila, em 2003, como psicóloga, tive a oportuni-dade de trabalhar em vários projetos e me aproximar da realidade das crianças e suas famílias residentes na comunidade. Em 2007, passei a atuar no CCCria. O trabalho desenvolvido tinha o objetivo de acompa-nhar algumas crianças que apresentavam dificuldades no relacionamento com seus pa-

res e necessitavam de uma atenção especial. Eu fazia intervenções focais no dia-a-dia das atividades junto a elas e quando havia neces-sidade conversava com os educadores e com a coordenadora, e chamava os responsáveis para pensarmos soluções para o problema apresentado. Caso necessário, encaminhava para a rede de parceiros da área de saúde.

Conheci Paulo nessa ocasião. Ele era re-cém-chegado ao Centro Cultural e não con-seguia ficar em nenhuma sala, não se con-centrava em nenhuma atividade, derrubava tudo, falava alto, ouvia a TV na videoteca no último volume e agredia frequentemente as outras crianças. Dava-nos a sensação de não aproveitar nada. Educadores e crianças se incomodavam com sua presença porque tendia a atrapalhar as atividades nas salas por onde passava.

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gando a agressões físicas, algumas vezes tes-temunhadas por Paulo. A mãe falava de Paulo como uma criança “implicante” e “nervosa”. Disse que batia nele por causa da “agitação” e relatou que “a escola reclama muito tam-bém”. Ela se recordava que, quando menor, Paulo vivia com o ouvido purgando e o médi-co receitava muito antibiótico, diagnostican-do “sinusite”. Ao perceber que Lúcia demons-trava rejeição e sentimentos negativos ao falar do filho, além de suspeitar que ela estivesse ali “forçada” – sem querer se implicar muito

Passei a observá-lo mais de perto, e intervi-nha impondo-lhe alguns limites. Ao mesmo tempo, tentava fazê-lo ver que todos deseja-vam brincar com ele, mas parecia que ain-da não estava conseguindo participar com o grupo daquilo que o CCCria oferecia. Asse-gurava-lhe que, quando desejasse, com cer-teza iria conseguir brincar e se divertir.

Em entrevista com a mãe, Lúcia, soube que ela havia se separado havia pouco tempo e que essa separação não fora consensual, che-

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no que ela descrevia como “criança nervosa e agitada” – pensei em começar alguma aliança com ela pelo fator saúde. Disse-lhe que as fre-quentes infecções e o excesso de medicação podem interferir na função auditiva.

Via o problema e sobre ele gostaria de in-tervir para reduzir possíveis danos à criança. Decidi voltar meu trabalho para a adaptação de Paulo ao CCCria. Procurei estabelecer um vínculo de afeto e confiança com ele, para que pudesse utilizar os recursos disponíveis para expressar as questões pessoais que o an-gustiavam, além de se “adaptar” ao contexto.

Como psicóloga, investi na possibilidade de algum comprometimento orgânico que inter-ferisse no comportamento. Via-o como uma criança que precisava de ajuda médica e/ou psicológica, sem, no entanto, enxergar o po-tencial que ele mostrava na sua inquietação. Estava, portanto, dando mais ênfase a “ajus-tar” o comportamento “inadequado”, como se Paulo pertencesse à categoria de “criança-problema”, ou seja: ele seria em sua totali-dade um problema que deveria se “adaptar” ao ambiente e teria à sua disposição uma diversidade de atividades para “elaborar as vivências traumatizantes” ou “canalizar sua agressividade”. Eu tomava Paulo como “o problema” e o CCCria e meu vínculo com ele como “os remédios”.

Muitos estudiosos consideram essa tendência de tratar a criança como um problema uma “medicalização” ou “patologização”, reflexo do discurso hegemônico da ordem médica in-filtrado em vários campos de saber: psicoló-

gico, da assistência social e educacional. Sem desconsiderar os marcos da situação familiar, do contexto social desfavorecido, de um his-tórico que possa colocar em suspeita alguma interferência orgânica no comportamento da criança, a experiência no CCCria me ensi-nou que devemos enxergar a forma como a criança cria competências para lidar com uma carga pesada de adversidades. Caso contrário, corremos o risco de tornar crônicos os proble-mas, utilizando os recursos disponíveis como remédios e não como meios que ela possa uti-lizar em favor de suas potencialidades.

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e chegam as pesquisadoras...

No ano de 2008, começa a pesquisa “Centro Cultural da Criança (2008-2010)”, encomen-dada pela Fundação Bernard van Leer com o objetivo de estudar as vivências da criança no CCCria, e de que forma essa experiência influencia nas transições que as crianças ex-perimentam entre o Centro Cultural, a escola e a família. Supomos que a forma como elas lidam com a liberdade instituída no espaço, elegendo atividades de maior interesse e apa-rentemente aumentando o desejo de apren-der, poderia auxiliá-las no seu cotidiano. Imaginamos que esse repertório de possibi-lidades pudesse ser útil para as crianças lida-rem com as adversidades vividas no âmbito pessoal, nas relações interpessoais e também em âmbitos institucionais – pensando aqui no espaço escolar e no da comunidade.

A pesquisa previa que profissionais acom-panhassem mais de perto as famílias parti-cipantes, e a equipe sentiu necessidade de incluir uma pessoa que trabalhasse no CE-ACA-Vila, de preferência alguém que já co-nhecesse as crianças e a comunidade. O fato de eu ser psicóloga, trabalhar com algumas famílias do CCCria e estar vinculada ao CE-ACA favoreceu minha inserção no grupo.

Seguimos alguns critérios para a seleção das crianças: deveriam estar inscritas no CCCria, frequentar a mesma escola e, no momento em que foram escolhidas para a pesquisa, ter de 4 a 6 anos. Procuramos equiparar o núme-ro de meninas e de meninos, dos dois turnos do Centro Cultural. Uma das condições para

que as crianças participassem era a presen-ça do responsável nos encontros mensais e sempre que precisássemos entrevistá-los. As famílias aderiram à proposta voluntaria-mente, firmando compromisso formal com a equipe de contribuir com informações sobre seus filhos – a rotina no espaço familiar, na comunidade, no Centro Cultural e na esco-la. Os responsáveis deveriam dispensar um período de seu dia de sábado para esses en-contros.

Durante um período de dois anos, observa-mos 20 crianças no CCCria, na escola – na hora do recreio – e nas reuniões mensais com suas famílias. Na escola, conversamos regularmente com as professoras sobre a frequência, o processo de aprendizagem e a

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avaliação do desempenho escolar. Ouvimos também os educadores do Centro Cultural e as próprias crianças, pois entendemos que elas têm muito a dizer sobre as vivências nos vários espaços em que transitam.

Paulo ingressou na pesquisa em meados de 2008. Sugeri a sua inclusão consideran-do que, assim, o estaríamos acompanhando mais de perto e envolvendo a sua família.

A criança resiliente: uma mudança de olharQuando passei a observar Paulo como pes-quisadora, despi-me do olhar técnico e pude vislumbrar evidências que me diziam o quan-to aquela criança apresentava auto-estima ele-vada, exercitava autonomia em suas ações e enfrentava adversidades e situações críticas de maneira altruística. Nas observações e de-poimentos da mãe, da avó, dos educadores, professores e do próprio Paulo, ficam eviden-tes aspectos associados à resiliência.

O termo resiliência foi aplicado inicialmen-te na Física e na Engenharia, associado à

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resistência da matéria – ou seja, à capaci-dade de submeter-se a forte pressão, defor-mar-se e retornar ao estado original, sem sofrer alterações permanentes. Nas ciências humanas o termo vem sendo estudado há apenas trinta anos e suas primeiras concep-ções passavam a ideia de que pessoas re-silientes seriam “invencíveis” ou “invulne-ráveis”.Nossos registros acompanham uma concepção mais atual, que considera como características da resiliência “sociabilidade, criatividade na resolução de problemas e um senso de autonomia e de propostas”.

Quando observávamos as crianças no recreio da escola, elas costumavam demonstrar mui-ta alegria em nos ver e se aproximavam para puxar conversa. Com Paulo não foi diferente:

Paulo se aproxima, me abraça e fala: ‘Eu pareço o Jackie Chan, mas não sou, não. Luto como ele’. Pede para olhar o que é capaz de fazer. Corre para longe, sobe na mureta de pedra e pula abrindo os braços. (Observação no recreio da escola, 12/05/08)

Neste e em outros momentos, Paulo se apre-senta como uma pessoa que possui auto-es-tima alta, que se compara a pessoas fortes ou deseja mostrar suas habilidades para aqueles que estão em interação com ele.

Paulo vira pra mim e fala: ‘Sou professor de corrida, sabia?’. Desafio ele a me mos-trar – ele procura o primeiro que acha por perto (o menininho de óculos) e o desafia na corrida. Antes que o outro entenda bem o que está acontecendo, Paulo dispara na

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frente, o menino correndo atrás. Paulo de-termina o percurso – e volta vencedor. Dou os parabéns. Ele fala: ‘Também sou pro-fessor de basquete’ – peço que me mostre e ele escolhe o mesmo menino para mostrar como se quica a bola. (Observação na escola, 19/05/08)

Alguns registros de Paulo no ano de 2009 evi-denciam uma mudança de atitude em termos de socialização. Fica explícita a sua capaci-dade de solucionar problemas, ter “senso de autonomia e propostas”. Essas mudanças se evidenciam na entrevista com a educadora da brinquedoteca:

Pesquisadora: Conhecendo um pouco as crianças, suas famílias e a comunidade, você acha que as crianças vivem aqui va-lores diferentes dos que vivem em casa? Se sim, diferentes como?

