18
FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 21, n. 1/3, p. 79-95, jan./mar. 2011. 79 HISTÓRIA E PROFECIA: E ste trabalho busca expor de forma clara a mensagem bíblico-teológica contida na perícope Ap 13,1-18. Mas especificamente, defende a tese de que em Ap 13 contém um esquema de inteligibilidade teológico-políti- co, válido para o cristão de todos os tempos. Em breve, o presente estudo tenta mostrar a percepção que o autor do Apocalipse tem sobre o sistema político de seu tempo e o seu pensar sobre o modo de procedr do cristão. O estudo leva em consideração a particular unidade de Ap 13, assim como o caráter símbolico da narração. Por isso, valoriza o papel protagonista do grupo de escuta cristão atento a decifrar uma mensagem que pode ser aplicada à própria vida. Traz individuar o conteúdo histórico-tradicional da figura da bes- ta, delineando, como fruto da análise, duas forças coordenadas de caráter Resumo: o presente estudo tenta mostrar a percepção que o autor do Apocalipse tem sobre o sistema político de seu tempo e o seu pensar sobre o modo de proceder do cristão. O estudo leva em consideração a particular unidade de Ap 13, assim como o caráter símbolico da narração. Por isso, valoriza o papel protagonista do grupo de escuta cristão atento a decifrar uma mensagem que pode ser aplicada à própria vida. Tratraremos, portanto, dos elementos proponderantes da exegese do texto, a saber: a leitura em chave política da figura da besta, a formação do falso reino em torno dos falsos valores gerados por sua atividade e influência, assim como a reação da comunidade positiva e o papel particular do grupo de escuta dentro dela. Palavras chave: Grupo. Resistência. Escuta. Perverança. Prática A FIGURA DA BESTA EM AP 13,1-18* Dionivaldo Pires**

HISTÓRIA E PROFECIA: A FIGURA DA BESTA EM AP 13,1-18*

  • Upload
    others

  • View
    1

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: HISTÓRIA E PROFECIA: A FIGURA DA BESTA EM AP 13,1-18*

FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 21, n. 1/3, p. 79-95, jan./mar. 2011. 79

HISTÓRIA E PROFECIA:

E ste trabalho busca expor de forma clara a mensagem bíblico-teológica contida na perícope Ap 13,1-18. Mas especificamente, defende a tese

de que em Ap 13 contém um esquema de inteligibilidade teológico-políti-co, válido para o cristão de todos os tempos. Em breve, o presente estudo tenta mostrar a percepção que o autor do Apocalipse tem sobre o sistema político de seu tempo e o seu pensar sobre o modo de procedr do cristão. O estudo leva em consideração a particular unidade de Ap 13, assim como o caráter símbolico da narração. Por isso, valoriza o papel protagonista do grupo de escuta cristão atento a decifrar uma mensagem que pode ser aplicada à própria vida.

Traz individuar o conteúdo histórico-tradicional da figura da bes-ta, delineando, como fruto da análise, duas forças coordenadas de caráter

Resumo: o presente estudo tenta mostrar a percepção que o autor do Apocalipse tem sobre o sistema político de seu tempo e o seu pensar sobre o modo de proceder do cristão. O estudo leva em consideração a particular unidade de Ap 13, assim como o caráter símbolico da narração. Por isso, valoriza o papel protagonista do grupo de escuta cristão atento a decifrar uma mensagem que pode ser aplicada à própria vida. Tratraremos, portanto, dos elementos proponderantes da exegese do texto, a saber: a leitura em chave política da figura da besta, a formação do falso reino em torno dos falsos valores gerados por sua atividade e influência, assim como a reação da comunidade positiva e o papel particular do grupo de escuta dentro dela.

Palavras chave: Grupo. Resistência. Escuta. Perverança. Prática

A FIGURA DA BESTAEM AP 13,1-18*

Dionivaldo Pires**

Page 2: HISTÓRIA E PROFECIA: A FIGURA DA BESTA EM AP 13,1-18*

FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 21, n. 1/3, p. 79-95, jan./mar. 2011.80

negativo inseridas na história (vv. 1-8 e vv. 11-17) cuja atividade recebe dois tipos de respostas: de adoração da parte dos habitantes da terra (vv. 3b-4.8.12) e de resistência não violenta por parte da comunidade cristã (v. 10). Privilégios econômicos e sociais ou marginalização e ainda perigo de morte seguem (vv. 15-17). O destinário da visão ou sujeito interpretante (v. 18) é explicitamente individuado como grupo de escuta (v. 9).

Os elementos aludidos pedem uma consideração do ponto de vista bíblico-teológico. O faremos de forma global, limitando à investigação da mensagem emergente de Ap 13,1-18. tratraremos, portanto, dos elemen-tos proponderantes da exegese do texto, a saber: a leitura em chave política da figura da besta, a formação do falso reino em torno dos falsos valores gerados por sua atividade e influência, assim como a reação da comunida-de positiva e o papel particular do grupo de escuta dentro dela.

Em nosso trabalho, elucidamos, integramos as contribuições do setor histórico-crítico mais pertinentes à compreensão da mensagem de Ap 13.

LEITURA EM CHAVE POLÍTICA DA FIGURA DAS DUAS BESTAS

Contexto de AP 13 O livro foi escrito possivelmente no tempo que Domiciano era im-

perador de Roma (81-96). O capítulo 13 é um olhar ao mundo concreto, já que no capítulo 12 “João olhou o mundo lá de cima, para o céu, para o passado e viu a vitória de Jesus sobre o Dragão. Agora ele mostra como a vitória no mundo de cima se manifesta no conflito entre o Império e as comunidades” (MESTERS, OROFINO, 2003, p. 259).

De um lado temos as assim chamadas duas bestas, sendo o papel da segunda mais importante, porque trata-se de toda ideologia que sustenta-va a primeira, Dominiciano; aqui nasce um sistema de controle, tendo o imperador como um deus vivo. Do outro, temos os cristãos, o grupo de escuta, perseguidos, mas sempre proclamando que o Ressuscitado conduz a história, o verdeiro Senhor do mundo. De fato, esse capítulo, uma ver-deira análise conjuntural, mas do que os outros capítulos quer responder à pergunta: quem é o Senhor da história?

