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Homo Religiosus e Habitação http://cyberself-cyberphilosophy.blogspot.com/2008/10/homo-religiosus- e-habitao.html «Entre os indígenas, nunca o lugar sagrado se apresenta isoladamente ao espírito. Ele faz parte de um complexo em que entram também as espécies vegetais ou animais que aí abundam em certas estações, os heróis míticos que aí viveram, vaguearam, criaram e frequentemente foram incorporados no solo, as cerimónias que aí se celebraram periodicamente e, enfim, as emoções suscitadas por este conjunto». (Lucien Lévy-Bruhl) A filosofia do habitar confronta-se com diversos inimigos, dos quais destacaremos: o inimigo histórico, o inimigo político e o inimigo sociológico. Inimigo Histórico. Todas as teorias da modernização afirmam que a modernidade conduziu invariavelmente à secularização: as instituições religiosas perderam influência sobre a sociedade e a interpretação religiosa do mundo perdeu credibilidade na formação da consciência das pessoas. Estas duas dimensões da secularização não podem ser abordadas separadamente: no seu aspecto objectivo, sócio-estrutural, a secularização manifesta-se na retirada das Igrejas cristãs de esferas que estavam sob o seu domínio e influência e implicou a separação da Igreja e do Estado, a expropriação das terras da Igreja ou a emancipação da educação do poder eclesiástico. Porém, dado ser um processo mediante o qual sectores da sociedade e da cultura foram subtraídos à dominação das instituições e símbolos religiosos, a secularização não só afectou a totalidade da vida cultural e da cognição, como também, na sua vertente subjectiva, produziu um número crescente de indivíduos que encaram o mundo e as suas próprias vidas sem o recurso às interpretações religiosas. Surgiu assim o "ser humano moderno", o homem profano ou secular de Eliade, que acredita poder viver, privada e publicamente, sem a religião. A secularização da consciência teve maior impacto na história do Ocidente do que a secularização social. Mircea Eliade encara a dessacralização da morada humana como parte integrante dessa gigantesca transformação do mundo assumida pelas sociedades industriais modernas, "transformação tornada possível pela dessacralização do Cosmos, efectuada pelo pensamento científico, e sobretudo pelas descobertas sensacionais da Física e da Química". Para Le Corbusier, a casa é uma mera "máquina de habitar" inserida e

Homo Religiosus e Habitação

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Homo Religiosus e Habitaohttp://cyberself-cyberphilosophy.blogspot.com/2008/10/homo-religiosus-e-habitao.htmlEntre os indgenas, nunca o lugar sagrado se apresenta isoladamente ao esprito. Ele faz parte de um complexo em que entram tambm as espcies vegetais ou animais que a abundam em certas estaes, os heris mticos que a viveram, vaguearam, criaram e frequentemente foram incorporados no solo, as cerimnias que a se celebraram periodicamente e, enfim, as emoes suscitadas por este conjunto. (Lucien Lvy-Bruhl)Afilosofia do habitarconfronta-se com diversos inimigos, dos quais destacaremos: o inimigo histrico, o inimigo poltico e o inimigo sociolgico.Inimigo Histrico. Todas asteorias da modernizaoafirmam que a modernidade conduziu invariavelmente secularizao: as instituies religiosas perderam influncia sobre a sociedade e a interpretao religiosa do mundo perdeu credibilidade na formao da conscincia das pessoas. Estas duas dimenses da secularizao no podem ser abordadas separadamente: no seu aspecto objectivo, scio-estrutural, a secularizao manifesta-se na retirada das Igrejas crists de esferas que estavam sob o seu domnio e influncia e implicou a separao da Igreja e do Estado, a expropriao das terras da Igreja ou a emancipao da educao do poder eclesistico. Porm, dado ser um processo mediante o qual sectores da sociedade e da cultura foram subtrados dominao das instituies e smbolos religiosos, a secularizao