Educadora: Sim. Um dos valores principais é a auto-estima. A mãe não dá atenção, não tem tempo. O educador vai além do brincar. A criança veste uma fantasia e pede para o educador olhar, elogiar. Por exemplo, quan-do as crianças estavam fazendo um cartão para as mães no Dia das Mães, Paulo fa-lou: ‘Minha mãe não brinca comigo, não vou fazer, não’. A educadora fala que não precisava ser para a mãe, mas para alguém que brinca com ele. Resolve fazer o desenho para a tia.A agressividade é uma forma de chamar a atenção. Paulo, por exemplo, não conseguia ficar sentado. Hoje pega a placa, faz jogo da memória. Nesses momentos você vê que

o trabalho está sendo marcante e o CCCria ajudou nessa mudança.Conta que um dia não tinha vaga, as crian-ças da creche estavam lá. Paulo pediu para entrar quando elas saíssem. A educadora perguntou por que estava com tanta vontade de brincar. Responde que na escola não dá para brincar” (Entrevista com educadora, 25/08/2009)

Na brinquedoteca, uma das pesquisadoras é acolhida por Paulo e por seus amigos. Provi-denciam uma pequena cadeira para ela se sen-tar e a convidam para brincar. Paulo escolhe o jogo e define o local onde jogarão. A educadora se aproxima para explicar a regra do jogo, que

se assemelha a um bingo, e fornece tampinhas de garrafa pet para marcar as cartelas, mas elas não são suficientes para todos os participantes. A pesquisadora faz a seguinte observação:

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Paulo pega uma cartela, a cartela com a seta, e coloca a garrafa com as peças bem perto dele; – ele roda, e pega as peças, e grita que ganhou (mas ninguém verifica se ganhou mesmo), fazendo muita festa. Um amigo acha graça do Paulo e também disputa... Só que para jogar o jogo direito, precisaríamos de pelo menos 60 a 80 tampinhas, e na pet só de-vem ter umas 20 e poucas. Logo ficamos sem peça. Paulo levanta e vai resolver o problema – pede que eu não saia dali. De fato, ele volta com um balde de Lego... (Observação na brinquedoteca, 29/05/2009)

Paulo descobre outro jogo em que há muitas coisas escritas, fica curioso em saber o signifi-cado e pede à pesquisadora que leia:

Ele levanta e vai buscar outro jogo, en-quanto os que ficam guardam aquele. Ele volta com o Jogo da Memória da Secretaria de Saúde – são cartas com mensagens e de-senhos. Só que são muitas – eu diria bem umas sessenta cartas. Não cabe na mesa, e Paulo sugere brincar no chão. Olho algu-mas das cartas e leio a mensagem (Ex: Os remédios com tarja vermelha só podem ser vendidos com receita médica). Paulo não tinha visto que havia algo escrito (a letra é bem pequena) e agora me pede pra ler vá-rias cartas: “E essa, tia, o que diz?”. Como são muitas cartas, tento dizer que talvez seja melhor jogar com menos cartas, ou jo-gar de outro jeito, mas ele só fica satisfeito quando passamos para o chão.(Observação na brinquedoteca, 29/05/2009)

Essa observação é muito rica e possibilita a reflexão sobre alguns aspectos importantes que tocam na questão do olhar para a crian-ça e nas possíveis influências que esse olhar implica. Nos comentários, a pesquisadora coloca as seguintes ponderações:

Paulo foi muito rápido para perceber o pro-blema e correr atrás da solução para que o jogo não fosse interrompido. Será que na escola isso aparece? Será que ele tem o mo-vimento de resolver o problema, ou lá ele não pode ser parte de achar a solução? Essa será uma habilidade que vai ser valorizada vida afora, será que essa escola favorece o desenvolvimento dela? O CCCria certamen-te incentiva isso – e em casa, talvez por falta de supervisão, ele provavelmente resolve as coisas para ele e para o irmãozinho (numa

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observação no ano passado isso apareceu – o irmão estava com o sapato desamarrado, e ele imediatamente se abaixou e amarrou o sapato do irmão). Será que essa qualidade facilita ou dificulta as transições? (Observação na brinquedoteca, 29/05/2009)

Que habilidades pessoais poderão ser (ou não) valorizadas pelas pessoas que estão em relação direta com Paulo? Que influência isso pode ter nas transições que ele fará em novas vivências? Essa reflexão será aborda-da quando discutirmos as concepções sobre transição. Na medida em que concebemos a resiliência como uma questão processual, o ambiente e

o apoio dispensado às crianças também são fatores que poderão auxiliá-las. Assim, não corremos o risco de colocá-las em novas ca-tegorias que poderiam rotulá-las como pes-soas que “aguentam tudo, não sofrem, são invulneráveis”. Esses rótulos seriam tão peri-gosos quanto apontarmos uma criança como “impossível, inadaptada, problemática”.

Algumas situações revelaram ações de adul-tos que, na interação com Paulo, parecem provocar momentos de estresse. E outras que o colocam em situação de desassistência:

Paulo se machuca. Um tombo que deu tira a casquinha de um machucado recente no joelho, e o sangue desce forte. Ele mostra a uma funcionária da escola, que o manda ir procurar ajuda na enfermaria. Paulo pare-cia querer contar como se machucou, mas seguiu andando com dificuldade, tentando parar o sangramento com a mão, a meia já ensopada de sangue. Uns poucos minutos depois, vejo uma se-nhora olhando ele lavar o ferimento na tor-neira do jardim. Fica lá um tempão. Paulo volta com a mão cheia de papéis toalha (daquele áspero) enxugando a perna, abai-xo do joelho.Quando chega perto do grupo, pega a meia suja e ameaça esfregar na cara dos colegas (que saem correndo e gritando). A funcioná-ria fala: ‘Ô, menino chato!’. Paulo pega a mochila, espalha os papéis toalha em volta dele no chão e parece procurar algo na mo-chila. Fica ali um bom tempo.Paulo continua mexendo na mochila. Acho que porque a perna dói ao andar. A profes-

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sora de sua turma chega e todas as crianças correm para saudá-la. Percebo que Paulo a procura e quer mostrar o joelho, mas ela nem olha – está sendo recebida por várias crianças falando ao mesmo tempo – e fala na direção dele, ‘Ah sim, já vi’ e se volta para os outros. Ele fica meio amuado. (Observação na escola, 07/08/2008)

Nesta cena, Paulo não é ouvido e acaba re-agindo agressivamente, o que reforça a ima-gem da criança-problema. Além disso, fica clara a situação adversa em que estava e o quanto a ação (ou não reação) dos adultos intensificou seu estado de desalento.

Na observação a seguir, Paulo está com um filme que trouxe de casa para ver no CCCria e fica muito irritado porque os adultos não ouvem seu pedido de projetá-lo para ele as-sistir. Reage com agressividade, mas tam-bém verbaliza sua insatisfação.

No pátio interno, Paulo e outras crianças correm de um lado para outro, se empurram, um machuca o outro. Uma pesquisadora se aproxima e tenta falar com Paulo, que se afasta emburrado reclamando que quer ver o vídeo, mas a sala continua fechada. (Observação no CCCria, 18/02/08)

Por fim a coordenadora do CCCria abriu a porta e finalmente as crianças puderam assis-tir ao filme. Algo mudou no comportamento de Paulo, diante da reação dos adultos:

Achei muito legal o comportamento de Paulo. Ele sempre foi conhecido como ‘aquele que não pára e é agressivo’. En-tretanto, o comportamento de hoje parecia ser uma forma de reclamar dos adultos de não terem ouvido seu desejo, o de ver o filme que trouxera. Desde o momento que atenderam a seu pedido, sentou-se sem problemas.(Observação no CCCria, 18/02/08)

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Desde quando começamos a acompanhar o dia-a-dia de Paulo, fomos testemunhas de muitos percalços em sua vida, sendo o mais marcante deles, aparentemente, a saída dos pais da comunidade. Após a separação, o pai foi morar em outra favela com a nova com-panheira e pouco tempo depois a mãe tam-bém foi embora, deixando Paulo e seu irmão abandonados à própria sorte. Apesar de de-monstrar resistência em ficar com os netos,

a avó passou a dar-lhes assistência com o apoio das pessoas da comunidade. Essa fa-mília teve o acompanhamento do Núcleo de Família do CEACA e do órgão de proteção à criança e ao adolescente.

Encarar a resiliência como uma interação entre aspectos individuais e ambientais nos dá a pista para pensarmos sobre os fatores de risco implicados na vida de uma pessoa e sobre como mobilizar fatores de proteção para minimizar ou prevenir o aumento de componentes que poderiam acarretar danos maiores no sujeito. Os fatores de risco estão dinamicamente articulados com os fatores de proteção, estes últimos entendidos como influências que modificam ou melhoram res-postas pessoais para o enfrentamento de situ-ações de desadaptação.

Em nível individual, a criança pode ser apoiada quando se lhe ensina estratégias para resolver problemas, lidar com conflitos, aprender cooperativamente, aumentar a au-to-estima e encontrar formas de relaxamento para sua saúde, bem-estar físico e apoio es-piritual.

Em nível do relacionamento, é importante a construção de laços seguros e de confian-ça com um adulto – não exclusivamente os pais biológicos – que olhe por ela e respon-da adequadamente às suas necessidades. Essa pessoa deve estabelecer uma relação democrática com a criança, que incentive a autonomia. A família (ou um membro desta) pode ser orientada para assumir essa relação.

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Finalmente, no nível da rede social, fatores que auxiliam a criança na aquisição da resi-liência são experiências positivas em insti-tuições educacionais com regras e estruturas claras, expectativas altas porém adequadas em relação à sua performance, com investi-mento positivo na criança e feedback cons-trutivo.

Esses fatores reforçam a ideia de que a resi-liência não está dissociada do sistema social. Para que a criança desenvolva competências e habilidades para o enfrentamento de adver-sidades, é fundamental levar em conta o con-texto, o suporte recebido e a lógica cultural na qual está inserida. A presença e o apoio de outras pessoas é fundamental para encora-jar e fortalecer a resiliência.

Paulo chegou ao CCCria, em uma determi-nada manhã, com uma ferida no peito do pé que aparentemente estava infeccionada. Levei-o para a secretaria, chamei a técnica de enfermagem que atende às crianças do CEACA e ligamos para a avó. Coloquei-o em meu colo e disse “Eu vou cuidar de você”. Paulo relutou em deixar a enfermei-ra limpar a ferida e fazer curativo. Disse-lhe que ele poderia apertar bastante a mi-nha mão se sentisse dor. Quando deu por si, já tinha terminado. A avó veio e falou de sua dificuldade em comprar a medica-ção específica para cuidar da ferida. Nós a orientamos sobre como tratá-la em casa, e no dia seguinte Paulo voltou sorridente, deixando-se ser tratado. Esse caso acon-teceu em um momento difícil da vida de Paulo. Fo

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Pesquisas que abordam resiliência e transi-ção têm estimulado um repensar das propos-tas pedagógicas, tanto na pequena infância quanto nos períodos iniciais de escolariza-ção. Novos projetos educacionais têm priori-zado competências tais como: autoconceito, autoestima, autogoverno, ligação sólida com um cuidador e com o professor, resolução constante de conflitos interpessoais de forma construtiva, desenvolvimento de otimismo, autoconfiança, sentimento de competência, assim como aprender a aprender, resolver problemas e outras habilidades como a lin-guagem e vivências interculturais (Niesel e Griebel, 2005, em referência a Fthenakis, 2003).

No Centro Cultural da Criança todos esses va-lores são contemplados nas interações com os adultos e entre seus pares. Há uma passagem registrada entre uma pesquisadora e Paulo que toca na possibilidade de a criança conquistar

Além do suporte afetivo que recebia da avó, educadores e rede de profissionais que acompanhavam a situação, outros acontecimentos positivos ocorreram e pos-sivelmente favoreceram mudanças nele e nas pessoas com as quais se relacionava. É o que veremos a seguir.