A Figura da qhri,on em Chave Política

O profeta-vidente1 “une sua própria percepção da autoridade polí-tica dele contemporânea e a propaganda a seu serviço, com a expectativa

Page 3: HISTÓRIA E PROFECIA: A FIGURA DA BESTA EM AP 13,1-18*

FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 21, n. 1/3, p. 79-95, jan./mar. 2011. 81

tradicional do anticristo e falso profeta ambas convergem para apresentar-se como alternativa ao reino de Deus-Pai concretizado em Cristo” (SIMO-ENS, 2010, p. 161). Da mesma forma em que a reflexão tradicional so-bre o anticristo se desbobra em dois aspectos negativos complementários, messiânico e profético, assim também a figura da besta simboliza os dois níveis descontinuamente estruturados, ainda que entre si sejam comple-mentários: qhri,on e a;llo qhri,on.

A pergunta se existem no capítulo 13 duas bestas, ou somente uma, conduz a uma aporia que evidencia o equívoco na tentativa de explicação. Na realidade a antinomia não existe. O autor coordena simbolicamen-te duas facetas complementárias de uma mesma realidade. Mediante um idêntico símbolo teriomorfo com base na qhri,on, e o autor consegue não obstante metafórica e narrativamente cada faceta, subordinando inequivo-camente a propaganda ao poder político. De fato, o capítulo 13 é domi-nado pelas vicissitudes de dois monstros que se sucedem um após outro ao longo do mesmo raciocínio narrativo. Com sua linguagem simbólica, o au-tor nos apresenta duas fórmulas abrangentes de inteligibilidade teológica: “a primeira diz respeito ao Estado que se autodiviniza no seu imperador, a segunda, àqueles que o apóiam em todas as formas possíveis de propagan-da” (VANNI, 1984, p. 68; FERREIRA, 2009, p. 206).

Nessa lógica, na primeira figura a besta (vv. 1-8), se enfatiza o as-pecto tradicional do anticristo encarnado na instituição romana e em seu imperador. Na segunda besta (vv. 11-17), o vidente-profeta salienta para o grupo de ouvintes a expectativa tradicional do falso profeta associando-a à propaganda que pretende legitimar a autoridade e o exercício do poder político como um valor absoluto para a humanidade.

O autor “percebe a situação política de seu próprio tempo como deificadora do poder terreno e fechado ao transcendente” (CROCETTI, 2002, p. 175). Nesse sentido “é sintonizada com a reflexão apocalíptica, de raiz judaica, segundo a qual o poder aqui deificado é consedirado como a personificação por excelência do anticristo” (CULLMANN, 1956, p. 79). Tal poder, ainda que pretenda elevar-se por cima do teatro da história humana (vv. 1.11), permanece, contudo, por baixo de Deus. Manifesta-se como uma força poderosa em conexão com centros de poder político (chifres) dirigidos por pessoas concretas como cabeças responsáveis (v. 1). Contudo, sua potência não se pode comparar com a de Cristo e se en-contra limitada temporalmente (13,5b). O Estado com seus funcionários coroados de diademas, sinal do anti-reino, pertencem a uma etapa histó-rica, a pré-escatológica. Em força e intensidade, seu poder não alcansa a

Page 4: HISTÓRIA E PROFECIA: A FIGURA DA BESTA EM AP 13,1-18*

FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 21, n. 1/3, p. 79-95, jan./mar. 2011.82

plenitude do avrni,on (5,6) a quem pretende blasfemamente equipara-se (vv. 1b.5a.6).

À origem mesmo da estrutura de opressão política se radica o ma-ligno (2b; cf. 12,18). À diferença de Rm 13, o Apocalipse ressalta um aspecto negativo do poder político: “celui où l´Etat réclame ce qui est à Dieu, où on s´affranchit de l´ordre et devient une puissance satanique” (CULLMANN, 1956, p. 77).

A análise sobre o exercício do poder político em um primeiro qua-dro simbólico, se centra em torno do conceito de blasfêmia e do passivo teológico evdo,qh (vv. 5-7). A blasfêmia, segundo a teologia emergente dos versículos 1b.5a.6, consiste em colocar a estrutura política para desalojar a Deus do seu lugar transcendente que lhe corresponde como princípio absoluto da criação e guia absoluto da história. Qualquer intento de um poder ou sistema político que “se apresente como a realidade única e de-finitiva capaz de satisfazer a aspiração humana de absoluto, se dirige não somente contra a comunidade cristã (v. 7), como também diretamente contra o próprio Deus (v. 6)” (LÓPEZ, 1998, p. 255).

Nessa lógica, o sentido profundo do blasfemar, em chave de teologia política, característica de Ap 13, não reside tanto no ato de falar ofensivo contra a glória de Deus. Muito mais do que isso, deve-se ler como um in-tento, por parte de um poder político concreto, de usurpar as prerrogativas divinas sobre a história humana e a criação. “A blasfêmia (v. 1) se apresenta como uma ação contra Deus mesmo e contra sua esfera transcendente (v. 6)” ( BIGUZZI, 2005, p. 267). A base histórico-contemporânea da imagem evpi. ta.j kefala.j auvtou/ ovno,maÎtaÐ blasfhmi,aj (v. 1b) se encontram os diversos títulos imperiais, de natureza político-religiosa, entre os quais des-taca particularmente o de dominus ac deus2. Nesse sentido, por consequência lógica, o exercício mesmo do poder, assim concebido, resulta blasfemo (vv. 5a.6; cf. 1b) porque tenta transformar a ordem da criação e o sentido da história em benefício e para o culto da própria imagem (vv. 14-15).

O meio principal que utiliza é o da imitação por via negativa das ati-vidades típicas do Reino de Cristo: celebração do imperador como salva-dor e da organização estatal como veículo de libertação. Tal implicação não é evidente. Ela faz parte do engano com que o poder se disfarça o[moia avrni,w| [v. 11]). Mediante o uso particular do vocábulo qro,noj, símbolo de poder e domínio, o autor apresenta no v. 2b uma sedutora alternativa à entronização do Cordeiro (5,6ss). O Estado se apresenta como salvador onipotetne, eterno (v. 3a), capaz de chegar as aspirações mais profundas do ser humano: Quem é como ele ? (13,4).