no s afectou a totalidade da vida cultural e da cognio, como tambm, na sua vertente subjectiva, produziu um nmero crescente de indivduos que encaram o mundo e as suas prprias vidas sem o recurso s interpretaes religiosas. Surgiu assim o "ser humano moderno", o homem profano ou secular de Eliade, que acredita poder viver, privada e publicamente, sem a religio. Asecularizao da conscinciateve maior impacto na histria do Ocidente do que asecularizao social.Mircea Eliade encara adessacralizao da morada humanacomo parte integrante dessa gigantesca transformao do mundo assumida pelas sociedades industriais modernas, "transformao tornada possvel peladessacralizao do Cosmos, efectuada pelo pensamento cientfico, e sobretudo pelas descobertas sensacionais da Fsica e da Qumica". Para Le Corbusier, a casa uma mera "mquina de habitar" inserida e alinhada entre as inmeras mquinas fabricadas em srie nas sociedades modernas. A "casa ideal do mundo moderno" deve ser funcional, no sentido de possibilitar o repouso necessrio para a recuperao da fora-de-trabalho, e pode ser facilmente trocada, como "se troca uma bicicleta, um frigorfico ou um carro". Afuncionalizaoda casa e do habitar operada por uma economia de mercado que visa acolonizaode toda a sociedade, da natureza e da prpria cultura, acabou por conduzir perda do mundo ou, como diz Hannah Arendt, ao alheamento do mundo. Como afirma Eliade: Para os homens sem religio, o Cosmos tornou-se opaco, inerte e mudo. At mesmo os cristos urbanos abandonaram a liturgia csmica e, por isso, a sua experincia religiosa j no "aberta" ao Cosmos e o Mundo j no sentido como obra de Deus: a sua experincia religiosa empobrecida estritamente privada e visa unicamente a sua prpria salvao. Historicamente, o inimigo do habitar autntico o prprio capitalismo selvagem que se apropria da terra, devastando-a, e, por isso, a filosofia do habitar necessariamente uma crtica dairracionalidade do capitalismo, que assume corajosamente o antropocentrismopara melhor "resguardar a quadratura" (Heidegger).Inimigo Poltico. Como resultado do desaparecimento de todas as ordens tradicionais aparentemente estveis, o homem secular desconfia de tudo aquilo que tenha um aspecto de segurana. Aqueles que defendem a importncia crucial da casa na vida humana so vistos como indivduos suspeitos, burgueses ou conservadores. Os romnticos reprovavam aqueles indivduos que se encastelavam na sua casa, levando a uma vida inactiva e cmoda. Para Schiller, o homem deve sair de casa e ir para o mundo exterior para cumprir as suas tarefas quotidianas e cvicas nesse mundo hostil, expondo-se aos seus perigos. Contudo, segundo Schiller, aps cumprir as suas tarefas no mundo exterior, o homem deve ter a possibilidade de voltar ao amparo e ao abrigo da sua casa. Ambos os aspectos polarizados da vida humana so necessrios, porque a sade interior do homem repousa no equilbrio entre o trabalho e a luta no espao externo que o mundo e a tranquilidade no espao interno da casa.Por isso, em vez de encarar a poltica do sentido como uma estratgia conservadora, o pensamento de esquerda deve aprender a olhar, de outro modo, mais positivo e edificante, para a casa, o lar (famlia), a ptria e os seus valores intrnsecos: a tarefa inalienvel do homem criar este espao de acolhimento, construindo a sua casa e defendendo-a contra qualquer tentativa de invaso alheia, nomeadamente da interveno do Estado e das modernas psico-empresas na esfera privada e ntima dos cidados.Inimigo Sociolgico. Este inimigo relativamente recente, est associado ps-modernidade e parece ser mais um fantasma sociolgico do que uma realidade efectiva. Bauman deu-lhe visibilidade: todas as suas figuras humanas ps-modernas, o deambulador, o vagabundo, o turista e o jogador, definem-se por oposio figura moderna do peregrino, como se estivssemos condenados a viver num mundo absolutamente contingente, numa atitude passiva de infinita mobilidade e