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Humano Versus Idiota LUCIANO CASTRO LIMA* Humano e idiota Quando o homem percebeu que, usando um galho caído, alcançava uma fruta no alto de uma árvore, fez-se humano. E, quando percebeu que, usando o corpo do semelhante, trazia a fruta, já descascada, da árvore até a sua boca, fez-se idiota. O homem é o único animal que desenvolveu inteligência suficiente para usar o corpo do seu semelhante como objeto; e, na contrapartida, para disponibilizar o seu corpo para o uso como coisa. O humano objetiva a coisa. O idiota coisifica o humano. O ambiente idiota O clima mudou, a terra secou, a plantação encolheu e o deserto cresceu, o humano endureceu e se paralisou na disputa da migalha, no conflito miserável em que o amigo desconhece o amigo, em que Caim mata Abel e o filho chora e a mãe não ouve. É neste ambiente de aridez, escassez e sofrimento que o idiota se revelou e se multiplicou. É aí que a fome, a sede, o cansaço e o medo mobilizam no indivíduo todos os instintos da sobrevivência para a manifestação mais grosseira e estúpida da existência da matéria viva: o homem que abre mão da condição humana para continuar vivo. Torturado, o combatente delata o refúgio dos companheiros. Famintos, no alto da cordilheira fria, os sobreviventes da queda do avião comem a carne de amigos mortos. Desesperada, a mãe ora pela morte do filho bandido. Alucinado pela tensão do entrevero, o soldado mata o prisioneiro subjugado que clamava por piedade. Agoniado, o afogado se agarra ao salva-vida e o leva consigo, abraçado, para o fundo das águas. Cego pelo pânico, o náufrago empurra o velho para fora do bote. Com as entranhas secas pelo calor do deserto, o sedento imagina uma fonte de água cristalina onde só existe areia escaldante. O ambiente sórdido da escassez separa o homem do humano, colocando no meio do caminho a alternativa idiota. E foi nela que a nossa espécie entrou a dez mil anos atrás. "Eu Nasci Há Dez Mil Anos Atrás" (Raul Seixas / Paulo Coelho) Eu nasci há dez mil anos atrás

Humano Versus Idiota LUCIANO CASTRO LIMA* Humano e idiota

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Page 1: Humano Versus Idiota LUCIANO CASTRO LIMA* Humano e idiota

Humano Versus Idiota

LUCIANO CASTRO LIMA*

Humano e idiota

Quando o homem percebeu que, usando um galho caído, alcançava uma fruta no

alto de uma árvore, fez-se humano. E, quando percebeu que, usando o corpo do semelhante,

trazia a fruta, já descascada, da árvore até a sua boca, fez-se idiota. O homem é o único

animal que desenvolveu inteligência suficiente para usar o corpo do seu semelhante como

objeto; e, na contrapartida, para disponibilizar o seu corpo para o uso como coisa. O

humano objetiva a coisa. O idiota coisifica o humano.

O ambiente idiota

O clima mudou, a terra secou, a plantação encolheu e o deserto cresceu, o humano

endureceu e se paralisou na disputa da migalha, no conflito miserável em que o amigo

desconhece o amigo, em que Caim mata Abel e o filho chora e a mãe não ouve. É neste

ambiente de aridez, escassez e sofrimento que o idiota se revelou e se multiplicou. É aí que

a fome, a sede, o cansaço e o medo mobilizam no indivíduo todos os instintos da

sobrevivência para a manifestação mais grosseira e estúpida da existência da matéria viva:

o homem que abre mão da condição humana para continuar vivo. Torturado, o combatente

delata o refúgio dos companheiros. Famintos, no alto da cordilheira fria, os sobreviventes

da queda do avião comem a carne de amigos mortos. Desesperada, a mãe ora pela morte do

filho bandido. Alucinado pela tensão do entrevero, o soldado mata o prisioneiro subjugado

que clamava por piedade. Agoniado, o afogado se agarra ao salva-vida e o leva consigo,

abraçado, para o fundo das águas. Cego pelo pânico, o náufrago empurra o velho para fora

do bote. Com as entranhas secas pelo calor do deserto, o sedento imagina uma fonte de

água cristalina onde só existe areia escaldante.

O ambiente sórdido da escassez separa o homem do humano, colocando no meio do

caminho a alternativa idiota. E foi nela que a nossa espécie entrou a dez mil anos atrás.