Page 5: HISTÓRIA E PROFECIA: A FIGURA DA BESTA EM AP 13,1-18*

FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 21, n. 1/3, p. 79-95, jan./mar. 2011. 83

O esquema bíblico de inteligibilidade em chave política se espe-cifica, portanto, ainda mais. Em virtude da associação implícita entre os termos (basileia) e (exousia), toda potência desenvolvida pelo poder polí-tico idólatra com relação aos seu súditos, tende a realizar no concreto da história um reino alternativo ao de Cristo, de raíz demoníaca, enquanto totalizante e meramente terreno. O dito poder, com a energia vital alter-nativa, recebida do maligno, tenta assemelhar-se em sua inserção histórica ao Cordeiro, precisamente em seu rasgo fundamental de morto e res-suscitado (v. 3a). “Os indícios histórico-contemporâneos sobre este risco individualizante (13,12.14) apontam com probabilidade, à morte de Nero e a lenda de seu retorno” (MESTERS, OROFINO, 2003, p. 260). No fundo está latente a ameaça perene do poder político opressor, a suceder-se assim mesmo pretendendo imitar a eternidade de Deus. Visto nesse sentido, tal poder subjuga a humanidade induzindo-a progressivamente a um culto explecíto idolátrico (vv. 3b-4): “é a força invensível da besta que manifesta o seu caráter divino levando os homens a prestar-lhe um culto” (PRIGENT, 1993, p. 240). A potência universal (13,7b) do poder políti-co, vem, contudo, modificada por dois importantes fatores: em primeiro lugar se encontra debaixo de Deus (evdo,qh) e segundo, sua capacidade para atuar se reduz a um tempo limitado (v. 5a).

Portanto, o vidente-profeta insiste de forma martelante na forma deformada seja da potência como da autoridade (v. 5), se bem que com uma aparência e influência espacial universal (v. 7b)3, se encontra debaixo de Deus (evdo,qh auvtw/|) e radicalmente limitada no tempo. Tal é o sen-tido teológico do simbolismo numérico em categorias de tempo: quarenta e dois meses (v. 5b). Deus permite o mal uso do poder, ainda que não o favoreça. É consequência da liberdade concedida à criatura. Sendo assim, a epifania do mal nas estruturas de poder humano temporal, ainda perma-nece ao desenvolvimento do mistério de Deus na história (10,7; 17,7ss), debaixo de seu poder e, por isso, não tem futuro (19,20).

Foi o próprio Deus a dar poder ao Estado sobre todas tribus e povo e lingua e nação (v. 7b). “O sentido legítimo de uma autonomia na insti-tuição política se encontra insinuado em Rm 13” (RAVASI, 2000 p. 98). O problema começa quando o Estado pretende ir além da ordem legítima do criado, estabelecendo uma ordem alternativa e totalitária fechando em si mesmo.

Sempre que um Estado desdobra suas próprias fronteiras humanas e quer mostrar-se a razão de si mesmo, exigindo aquilo que não pode con-cesder-se em consciência, está ocupando o lugar de Jesus Cristo. “O Estado

Page 6: HISTÓRIA E PROFECIA: A FIGURA DA BESTA EM AP 13,1-18*

FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 21, n. 1/3, p. 79-95, jan./mar. 2011.84

se sente salvador, e é Besta que destrói; se aparenta de verdade, mas não é outra coisa que a mentira que engana” (PIKAZA, 1971, p. 570).

A liberdade legítima concedida ao ser humano como imagem de Deus (Gn 1-3) para associar-se em formas plurais de organização política, pode corromper-se mediante a criação de estruturas fechadas e injustas. Aqui reside sua pervenção, ou seja, tal estruturação pode chegar ao extre-mo de forçar uma perseguição com violência física contra quem a desafia. Na memória do profeta estão as atrocidades de Nero e a percepção de uma crise similar para um futuro próximo. No entanto, o momento exato de atuar toda a potencialidade monstruosa do poder político (vv. 5.7) não é precisado. Nesse ponto se nota a função ativa da comunidade eclesial: “o grupo que escuta deve discenir e ativar a mensagem na história” (VANNI, 2009, p. 20).

O poder político que deseja usurpar com maior eficácia possível algumas prerrogativas divinas (v. 6), sobretudo com relação ao culto (v. 8), se vale da propaganda nos seus vários níveis operacionais, sempre a seu serviço (13,12.14-17). A nova estrutura simbólica assim concebida do a;llo qhri,on (13,11-17), subordinada à anterior, inspirada na reflexão tradicio-nal apocalíptica sobre as implicações proféticas do anticristo (cf. Mt 7,15). O Estado impõe seu próprio profeta falso que tem a função de deturpar a eficácia da Palavra de Deus em Cristo (vv. 11-12), convertendo-a em um outro (a;llo) poder negativo. Para tanto, não exclue a magia, nas suas diversas formas, como instrumento útil para uma nova cosmovisão (v. 13).

O objetivo primordial da propaganda a serviço de um Estado idóla-trizado, consiste na modificação das pessoas e de suas estruturas. Tal ação tende a fazer uma nova criação e novo reino antitéticos ao do Cordeiro paa ser celebrados mediante um culto de adoração (proskunh,swsin) diante (evnw,pion) ao próprio Estado idolátrico. Como consequência, o especí-fico de sua atividade (poie,w)4, se refere ao escopo de legitimar o sistema político totalitário e a sua cabeça como uma opção viável distina de Cristo. Os agentes da propaganda a serviço do pseudo-reino tendem a substituir aos profetas cristãos (vv. 13-15).

O falso profeta fabrica uma imagem atraente do Estado aprese-nando-o como único salvador diante de uma humanidade com aspira-ções concretas de bem-estar econômico e estabilidade política. Com tal objetivo atua, tanto por meio das palavras enganosas (v. 11) como pelos sinais e atividades portentosas de diversa índole (v. 13). Desta forma faz do poder político um objeto de adoração para a humanidade (v. 12b). A propaganda, vista em si mesma como um outro poder (a;llo qhri,on)

Page 7: HISTÓRIA E PROFECIA: A FIGURA DA BESTA EM AP 13,1-18*

FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 21, n. 1/3, p. 79-95, jan./mar. 2011. 85

organiza as atividades do pseudo-reino e concretiza sua realização a todos os habitantes da terra (v. 15). No coração do atuar (poie,w), se encontra tipicamente um enganar (plana,w [v. 14]), que conduz por uma via errada (pseudo-êxodo) aos habitantes da terra. Através do engano, já presente no disfarce de ressurreição (vv. 3a.14-15), obtido por seus sedutores (v. 13), a propaganda servil organiza aos katabai,nein eivj th.n gh/n na construção de uma imagem (eivkw,n) diante de toda moral, feita à própria semelhan-ça: somente humana.