de consumismo voraz. A sociologia enquanto pensamento sociocntrico pensamento annimo e conformista e, por isso, tende a fazer a apologia dostatus quo, bloqueando a mudana social qualitativa. A filosofia do habitar clara e frontalmente contra qualquer tipo de pensamento sociolgico, mesmo daquele que se afirma herdeiro de Marx.HOMO RELIGIOSUS. A conscincia mtica foi alvo da ateno de Rudolf Otto, Ernst Cassirer, James G. Frazer, Van der Leeuw, Lucien Lvy-Bruhl, Roger Callois e Mircea Eliade. O homem primitivo ou mesmo o homem pr-moderno um homo religiosus, e a religio , segundo a definio feliz de Peter Berger, "o empreendimento humano pelo qual se estabelece um cosmos sagrado", ou seja, "a religio acosmificaofeita de maneira sagrada". Como expoente mximo da auto-exteriorizao do homem, a religio a ousada tentativa de conceber o universo inteiro, a totalidade do ser, como humanamente significativo. O homem religioso "sedento do ser" e o ser , para ele, o prprio sagrado, tudo aquilo que se manifesta e se nos mostra por oposio ao profano. Quando tentou descrever "o algo inteiramente outro" (ganz andere) e totalmente diferente do mundo da vida dirio e da natureza, Rudolf Otto acentuou que onuminosoimpressiona o homem como um poder (majestas) esmagador e terrvel (mysterium tremendum) e estranhamente fascinante (mysterium fascinans), diante do qual o homem tem o sentimento da sua profunda nulidade. Apesar destaambivalncia do sagrado, o homem primitivo s sabe viver no sagrado e, portanto, numCosmosque o protege doCaos, numNomosque o salvaguarda daAnomia. Por isso, a funo principal do mito revelar os modelos exemplares de todos os ritos e de todas as actividades humanas significativas: "o mito conta uma histria sagrada, relata um acontecimento que teve lugar no tempo primordial, o tempo fabuloso dos comeos", ou seja, "o mito conta como, graas aos feitos dos Seres Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, quer seja a realidade total, o Cosmos, quer seja apenas um fragmento: uma ilha, uma espcie vegetal, um comportamento humano, uma instituio". O homem primitivo obrigado a recordar a histria mtica da sua tribo, a iniciar-se nos seus mistrios e a reactualizar periodicamente grande parte daquilo que se passouab origine, de modo a manter a ordem consagrada pelos Deuses no fabuloso tempo dos "comeos", quando o Cosmos emergiu do Caos que continua a enfrentar como o seu terrvel arqui-adversrio. Refundar ritualmente o Cosmos reerguer constantemente o escudo protector que defende o homem e o "nosso mundo" do terror da anomia e do Caos.Nesteuniverso religioso, Mircea Eliade soube destacar, no seu estado puro, o comportamento religioso em relao habitao, e esclarecer a concepo do mundo que ele implica. A experincia religiosa pressupe uma bipartio do mundo no sagrado e no profano, mas este dualismo ontolgico no um dualismo embriolgico, porque o profano pode ser transfigurado e transmutado no sagrado peladialctica da hierofaniae o sagrado transformado no profano pelos inmeros processos de dessacralizao. Toda a vida do homem arcaico uma repetio ininterrupta de gestos inaugurados por outros que no eram homens. Isto significa que tudo o que ele faz, incluindo a construo de edifcios, j foi feito pelos deuses, antepassados e heris mticosin illo tempore, aquando da criao do mundo.Ora, esta repetio ritual ou reactualizao de gestos paradigmticos feitosab origine revela uma "ontologia original" e, neste sentido, a concepo do mundo subjacente ao comportamento religioso em relao habitao pode ser vista como uma ontologia (religiosa) do habitar. A noo deHistria, com o devir e a irreversibilidade do tempo, absolutamente alheia a esta ontologia do habitar. Como escreve Mircea Eliade: "Situar-se num lugar, organiz-lo, habit-lo, so aces que pressupem uma escolha existencial: a escolha do Cosmos que se est pronto a assumir criando-o". Mas, de acordo com a ontologia arcaica, este Cosmos sempre a