"Eu Nasci Há Dez Mil Anos Atrás" (Raul Seixas / Paulo Coelho)

Eu nasci há dez mil anos atrás

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E não tem nada nesse mundo que eu não saiba demais

Eu vi Cristo ser crucificado, O amor nascer e ser assassinado

Eu vi as bruxas pegando fogo, Prá pagarem seus pecados, eu vi

Eu vi Moisés cruzar o Mar Vermelho, Vi Maomé cair na terra de joelhos

Eu vi Pedro negar Cristo por três vezes, Diante do espelho, eu vi

Eu vi as velas se acenderem para o Papa, Vi Babilônia ser riscada no mapa

Vi Conde Drácula sugando sangue novo, E se escondendo atrás da capa, eu vi

Eu vi a arca de Noé cruzar os mares, Vi Salomão cantar seus salmos pelos ares

Vi Zumbi fugir com os negros prá floresta, Pro Quilombo dos Palmares, eu vi

Eu vi o sangue que corria da montanha, Quando Hitler chamou toda Alemanha

Vi o soldado que sonhava com a amada, Numa cama de campanha

Eu li os símbolos sagrados de umbanda, Fui criança prá poder dançar ciranda

Quando todos praguejavam contra o frio, Eu fiz a cama na varanda

Eu tava junto com os macacos na caverna, Eu bebi vinho com as mulheres na taberna

E quando a pedra despencou da ribanceira, Eu também quebrei a perna, eu também

Eu fui testemunha do amor de Rapunzel, Eu vi a estrela de Davi brilhar no céu

E pr'aquele que provar que eu estou mentindo, Eu tiro o meu chapéu

Há mais dez mil anos o homem pré-humano, o idiota, inventou a sociedade, a

divisão da comunidade em classes, a economia e a política. Foi quando os idiotas se

apossaram da comunidade e a socializaram para a produção de máquinas humanas. A

escola foi inventada neste processo. E, o que pouca gente se deu conta, produz um conceito

de homem: o homem é uma simples máquina. No período industrial esta produção atingiu o

seu apogeu. Do ponto de vista social, o corpo humano é apenas isto, uma máquina. Não é

por acaso que os circuitos e dispositivos da máquina e seus movimentos recebem nomes de

órgãos e processos humanos: a memória do computador, a mão do robô, cérebro

eletrônico, a maquina está pensando; e vice versa, os órgãos do corpo humano recebem

nomes de mecanismos: o corpo humano é uma máquina maravilhosa; a motricidade da

criança, válvulas cardíacas, etc. Na verdade o corpo está abaixo do mecanismo, pois é uma

máquina imperfeita, limitada, que reivindica, faz greve, se machuca, cansa, erra, se distrai,

vai ao banheiro.

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Olha eu de novo

Derrotado, mas não morto, o humano tem lutado contra o idiota nestes dez mil

anos. E, travando o bom combate, criou o prolongamento mecânico do corpo que planta e

cuida da árvore, colhe a fruta na sua época, descasca-a e a traz até a boca do preguiçoso. A

humanidade, para escapar da tirania mecânica, criou a máquina programável. Para a

ideologia das classes não foi o homem e sim esta máquina imperfeita, a humana, que criou

a máquina programável. Seres humanos sabem que foram eles que criaram a mecânica.

Máquinas humanas, não. Elas acreditam que é o mecanismo que gera o progresso.

O ser humano é superior ao mecânico e vê o mecanismo apenas como um

prolongamento do seu corpo, algo totalmente subalterno que, por mais desenvolvido que

seja, sempre lhe é inferior. As máquinas humanas vêem a criação do homem como algo que

lhe é superior. Incapaz de ver o humano, creditam as suas criações a um mecanismo

superior, senhor de todas as máquinas. E como percebe, com suas cabecinhas mecânicas, a

máquina programável como realmente mais perfeita que elas, reconhecem-se ultrapassadas,

obsoletas. Em sua incapacidade de diferenciar o humano do mecânico, conclui que o

homem está ultrapassado por sua criação. E passa a aceitar, com fatalismo, a sua condição

de ser em extinção.

A máquina humana é a contrapartida do idiota. Ela existe afirmando e legitimando a

idiotice. E o idiota se materializa e se torna real, social, graças ao contra pensamento

mecânico que domina os homens reduzidos à condição de máquina. O fim da idiotice

enquanto sistema de dominação da comunidade, a emancipação do trabalho humano, só

será atingido com a liquidação deste ambiente, desta contra cultura mecânica que é

produzida junto com as máquinas humanas.