Resiliência e transição: conexões possíveis

Resiliência e transição são conceitos que se conectam (ver Niesel e Griebel). A primeira é mais ampla que a segunda, pois se aplica a um lastro de vivências ao longo da exis-tência da pessoa, e portanto se refere a fa-tores “cumulativos de risco”. Já a transição está ligada a eventos que ocorrem em mo-mentos especiais, que impelem para mudan-ças (como o nascimento de um irmão ou a separação dos pais) e podem ser superados com a aquisição de competências para lidar com eles. Dentro da perspectiva de resiliên-cia, a transição seria uma fase de “aumen-tada vulnerabilidade”, uma vez que provoca um desequilíbrio diante de novas situações com as quais a pessoa não sabe lidar, e preci-sa aprender a enfrentar. Essa é uma questão muito importante: transição e resiliência não dizem respeito às adversidades ou dificulda-des de adaptação, mas sim às possibilidades de se buscar estratégias para que o indivíduo cresça, se fortaleça e se desenvolva. O olhar está voltado para os pontos fortes da criança e de sua família, e não para as adversidades que possam viver.

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novas competências na medida em que o am-biente facilita a pesquisa e a experiência. Re-firo-me ao dia em que Paulo consegue, pela primeira vez, escrever seu nome e às conse-quências positivas que isso desencadeou. Paulo pela primeira vez se aproximou de mim... Pediu para escrever o nome. Escre-veu algumas letras do seu nome e pediu para eu ler e li exatamente o que estava escrito. Ele riu, todos riram. Ele apagou e escreveu novamente, dessa vez faltando ainda algu-mas letras. Novamente pediu para eu ler. Apagou e escreveu novamente. Dessa vez escreveu ‘Paulo’ – olhou para mim e eu li ‘Paulo’. Ele pegou o caderno e gritou para a pesquisadora que estava na outra mesa, apontando para o seu nome ‘Eu sei escre-ver!’. Saiu correndo da sala com o caderno na mão. Eu saí atrás dele e o encontrei no refeitório mostrando o caderno para os pre-sentes, emocionado. (Observação no CCCria, 29/05/09)

O acontecimento parece ter tomado uma di-mensão maior do que uma simples ação cir-cunstancial. No Centro de Estudos da esco-la, ocorrido pouco tempo após esse evento, tivemos uma conversa com a professora de Paulo, e ela nos contou o seguinte:

A professora fala que Paulo progrediu bas-tante. Está encantado com a apostila que ganhou e tem muito cuidado com o material. Está com muita vontade de aprender. Con-tamos o episódio de quando ele conseguiu escrever o seu nome no caderno da pesqui-sadora e saiu correndo pelo CCCria com o

caderno em punho, mostrando para todo o mundo seu grande feito. Achamos que isso foi um marco para ele. A professora concor-da com essa possibilidade. Falamos também sobre o acompanhamento que está sendo fei-to com a família.A professora acrescenta que Paulo tem um amigo muito próximo, mas também mantém boa relação com outras crianças. ‘Não deu mais alteração’. (Observação no Centro de Estudos, 15/07/09)

As crianças começam uma conversa com a pesquisadora:

- Você é rica, tia? - Não sei. O que é ser rica? - Ué tia, você mora em apartamento?- Sim. - Então você é rica!

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É importante assinalar que esta professo-ra, desde o início do ano, nas conversas conosco, já indicava que mantinha uma re-lação afetiva com Paulo e o via como uma criança envolvente. Tomando suas próprias palavras, o nomeava como: “malandro, que cativa, tem boa lábia.” Entretanto, dizia que Paulo precisava de sua atenção de forma in-dividualizada, pois não tinha, segundo ela, “autonomia para fazer o dever sozinho. Pre-cisa de mim perto senão dispersa”(conversa com as professoras, 14/04/09).

No CCCria, Paulo conquistou um lugar em que as pessoas passaram a vê-lo com outro olhar. Pelo que constatamos na escola, tam-

bém lá ele conseguiu mudar de posição: de um menino disperso, necessitando do mo-nitoramento da professora, para um sujeito que assume o desejo de enfrentar desafios para aprender, desde o momento em que se sente competente para tal. Possivelmente os estudos sobre transição poderão vir a nosso auxílio para pensarmos sobre essa questão.

Como dar subsídios eficazes para que a crian-ça consiga passar de uma etapa a outra, no campo da escolarização, de maneira exitosa? É preciso pensar em políticas de qualidade, tanto no momento de inserção na creche quan-to durante o período de passagem da Educa-ção Infantil para o Ensino Fundamental.

- Então todo mundo que mora em aparta-mento é rico?

As crianças olham com uma cara de quem vai falar o óbvio. Várias respon-dem em coro:

- É, tia.

Parece que, naquele grupo, só a pesqui-sadora não sabia disso.

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Paulo se apropriou da escrita ao escrever seu nome e essa aquisição lhe abre as portas para o mundo dos letrados. Ler e escrever são ha-bilidades apreciadas em nossa cultura e são competências esperadas pelos que cercam a criança e por ela própria.

Escrever o nome parece ter sido um “mo-mento chave” de aprendizagem para Paulo, na medida em que redimensionou sua posi-ção de criança. Mudou sua conduta, ofere-cendo-lhe novas oportunidades e formas de interação. Não é um acontecimento isolado, simboliza um rito de passagem.

O depoimento da professora (Centro de Es-tudos, 15/07/09) confirma isso. Ela demarca uma mudança dizendo que ele “progrediu bastante”, “não deu mais alteração”. Em ou-

tro trecho dessa mesma entrevista, comenta que Paulo ajuda seu amigo a se orientar em relação aos exercícios propostos, o que pare-ce evidenciar sua autoconfiança e apropria-ção de conhecimentos passíveis de serem transmitidos a outrem.

Paulo vive em uma comunidade atraves-sada por violência, possui uma história de vida marcada por situações que o colocam em risco e sua estruturação subjetiva se dá dentro desse contexto. Observamos que no CCCria e na escola Paulo utiliza a possi-bilidade de brincar para representar essa realidade, e acreditamos que assim tem chances de ressignificar a realidade para si mesmo. O registro da educadora na brin-quedoteca assinala esse processo:

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Hoje a brincadeira foi brinquedo cantado, onde as crianças pegavam um objeto que estava no centro da roda e contavam uma pequena história. Paulo começou contan-do a sua história assim: ‘Estava vindo para o Centro Cultural com minha moto. Eu andava em alta velocidade e de repen-te PUM!’. A partir desse momento ele não falou mais nada, apenas demonstrava uma cena de acidente onde ficou caído desa-cordado. Após isso, não conseguiu prestar atenção nas histórias dos outros colegas, tumultuando o jogo, e se aproximava dos amigos machucando-os, até que consegui entretê-lo num jogo de damas. (Observação na brinquedoteca, 30/09/09)

Ao longo desta fértil experiência que tive a oportunidade de viver, mudei a forma de olhar para a criança e percebo que Paulo também mudou. Suas ações não são re-flexo do meu olhar, pois nos registros do-cumentados por todas as pesquisadoras e pelos educadores do CCCria todos teste-munham que esse menino deixou de ser aquele de que ninguém queria ficar perto, para tornar-se uma criança que assume a liderança de um grupo e encontra formas criativas para lidar com conflitos, haja vis-ta a observação descrita abaixo: Neste mesmo dia, as meninas brincavam de casinha na área externa da sala e toda hora Paulo ia atrapalhar ou tumultuar a casinha. Elas o expulsavam, mas ele só queria brincar. Outras crianças come-çaram a entrar na casinha delas quan-do Paulo teve a ideia: ‘Já sei! Posso ser

o guarda (segurança)’, e elas deixaram, pois assim ele não entrava e não deixava ninguém entrar, ficando por muito tempo como guarda em posição de serviço.(Observação na brinquedoteca, 30/09/2009)

Considerações finais

A resiliência é um processo que pode ser po-tencializado desde que haja apoio de vínculo afetivo, bem como da rede social, para além dos aspectos pessoais.

A transição também envolve o aspecto rela-cional, em um contexto sociocultural onde os participantes se utilizam de mediadores para que a aprendizagem seja a força motriz para o desenvolvimento da criança.

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Esse repertório de possibilidades pode auxi-liar as crianças a lidar com as várias adver-sidades vividas no âmbito pessoal, nas rela-ções interpessoais e na inserção em espaços institucionais e comunitários.

Crianças como Paulo se fortalecem no CC-Cria, na medida em que encontram espaço para falarem de situações difíceis e são ou-vidas. Há também a chance de “metamorfosear” muitas situações traumatizantes através da ludicidade, nos livros de história, na sala de artes, onde podem criar e retratar suas fantasias.

Têm ainda a seu dispor o contato com a música, vivên-cias corporais e o acesso ao mundo digital. Os recursos dessas várias linguagens, bem como a quali-dade das relações construídas, são ferramentas que podem impulsionar o desejo de aprender e transformar a aquisição de novas habilidades e conhecimentos em potencial para enfrentar as transições que as crianças vivenciam.

Embora o CCCria não seja uma escola, pos-sui uma proposta educativa. Acreditamos que tanto a resiliência quanto a transição são estimuladas quando o espaço educacio-nal incentiva a autonomia da criança e cria espaços democráticos onde há troca viva de experiência entre adultos e crianças.

No CCCria os adultos estão permanente-mente refletindo sobre a sua prática e en-

trando em contato com concepções sobre a infância e modelos de educação que muitas vezes são conflitantes com sua própria for-mação pessoal e profissional.

Crianças como Paulo nos ensinam muito e nos enriquecem, desde que consigamos manter uma relação dialógica e de respeito à sua singularidade.

Concordamos com a con-cepção de Carmem Cam-poy Scriptori (2007), ao definir a finalidade de uma escola inclusiva:

“Uma escola que preze os princípios democráticos trata de buscar garantir que o indivíduo esteja li-vre de carências em suas

necessidades básicas, de violências e dis-criminações e livre para se organizar e to-mar decisões nos níveis social, político e pessoal.

No que se refere ao desenvolvimento huma-no, essa liberdade vem expressa no proces-so de ampliação de oportunidades e opções para que o indivíduo possa, de fato, desen-volver todas as suas possibilidades”.

Parece assim que estamos no caminho cer-to... Espero que este trabalho contribua para que outros espaços educacionais – sejam eles escolas ou não – tomem a mudança de olhar como ferramenta para a construção de novos conhecimentos e práticas.

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Bibliografia

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5COM LEITURA E COM AFETO

anna Rosa amânCio

Uma parte significativa da população bra-sileira tem dificuldade de acesso aos ma-teriais de leitura, principalmente ao livro. Temos poucas bibliotecas, poucas livrarias e os livros são caros para os padrões médios de renda. A escola tem sido um importante ambiente de promoção da leitura e de for-mação de leitores. Para muitos, esse é o úni-co lugar de acesso ao livro, principalmente a textos literários.