repetio e reactualizao ritual do Cosmos exemplar criado e habitado pelos Deusesin illo tempore. O Cosmos fabricado pelos homens participa da santidade da obra primordial dos Deuses. O "nosso mundo" construdo mediante uma repetio ritual daCosmogonia.1. O Espao Sagrado. Para ohomem religioso, o espao heterogneo e, por isso, apresenta roturas e fissuras que possibilitam experienciar partes e sectores de espao qualitativamente diferentes. Esta heterogeneidade espacial permite a experincia de um espao sagrado, "forte e significativo", distinta da experincia de outros espaos no-sagrados, absolutamente amorfos, e constitui uma experincia primordial, homologvel fundao do mundo. A rotura operada no espao pela manifestao de qualquer hierofania permite a constituio do mundo, no sentido de descobrir o ponto fixo, o eixo central de toda a orientao futura. A manifestao da hierofania rompe a homogeneidade do espao, ao mesmo tempo que revela uma realidade absoluta: "A manifestao do sagrado funda ontologicamente o mundo". Para o homem religioso, nada pode comear sem esta orientao prvia que implica a aquisio de um ponto fixo, o Centro do Cosmos, no qual procura estabelecer-se. Isto significa que, "para viver no mundo, preciso fund-lo": a descoberta e a projeco do Centro equivale criao do mundo.Em contrapartida, para ohomem profano, como o homem das sociedades modernas, o espao homogneo e neutro: nenhuma rotura diferencia qualitativamente as diversas partes e sectores do espao. Apesar de ser um espao homogneo e carente de estrutura e, portanto, de diferenciao qualitativa, o espao geomtrico no deve ser confundido com a experincia do espao profano que se ope experincia do espao sagrado. A manifestao da hierofania revela um espao sagrado, ao mesmo tempo que permite obter um ponto fixo e, portanto, a orientao futura na homogeneidade espacial catica: o fundar o mundo e viver realmente no mundo. Ora, a experincia do espao profano conserva a homogeneidade e a relatividade do espao. Sem a obteno de um ponto fixo, no possvel adquirir uma verdadeira orientao: o Cosmos estilhaa-se em "fragmentos de um Cosmos fragmentado, massa amorfa de uma infinidade de "lugares" mais ou menos neutros onde o homem (profano) se move, forado pelas obrigaes de toda a existncia integrada de uma sociedade industrial".2. A Casa. Toda a construo ou edificao humana tem como modelo exemplar a Cosmogonia. A instalao num territrio desconhecido e a construo de uma morada exigem uma deciso vital: assumir a criao do mundo que se deliberou habitar, imitando a obra dos Deuses. Para o homem religioso, "a casa sempre santificada", porque constitui umaimago mundie o mundo uma criao divina. A homologao da morada ao Cosmos feita ritualmente atravs de dois processos: 1) pela projeco dos quatro horizontes a partir de um ponto central, no caso de uma aldeia, ou pela instalao simblica doAxis Mundi, no caso de uma habitao familiar; e 2) pela repetio, atravs de um ritual de construo, do acto exemplar dos Deuses. O primeiro processo "cosmifica" um espao pela projeco dos horizontes ou pela instalao doAxis Mundi. Toda a habitao humana comporta um "aspecto sagrado pelo facto de reflectir o mundo" e, na sua estrutura, revela-se um simbolismo csmico. A casa umaimago mundie, como tal, situa-se simbolicamente no "Centro do Mundo".Assim, por exemplo, como mostrou Eliade, a morada das populaes primitivas rcticas apresenta um poste central que assimilado aoAxis Mundi, isto , aoPilar csmicoou rvore do Mundoque ligam a Terra ao Cu. O Cu concebido como uma imensa tenda sustentada por um pilar central: "a estaca da tenda ou o poste central da casa so assimilados aos Pilares do Mundo e so designados por este nome". Na base deste poste central, tm lugar os sacrifcios em honra do Ser Supremo celeste. Toda a morada humana repete a cosmogonia, situa-se perto doAxis Mundie, por tudo isso, representa e reflecte o Cosmos: o seu habitante vive implantado na