O sucateamento do humano

A quem a máquina programável torna sucata: à máquina humana ou ao ser humano?

Certamente o ser, respondem os idiotas, sempre interessados no rebaixamento do humano.

É isto mesmo, confirma a sua base de existência, o maquinário humano sempre disposto a

discorrer sobre a necessidade do alicerce para a construção do palácio. Certamente a

máquina, respondem os humanos que tem consciência da sua própria humanidade.

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É verdade: a máquina programável superou a máquina humana, tornou-a sucata.

Mas não ao homem, pois este não se reduz a um mecanismo. A máquina humana é apenas

uma pequena parcela, um diminuto fragmento, da totalidade humana. Certamente o seu

aspecto mais restritivo, pobre e empobrecedor, porque é essencialmente repetitivo, sem

criação. O processo social é a determinação do mecanismo sobre o humano. Submetido a

ele, o ser humano só se pode conceber reduzido à condição de máquina. A sociedade, de

posse da máquina programável só pode concluir que o homem (ei, seres humanos, bons

entendedores que sois: entendam máquina humana!) se tornou anacrônico, ultrapassado.

Antes da automação eletrônica, o mecanismo social produzia a máquina humana

diretamente da fábrica para o consumidor, a indústria e seus derivativos, que era o seu

centro articulador. A máquina programável a substituiu e ela se tornou sucata. A sociedade

é um mecanismo produtor de máquinas humanas. É a sua essência. Como estas se tornaram

inúteis, mas precisam continuar sendo produzidas (é a condição de existência da

sociedade), passou a ser um mecanismo produtor de sucatas humanas. O produto já sai,

novinho em folha, direto da linha de produção para o ... ferro velho, para o aterro sanitário.

Junto com a sucata passou a produzir um novo conceito de homem que nada tem de novo.

É apenas uma conseqüência do conceito anterior: o homem é uma máquina superada. Está

dado o mote para a produção acadêmica comprometida com o Capital e com todo o

processo social: a inutilidade do homem, o seu corpo é imperfeito, cheio de falhas, é uma

coisa que não serve mais p´ra nada. E aí vem o lixo grotesco das teorias do pós-orgânico,

pós-humano: o homem é um conjunto de informações que pode ser colocado num

computador, tornando desnecessário o corpo, o organismo. Não riam com este barulho: o

senhor Marcelo Gleiser clama por uma psicologia que trate da psique das máquinas

programáveis.

O cientista político Francis Fukuyama proclamou recentemente que o

advento da engenharia genética e de medicamentos como Prozac anunciam o

início de uma era "pós-humana da história": não só corpos, mas mentes também

poderão ser moldadas pela nova medicina. Adiciono a explosão do uso da droga

Ritalin, dada para milhões de crianças que supostamente sofrem de distúrbio de

déficit de atenção, ou seja, que têm dificuldades de concentração e tendências

rebeldes. A droga ajuda a controlar os sintomas, efetivamente domesticando as

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jovens feras. Bill Joy, co-fundador da companhia de computadores americana

Sun, concorda com Fukuyama, chamando a atenção para o desenvolvimento da

nanotecnologia, a possibilidade de construir máquinas de dimensões

moleculares capazes de serem implantadas no corpo humano. Segundo ele,

"será esse o caminho de destruição da humanidade.”

Será possível construirmos computadores inteligentes, tão ou mais do

que nós? Computadores atuais que parecem ser inteligentes, como o Deep Blue

que derrotou Kasparov, o mestre de xadrez, não são. Eles são apenas rápidos,

tão rápidos que podem testar metodicamente bilhões de jogadas por segundo e

avaliar as suas repercussões. A questão da inteligência artificial permanece em

aberto. Imagine uma máquina capaz de criar obras de arte inovadoras, de fazer

perguntas jamais feitas, de se apaixonar e sofrer como humanos. Uma vez,

assistindo a uma palestra de Marvin Minsky, um dos pioneiros da inteligência

artificial, professor do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT),

perguntei se, no caso dessas máquinas serem construídas no futuro, elas

desenvolveriam também patologias mentais, como depressão ou psicose.

Minsky respondeu que "sem dúvida, precisaremos de toda uma nova psicologia

para lidar com esses problemas". Essa questão dá origem a outra: se, de fato,

essas máquinas vierem a existir, elas poderão ser mais inteligentes do que nós.