Adorar tal eivkw,n, mais que adorar um ídolo material, representa adora o poder e o dinheiro a qualquer custo (vv. 15-17). Os habitantes da terra valoram, antes de tudo, os benefícios materiais econômicos e sociais que derivam do aceitar como único senhor ao poder político humano (vv. 15-17). A propaganda ajuda a manufaturar (poie,w) tal imagem moral deformada que cobra alento (pneuma) por meio do culto à personalidade do governante e à instituição que ele representa. A eivkw,n representa uma criação (Dn Θ 3,1-13) porque se adora uma imagem tangível e se nega a Deus e ao seu Mediador. Com a reconstrução da eivkw,n, “os habitantes da terra não pretendem substituir ao império divinizado por outro deus; se trata do mesmo deus que imita o Ressuscitado (vv. 12.14)” (VANNI, 2008, p. 306). Nesse sentido, o escopo é cultuar o poder imperial na sua manifestação concreta, visível em uma cabeça: o imperador. A necessidade de adorar um Ser Supremo, exigência mesmo do ser a;nqrwpoj, se converte em uma adoração do Estado erroneamente visto como absoluto e tangivel-mente representado pela figura do imperador.

Do exercício de tal tipo de idolatria surge uma desumanização progressiva sobre a que se assenta também na cidade consumista (17,1ss). A estruturação injusta das relações econômicas e comerciais (18,19b.24), o enriquecimento ilícito pelo preço de vidas humanas (18,13) tem aqui sua origem. Na imagem concreta do poder político divinizado encontram-se eco as inspirações de igualdade, justiça social, realização econômica e cul-tural dos habitantes da terra que se convertem assim em propriedade do anticristo (vv. 16-17).

Em sua faceta econômica (vv. 15-17), o Estado idolatrizado desde seu pedestal impõe o dinheiro como um deus que conduz a todos, grande e pequenos [...] até a cidade consumista sanguinária (17,6). As moedas le-vam a efígie do imperador e somente aqueles que pertecem ao monopólio da riqueza estabelecida e estão dispostos a adorá-la podem beneficiar-se de seu comércio. Trata-se de um culto universal aos valores do pseudoreino com características que se repetem na história.

Page 8: HISTÓRIA E PROFECIA: A FIGURA DA BESTA EM AP 13,1-18*

FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 21, n. 1/3, p. 79-95, jan./mar. 2011.86

De fato, a dinâmica geral do falso reino desemboca não na Jerusa-lém celestial (capítulos 21-22) mas na Babilônia (capítulos 17-18); como tal não tem futuro (18,2). Por outro lado, a tentação de ceder a pressão afe-ta a todo ser humano de qualquer categoria étnica ou social (vv. 7b.16-17). Nesse sentido, também o cristão não está isento, podendo até equivocar-se na análise de sua própria realidade sócio-política. A perplexa admiração da humanidade inteira (13,3b) diante de determinados sucessos com reper-cução política (v. 3a), é o primeiro efeito do engano que leva-o a prestar culto ao poder. “O grupo de escuta da comunidade eclesial precisa rece-ber consolo e ânimo por parte do vidente-profeta que possibilitam dis-cernir corretamente (13,9-10.18)” (VANNI, 2009, p. 136). Por isso, que o autor reclama especial atenção à raiz da qual se origina a reação negativa do ser humano frente ao Estado: evqauma,sqh (v. 3b).

O exercício absoluto do poder político, visto teologicamente, tem elementos de uma anti-revelação, ou seja, manifesta-se com magnitude visível shmei/a mega,la [v. 13; cf. 17,4]), mediante instrumentos ao serviço do Estado divinizado (anticristo). Tais feitos se interpretam como liberta-dores mediante a palavra profética falsa (evla,lei [v. 11]; le,gwn [v. 14]). Em si, os sinais parecem confirmar não tanto a divindade do poder político e muito menos uma indicação de proteção por parte de Deus que os per-mite. Contudo, o tempo concedido à besta é limitado (v. 5b). Carece de vida plena que concede Cristo morto e ressuscitado (v. 8b).

O esquema de inteligibilidade simbólica que o profeta emprega, alcansa uma extensão universal e pode aplicar-se a todos os estados, in-dependente de sua forma de organização política ou sistema de governo, enquanto dure a história humana. Mas ainda: é aplicável a qualquer rami-ficação de poder, seja ele executivo, legislativo ou judiciário. Isso aconte-ce sobretudo quando um poder político, seja ele qual for, tenta erguer-se como árbitro da conciência individual ou coletiva, desviando-se da verda-de e da justiça (13,14) aprovando ou impondo valores em proveito pró-prio, olvidando a ordem da criação divina e da sujeição do ser humano a Deus (v. 6). Toda propaganda orquestrada a seu favor engana, ainda que se apresente inofensiva como Cordeiro (13,11).

A polivalência do símbolo qhri,on, aberto a situações em mudanças, incide na realidade global de nossa contemporaneidade. Pode-se apresentar como uma eivkw,n que fala (v. 5) com o apoio eficaz de potentes meios audiovisuais de comunicação social. Na época em que, almenos aparente-mente, os governos totalitários diminuem e se valoriza a democracia, fica sempre a interrogação sobre o papel da propaganda em deformar a coerên-

Page 9: HISTÓRIA E PROFECIA: A FIGURA DA BESTA EM AP 13,1-18*

FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 21, n. 1/3, p. 79-95, jan./mar. 2011. 87

cia de uma maioria numérica de votantes, sobretudo, com relação a temas que afetam a condição humana como criatura de Deus.