realidade absoluta.A construo de uma casa sempre a fundao de um cosmos num caos e, por isso, a casa uma imagem do mundo na sua totalidade, umaimago mundi. A sua construo a repetio da criao do mundo, uma realizao constantemente renovada e reiterada da obra primignia dos Deuses. A organizao humana do espao , pois, a repetio de um acto dos tempos primitivos: "a transformao do caos em cosmos por meio do acto divino da criao". A morada humana o microcosmos que o homem constri imitando a criao-arqutipo dos Deuses. Para o homem arcaico, h uma homologia entre a criao do mundo e a construo da casa, porque, "organizando um espao, se reitera a obra exemplar dos Deuses".Cosmificar consagrar e consagrar repetir ritualmente a cosmogonia. Mas o homem arcaico vai mais longe e "cosmisa" o prpriocorpo: "Habita-se o corpo da mesma maneira que se habita uma Casa ou o Cosmos que o homem criou para si mesmo". O territrio habitado, o Templo, a Casa e o Corpo so Cosmos dotados de uma "abertura superior" que lhes possibilita comunicar com o outro nvel transcendente, o sagrado.3. O Templo.O Templo o lugar santo por excelncia, a casa dos Deuses. Nas grandes civilizaes asiticas e judaico-crists, o Templo simultaneamente umaimago mundie uma reproduo terrestre de um modelo transcendente. O Templo constitui umaimago mundi, porque o mundo obra dos deuses e, como tal, sagrado. Porm, como lugar sagrado por excelncia, o Templo "re-santifica continuamente o Mundo, porque o representa e contm ao mesmo tempo". Graas ao Templo, o mundo re-santificado na sua totalidade e, deste modo, continuamente purificado pela "santidade dos santurios". Desta diferena ontolgica entre o Cosmos e a sua imagem santificada que o Templo resulta a concepo de que a santidade do Templo "est ao abrigo de toda a corrupo terrestre", por causa do seu plano arquitectural ser obra dos Deuses e, por consequncia, se encontrar muito perto dos Deuses no Cu.Mircea Eliade recorre a textos bblicos para mostrar que, para o povo de Israel, os modelos do tabernculo, de todos os utenslios sagrados e do Templo, foram criados por Jeov desde a eternidade e foi Ele que os revelou aos seus eleitos, em especial Moiss, David e Salomo, para que fossem reproduzidos sobre a terra. A Jerusalm celeste foi criada por Deus ao mesmo tempo que o Paraso e a cidade de Jerusalm a reproduo aproximada do modelo transcendente: a cidade pode ser maculada pelo homem, mas o seu modelo goza de uma existncia espiritual, incorruptvel e celeste. Abaslica criste, mais tarde, acatedral, retomaram e prolongaram estes simbolismos da "geometria celeste" e a Igreja foi concebida como imitao de Jerusalm celeste. Aarquitectura sacraretoma e desenvolve o simbolismo cosmolgico e todos os rituais relativos aos Templos, s cidades e s casas derivam, em ltima anlise, da "experincia primria do espao sagrado".4. A Cidade.Tal como o Templo ou a casa, a cidade que mais no do que uma "grande casa" resulta de um acto consciente de fundao. O exemplo mais conhecido o da fundao de Roma, que nos foi transmitido pela narrativa de Plutarco: "Segundo inmeras tradies, a criao do mundo comeou num centro e, por esta razo, a construo da cidade deve tambm desenrolar-se em volta de um centro. Depois de ter aberto um fosso profundo (fossa), Rmulo encheu-o de frutos, cobriu-o de terra, erigiu por cima dele um altar (ara) e traou com o arado o sulco dos limites de proteco (designat moenia sulco). O fosso era ummunduse, como observa Plutarco, deu-se a este fosso, como ao prprio universo, o nome de "mundo" (mundus). Estemundusera o lugar da interseco dos trs nveis csmicos (a Terra, o Cu e o Inferno). provvel que o modelo primitivo de Roma tenha sido um quadrado inscrito num crculo: a difuso extremamente extensa da tradio gmea do crculo e do quadrado leva a essa suposio" (M. Eliade).A cidade , portanto, uma cpia do cosmos, ou melhor, uma reconstruo do mundo, projectada, por meio do ritual de construo, no