Nesse caso, nos tornaríamos obsoletos, ultrapassados evolutivamente.

Estaríamos, ao criar essas máquinas, decretando a nossa extinção? Quem sabe?

Os “pós” humano, orgânico e moderno

Quanto pó! De que tipo é? Deve ser droga nova, mais alucinante que o esctasy.

Vamos deixar a fantasia de lado e analisar estes pós acompanhando os artigos de Marcelo

Gleiser publicados no jornal Folha de São Paulo. Este senhor entende bastante deles pois

abriu mão da sua condição de ser humano em nome da ciência, mais especificamente, da

Física

Ao contar o início de sua carreira de cientista, relembra a resistência

familiar: "Mas quem é que vai te pagar para ficar contando estrelas, filho?",

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disse o pai, que o queria engenheiro. (O livro do cientista, de Marcelo Gleiser

Companhia das Letrinhas)

E, ainda por cima, é professor de física teórica do Dartmouth College, em Hanover

(EUA), como lembra o jornal ao final de cada um dos seus artigos. O fato de estar no olho

do furacão da idiotice humana o torna um idiota interessante. Com ele veremos que os pós

humano, pós moderno e pós orgânico não passam de pós traficados por gangues

acadêmicas (Comando Vermelho do MIT, PCC de Yale e Havard, com os seus

Fernandinhos Beira-mares, Fukuyamas e quejandos) para entorpecer as máquinas humanas

que perderam a função na produção programável. Os tais pós são derramados por todas as

vias - eletrônicas, jornalísticas, sonoras, internetnianas, best sellerianas, Gramynianas,

Oscarinianas, Holywoodianas, world musicanas - em todo planeta com um único objetivo:

manter as máquinas humanas aprisionadas ao delírio idiota

O principal antagonismo da nossa era

Alguns ingênuos (e outros nem tanto) acreditam que o antagonismo entre homens e

máquinas é o grande conflito dos nossos dias. Holywood, sempre na vanguarda da idiotice

com os seus filmes de ficção (a ficção é que eles seriam só de entretenimento), alerta para o

perigo da rebelião das máquinas contra os humanos. É para ela que o cientista Gleiser rende

um respeitoso preito: a ciência agradece à arte. As observações em itálico entre parênteses

são nossas.

Oitenta anos de ciência em Hollywood (ciência em Holywood!!,

perdoai, senhor, ele não sabe o que diz!) contribuíram para a criação de uma

percepção pública que oscila entre o venerável e o assustador. A ciência cria e

destrói. Novas tecnologias trazem sempre a dupla promessa do bem e do mal.

Os filmes, em sua grande maioria, são representações dessa dualidade. (...) Uma

encarnação recente desse mito nas telas é o filme "Inteligência Artificial", de

Steven Spielberg, no qual a humanidade se torna obsoleta graças à sua própria

criação, robôs inteligentes e emotivos. Outra é a série "O Exterminador do

Futuro", em que máquinas cada vez mais poderosas têm como missão o

extermínio dos humanos (ainda bem que temos Arnold Schwarzenegger para

nos salvar). Inúmeros filmes sobre apocalipses nucleares exploram o mesmo

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mito: se nós ousarmos muito com nossas invenções, se roubarmos o segredo

dos deuses, seremos punidos, tornando-nos vítimas de nossa própria criação. A

criatura destrói o criador.

No entanto, acusar Hollywood de deturpar a ciência apenas para fins

lucrativos, usando a mistura de medo e fascínio que as pessoas têm do novo

para induzi-las a ir ao cinema, é apenas parte da história, a mais óbvia. Existe

também uma relação dual entre o imaginário e o real, que é inspiradora não só

para os que vão ao cinema, mas para os que fazem ciência e vão ao cinema. (...)

Essa relação simbiótica entre arte e ciência é extremamente frutífera. Um dos

meus exemplos favoritos é o romance gótico "Frankenstein". Escrito em 1818

pela inglesa Mary Shelley, o livro inspirou-se na ciência de ponta da época, a

descoberta (feita por Luigi Galvani e explorada por Alessandro Volta, o

inventor da pilha) da "eletricidade animal" e de sua relação com o movimento

muscular e com a vida. O clássico filme homônimo de James Whale, feito em

1931, não só usou toda a maquinaria eletromagnética que existia na época da

filmagem como também a ciência que Mary Shelley jamais imaginaria

possível: Henry Frankenstein (o nome do inventor louco na peça de Peggy

Webling que serviu de base para o roteiro) foi "além do ultravioleta para

descobrir o grande raio que trouxe a vida ao mundo.