Como a escola é a instituição encarregada de promover o aprendizado da leitura e da escri-ta, atribui-se a ela toda a responsabilidade em

relação a esse campo. Porém, o aprendizado da leitura se dá pela relação com diversos textos escritos e nas mais variadas situações de uso. Outras instituições participam desse processo e podem se responsabilizar pelo acesso a diferentes textos. Mesmo que a es-cola valorize a leitura e consiga desenvolver um bom trabalho, isso não basta: é preciso que as crianças e jovens vivenciem experiên-cias de leitura em vários espaços da cidade, caso contrário a prática da leitura, principal-mente de textos literários, pode se extinguir na saída da escola, como revela a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil (2007):

Formou-se em Pedagogia pela UFRJ. Especialização em Educação Infantil e mestrado em Educação na PUC/RJ. Foi responsável pela Biblioteca do CEAT (Centro Educacional Anísio Teixeira), Rio de Janeiro. Atualmente é coordenadora do Núcleo de Educação Infantil do CECIP.

“Ler é uma forma de relação com o mundo, consigo mesmo e com os outros modos da cultura escrita, um processo que atribui sentido à vida, um ato de desconfinamento. Não se lê, portanto, apenas dentro da escola”

Rose Mara Gozzi

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“Muitos entrevistados afirmam que não leem ou não vão a bibliotecas porque ‘não estão es-tudando’, o que mostra a ligação da leitura com a escola, ou com ‘os estudos’, na percepção das pessoas. O uso da biblioteca pública parece também feito em função da escola: sua frequ-ência cresce (34%) nas faixas etárias de 5 a 17 anos e tem como objetivos principais pesqui-sar e estudar. E com relação à frequência da leitura de diferentes tipos, os didáticos e uni-versitários são os únicos lidos mais frequen-temente (70%) que ocasionalmente (30%)”.1

O direito de saber ler e poder adquirir um livro não deveria ser restrito à escola. A questão do acesso à leitura deveria ser ponto privilegiado das políticas públicas e da so-ciedade com um todo.

Não formamos bons leitores se eles não tive-rem acesso a livros de qualidade. Nenhuma criança irá estabelecer um vínculo afetivo com o livro se este for um objeto eventual na sua vida. Porém, a oferta de bons textos e bons autores precisa ser acompanhada de momentos de trocas. Uma mediação adequa-da começa pela organização do espaço, pas-sa pela seleção do acervo e chega à leitura pela dinamização do ambiente.

Por isso a equipe do CECIP considerou im-prescindível criar uma biblioteca no CC-Cria: as crianças precisavam ter acesso aos livros e à leitura literária em outro espaço além da escola.

O objetivo deste artigo é refletir sobre as experiências vividas pelas crianças em um

desses espaços: a biblioteca, chamada por elas de Sala dos Livros. Algumas perguntas orientam esta reflexão: A biblioteca é um espaço procurado pelas crianças? De que maneira as experiências vividas na bibliote-ca estimulam a autonomia e o protagonismo infantil? Esse espaço tem sido lugar de pro-moção de leitura?

biblioteca: A Sala dos livros

“As bibliotecas, quando vivas, acolhedoras, instigantes, múltiplas, conferem humanidade a nós e nos ajudam a imprimir humanidade no mundo.” Edmir Perrotti

A biblioteca do CCCria foi cuidadosamente pensada e arrumada para estimular o gosto e o prazer pela leitura. O acervo foi montado com a ajuda da Fundação Nacional do Li-vro Infantil e Juvenil (FNLIJ), da Casa Lygia Bojunga e de amigos que fizeram doações e as fazem até hoje. As educadoras passaram por uma formação com especialistas, que as orientaram na organização e dinamização do acervo, e fizeram visitas a espaços de leitura.

Os livros são organizados em estantes baixas, para possibilitar o acesso das crianças. Além dos livros, a biblioteca conta com um acervo criativo: fantoches, jogo da memória com ca-pas dos livros em miniatura e outros brinque-dos que se relacionam com as histórias.

No início do projeto, a biblioteca era um espaço pouco escolhido pelas crianças. As

1. Cunha, 2007, p.14 – ver referências no final do artigo.

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educadoras responsáveis pela sala não enten-diam por que as crianças passavam por lá e sempre acabavam preferindo outras salas. A biblioteca ficava constantemente vazia.

O livro não era um objeto de desejo das crianças? Elas não gostavam de histórias? Não tinham intimidade com os livros? Aos poucos as próprias crianças foram dando as dicas do que as fazia chegar perto, olhar a sala pela janelinha da porta... mas não entrar.

Mesmo quando eram convidadas, diziam: “Eu não sei ler”, “Pra que eu vou pegar um livro?”. As crianças de 7 e 8 anos pareciam mais envergonhadas do que as menores.

Qual o significado da leitura para essas crian-ças? O que elas entendem por leitura?

Provavelmente aprenderam a partir de con-cepções de leitura e escrita baseadas no en-sino que prioriza exercícios repetitivos de

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memorização de letras e sílabas, com desta-que para as atividades mecânicas, excluin-do, assim, os processos interativos e da produção de sentidos. As crianças se veem excluídas. Para elas, provavelmente os li-vros existem para fazer tarefas escolares. Como afirma Corsino2, “Quando os textos oferecidos são restritos e sua interpretação pré-determinada, não se abre espaço para o sujeito interagir e trocar, colocando-o fora do processo discursivo. Presa na univoci-dade, esta leitura dificilmente possibilita o surgimento do leitor”.

Na contramão desta visão, que promove o confinamento da leitura a práticas mecani-cistas, as educadoras da biblioteca buscaram caminhos para que as crianças deixem de ver o livro como objeto inalcançável.

Como as crianças não entravam na bibliote-ca nem para ouvir histórias, as educadoras resolveram levar os livros para fora da sala e passaram a contar histórias em vários es-paços do CCCria. Além dos livros, levavam fantoches, bonecos e outros recursos que as ajudavam na contação e leitura das histórias

2. Corsino (2003), p.100 – ver referências no final do artigo.

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e apresentação dos livros. Perceberam que as crianças se fantasiavam e gostavam de dra-matizar na Brinquedoteca. Passaram, então, a levar fantasias para a biblioteca e a propor dramatizações das histórias lidas, composi-ção de personagens, criação de cenários. O intercâmbio entre a Brinquedoteca e a Bi-blioteca realçou a proximidade entre a leitu-ra e a brincadeira, duas atividades que têm como base a imaginação.

Ler e brincar com as histórias passou a fazer parte do dia-a-dia daquele espaço. Com isso, em pouco tempo a Biblioteca ganhou vida e passou a ser responsável por alguns teatros apresentados no CCCria, como a peça base-ada no livro Menina Bonita do Laço de Fita (de Ana Maria Machado, com ilustrações de Claudius Ceccon).

As crianças foram atraídas pela fantasia, pela imaginação, pela liberdade de se ex-pressar e de criar. Quando lemos ou ouvi-

mos uma história nos reportamos a outros lugares, experimentamos sentimentos e sensações que são de outro, mas que nos tocam. Algumas vezes as crianças inter-rompiam a história contada pela educado-ra, corriam até a Brinquedoteca e voltavam fantasiadas. Vestiam-se de personagens, mergulhadas no mundo ficcional.

Para Bartolomeu Campos Queirós, “(...) todo ato criador é cheio de infância. Se me pergunto quais os elementos que inauguram a infância, eu me respondo ser a liberdade, a espontaneidade, a fantasia, a inventividade. E se me indago sobre os elementos que es-tão presentes no ato criador, eu também me respondo ser a liberdade, a espontaneidade, a fantasia, a inventividade. Daí estar a criança tão próxima da arte.”3

O texto literário tem uma função transfor-madora, por possibilitar que o leitor transite por mundos desconhecidos, onde pode viver outras vidas, conhecer outras civilizações, enfrentar medos, angústias, sonhar. Através das dramatizações e brincadeiras incentiva-das pelas educadoras, as crianças podiam falar sobre o texto lido, se encantar com as palavras, recontar e recriar as histórias com-partilhando suas leituras.

De acordo com Vygotsky4, as crianças “não se limitam em suas brincadeiras a recordar situações vividas, mas sim as elaboram cria-tivamente, combinando-as entre si e edifi-cando com elas novas realidades de acordo com suas afeições e necessidades”. Para este autor, a brincadeira atende a uma necessida-

3. Bartolomeu Campos Queirós (2002), p.160 – ver referências no final do artigo.

4. Vygotsky (1987) – ver referências no final do artigo.

Foto: Claudia Ceccon

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de da criança que surge a partir de algo que não pode ser realizado, a não ser no mun-do da imaginação. A criança inventa, cria a partir do próprio conhecimento que tem do mundo, pois toda a imaginação que dá início à brincadeira vem atravessada pela cultura. “A literatura como brinquedo abre caminhos para a criança se defrontar consigo mesma e com os outros ao permitir a subjetivação e a criação de si, tão necessária à infância”.5

O fato de as crianças não saberem ler deixou de ser um impeditivo para elas frequentarem a biblioteca. Descobriram que podiam contar histórias através da leitura das imagens. Em alguns casos, de tanto ouvir a mesma história as crianças se apropriavam do texto e conta-vam como se estivessem lendo, utilizando as mesmas palavras e pausas. Algumas crianças passaram a procurar a biblioteca com muita frequência, aproximando-se do universo da

escrita e da leitura, criando vínculos com alguns livros e histórias. Estão descobrindo que a leitura é mais do que decodificar pa-lavras e frases. Quando pegam um livro e inferem sobre ele, mesmo sem saber ler no sentido estrito, estão lendo no sentido amplo da palavra.

Muitas crianças ainda se sentem envergonha-das de pegar um livro conhecido e reinventar a história, algumas acham engraçado quando veem colegas contando histórias, outras che-gam a se indignar: “Ele está mentindo, ele não lê, eu sei, ele é da minha escola”. Atu-almente, além dos educadores continuarem a convidar as crianças para a biblioteca, elas mesmas se tornaram mediadoras da leitura.

Rita, de 6 anos, dizia querer muito aprender a ler, mas não conseguir. O registro da pesqui-sadora mostra como a menina, mesmo sem se dar conta, transitava pelo universo da escrita:

Entro na biblioteca e sento à mesa, ao lado de um grupo de meninas de 6 anos, leio uma história e depois pergunto quem gostaria de contar. Elas riem e abaixam a cabeça. Uma delas diz que não sabe ler. Eu não insisto. Ela pega o livro Cachinhos de Ouro e fica folheando. Num determinado momento, me olha e diz: - Eu vou contar! – fala quase como um ato de bravura. E então começa:- A Rapunzel estava... – interrompe e pergun-ta para a menina ao lado: “Como é mesmo o nome dela?”, referindo-se à personagem.- É Cachinhos de Ouro – responde a menina.