centro do cosmos e, tal como o Cosmos exemplar que se origina a partir do seu Centro, a cidade estende-se a partir de um ponto central que como que o seu "umbigo", donde se projectam os quatro horizontes nas quatro direces cardeais. A cidade , portanto, a imagem do Cosmos e o modelo exemplar do habitat humano. Como j vimos, o "nosso mundo" um mundo total e organizado num Cosmos, fundado pela imitao da obra exemplar dos Deuses. A cidade precisamente o "nosso mundo" e, como tal, est sujeita a sofrer um ataque exterior que ameaa transform-la num Caos. Os seus adversrios so assimilados aos inimigos dos Deuses, os demnios, e sobretudo ao arquidemnio, o Drago primordial vencido pelos Deuses nos comeos dos tempos: "O ataque do nosso mundo equivale a uma desforra do Drago mtico, que se rebela contra a obra dos Deuses, o Cosmos, e se esfora por reduzi-la ao nada. Os inimigos enfileiram entre as potncias do Caos. Toda a destruio de uma cidade equivale a uma regresso ao Caos. Toda a vitria contra o atacante reitera a vitria exemplar do Deus contra o Drago, isto , contra o Caos" (M. Eliade).Toda a habitao humana consagrada peloteofania(Robertson Smith) e, como espao sagrado, est encerrada e protegida por ummuroou vedao. Este muro visa no s garantir a presena contnua de umacratofaniaou de uma hierofania no interior do recinto, como tambm preservar o prprio profano do perigo a que se exporia se ali penetrasse sem os devidos cuidados, porque o sagrado perigoso. De modo similar, as muralhas da cidade, antes de serem defesa militar, so defesa mgica, porque garantem a manuteno, no meio de um espao catico, povoado de demnios e de larvas, de um espao organizado, cosmicizado e, portanto, provido de umCentro. Segundo Eliade, o simbolismo do labirintoinclua tambm a ideia de defesa de um Centro: entrar num labirinto tinha o valor de uma iniciao. Em termos militares, o labirinto impedia ou, pelo menos, dificultava a penetrao do inimigo no centro da cidade, cuja configurao reproduzia o prprio Cosmos, mas, em termos religiosos, a sua funo era impedir o acesso da cidade aos espritos de fora, aos demnios do deserto e morte e, muitas vezes, a sua finalidade era defender um "centro". Neste caso, o labirinto representava o acesso inicitico sacralidade, imortalidade e realidade absoluta: "O acesso ao "centro" equivale a uma consagrao, a umainiciao", cujo objectivo produzir uma modificao radical do estatuto religioso e social da pessoa que vai ser iniciada, isto , umamutao ontolgicada condio existencial do nefito que, deste modo, abandona uma existncia profana e ilusria e adquire uma existncia real, durvel e eficaz.5. Concluses Provisrias.Mircea Eliade mostrou que osagradoe oprofanoso duas modalidades de experincia e de ser no mundo, isto , duas situaes existenciais assumidas pelo homem ao longo da sua histria, que devem ser estudadas pela antropologia filosfica. A dessacralizao do mundo operada pela modernizao no aboliu certos traos da conduta do homem arcaico, que ainda persistem no estado de "sobrevivncias" ou de "comportamentos cripto-religiosos". Contudo, a perspectiva de Eliade vacila a este propsito, porque, noutro contexto, afirma que, "num mundo dessacralizado como o nosso, o sagrado se encontra presente e activo principalmente nosuniversos imaginrios". Ora, como mostrou Bachelard, as experincias imaginrias fazem parte do ser humano total e, ao contrrio do que pensa Eliade, estas experincias no sonocturnas,masdiurnasou, como diz Bloch, so sonhos de um mundo melhor. Se o objectivo constituir uma autntica antropologia filosfica, devemos ver nessas "sobrevivncias" o "trao fundamental do habitar": "Ser homem consiste em habitar e, isso, no sentido de um de-morar-se dos mortais sobre esta terra" (Heidegger). Assim, alguns aspectos estruturais desse trao fundamental da condio humana que Eliade reconduz nostalgia do Parasoso os seguintes:1)A casa continua a ser o centro do mundo. No contexto do