E eis que, em 1953, o bioquímico Harold Urey e seu orientador, o vencedor do

Prêmio Nobel de Química Stanley Miller, usaram descargas elétricas para

sintetizar aminoácidos - componentes fundamentais de toda a matéria viva - a

partir de compostos químicos simples como metano e amônia, que eles

acreditavam estar presentes na atmosfera da Terra primitiva. Descargas elétricas

novamente aparecem como o "raio que trouxe a vida ao mundo", dessa vez em

um laboratório real. Pergunto-me se eles viram o filme de Whale e resolveram,

mesmo que inconscientemente, pôr à prova a sua hipótese. (Pergunto-me: quais

as produções “científicas” que a “arte” de Holywood inspirou com os

personagens Homem aranha, Batman, SuperHomem, Homem Borracha, HulK

e quetais?)

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Não, os nossos antagonistas não são as máquinas e sim quem as manipula contra os

humanos: os idiotas. Sobre eles o nosso cientista não escreve ou fala uma vírgula sequer,

em todas suas crônicas, livros e palestras. O grande conflito que vivemos hoje nasceu a dez

mil atrás: humanos versus idiotas. E, com a criação da máquina programável, atinge o seu

ponto crítico decisivo: quem será substituído por ela: o ser humano ou a máquina humana?

Quem vai se tornar sucata: o ser humano, o sujeito pessoal e coletivo, com sua cultura? Ou

máquina humana e o seu criador, o idiota?

Falta pouco, muito pouco

Idiotas de todo mundo se unem para demonstrar que é o humano que está sucateado.

Para eles o maquinismo ainda não se esgotou e está prestes a entrar no reduto último do

humano: o processo criador. Logo, logo, dizem os cretinos, vamos ter uma sociedade

informacional, com o mecanismo eletrônico produzindo emoções, criações e sensações. Já,

já os nossos técnicos vão produzir o código do universo, da matéria, da vida, da consciência

e da emoção. Falta muito pouco, simples detalhes, para que as máquinas adquiram

consciência e inconsciência, emoção e, atenção, muita seriedade, psique, alma. Vocês não

perdem por esperar: estamos no limiar da nova era em que o homem se tornará deus,

criador de todas as coisas, da vida (da morte já somos) e da inteligência. O homem que cria

homens como deus o fez com o barro; o homem que cria o universo como deus o fez do

nada, num simples big-bang. Afinal, físico Gleiser, a sua turma não está há menos de um

segundo (0,00001s) do chamado primeiro ato, a explosão primordial, o big bang, que gerou

o universo?

(A idade do cosmos é) 13,8 bilhões de anos, sua geometria, plana, e a

época em que as primeiras estrelas nasceram, apenas 200 milhões de anos após

o Big Bang, evento que marcou a origem cósmica. (...) O Universo primordial

era extremamente denso, dificultando a passagem da radiação. A situação era

semelhante a uma corrida com tantos obstáculos que fica impossível completá-

la. O cosmo, do Big Bang até 300 mil anos, era opaco. (...) A história do

Universo primordial é como uma peça de teatro dividida em vários atos, cada

qual com seus atores. Indo para trás no tempo, o último ato pertence à física

atômica, com a radiação, elétrons e prótons como atores principais. O ato

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termina aos 300 mil anos, quando elétrons e prótons juntam-se para formar

átomos de hidrogênio, e a radiação fica livre, inaugurando a era astronômica

discutida acima.

O penúltimo ato pertence à física nuclear, e dura de 0,00001 segundo até 3

minutos após o Bang. No início, prótons e nêutrons não interagem, pois a

temperatura é muito alta. Aos poucos ela vai baixando, e são formados os

primeiros núcleos leves, compostos de grupos de prótons e nêutrons. Esses dois

últimos atos são bem estudados. (...) A teoria prevê que, antes de 0,00001

segundo, a matéria no Universo era composta por uma sopa de quarks e glúons.

Essa foi a sopa primordial cozinhada no RHIC: por breves instantes, a incrível

energia da colisão entre núcleos de átomos de ouro recriou o plasma de quarks e

glúons que existia na infância do Universo com temperaturas de trilhões de

graus. O próximo passo é reconstruir o ato anterior, um passo mais próximo do

misterioso primeiro ato.