5. Parreira (2009), p.178 – ver referências no final do artigo.

Este é o livro “com pernas”, escrito pelas crianças, sobre um grave episódio de violência ocorrido em sua comunidade.

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A outra continua: - Ela falou: “Abre a porta! Ela gritou, gri-tou, gritou mas não saiu ninguém. Ela falou: Eu estou com fome! Aí, ela foi e gritou de novo. Ela tava com tanta fome, tanta fome. Pegou a folha da árvore para fazer um chá. Aí ela teve uma idéia. Pegou uma chave que viu no chão e abriu a porta da casa. Ah! A Cachinhos de Ouro se deu muito mal. Ela foi comer as coisas dos outros, porque ela esta-va com muita fome. Acabou comendo quase todo o mingau. Acabou acontecendo a mes-ma coisa. E-la foi lá... e-la. A menina interrompeu novamente a leitura e perguntou para mim: “Aqui está escrito ‘ela’?”. Mostrou-me o livro e eu disse que sim, pegou o livro de volta, com um prazer estampado no rosto, por ter reconhecido uma palavra. Voltou à história:- Ela foi até lá comer os mingaus, ela comeu quase tudo, ficou de barriga cheia. Mas ela era tão pequenininha que a... a – novamente se surpreendeu e me mostrou o livro: “Aqui tem a letra A?”. Confirmei e ela voltou à sua leitura:- Ela sentou mas caiu da cadeira. Ela ficou com dor de barriga. Outra parada, agora olhando para a amiga ao seu lado: “Como é mesmo o nome dela, é Rapunzel?”. A menina responde meio im-paciente: “Não, é Cachinhos de Ouro”. Re-toma a leitura.

A menina não queria apenas contar uma história, ela queria ler uma história. Se po-sicionou com o livro nas mãos e os olhos passeavam entre as imagens e as letras. A leitura das imagens e um pouco da história

que guardava na memória a encorajaram a ler para o pequeno público que estava na bi-blioteca. Na sua leitura, atribuiu sentido ao que leu. Imprimiu sua interpretação pessoal de que Cachinhos de Ouro só entrou na casa dos ursos porque estava com muita fome. Chegou até a fazer um chá com uma folha da árvore para aliviar a fome.

No final de sua história, todos desculparam Cachinhos de Ouro, afinal tinham esquecido a chave do lado de fora.

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Para Corsino6, “O leitor ouvinte conhece usos e convenções da escrita e pode produ-zir textos oralmente. O leitor potencial, por ser convidado a ler sem ainda ter o domínio da leitura, pode interpretar os sinais gráfi-cos, observar as inúmeras possibilidades de combinações das letras, antecipar sentidos, refletir sobre a língua escrita, levantar hi-póteses sobre ela, observar textos que es-tão à sua volta e descobrir possibilidades de relações.” Como toda construção intelectual e cultural do indivíduo, a aprendizagem da

leitura e da escrita deve ser entendida como um processo de criação.

entre livros e histórias

As crianças vão à biblioteca por várias ra-zões: para conversar com a educadora, para ficar em um ambiente mais tranquilo, para fazer teatro e dramatizações, para ler, ver os livros e ouvir histórias. Elas têm a liberda-de de escolher livros para ler, podem contar histórias ou pedir à educadora que conte, podem simplesmente deitar nas almofadas e ficar quietinhas. A forma como a sala é orga-nizada, com uma mesa, estantes com prate-leiras baixas, livros à mostra e um cantinho com almofadas espalhadas, torna o espaço aconchegante e convidativo para a leitura e também para as conversas e relações entre as crianças, e entre crianças e adultos. Como os outros espaços do CCCria, as crianças po-dem ficar na biblioteca o tempo que desejam, elas entram e saem sem haver necessidade de pedir autorização da educadora, desde que não prejudiquem as atividades que estiverem acontecendo.

Ao serem perguntadas sobre por que procu-ram a biblioteca, as respostas são variadas: “por causa da Karla”“para conversar com a Dalila”“para ler”“para ver os livros”“para brincar”“porque a gente faz teatro”“porque eu gosto”“porque eu ajudo a Dalila a arrumar os livros”

6. Corsino (2003), p. 99 – ver referências no final deste artigo

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Os nomes das educadoras são citados com frequência como um dos motivos para se ir à biblioteca. Isso confirma o quanto a presen-ça do adulto é fundamental nesse processo: ele é responsável pela mediação da leitura. São as educadoras que contam histórias, or-ganizam o espaço, planejam as atividades de leitura e de teatro, selecionam livros e temas, conversam com as crianças sobre os mais di-ferentes assuntos.

Na maior parte das vezes as crianças não vão à biblioteca por causa do livro, e sim para ver a atividade do dia ou conversar. Então a educadora cria caminhos que conduzem as crianças aos livros: “Às vezes eu começo a conversar com eles, se está chovendo falo da chuva e no meio do papo eu digo ‘Ih, eu tenho um livro muito legal que conta uma história que fala da chuva’. Aí todos querem ver o livro”.

Algumas vezes vemos a educadora num can-tinho da sala contando história com um gru-po de crianças, todos bem grudadinhos uns nos outros. Parecem totalmente envolvidos com a história. Em outros momentos vemos crianças por todos os cantos da biblioteca: crianças lendo em pequenos grupos, crian-ças fazendo teatro de fantoches, dramatizan-do a história de um livro, jogando jogo da memória com figurinhas de capas de livro, brincando de casinha com os livros. E até nesses momentos mais movimentados é pos-sível observar crianças sozinhas, num can-to ou na mesa, com um livro na mão, lendo atentamente. O ambiente convida a criança a descobrir o prazer da leitura e a conviver

com outras linguagens, como o teatro, a ex-pressão corporal, a música.

As crianças gostam muito de contar coisas sobre suas vidas, na biblioteca. Será que o ambiente aconchegante, com almofadas, propicia este contato mais próximo entre eles e com os adultos? Será que a literatu-ra provoca essa vontade de falar sobre suas próprias vidas, sentimentos e emoções?

Para uma das educadoras “os livros podem ajudá-los a sair desse bombardeio em que vi-vem, pelo menos por um momen-to”. Talvez a biblioteca do CCCria esteja

Os meninos estão jogando bola quando eu chego e me apresento. Digo que estou ali para escrever sobre a brincadeira. Então eles começam a me pedir para escrever os nomes dos jogadores.

– Escreve aí tia, Alexandre Pato.

Eu sorrio, surpresa, e pergunto: – Alexandre Pato está aqui?

C r i a n ç a s e m a ç ã o

Apita aí!

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funcionando como a “terra do meio” de que nos fala Rizzoli (2005), quando “os sons, as palavras, os gestos e os olhares são todos ins-trumentos utilizados para criar um lugar de encontro, aquela ‘terra do meio’, que é feita de conexões, de relacionamentos entre quem conta e quem ouve a história” (p. 7). Para a autora, “o livro é um instrumento de co-nhecimento, mas também é um veículo para fomentar o relacionamento”. As crianças costumam pedir para que contem histórias, às vezes escolhem os livros ou pedem para a educadora escolher. A educadora contou para dois meninos a história do livro Pontos de Vista (de Ana Maria Machado, ilustrado por ziraldo). Durante a história, percebeu

João Vicente aponta para André e diz: – É ele, tia, joga muuuito!

André só falta inflar de orgulho. Pedem para eu escrever os nomes dos times, “Botafogo e Fla-mengo”, e marcar os gols. Toda hora alguém vem até mim e diz:– Marca aí, tia, 2 a 0.– Não tia, 3 a 2.– Isso está confuso, cada um diz uma coisa – eu digo. – Zera tudo, vamos começar de novo – grita João Vicente.

O jogo rolando, chuta, gol, tentam fazer pas-ses de jogadores famosos, paradinhas antes do chute como faz Ronaldinho. Algumas discus-sões e faltas, até que me chamam para ser o

juiz. Eu digo que não posso porque não co-nheço bem as regras, mas eles nem escutam e pedem: – Apita aí!

Então passo a apitar, não sei como. Nem en-tendo direito o que está acontecendo, mas eles parecem entender. Às vezes o jogo para, alguns saem e depois voltam. Numa dessas voltas, os times mudam de nome:– Escreve aí, Milan e Seleção Nike.

As crianças têm total iniciativa e autonomia para conduzir e organizar o jogo. Ao imitar gestos dos jogadores e tomar emprestados seus nomes e os de seus times, socializam por meio da brincadeira, de forma descontínua e criativa como os passes e dribles.

que um dos meninos, de 8 anos, não reco-nhecia o Cristo e o Pão de Açúcar, cenários do livro e cartões postais da cidade onde mo-ram. Ela então procurou outros livros com ilustrações do Cristo e fez uma pesquisa na Internet, junto com o menino. A partir de en-tão, quase todos os dias o menino vai até a biblioteca, pega o mesmo livro e pede para a educadora ler para ele. Com certeza ouvir tantas vezes a mesma história faz com que o menino sinta que alguma coisa está sendo feita especialmente para ele.

Algumas crianças que frequentam a biblio-teca do CCCria fazem referências à sala de leitura de sua escola: “Eu gosto desse livro,

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tem lá na minha escola”, “Aqui tem um livro da Iara? A minha tia da escola contou”. Na escola eles estabelecem a mesma relação, co-mentam com a professora da Sala de Leitura sobre os livros que já viram no CCCria. Não há referências sobre livros que eles tenham em casa. A possibilidade de acesso e interação com os livros, principalmente os de literatura, acontecem apenas nesses dois espaços. Mas, segundo as crianças, na escola o tempo é res-trito: “Eu leio na escola, mas só depois que termino os trabalhos”, “Eu gosto mais de ler no CCCria, porque na escola tem os minutos, e no curso eu leio o tempo que eu quiser”.

Na biblioteca também se criam textos e prin-cipalmente raps. Nos últimos meses o Grupo da Pimenta, nome dado por eles mesmos, se dedica a compor letras de música. “Antes eles se consideravam o Bonde do Mal, faziam a maior confusão, diziam que queriam tocar fogo. Andavam por aqui cantando: ‘Eu só quero é ser feliz, andar de bicicleta e quebrar o seu nariz’. Vinham à biblioteca porque gos-tavam de conversar comigo sobre suas vidas e também gostavam de ler, mas era tudo na bagunça. Eu propus que fizéssemos um rap do Meio Ambiente, pois era o projeto do CCCria. Expliquei o que era uma paródia, lemos mui-ta poesia e fizemos uma pesquisa nos jornais e na Internet sobre o meio ambiente”, conta uma educadora. O rap foi apresentado por eles para a comunidade num evento do CC-Cria e fez um grande sucesso. A partir daí o grupo não parou mais de produzir raps. O últi-mo foi o rap dos direitos da criança. “O Juarez lê muito e sempre fala sobre os livros. Ele leu umas coisas do ECA e comentou na bibliote-

ca. Como eles ficaram mobilizados, partimos para uma pesquisa sobre os direitos da crian-ça”. A educadora faz questão de frisar que procura envolvê-los em pesquisas, utilizando Internet, livros e jornais, reforçando com as crianças que é preciso buscar conhecimento sempre, inclusive para criar um rap.