mundo mtico, a casa era regida de maneira "objectiva", protegida e santificada pela ordem sagrada do cosmos, mas, aps a sua dessacralizao, a estrutura do seu espao "subjectivamente" vivida e vivenciada diariamente como centro do mundo. De facto, toda a vida do homem gira em torno da sua morada, que funciona como ponto fixo de referncia e de identidade, donde parte e ao qual regressa novamente depois de ter percorrido os lugares do mundo exterior.2)A casa continua a conservar o seu aspecto particular que s pode ser captado atravs da sua analogia com o sagrado. Este aspecto sagrado da casa manifesta-se no carcter de sortilgio da violao do domiclio ou mesmo na inviolabilidade das leis da hospitalidade que possibilitam ao hspede desfrutar a proteco da casa e atribuem ao dono a tarefa de zelar para que ningum lhe cause qualquer tipo de dano. A casa potencialmente um espao inviolvel e, por isso, de acesso limitado aos estranhos e aos inimigos.3)A casa continua a ser uma esfera inviolvel de paz, tranquilidade, intimidade e repouso, marcadamente separada do mundo exterior. J no se trata de defender a casa da penetrao de demnios hostis que ameaam o homem fora da sua casa e cuja infiltrao deve ser evitada por meios mgicos, mas o carcter ameaador deste mundo alheio no desapareceu completamente, sendo protagonizado por novas foras sociais, polticas, econmicas e ideolgicas que se introduzem no interior do espao da casa, sem serem desejveis ou mesmo aceites.4)A casa continua a ser uma imagem do mundo, mas de um mundo em miniatura que est em correspondncia com o mundo exterior. Se a casa o nosso primeiro mundo, como diz Bachelard, ento ainda um cosmos e, sendo assim, a casa e o mundo correspondem-se de alguma maneira. A criana v a sua casa como o mundo inteiro e o seu enraizamento nesse solo ptrio permite-lhe crescer e prepara-se para a vida no mundo exterior. Graas ao facto de habitar na sua casa, o homem pode aprender a habitar o mundo exterior mais vasto e sentir-se no mundo como se estivesse em sua casa.Coube a Minkowski analisar o carcter da morada que aintimidade, mas, para desfrutar essa intimidade da casa, preciso partilh-la com a comunidade da famlia. Deste modo, a casa e a famlia encontram-se inseparavelmente ligadas para criar a sensao humana de amparo. O lar um espao aberto a um crculo reduzido de amigos e de pessoas ntimas. Segundo Minkowski, a essncia da casa no pode ser captada a partir do indivduo isolado, o celibatrio ou o vivo, mas apenas a partir da comunidade familiar e dos amigos prximos e ntimos: a casa fundada no por um mas por dois indivduos. Sem se aperceber dessa conexo essencial, Minkowski retoma uma noo antiga de lar. Fustel de Coulanges apreendeu-a quando escreve: "Toda a casa do grego ou do romano abrigava um altar; sobre ele devia haver sempre cinzas e brasas. Era obrigao do dono da casa conservar o fogo acesso dia e noite. Grande desgraa seria para a casa se o fogo se extinguisse! Ao anoitecer, eram cobertos de cinza os carves, para se evitar que se consumissem inteiramente durante a noite; pela manh, o primeiro cuidado era avivar o fogo e aliment-lo com alguns ramos secos. O fogo s deixar de brilhar sobre o altar quando toda a famlia estivesse extinta; lar extinto, famlia extinta, eram expresses sinnimas entre os antigos". O capitalismo ameaa destruir estefogo do lare, com ele, a prpria humanidade do homem, que mantm prisioneiro da condio metabolicamente reduzida numa terra devastada."Eu habito, tu habitas, ns habitamos" a "nossa casa", a "nossa terra", o "nosso mundo", a "nossa ptria": assim que o revolucionrio conjuga o verbo "habitar". Odevaneio do sonhador solitrio, at mesmo quando revisita a casa paterna ou a casa natal, por vezes numa atitude de nostalgia, mas frequentemente numa atitude deesperana militante, sonha diurnamente acasa onrica: a ptria da identidade dahumanidade naturalizadae danatureza humanizada. J Francisco Saraiva de Sousa