E, cientista Gleiser, os seus colegas biólogos não estão prestes a redefinir o

significado de ser humano?

O século 21 promete ser o século da genética, em particular da

engenharia genética. Dos alimentos transgênicos aos clones animais, estamos

presenciando o despertar de uma nova ciência que, como é de praxe com

descobertas revolucionárias, vem acompanhada de muitas promessas e medos.

Ao estendermos a engenharia genética aos humanos, estamos pondo em xeque

não só a sua capacidade de curar (ou prevenir) várias doenças como, também,

de redefinir o que significa ser humano em um contexto no qual seres podem,

ao menos em princípio, ser fabricados.

Alguém precisa avisar ao senhor Gleiser e aos seus colegas que em laboratório se

fabrica de tudo - Dollys, Franksteins, dráculas, robocops, exterminadores do futuro, do

passado e do presente, Hulks verdes, Super Homens, Homens Invisíveis, Homens

Tartarugas, Homens Aranhas, Homens Borrachas, Homens Morcegos - menos Homens

Humanos. O humano é uma exclusividade dos humanos. Mesmo que alguns idiotas

pretendam abrir franchising, jamais conseguirão encapsular a tecnologia de sua produção

simplesmente porque não existe a possibilidade de criação desta tecnologia. Nem antes,

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nem agora, nem depois, nem nunca vai ser possível alguém correr ao cartório de patentes e

registrar a sua receita do humano. Como só o humano produz o humano, no momento em

que alguém definir para si como meta a sua produção, instantaneamente se tornará idiota

perdendo assim a condição sine quae non para realizar esta fabricação. Idiotas, senhor

Gleiser, só produzem idiotas.

O Deus idiota

Quando o homem se torna deus, deixa de ser humano. Mas, como tornar-se deus é

uma ilusão idiota, resta ao imbecil apenas o fato de não ser mais humano. E aí temos a

ironia dos extremos que se unem: o homem deus não passa de um sub homem. Um homem

que se acredita superior aos outros é sempre escória humana, um subproduto decadente da

humanidade, uma caricatura grotesca, como os nazistas demonstraram au trance.

Primeiro, ao longo de dez mil anos de sociedade, de ruptura da comunidade em

classes, os idiotas rebaixaram o homem à condição de máquina. Depois, no período

capitalista e, principalmente, na fase industrial, produziram o conceito de homem como

uma simples mercadoria, como uma simples força de trabalho. Agora, no período pós-

industrial, concluem que o homem é uma máquina inferior à programável. Incapazes de ver

o humano, captam-no apenas na sua redução pobre e parcelada de um mecanismo. E

produzem o conceito de sucata humana que, infelizmente não é apenas uma besteira ou

uma pós-besteira. É mais que isto. Trata-se de uma monstruosidade que articula o

programa da sociedade na sua forma mais extremada de aniquilamento do humano. É o

Capital se perpetuando para além das suas condições de existência. O homem sucata não é

apenas um equívoco oriundo da miopia de tecnocratas que não conseguem diferenciar o

homem da máquina. É o mote para a destruição do humano. O pós moderno, o pós capital,

pretende-se pós humano o que só será possível com o auto aniquilamento da humanidade.

Até agora o homem tem-se feito a si próprio. A teoria do homem sucata demonstra que,

analogamente, o humano pode exterminar a si próprio. Isto não é novidade. Ao longo de

sua história e de sua existência, a humanidade sempre se viu ante a escolha entre a vida e a

barbárie. Os homens deuses, os idiotas, estão na deles. E nós, simples seres humanos

podemos nos tornar educadores e fazermos a nossa.

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Em defesa do humano

A principal tarefa da humanidade no período atual é superar esta ameaça sub humana de

aniquilamento da espécie. Propomos, a seguir, alguns princípios que acreditamos

fundamentais enquanto programa de mobilização humana para evitar a catástrofe que se

avizinha:

Um movimento natural produz-se a si próprio em seu movimento interno. Um

criador não gera um outro criador mais poderoso que a si próprio. Mas pode gerar

um destruidor de si próprio. A proposta idiota de encapsular o humano, a psique, a

cultura, em mecanismos eletrônicas é delirante. O humano faz-se a si próprio em si

próprio, em processo. Não há ponto final neste movimento. É impossível faze-lo fora

de si.