Caminho do protagonismo

É indiscutível a relevância de espaços onde as crianças possam ter acesso aos livros além da escola. Melhor ainda quando funcionam de forma diferente da escola, dando à crian-ça a possibilidade de viver outras práticas de leitura. As leituras se apresentam de formas diferentes, com tempos diferentes, nos diver-sos lugares: na escola, em casa, na bibliote-ca, no museu. Quando a leitura dos livros só acontece na escola, esse passa a ser o único modelo para essas crianças. É necessário criar e cuidar desses espaços, assim as crian-ças poderão ler de diversos jeitos e diferen-tes formas, dentro e fora da escola.

A biblioteca, desde a organização do espa-ço até o planejamento das atividades, reco-nhece as crianças como sujeitos ativos na relação com os livros. Eles escolhem o que querem ler, criam novas histórias, brincam com enredos e personagens, recriam es-paços com os livros, reinterpretam as his-tórias, produzindo suas próprias leituras. São estimuladas a expressar suas ideias, sentimentos e opiniões através de diferen-tes linguagens: contar história, dramatizar, brincar, desenhar, cantar, ler.

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Com leituRa e Com afeto 89

Seguindo este caminho terão a possibilida-de de penetrar no universo da leitura e da escrita e construir as bases para que pos-sam desenvolver-se como pessoas plenas e de direito e participar de forma crítica da cultura escrita.

As experiências vividas na biblioteca per-mitem que a criança exercite o seu papel de protagonista no processo de aprender e tornar-se cidadã.

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6OS CAMINHOS DE UMA PESQUISA

Claudia CeCCon

As informações e histórias presentes nesta publicação são baseadas na pesquisa realizada entre 2008 e 2010 com apoio da Fundação Bernard Van Leer. Apresentamos de forma sucinta como esse estudo foi realizado, que metodologia utilizou e quais desafios isto representou para a equipe.

O objetivo geral de nosso projeto da pesqui-sa era assim apresentado:

Consolidar uma metodologia de trabalho que, através de ações lúdicas e culturais, estimule a autonomia e o protagonismo de crianças, acompanhando a transição de um grupo focal de crianças em atividades no Centro Cultural da Criança – CCCria, em sua escola e em suas famílias, visando es-tabelecer uma Tecnologia Social que repre-sente um modelo flexível e replicável na área de educação.

Para tanto, durante quase dois anos, pesqui-sadoras acompanharam um grupo de crian-ças do CCCria, naquele espaço educativo, em suas escolas e em suas famílias.

Entre os objetivos específicos, constavam os de: 1) avaliar; 2) documentar o impacto das ações desenvolvidas com crianças de 4 e 6 anos no CCCria, em sua transição para a escola; e 3) sensibilizar os adultos significa-tivos para as crianças (familiares, educado-res e professores) a respeito de seus direi-tos e deveres, como um fator determinante para a diminuição da violência infantil.

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A pesquisa, a cargo do CECIP, foi uma en-tre várias ações para atender a estes objeti-vos. Outra foi uma avaliação realizada pelo CEACA-Vila, através do seu Programa de Gerenciamento de Qualidade.

Perguntas a responder

Era preciso entender a experiência vivida pelas crianças no CCCria e encontrar indi-cações de como essa experiência influencia as transições que elas experimentam entre o Centro, a escola e a família. Ou seja, enten-der de que forma as experiências e elementos da metodologia vividos no CCCria (autono-mia, criatividade, regras de convivência) são levados pelas crianças para os outros am-bientes em que convivem. Para responder a esta preocupação e orientar a pesquisa, fo-ram elaboradas quatro perguntas:

1. Os valores vivenciados no CCCria in-fluenciam de alguma forma as relações familiares?

2. Como as crianças percebem e adminis-tram possíveis contrastes entre a expe-riência de protagonismo e autonomia de decisões, vivida no CCCria, e a estrutura escolar e familiar?

3. Na percepção dos professores da escola pública que as crianças frequentam, elas se destacam das demais de seu grupo etá-rio e escolar? De que formas?

4. Em termos de rendimento escolar e fre-quência, como as crianças do CCCria se situam em relação à sua classe?

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os CaminHos de uma pesquisa 93

Tanto pela natureza das questões quanto pela identificação da equipe com esta linha de pesquisa, optou-se por um estudo de ca-ráter majoritariamente qualitativo, baseado em observações e entrevistas com crianças, com seus pais e com professores da escola pública que as crianças frequentam. Mas in-cluímos também um aspecto quantitativo: o registro do desempenho escolar e o de frequ-ência das crianças.

Sobre equipes, papéis e vieses

Três das cinco pesquisadoras envolvidas no trabalho tiveram que desempenhar um duplo papel. Isso porque duas delas faziam parte do grupo do CECIP que proporcio-nava acompanhamento pedagógico ao CC-Cria, e a terceira, que integrava a equipe do CEACA-Vila na qualidade de psicóloga

e de coordenadora de núcleo, também lide-rou o projeto de avaliação naquele espaço.

Se, por um lado, isso tornava por vezes difí-cil ter um olhar “de fora”, de distanciamen-to crítico, o que poderia ser considerado um problema, por outro lado elas traziam um entendimento profundo da metodologia e da realidade da comunidade, permitindo me-lhor apreender a complexidade do fenôme-no. Como diz Michael Patton, pesquisador e avaliador americano, “a proximidade não torna o viés e a falta de perspectiva inevitá-veis; (assim como) a distância não é garantia de objetividade” (Patton, 2002, p. 49).

Além disso, outras duas pesquisadoras che-garam sem ter contato prévio com o projeto, uma delas também levantando no CCCria os dados para sua tese de doutorado. O fato de poder contar com diferentes olhares foi de grande riqueza em todos os momentos. A metodologia do CCCria e a pesquisa trava-ram permanente diálogo no dia-a-dia: o que se viu foi uma pesquisa-ação, em que as des-cobertas eram utilizadas como matéria-prima das capacitações, contribuindo na discussão, reflexão e aperfeiçoamento do trabalho.

Começa a coleta de dados

Durante os anos de 2008 e 2009, a equipe de cinco pesquisadoras fez a coleta dos dados. Um estudo de caso foi planejado, acompa-nhando um grupo de famílias, o que permitiu a coleta e análise mais aprofundada de suas experiências.

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Esse grupo focal foi composto por 20 famí-lias, e participaram até 22 crianças1. Os se-guintes critérios foram utilizados para a sele-ção das crianças:

■ Idade (na faixa etária de 4 anos e 6 anos) ■ Inscritas e frequentando o CCCria (pelo

menos duas vezes por semana) ■ Matriculadas na Escola Municipal mais

próxima ■ Gênero (equilíbrio entre o número de

meninas e meninos)

Depois de obtidas todas as autorizações — da Secretaria de Educação, da diretoria do CEA-CA e das famílias — começaram as sessões de observação. Os espaços observados se-manalmente foram o CCCria como um todo e a escola mais próxima, durante o tempo de recreio. A escolha do recreio como espaço de observação foi feita porque interessava regis-trar a ação livre das crianças, sua autonomia, sem o direcionamento das professoras, e tam-bém as relações entre crianças e professoras fora da dinâmica de sala de aula.

Para colher informações sobre as crianças em suas famílias, foram realizadas reuniões mensais no CCCria, sempre em um sába-do, durante dois anos. Esta estratégia foi escolhida devido à dificuldade de observá-las em suas próprias casas: além de ser um método muito invasivo, elas moram em di-ferentes lugares em uma comunidade onde há constantes conflitos entre policiais e tra-ficantes, o que representa uma dificuldade adicional à livre circulação, especialmente de não-moradores.

O projeto foi apresentado e as famílias ade-riram, comprometendo-se a participar das reuniões e de eventuais entrevistas, além de autorizar a observação de seus filhos no CC-Cria e na escola. Esse compromisso foi assu-mido sem nenhuma promessa de retribuição. Uma vez tendo as famílias aceitado parti-cipar, foi dada a cada uma delas, mensal-mente, uma cesta básica. Era importante que aderissem à pesquisa sem saber que haveria essa ajuda, mas ela foi muito bem-vinda e certamente teve alguma influencia no alto índice de presença nas reuniões.

Os trabalhos das crianças foram fotografados durante todo o período, e serviram como ilus-tração de conceitos importantes para o projeto e para artigos publicados. Também foram en-viados ao CCCria como registro das atividades e lá utilizados para enfeitar as paredes, ilustrar o site do CEACA e divulgar o trabalho.

As informações eram digitadas em um for-mulário que permitia colocar numa coluna aquilo que havia sido observado, e na outra os sentimentos, pensamentos, observações da pesquisadora. Ao final, havia um espaço para reflexões mais aprofundadas. A princí-pio, o registro deveria ser feito nas 24 ho-ras imediatas após a observação, para obter maior riqueza de detalhes. Infelizmente, isto nem sempre aconteceu. Cada pesquisado-ra enviava as suas observações aos demais membros do grupo de pesquisa. A coordena-dora da pesquisa fazia questionamentos que eram mais tarde discutidos em grupo, tanto para melhorar o aspecto de observação e re-gistro e esclarecer as informações obtidas,

1 No meio do primeiro ano algumas famílias foram desligadas por diversos motivos, incluindo mudanças para fora da comunidade e falta expressiva das crianças ao CCCria ou dos responsáveis aos encontros mensais. No processo de substituição, foram incluídas famílias com mais de uma criança na faixa etária da pesquisa; consequentemente o número de crianças variou entre 20 e 22 crianças.

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quanto para discutir encaminhamentos em relação àquilo que havia sido observado. Todos os registros encontram-se devidamen-te arquivados no CECIP.

Ao final de quase dois anos, foram observa-das aproximadamente 60 horas de atividade de crianças em recreio e mais de 200 horas de atividades de crianças em diferentes ofici-nas no CCCria. Além disso, foram realizadas 20 reuniões com as famílias, entrevistas in-dividuais e em grupo com todos os 14 edu-cadores do CCCria, com oito professores da escola pública, com pais e com crianças.