O Falso Reino e os seus Valores

Como reagiram os homens diante do poder, teologicamente asim delineado, com suas manifestações extraordinárias na vida cultural, social, religiosa e política? Foram duas as repostas dialeticamente opostas: uma negativa, de idolatria e submissa conformação ao poder anti-reino (vv. 3b-4.8a) e outra positiva, de resistência não violenta ativa na comunidade cristã (vv. 7a.8b; vv. 10.15.17).

O ser humano, ainda que fortemente influenciado pelo sistema po-lítico materialista, permanece, não obstante, livre na sua capacidade de eleger entre servir os valores do sistema terrestre, construindo a própria casa fechada ao transcendente, ou de optar pelo reino de Deus e de Cristo à maneira dos santos (a;gioi). Cada um se torna, portanto, responsável pela sua própria eleição pessoal (3,5; 11,13; 13,10.14-17). Da dita decisão depende a permanência ou não à vida verdadeira que doa Cristo com sua morte e ressurreição (v. 8). Tal energia vivificante dá ao ser humano a pos-sibilidade de associar-se a um destino de vida plena e duradoura, segundo a imagem do registro no livro da vida (v. 8). Nessa lógica tanto pode o cristão perder a batalha escatológica (3,5) como também o habitante da terra converter-se à vida definitiva (11,13). Sendo assim, não há lugar para o fatalismo determinista.

A peculiar concetração da expressão teológica oi` katoikou/ntej evpi. th/j gh/j com preferência à oi` a;nqrwpoi em Ap 13,8.12.14[bis]; cf. 17,2.8 indica a intenção do autor em apresentar nesta perícope toda a reação negativa da humanidade e sua colaboração com o pseudoreino (vv. 14ss): “E engana os que habitam na terra com sinais que lhe foi permitido que fizesse em presença da besta, dizendo aos que habitam na terra que fizessem uma imagem à besta que recebera a ferida da espada e vivia”.

Em Ap 13,14ss se orquestra uma particular teologia da imagem. A idolatria dos habitantes da terra não reside simplesmente em mudar o culto ao poder de colocar um objeto de manufatura própria, mas consiste em reconhecer no eivkw,n, uma du,namij divina dentro da realidade figu-rada: o Estado e o seu governo. Este se multiplica e quer ser onipresente e ainda eterno, como se fosse Deus. De fato, “o sistema se reproduz; é mais forte que os seus funcionários. Depois da morte de Nero, surgiu a lenda:

Page 10: HISTÓRIA E PROFECIA: A FIGURA DA BESTA EM AP 13,1-18*

FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 21, n. 1/3, p. 79-95, jan./mar. 2011.88

Nero vai voltar. Na época de Domiciano, o povo dizia: Ele é Nero que voltou a viver!” (MESTERS, OROFINO, 2003, p. 260). Tudo isso graças ao culto à própria imagem e a palavra eficazmente difundida pela propa-ganda, seja esta governamental ou privada.

O homem, aberto à transcendência divina, ao ponto de ter sido criado à imagem de Deus (Gn 1,27) fica reduzido como propriedade pes-soal da besta (ca,ragma [13,16; 14,9; 20,4]) para adorar somente sua pró-pria imagem em si mesma limitada (cf. 13,15). A humanidade expressa um sentido religioso de admiração (v. 3b) e de dependência (vv. 4.8.12) até a grande força política que rege o mundo (v. 7) e também a sociedade local (vv. 14-17), rendendo-a adoração como criadora e salvadora.

Os que pertencem ao falso reino materialista, desfrutam de grandes vantagens econômicas e comerciais fruto da injustiça em que se desevol-vem tais relações (13,16-17). O sistema fechado ao qual pertencem os katoikou/ntej evpi. th/j gh/j, marcados pessoalmente (testa) e operacio-nalmente na (mão) funciona somente em sentido horizontal. Encontra-mos uma ulterior especificação do papel que desempenham os habitantes da terra em associar-se com h/ po,rnh h/ mega,lh (17,2). A prostituta se encontra à margem do oceano. Em 17,15 explica as águas como povos e gentes […] e nações e linguas. Inferior à imagem do embriagar-se, ligada à metáfora do vinho como conduta sexual imprópria (17,2), se enlaça a atividade dos habitantes da terra com as obras da cidade prostituta, Babilônia. Tal atitude supõe sempre mais identificar-se com a natureza e funcionalidade blasfemante da besta à qual ativamente servem, tanto a po,rnh, que monta sobre a besta, como os próprios katoikou/ntej submis-sos ao seu influxo. Fechados à salvação do Cordeiro, não se convertem; ao contrário, caem sob o juízo negativo de Deus e sofrem as pragas. Já os a;gioi que optam pelo Reino de Deus, mesmo encontrando-se também na fase pré-escatológica, não caem sob a ameaça de castigo e participam, des-de agora, da vida definitiva (13,8). De fato, os a;gioi “deverão denunciar e opor-se em cada situação que propaga formas de opressão” (VANNI, 2009, p. 20).

Nessa lógica, a verdeira distinção entre um ser humano e outro não seria pertencer a uma estratificação social ou racial determinada. A dife-rença radical entre um grupo humano e outro reside no tipo de resposta diante do projeto de vida organizado segundo os valores do reino de Deus ou de um falso reino que leva à idolatria. O instigador principal (v. 2b) tende a permanecer na anonimidade. Um objetivo principal do impera-tivo hermenêutico (vv. 9-10.18) consiste precisamente em desmascarar o

Page 11: HISTÓRIA E PROFECIA: A FIGURA DA BESTA EM AP 13,1-18*

FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 21, n. 1/3, p. 79-95, jan./mar. 2011. 89

engano, em aprofundar nas causas da pervenção do poder político. Nesse sentido, portanto, “o livro do Apocalipse é uma livro ainda a ser escrito, feito e refeito” (SIMOENS, 2010, p. 169).

O autor percebe que através de humilhações esporádicas também se manifesta a confrontação entre duas visões do mundo radicalmente incompatíveis. Uma considera como único absoluto e em primeiro lugar a Deus antes de qualquer estrutura política de organização humana; a outra se apoia na estrutura sócio-política e nas suas convicções religiosas alternativas ampliamente difundidas por meios poderosos da propaganda. Nesse sentido, há uma cumplicidade objetiva entre o poder exercido como absoluto e a aprovação (13,17ss). Em uma época de angústia vital e de desorientação, a humanidade busca desesperadamente apoio nas instuições do Estado e nos seus líderes. Querem e buscam deuses concretos, imagens de suas próprias aspirações com frequência somente sócio-econômicas, que entrem em suas próprias casas por qualquer meio de propaganda: “les dieux sont loin, disent-ils à l´Empereur, ou ils ne s´occupent pas de nous, mais toi tu es un Seigneur vivant” (CERFAUX; CAMBIER, 1955, p. 117).