Uma totalidade não gera uma totalidade que a contém. Só pode produzir uma que

seja parte de si, um sub total. A totalidade humana só pode produzir, fora de si, uma

parte de si própria, um sub homem. O homem total só pode ser produzido pelo

homem total apenas no homem total. O mecanismo é uma parte reduzida e

simplificada do humano. Jamais constituirá e reproduzirá a sua totalidade.

O psíquico não é material, não é composto de partículas. O repetitivo é material, é

formado de partículas. O humano é subjetivo. O mecanismo é objetivo. A mente ou

psique é o movimento que se inicia com os reflexos, que constituem a sua base

material imediata, e avança até a criação da consciência. Trata-se de um processo

que, tendo uma base material, se realiza sem nenhuma partícula de matéria ou de

força, nem mesmo aquelas que constituem a chamada sopa primordial, o plasma

composto de quarks e gluons do instante zero da criação do universo.

A psique não tem matéria e, portanto, não tem tempo nem espaço. É uma usina

geradora de uma substância especial, também não material, que não é sopa nem pré-

sopa, que chamamos vagamente de subjetividade. É com esta substância, sem

matéria, que não ocupa espaço e não tem tempo, que a mente opera ao tratar com a

matéria que se lhe apresenta, sempre, inicialmente, como formas vazias. É com ela

que o sujeito cria o conteúdo das coisas. Conteúdo é, pois, a substância psíquica

pessoal com que os sujeitos preenchem as formas da coisas para torna-las objeto. É

esta substância sem átomos, prótons, elétrons, nêutrons, quarks e gluons que realiza a

Page 12: Humano Versus Idiota LUCIANO CASTRO LIMA* Humano e idiota

transição da psique para a chamada realidade num movimento que Freud chamou de

teste da realidade. É com ela que o sujeito se relaciona com o real. E é só ele, o

sujeito, e ninguém mais, quem vai preencher as formas materiais, em si vazias de

subjetividade e, portanto de conteúdo. A coisa material, formada de átomos, quarks e

gluons, as super cordas, não trazem em si nenhum átomo, quark ou gluon desta

substancia especial, a subjetividade, simplesmente porque ela não os tem. Quem

dispõem dela é, em todo o universo, o humano e é com ela que o sujeito preenche de

conteúdo (ou não) toda a matéria que se apresenta (ou não), atribuindo racionalidade

ao que intrinsecamente não a tem, regularidade ao que, em si, é caótico, significado

ao que existe apenas por existir, sem sentido, intenção ou finalidade prévia. Isto não

significa que a subjetividade independe da matéria. Pelo contrário, esta é sua base,

seu ponto de partida e de chegada, quem lhe determina em última instância. Esta

dependência é facilmente demonstrada pelo fato de, cessado o movimento material

que lhe dá sustentação imediata, a vida orgânica no corpo humano, a usina pára

imediatamente de produzir esta substancia especial, e a subjetividade cessa

totalmente, se apaga para sempre restando dela apenas os seus reflexos materiais,

objetivos. Este acontecimento é tão perturbador e inaceitável quanto inevitável que,

desde o primeiro instante que tomou consciência de sua existência (instante zero,

senhor Gleiser, este sim o verdadeiro big bang) a própria subjetividade, subtraía de

sua onipotência, tratou de inventar uma outra onipotência pretensamente superior,

que lhe garantiria a eternidade.

O Acácio nos explicou que toda informação, inicialmente, é um ruído.

Acompanhemos o movimento do ruído até o conteúdo, que ele nos descreve. Uma

destas antigas piadas de preconceito anti lusitano nos fala de um alemão chamado

Manoel que mandou um telegrama para um amigo que estava no Brasil: Joaquim,

sua mãe morreu! “Não é assim que se faz”, explicou-lhe um amigo. “Primeiro você

deve preparar quem vai receber a trágica mensagem falando de algo ameno como

Joaquim, sua mãe tem um gato que subiu no telhado. E aos poucos vai chegando no

drama.” Algum tempo depois Manoel mudou-se para o Brasil e, um belo dia, recebe

um telegrama daquele amigo: Manuel, o gato do seu pai subiu no telhado!.