Construindo uma coleção de histórias...A rotina elaborada pelas pesquisadoras no CCCria consistia em pedir permissão à edu-cadora para observar o espaço em que ela trabalhava e, ao chegar perto das crianças, também pedir permissão a elas. As crianças quase sempre autorizavam, gostavam de ter a equipe por perto. Mas houve um dia em que uma menina não autorizou a observação. Isso deu indícios à equipe de que o pedido de autorização era de fato levado a sério por elas. Quanto às educadoras, a equipe perce-beu – e elas mesmas verbalizaram isso, ao avaliar a pesquisa – que nem sempre gos-tavam de ter uma observadora em sua sala, mas sentiam-se constrangidas em negar o pedido. Tinham motivo para isso, afinal a organização que financiava a pesquisa era a mesma que pagava seus salários. De toda forma, as pesquisadoras procuraram estabe-

lecer relações que tornavam sua presença o menos invasiva possível.

Crianças e adultos demonstraram constan-temente sua curiosidade quanto ao caderno de pesquisa, quanto à presença e ao escrever frenético das pesquisadoras. Muitas vezes esse caderno virava campo de jogo da ve-lha, forca ou lugar de treinar assinar o nome. Tornou-se também um “objeto de transição”, indo de um lugar ao outro, formando um elo entre a escola e o CCCria, sendo reconhe-cido pelas crianças. Representava ainda um objeto definidor do papel e da identidade que a pessoa estava assumindo naquele momen-to, especialmente para aquelas que tinham vários papéis na instituição.

A postura das pesquisadoras inspirou-se no sociólogo americano William Corsaro, pois

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procuraram agir como um adulto atípico: “Fazer pesquisa com as crianças exige uma postura diferente do/a pesquisador/a. Ao contrário de um adulto que fala à criança o que fazer ou tenta controlar seus compor-tamentos2, sugere a presença de um adulto atípico, um amigo especial que terá condi-ções de interpretar como a criança interpreta o mundo”3 .

Na escola, as observações seguiam a rotina de cum-primentar a diretora e/ou a vice- diretora, quando possível conversar um pouco para saber o que estava acontecendo, como tinha sido a semana, to-mar um cafezinho gentil-mente oferecido, e depois se dirigir ao espaço do recreio, onde esperavam as crianças. Às vezes a pesquisadora acompa-nhava as crianças no re-feitório, outras vezes nas aulas de Educação Física que aconteciam na quadra externa, sempre a convite ou com a permissão das professoras.

As crianças ficavam muito felizes em verem a equipe, apresentando aos amigos “a tia do curso”. Depois, ao se reencontrar no CCCria, comentavam ter visto a equipe naquele ou-tro espaço. Muitas vezes houve momentos em que as pesquisadoras sentiram vontade de tomar algumas iniciativas no espaço es-

colar, fosse para resolver conflitos ou para ajudar as crianças em alguma brincadeira. Mas procuraram observar sem interferir, para não perturbar a organização da escola. A equipe esteve presente em Conselhos de Classe e se ofereceu para dar oficinas como contribuição para a escola, sobre temas em

que havia expertise, como desenvolvimento infantil. A oferta nunca foi acei-ta. A pesquisa contribuiu então de outras maneiras, como em festas e eventos da escola, comprando pi-pocas ou o que quer que estivessem precisando. Essa ajuda, sim, foi muito bem recebida.

Os encontros com as fa-mílias eram preparados com cuidado, elegendo-se um tema importante dentre dos aspectos traba-lhados no CCCria – e que havia sido observado lá – para saber como isso se manifestava em casa. Por

exemplo, em alguns encontros discutiu-se a autonomia da criança – como isso aparecia em casa, o que a criança era incentivada a fazer em casa que expressasse o conceito de autonomia. Perguntou-se se as famílias per-cebiam alguma diferença nas suas crianças, e através das histórias colhidas nos vários en-contros foram se formando e consolidando conhecimentos sobre temas importantes para o trabalho.

2. Corsaro (1997, 2003)

3. Delgado & Müller (2005, p.173).

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A partir das primeiras observações, foram levantados 10 aspectos que pareciam estar relacionados à transição, ao protagonismo, à participação e à autonomia. Com base neles – identificados por meio de cores – é que os registros foram marcados ao longo da coleta dos dados. A seguir, os dez aspectos considerados e uma breve descrição de cada um.

■ ReSPOnSAbIlIDADe PelO eSPAçO (Cor cinza) Ser conhecedor e se sentir cuidador dos ambientes e objetos.

■ PeRCePçãO e COnSCIÊnCIA DO TeMPO/ROTInA (Cor vermelha) Capacidade de observar as modificações do espaço, fruto das ações de crianças e adul-tos no ambiente e da interferência destas modificações nas interações.

■ CRIATIVIDADe (Cor azul escuro) Capacidade de inventar, produzir, agir de forma inovadora.

■ InICIATIVA (Cor lilás) Capacidade de espontaneamente agir para resolver uma situação.

■ AuTO-eSTIMA (Cor laranja) Cuidado com a aparência, demonstrações de amor próprio, de curtição/apreciação de si mesmo (corpo, habilidades, produções).

■ IDenTIDADe (Cor marrom) Tomada de consciência sobre si; capaci-dade de se reconhecer a partir de algumas características, atributos e/ou propriedades dos objetos.

■ AfeTIVIDADe (Cor azul) Manifestações dos afetos, ações que envol-vem situações onde são demonstrados os cuidados e o carinho, através de palavras, gestos e comportamentos.

■ AuTOnOMIA De eSCOlHA (Cor verde) Segurança da criança em relação aos seus desejos.

■ SOlIDARIeDADe (Cor amarela) Identificação das necessidades do outro, e a partir disso ação no sentido de colaborar, auxiliar e/ou cuidar.

■ CIDADAnIA/RegRAS SOCIAIS (Cor rosa) Reconhecimento de direitos e deveres, respeitando as regras sociais dos diferentes espaços; identificar e transitar nessas regras.

Essas conversas constituíram uma fonte rica de informações, mas o resultado foi muito além disso: tornaram-se encontros de troca entre a equipe da pesquisa e as famílias, e

entre as próprias famílias. Diversos temas foram discutidos: a escola, a aprendizagem dos filhos, a dificuldade de comunicação en-tre pais e filhos, a importância da brincadei-

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ra, a violência na comunidade e a dificuldade de criar os filhos nesse contexto. Talvez para algumas mães aquele fosse um dos poucos ou mesmo o único espaço onde pudessem falar e ser ouvidas.

e agora, josé?

Em meados de 2009, foi reduzida a presença da equipe no CCCria para coleta de dados, e foi intensificado o processamento das in-formações levantadas. Para isto, utilizou-se a análise interpretativa, de Hatch, composta de uma série de passos, o que levou a equi-pe a reler os vários registros e ir filtrando

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as informações aos poucos, triangulando os dados, elaborando sínteses, criando explica-ções e verificando onde elas se confirmavam ou não.

Conceitos norteadores

A seguir, são definidos os conceitos que orientaram a pesquisa, e que certamente per-mitirão ao leitor entender melhor como foi desenvolvido o presente trabalho. Tanto a pesquisa quanto o trabalho do Centro Cultu-ral têm como eixos centrais os conceitos de protagonismo infantil, transição, cidadania e participação.

Protagonismo infantil4

O conceito de protagonismo infantil tem suas origens na América Latina nos anos 60 e 70, relacionado com o movimento de edu-cação popular, muito antes da Convenção Universal dos Direitos das Crianças (1990). Naquele tempo, crianças que trabalhavam e eram exploradas se organizaram para de-mandar seus direitos, reivindicando que suas vozes fossem ouvidas antes que decisões que as afetavam diretamente fossem tomadas.

Segundo Gaytán, o protagonismo infantil é o processo social por meio do qual crianças (meninos e meninas) e adolescentes assu-mem um papel de liderança a respeito de seu próprio desenvolvimento e do desen-volvimento de suas comunidades, para al-cançar a plena realização de seus direitos de cidadania5

4. Alfagema, Cantos e Martinez (2003)

A pesquisa gerou muitas aprendizagens e alguns produtos:

■ Publicação de dois artigos, na Revista van Leer (inglês e espanhol) e na Revista Pátio (ArtMed, em português).

■ Apresentações em datashow. ■ Relatórios individuais das

crianças do grupo focal, elaborados a pedido da escola, com a autorização de cada uma delas.

■ Esta publicação “Histórias do CCCria – Autonomia, Alegria e Participação Infantil”.

■ Relatório da Pesquisa.5. Gaytán, 1998

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A definição de protagonismo infantil ofere-cida acima implica em colocar em prática a visão da criança como detentora de direitos e, portanto, redefinir seu papel nos diferen-tes segmentos da sociedade. Dois pesquisa-dores que se debruçaram sobre essa questão, Barrientos e Lascanos (2000) endossam esta abordagem e vão além, propondo a divisão do conceito em dois níveis. O primeiro, um espaço construído “para a criança”, onde ela é livre para planejar e executar atividades, atri-buir e assumir diferentes papéis sem a inter-ferência do adulto. O importante é garantir a brincadeira e o atendimento às necessidades básicas da criança. Num segundo nível, o es-paço é criado “com a criança”, para que sua voz seja a todo momento considerada e para que possa influenciar as decisões que a afe-tam. Neste nível, o papel dos adultos é o de facilitar o protagonismo integral da criança.

No texto Can you hear me, Lansdown (2005) afirma que as crianças são exímias comuni-cadoras e são (ou desejam ser) agentes ati-vos no fazer cotidiano, capazes de construir o sentido de suas experiências. É preciso que os adultos mudem suas próprias atitudes, aprendendo a escutar cuidadosamente, res-peitando o direito da criança em ser ouvida e influenciar decisões, levando em considera-ção sua idade e maturidade.

O principal benefício desta nova atitude é que as crianças que expressam suas opiniões “ad-quirem competências em relação direta com a gama de possibilidades a elas oferecidas para exercer controle sobre suas próprias vidas”. Além disso, são menos vulneráveis a sofrer abusos de adultos. Não significa que as crian-ças vão decidir sozinhas. Elas precisam de ajuda e proteção condizentes com a idade.

Participação e cidadania

O termo participação é encontrado muitas vezes como sinônimo de protagonismo. Há autores que usam as duas palavras para di-zer fundamentalmente a mesma coisa. Ou-tros rejeitam o termo protagonismo – muito personalizado numa figura, como se prota-gonismo implicasse na ideia de ator princi-pal, buscando para si os refletores. Em nossa pesquisa, participação é vista como o pro-cesso de manifestar suas opiniões e tê-las consideradas ao tomar decisões que afetam a vida da comunidade onde se vive. Nisso a pesquisa alinha-se com a forma como a Fun-dação Bernard Van Leer (2006) trabalha este conceito.