Os Santos e o Testemunho do Grupo de Escuta por Causa do Reino

Descrita com singular acabamento em Ap 13, a comunidade cristã tem claro as suas duas dimensões fundamentais: como meta alcançada e como caminho ainda por fazer, é a dialética do já e ainda não.

A expressão simbólica th.n skhnh.n auvtou/ (v. 6) representa a co-munidade, em sua faceta de realização escatológica. A comunidade eclesial sabe que já coabita com Deus em uma situação de vida plena e eterna, adquirida pela ressurreição de Cristo (v. 8). Em um outro plano simbólico, o pré-escatológico, a comunidade cristã está inserida na história (v. 7a) e tem a missão constante de realizar a obra como oi` a;gioi, enfrentando o poder político epocal.

A apresentação teológica da comunidade cristã com relação ao po-der político mal exercido, se realiza em um duplo nível espaço-temporal mediante a englobante estrutura simbólico-cosmológica céu-terra. Assim, o autor assinala a diversidade existente entre um nível já alcançado, pró-prio da zona divina (v. 6), e outro contingente de luta, no já e ainda não da história humana (gh/). A descendência da mulher (cf. 12,1.2), isto é, quem se adere ao reino de Deus e de Cristo, chamados em Ap 13 oi` a;gioi que, aliás, enfretam a ameaça de perseguição, ainda de morte, claramente

Page 12: HISTÓRIA E PROFECIA: A FIGURA DA BESTA EM AP 13,1-18*

FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 21, n. 1/3, p. 79-95, jan./mar. 2011.90

apresentada como de índole sócio-política (vv. 7.10.15-17.18). Porém, ad-quiriram já o triunfo se permanecerem fiéis (vv. 8b.10c).

A morte dos cristãos, a espada (v. 10) se associa com a imagem do Cordeiro degolado. Tanto nos sinóticos como no Evangelho de João, reportam à morte histórica de Cristo na cruz (Mc 15,33ss; Jo 19,28-30). No Apocalipse a morte dos cristãos fiéis e perseverantes, como o Cristo Cordeiro, é representada pela espada (6,9; 18,24; cf. 5,6.9.12; 13,8). Dá-se, portanto, uma criativa transformação do dado histórico da crucificação. No Apocalipse esse dado é interpretado teologicamente em Ap 5,6ss como suplício pela espada, mas de acordo com a imagem do êxodo: cordeiro. Tal interpretação teológica, mostra a particular inserção que tem o testemunho da vida dos cristãos, historicamente ameaçados pela espada (13,10; cf. 6,9; 18,24), dentro da morte salvífica de Cristo.

A teologia do martírio ao atravessar Ap 13, reveste de sentido transcendente a atitude cristã de resistência ativa não violenta frente ao poder político desnaturalizado. Mesmo que os termos ma,rtuj (1,5; 2,13; 3,14; 17,6), marturi,a (1,9; 6,9; 11,3.7; 12,11.17; 19,10 [bis]; 20,4), martu,rion (15,5) e marture,w (1,2; 22,16.18.20) não aparecem neste capítulo, mas, por outro lado, temos a virtude da perseverança (u`pomonh. [v. 10), característica da comunidade cristã, adquire um valor semelhante já que se encontra em um contexto de batalha contra a discriminação e perseguição por parte do poder político em si mesmo divinizado (vv. 7.15-17). Os cristãos, ao oferecer sua vida com fé na participação da vida de Jesus, testemunham e anunciam o advento do reino escatológico.

O grupo de escuta (v. 9) aparece descrito com singular relevo teoló-gico, enquanto que exerce uma atividade sapiencial em ambiente litúrgico. Pertencentes à comunidade dos santos, aplicam os sentidos do ver (vv. 1.2a.11) e do ouvir (v. 9), para decodificar o símbolo para optar continu-amente pelos valores do reino. Em breve, os ouvintes exercitam a capaci-dade de decifrar e discernir para, à luz do Espírito, encontrar a resposta adequada à situação política de seu próprio tempo.

O autor está oferencendo, portanto, ao grupo de ouvinte com pis-tas indicativas para poder individuar, no próprio horizonte histórico, as categorias que correspondem ao poder político absoluto. Nem todas elas deverão realizar-se com necessidade simultaneamente no espaço-temporal contemporâneo ao grugo que descifra. Porém, os ouvintes devem conhe-cer, já agora, o perigo real que uma perverção de tal exercício é sempre às portas. Mediante esta atividade de discernimento (sofi,a), realizado de

Page 13: HISTÓRIA E PROFECIA: A FIGURA DA BESTA EM AP 13,1-18*

FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 21, n. 1/3, p. 79-95, jan./mar. 2011. 91

modo pleno na liturgia, o grupo eclesial se situa na perspectiva histórico-profética própria do autor do Apocalipse.

A mensagem do Apocalipse 13, justamente por isso, não tem por objeto vaticinar com exatidão um fato e sim apresentar um esquema teo-lógico-político de interpretação da dita situação para aplicar quando esta ocorrerá. Ao confirmar a onipotência de Deus e sua presença em Cristo ressuscitado, o profeta-vidente questiona, fortemente, a sempre viva e sutil tentação de perplexidade diante do aparente poder do falso-reino (v. 3b) e põe em crise os falsos valores de quem sob estes estão tranquilos. Ao exortar com veemência (vv. 9-10) a resistir na fé e constância, o profeta pede que seja rechaçado a concepção de vida difundida pela maioria dos seus contemporâneos. De fato, desta forma sacode uma opinião pública, submetida totalmente à propaganda do império, ainda que tenha ar de pensamento e proceder autóctones. Ao fazê-lo João comove e remove os fundamentos mais profundos de um poder político que pretende adoração e mostra a via dos valores do reino de Deus em Cristo.

Tal mensagem requer uma comunidade cristã atenta a descobrir a profecia e acolhê-la com fé de Jesus (13,10c; cf. 14,12). A mensagem profética se encontra enraizada na experiência contemporânea ao autor, porém tende na sua complexa estruturação simbólica a superar os eventos de origem abrindo-se a todos os tempos. Como esquema de inteligibilida-de, a figura da besta transcende o ponto de partida histórico e oferece ao grupo de escuta um princípio de discernimento e de ação sapienciais, na fidelidade à lei nova do reino de Deus em Cristo, diante do próprio Nero e diante do próprio império.

O grupo de escuta, em união com a igreja universal (a totalidade de oi` a;gioi da qual forma parte integrante), descobre hoje que a situação da comunidade contemporâneo de João, longe de ser única e irrepetível, se perpetua ao interno de diversos sistemas políticos ao longo da história.

Quando o poder político tenta constituir-se por sua força ao livre arbítrio da razão humana, fechando-se aos valores transcendentais, quando exige uma adesão de consciência que só pode conceder-se a Deus, quan-do fabrica sua própria aparente verdade mediante a propaganda enganosa, “então a comunidade cristã tem a responsabilidade de traçar batalha com os meios utilizados por Cristo, na fidelidade e constância à nova lei em acordo com a opção pelo reino de Deus, sem economizar esforços nem titubear pelas dificuldades que dita postura faz saltar” (VANNI, 2008, p. 306). Tal ação tem um valor de sinal profético particularmente evange-lizador e missionário. Mostra à humanidade a única via da salvação, de

Page 14: HISTÓRIA E PROFECIA: A FIGURA DA BESTA EM AP 13,1-18*

entrada ao reino de Deus e de vida definitiva, via que nenhum sistema terrestre pode, por si mesmo, em absoluto oferecer. É uma provocaçao e um convite à conversão.

CONCLUSÃO Queremos salientar aqui os pontos mais relevantes, seja as contri-

buições gerais, seja, sobretudo, as indicações literárias e exegéticas, para assim concluir nossa reflexão teológica sobre a figura da besta em Ap 13.

Nosso estudo se afastou radicalmente de qualquer interpretação fundamentalista do texto. Esta tendência sempre recorrente na história e latente em nosso tempo (de LUBAC, 1981, p. 19-25). O horizonte do leitor ou grupo de escuta é o escatológico, porém o ponto de observação se encontra radicado na história pré-escatológica (Ap 13). O autor urge ao grupo de escuta nos capítulos 17-18 a lançar um olhar, com um par de binóculos, à vitória final de Cristo. A visão aproxima o horizonte escatológico somente como imagem virtual telescópica. Tem como escopo animar ao compromisso atual. Todavia, tanto as visões de juízo e condenação para a besta e para Babilônia, assim como as de triunfo para o Cordeiro e para a nova Jerusalém, não necessariamente colocam desde agora ao grupo que discerne realmente o final da história. Aqui são oferecidas, portanto, uma perspectiva mais clara sobre a meta a qual os acontecimentos são dirigidos (13,8b).

O autor oferece ao grupo que decifra uma visão do império romano com seu imperador, assim como das reações contrapostas que tal sistema político suscita. Tal quadro as torna compreensíveis porque provém de uma tradição profética veterotestamentário bem enraizada na história. Nesse sentido, os instrumentos disponíveis ao historiador atual para reconstruir em detalhe os fatos são limitados. As contribuições parciais do método his-tórico-crítico iluminam a incidência histórica à origem mesmo do esquema de inteligibilidade teológico de Ap 13, porém não esgotam seu significado. De modo particular temos os símbolos que o autor não se cansa de usá-los.

A decodificação do símbolo, em suas várias dimensões, forma par-te do processo hermenêutico ao qual o próprio autor do Apocalipse com duplo movimento convida ao interior do capítulo (vv. 9-10.18). A criati-vidade simbólico-literária que João mostra, supera qualquer dependência formal do dado meramente tradicional. As correspondências assinaladas, particularmente com o livro de Daniel, demonstram a original transforma-ção da linguagem profético realizada pelo vidente.

Page 15: HISTÓRIA E PROFECIA: A FIGURA DA BESTA EM AP 13,1-18*

FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 21, n. 1/3, p. 79-95, jan./mar. 2011. 93

A sequência crise-juízo-salvação, “característica propiamente esca-tológica invariável dos apocalipses de tipo histórico” (COLLINS, 2010, p. 56), se reflete na visão de Ap 13,1-18. Os versículos 7.10.14-17 dese-nham com particular plenitude uma situação de crise na comunidade com relação ao poder político. O elemento de juízo se encontra sugerido pelo tempo limitado que Deus perminte atuar o poder idolátrico com sua pro-paganda incorporada (v. 5b). A contingência inerente ao ídolo contrasta com a plenitude de vida definitiva oferecida por Cristo (v. 8). Por outro lado, o evento pascal da morte e ressurreição de Cristo (5,6ss), centro da proclamação cristã, representa um juízo de salvação não somente para os mártires (6,9), mas também para todos os santos, oi` a;gioi (13,7), da qual parte o grupo de escuta (13,10c). Tal elemento de salvação indiretamente se afirma em 13,8b com a menção do registro no livro da vida do Cordeiro degolado. A realidade, assim ajuizada, anima ao compromisso, frente a uma crise e conflito de valores com o poder sócio-político (13,7.10). O juízo de salvação para a comunidade cristã ajuda a vida definitiva me-diante a participação na ressurreição de Cristo.

A metodologia que o mesmo texto unitário aqui examinado com a dupla proposta do imperativo hemenêutico (13,9-10.18), a saber, decodi-ficação do símbolo e aplicação para a vida concreta, sugere um modelo de leitura para todo o livro. Chamado pela primeira vez na obra, de modo explícito, a aplicar a inteligência que há sabedoria, o leitor ou grupo de escuta (v. 9) é convidado a descifrar as diversas dimensões do símbolo es-truturado narrativamente como uma reportagem da visão. Ao fazê-lo entra no mistério do plano que Deus desenvolve na história, oposto às forças do pseudo-reino (cf. 17,7). Desta maneira se situa entre história concreta, confrontada com a contemporânea de João, e a profecia revelada pela vi-são. Tal profecia exige, para qualquer circunstância, um testemunho firme pelo reino incluíndo até a possibilidade real do martírio. Esse testemunho visível representa um convite à conversão para toda a humanidade.