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Landstown (2005) distingue três níveis de participação: consultivo, participativo e auto-iniciado. Também se trabalhou, na pes-quisa, com o conceito de participação pro-posto por Roger Hart (1997), em que discri-mina níveis de envolvimento das crianças que vão desde a manipulação – onde não há verdadeiramente a participação da criança, e sim o uso da sua imagem – até o nível mais alto de participação, onde a ação é idealizada e desenvolvida pelas crianças, com o apoio e beneficiando-se da experiência dos adultos, num processo dialógico.

A Fundação Bernard van Leer6 defende que o objetivo maior de estimular a participa-ção da criança é aumentar sua visibilidade na vida social e na construção de políticas

públicas, promovendo a educação para a cidadania e dando oportunidades para que a criança possa vivenciar uma experiência verdadeiramente democrática. Este conceito de participação se integra bem com a questão da cidadania das crianças, discutida abaixo.De acordo com Drake (2001), a cidadania se dá na relação entre ser membro de um coletivo, e participar, exercer seus direitos e cumprir seus deveres. O autor oferece uma aplicação concreta deste conceito quando se trata de crianças:

■ Pertencimento: ter o sentido de ser mem-bro ou fazer parte de;

■ Participação: contribuir com sua voz, ser ouvido e ser afetado pelas mudanças;

6. A guide to general comment 7: Implementing child rights in early childhood (Fundação Bernard Van Leer, 2006)

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■ Direitos: ser detentor de direitos e exer-cê-los, respeitando o direito dos outros;

■ Deveres: ter um sentido de obrigação para consigo e para com os outros dentro da sociedade.

Transições

A Dra. Maria Victoria Peralta (2007) afir-ma que esses são processos de mudança que ocorrem quando se passa de um estágio a outro. Podem ser baseados em componentes biológicos, mas são afetados também pela cultura e pelas normas sociais. Numa visão antropológica, o conceito de transição re-

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mete a ciclos vitais, com etapas sucessivas, marcadas com ritos de passagem. Numa vi-são sociológica, pode-se conceber o desen-volvimento da pessoa como uma sequência de estágios, entre os quais se produzem as “transições”.

Entre os fatores presentes no processo de transição, Peralta identifica aqueles que são internos, como desenvolvimento afetivo (confiança, segurança, auto-estima, resili-ência, estratégias adaptativas, atitudes fren-te às mudanças) e desenvolvimento cogniti-vo (conhecimento de aspectos que auxiliam no entendimento sobre o novo, habilidades para interpretar códigos afetivos, cognitivos e linguísticos), e fatores externos como: su-porte afetivo, lidando com a capacidade de fortalecer as mudanças em suas ações; ati-tudes familiares diante das mudanças; de-senvolvimento de atividades preparatórias para situações novas e acompanhamento das mesmas; definição de situações de con-tinuidade, progressão e diferenciação; iden-tificação dos novos estágios alcançados; e finalmente as condições para o acesso a es-ses processos transitórios.

Kagan e Neuman (1988) apresentam um conceito que muito intrigou a equipe, pro-pondo uma diferenciação entre transições verticais e horizontais. As verticais seriam as que são feitas mais formalmente, entre creche e escola, ou no caso, entre o Cen-tro Cultural e o projeto de adolescentes do CEACA.

As horizontais seriam aquelas feitas ao lon-go de um dia, entre diferentes ambientes – como as transições entre a casa, passando pela comunidade, indo à escola e depois ao Centro Cultural, o que outra autora, Sue Clark (2000) chama de “cruzar fronteiras” (border crossing).

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finalizando...

A questão central da pesquisa gira em torno de como as crianças de 4 anos de idade fa-zem a transição da creche para a pré-escola, e aos 6 anos como transitam entre a pré-es-cola e a escola – e como o Centro Cultural contribui para facilitar ou não essas transi-ções. Também foram abordadas as transi-ções que a criança faz no dia-a-dia, entre

a sua família, o Centro Cultural da Criança e a escola. Em cada um desses espaços ela tem de perceber as diferenças entre as re-gras que regem cada espaço, tem de nego-ciar essas regras, aprender outros comporta-mentos e entender como se relacionar com os diferentes agentes com quem convive. Os resultados da pesquisa que descrevemos estão expressos nos textos dos artigos que compõem esta publicação.

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CONCLUSÃO:

COMO TRANSFORMAR EM POLíTICA PúBLICA?

Claudius CeCCon

A palavra “conclusão” não é a mais adequa-da. Este não é o fim. Você, que percorreu estas páginas e chegou até aqui, ficou co-nhecendo uma história que continua, que é um processso, que se desenvolve, que pro-gride, que se abre a novos desafios e a no-vas descobertas.

Este livro procurou retratar uma fase: é um capítulo dessa história que começou lá atrás, muito antes do momento em que al-guns desses personagens se encontrassem no Morro dos Macacos. São pessoas que passaram por experiências comuns a toda uma geração. Viveram um período em que os direitos fundamentais foram suprimidos e o amanhecer de cada dia era uma aventura cheia de incertezas.

Para algumas, houve um sofrido exílio, al-ternativa extrema para não ser mais uma vítima de uma feroz repressão, cuja lem-brança permanece viva, apesar do tempo que passou. Para outras, que permaneceram aqui, foi o duro aprendizado da sobrevivên-cia, num jogo em que as regras eram feitas pelo inimigo.

A referência a esse pano de fundo é neces-sária, porque ajuda a entender as circuns-tâncias do encontro, tantos anos passados, em um Brasil que está mudando, daqueles que decidiram criar o Centro Cultural da Criança. Ajuda a entender o mútuo respeito com que um projeto comum foi elaborado e como os diferentes saberes e vivências o construíram.

Arquiteto, designer gráfico, ilustrador e cartunista, é diretor do CECIP.

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Já sabemos que esta é uma iniciativa inova-dora. No Centro Cultural da Criança seus direitos são para valer. É no cotidiano exer-cício desses direitos, em que a razão e o di-álogo prevalecem sobre a lei do mais forte, que as crianças constroem a nova lógica que lhes servirá de referência para toda a vida. Vimos que o novo não acontece por acaso, que é preciso mais do que boa vontade para enfrentar os desafios que acontecem a cada momento. Colocar em questão os pressupos-tos em que baseamos nossas próprias atitu-des é, possivelmente, o maior desses desa-fios. Aprender desaprendendo, uma aparente contradição, é proposto a todas as pessoas que se dedicam à educação. Como num pro-cesso psicanalítico, este colocar-se em ques-tão, este repensar a si mesmo, é condição para reconstruir a própria história.

Também vimos que a participação da crian-ça na construção das regras que todos devem respeitar é fundamental. Essas regras fazem sentido para as crianças, o que é uma abso-luta novidade para elas, que vivem em um mundo onde praticamente tudo lhes é im-posto. Isto acontece na família, na escola e em praticamente todos os ambientes que elas frequentam, com a explicação sempre repetida de que as coisas são assim “porque é assim que sempre foram”. Entretanto, as regras criadas agora, de uma nova maneira, não eliminam os conflitos. Como entendê-los? O que fazer para que não se transfor-mem em violência? Vimos como também nesse campo houve inovação, com a criação das cirandas restaurativas e uma formação que habilita as professoras e os professores

a entenderem melhor o que se passa e, com mais segurança e visão, encaminharem solu-ções baseadas no consenso.

Este processo foi alimentado por muitas fontes, levando-o a se fortalecer, progressi-vamente, com a discussão e a busca de co-nhecimentos que ajudassem a compreender melhor situações que eram vividas.

Um novo olhar sobre crianças consideradas “problema” abre todo um horizonte de refle-xão. E se o problema não estiver na criança, mas na maneira como se olha essa criança? Novamente vimos como o desafio é grande e, como, ao mesmo tempo, é possível encontrar maneiras de responder criativamente a ele.

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O que acontece com essa criança, que vive, no Centro Cultural, as novas regras de auto-nomia e participação - cuja criação foi feita levando em conta suas ideias, seus pontos de vista, seu senso de justiça - quando ela tran-sita para outra realidade? Um outro lugar, onde essas regras não existem, ou são, no mínimo, muito diferentes? Como é recebi-da, na escola, por exemplo, uma criança que

descobriu que tem o direito de ter sua opinião considerada e que sua autonomia, aliada ao seu senso de responsabilidade, são valores dos quais não pode mais abrir mão? Ou o que acontece em casa, onde muitas vezes ordens são impostas sem qualquer justificativa? A pesquisa feita sobre essas diferentes formas de transição trouxe questões que precisam ser consideradas com toda a seriedade.Este processo não cessa de se abrir em muitas perguntas. Uma delas é: toda essa riqueza fi-cará restrita a uma experiência localizada no Morro dos Macacos?

Desde o início deste projeto pensava-se na possibilidade de ir mais além da experiência única, por mais exemplar que ela fosse. Por isso, não nos contentamos em fazer funcionar um lugar onde as crianças têm acesso a bens

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culturais que normalmente estariam fora de seu horizonte. Esta é uma experiência que possui um enorme potencial: ela pode trans-formar-se em política pública. Por essa razão o CECIP produziu o livro CCCria, o Castelo das Crianças Cidadãs (publicado pela Im-prensa Oficial do Estado de São Paulo e in-dicado, em 2010, à premiação da Fundação Biblioteca Nacional) no qual conta o passo a passo que levou à criação do Centro Cultu-ral. A ideia é estimular a multiplicação dessa experiência em outras comunidades em regi-ões metropolitanas neste país.

A presente publicação completa a anterior, dando-lhe sustentação teórica e relatando experiências vividas na prática cotidiana.No momento em que se abrem novos hori-zontes na integração de favelas e zonas peri-féricas ao tecido da cidade, não como projeto urbanístico, apenas, mas como um complexo empreendimento em que melhorias físicas e de segurança se articulam a políticas de in-tegração social dessas comunidades à cida-de, garantindo a todos os cidadãos os mes-mos direitos, o Centro Cultural da Criança se coloca como um dos investimentos mais promissores dessa política. Os frutos serão colhidos ao longo do percurso e o chamado custo-benefício, no médio e longo prazos, mostrará que a implementação dessa visão de futuro terá valido a pena, pois terá benefi-ciado não só as crianças desfavorecidas, mas a sociedade como um todo. O aprendizado da cidadania se faz na prática cotidiana. O cidadão autônomo, crítico, participativo, é fruto de um processo que começa na mais tenra idade.

A experiência vivida pelo Centro Cultural da Criança ultrapassa as fronteiras de uma favela localizada em uma região metropo-litana, para se tornar exemplo, inspiração, estímulo e modelo a ser seguido. Desde que não seja tomada como panaceia, mas faça parte de um plano estratégico em que for-mação, capacitação e sustentabilidade este-jam garantidas.

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Esta publicação foi composta com a tipologia Times New Roman, texto corpo 11, grid 13,5,

em junho de 2011.

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