A narração de Ap 13,1-8.11-17 não argumenta à maneira de um discurso, mas tem uma forma sui generis de persuadir. O escopo é confir-mar ou modificar a conduta do grupo cristão destinatário que, aliás, é uma característica comum a toda a literatura apocalíptica. Todavia, a forma de manifestá-lo, mediante a dupla apelação explícita a descifrar o símbolo e a discernir na própria situação (13,9-10.18), resulta especialmente clara e paradigmática nas entrelinhas de toda perícope.

Com esta leitura-escuta literária, tentamos apurar uma melhor compreensão de Ap 13. A unidade do capítulo, não obstante sua estrutura

Page 16: HISTÓRIA E PROFECIA: A FIGURA DA BESTA EM AP 13,1-18*

FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 21, n. 1/3, p. 79-95, jan./mar. 2011.94

díptica, se funda no singular acabamento literário e simbólico com o qual seu autor apresenta o quadro total da besta. Esse quadro, como esquema de inteligibilidade teológico-político, inclue dados inequívocos para uma correta interpretação e consequente aplicação na vida. Particularmente a dupla exortação ao grupo crente, dá a chave para acolher de coração a mensagem em si exigente do profeta, mas também que anima colocá-la em prática. De fato, a mensagem estimula a assembleia uma confrontação com a própria realidade social e atuar de forma concreta.

HISTORY AND PROPHECY: THE FIGURE OF THE BEAST IN AP 13.1-18

Abstract: the present study tries to display the Revelation author’s perception on his own time political system and the thinking on the christian behaving way. This study takes into consideration the particular unity of Rev 13 as well as the symbolic character of the narration. Thus, it values the christian listening group’s protagonistic role, paying attention to the message deciphering which can be applied to one’s own life. We will discuss, therefore, the prevalent elements of the text’s exegese, meaning: the understanding of the beast’s char-acter through a political perspective, the false kingdom’s formation through all the false values generated by its activity and influence as well as the positive community’s reaction and the particular role of the listening group inside the same community.

Keywords: Group. Uprising. Resistence. Listening. Enduring. Praxis.

Notas

1 A apocalíptica nos faz ler a história, a profecia nos ativa, nos prepara, nos faz ler dentro da história de maneira aberta (VANNI, 2009, p. 12).

2 No Evangelho de João, por exemplo, Tomé adere a Jesus mediante a exclama-ção cristológica: o ku,rio,j mou kai. o qeo,j mou (20,28).

3 A realeza de sinal negativo, insinuada pelas dez diademas sobre as sete cabe-ças da besta (v. 1), adquire no v. 7b um sinal definido de universalidade.

4 Esse verbo geralmente traduzido como agir (TEB e Jerusalém) o torna in-transitivo e não explica o complemento que segue o acusativo. Literalmen-te, se trata, portanto, de saber que há uma capacidade de fazer, no limite de um tempo, um tempo que dura quarenta e dois meses (SIMOENS, 2010, p. 162).

Page 17: HISTÓRIA E PROFECIA: A FIGURA DA BESTA EM AP 13,1-18*

FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 21, n. 1/3, p. 79-95, jan./mar. 2011. 95

Referências

A BÍBLIA de Jerusalém. Tradução portuguesa. São Paulo: Paulinas, 1980.A BÍBLIA Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. Edição Revista eCorrigida. Brasília: Sociedade Bíblica do Brasil, 1969.A BÍBLIA Sagrada - Edição Pastoral. São Paulo: Paulinas, 1989.BIGUZZI, G. Apocalisse: nuova versione, introduzione e commento. Milano: Paoline, 2005.CERFAUX, L. CAMBIER, J. L´Apocalypse de Saint Jean lue aux chrétiens. Paris: LeDiv 17, 1955.COLLINS, J. J. A imaginação apocalíptica: Uma introdução à literatura apocalíp-tica judaica. Tradução de João Rezende. São Paulo: Paulus, 2010.CROCETTI, G. L´Apocalisse meditata e pregata. Bologna: EDB, 2002. (Coleção Bibbia e Spiritualità, 20).CULLMANN, O. L´Etat dans l´Apocalypse johannique. In: _____. Dieu et Ce-sar. Neuchatel, 1956. p. 77-90.FERREIRA, Joel Antonio. Apocalipse. In:_____. Paulo, Jesus e os marginalizados: leitura conflitual do Novo Testamento. Goiânia: Ed. da UCG; América, 2009. p. 205-223de LUBAC, H. La Posterità Spirituale di Gioacchino di Fiore,I, Dagli Spirituali a Schelling. Milano: Jaca Book, 1981. p. 19-25. (Coleção Già e non ancora: Opera omnia 27).LÓPEZ, J. La figura de la bestia entre historia y profecía: investigación teológico-bíblica de Apocalipsis 13,1-18. Ed. da Pontificia Università Roma: Gregoriana, 1998. MESTERS, C. OROFINO, F. Apocalipse de São João: A teimosia da fé dos peque-nos. Petropólis: Vozes, 2003.PRIGENT, P. O Apocalipse. Tradução de Luiz João Baraúna. São Paulo: Loyola, 2002. (Coleção Bíblica Loyola 8).RAVASI, G. Ritratti di Chiese. Milano: Ancora, 2000. (Coleção Le Àncore).SIMOENS, Y. Apocalisse di Giovanni – Apocalisse di Gesù Cristo. Bologna: EDB, 2010.VANNI, U. Apocalipse. Tradução de Pier L. Cabra. São Paulo: Paulinas, 1984.VANNI, U. L´uomo dell´Apocalisse. Roma: AdP, 2008.VANNI, U. Apocalisse, libro della Rivelazione: esegesi biblico-teologica e implica-zioni pastorali. Bologna: EDB, 2009.

* Recebido em: 21.11.2010. Aprovado em: 13.12.2010.

Page 18: HISTÓRIA E PROFECIA: A FIGURA DA BESTA EM AP 13,1-18*

** Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana (Roma). Graduado em Filosofia e Teologia. Professor de Exegese no Instituto Santa Cruz.