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O amigo do Manuel, em Portugal, tem um conteúdo importante para transmitir para

o seu amigo no Brasil: o gato do pai de Manuel, que é o xodó do filho, subiu ha três

dias no telhado e não o que o faça descer. Só Manuel sabe como faze-lo e por isto

deve imediatamente orientar como fazer para tirar o gato de lá. Ele vai então até os

correios e redige o telegrama citado. O telegrafo é um equipamento extra-corpóreo,

prolongamento da língua humana. É feito de matéria e mesmo o telegrafo sem fio se

utiliza da matéria - as partículas da ondas - para enviar a mensagem. É a mensagem

que é o conteúdo. O telegrafo transmite não a mensagem, o conteúdo, mas sim os

ruídos que compõem o código Morse: as várias combinações de sons breves e longos

que codificam as letras do alfabeto. Os sons e as letras que elas representam, ainda

não constituem a mensagem. Junto com os postos, os fios, a eletricidade, as ondas

sonoras e eletromagnéticas constituem o meio que conduz a mensagem. Os

radiotelegrafistas, tanto o que codifica e envia a mensagem quanto o que a recebe e

a decodifica, escrevendo-a no papel, também constituem o meio. O papel em que o

amigo de Manuel escreveu a mensagem e as palavras escritas também não

constituem a mensagem, e sim o meio. O carteiro que leva o telegrama até o

destinatário é outro dispositivo do meio. Toca a campanhia (mais um elemento do

meio) e atende a mulher de Manuel que abre e lê o telegrama, preocupada que está

com o seu conteúdo. Ao fazer a leitura não entende nada: Opá, e daí que o gato

subiu no telhado? Como não alcançou o conteúdo presumido, guarda o papel para o

marido. Este, quando chega e lê o telegrama começa a chorar desesperado. O

conteúdo com que ele preencheu as palavras vazias do telegrama levam-no ao

desespero.

O amigo de Manuel preencheu, com a sua substância subjetiva, a forma o gato do

pai subiu no telhado. Preocupado em comunicar este fato para o amigo, criou uma

forma escrita acreditando que ela cumpriria esta função. A partir deste momento

acionou um sistema chamado telégrafo que existe enquanto um determinado tipo de

meio físico para conduzir uma mensagem. Os funcionários do telegrafo, mesmo

sendo homens, participam do meio físico enquanto força de trabalho e reduzem-se,

assim, à condição de máquinas humanos pois são obrigados, pela função, a reduzir o

conteúdo à forma, o meio à mensagem. O conteúdo de suas práticas subjetivas,

Page 14: Humano Versus Idiota LUCIANO CASTRO LIMA* Humano e idiota

nestes contextos não ultrapassam à codificação da palavra ao Morse (e vice versa), à

codificação (ou descodificação) do endereço, no caso do carteiro. Ao reduzir o

humano ao objeto, a mensagem ao meio, o conteúdo à forma, abrem mão do trabalho

útil em nome do abstrato, e, portanto, do humano em nome da função.

Desumanizam-se para poderem incorporar a coisa e integrarem-se, enquanto tal, ao

equipamento extracorpóreo.

A forma é o conteúdo; o meio é a mensagem - afirmava o idiota da teoria da

comunicação, Macchulan. Trata-se slogans, bordões ou chamadas (a maneira dos

publicitários, os idiotas da profissão mais antiga do mundo) que propagam a contra

idéia de que o humano é o material. Os semióticos (também chamados de caolhos)

defendem que o código, os signos e os símbolos já trazem em si, encapsulados, o

conteúdo, o humano, mensagem. Daí que aprender é entrar em contato com estes

depósitos objetivos de subjetividade. E educar resume-se a promover os contatos dos

alunos com eles.

Mas Acácio nos explica: o humano, o conteúdo, não está nas letras, nos códigos, no

papel, nos fios, nos postes, no éter, nas ondas, na eletricidade, nos carteiros, nos

radiotelegrafistas. É certo que sem este equipamento todo não aconteceria a

comunicação no contexto em que ela se deu. Ele é condição necessária mas não

suficiente para que a mensagem seja transmitida. Tanto que, apesar de o ruído passar

por todo ele, no final resultou em conteúdos diferentes, que não realizaram a

comunicação, a informação. Produziu-se conteúdos diferentes e os humanos sempre

produzem conteúdos diferentes pois as subjetividades são sempre desiguais.

Mais que diferentes o processo, na nossa história, produziu conteúdos incompatíveis,

antagônicos. O amigo de Manuel produziu um determinado conteúdo para um

acontecimento que presenciou: o gato do pai do gajo subiu no telhado. Criou uma

forma - a sentença escrita no telegrama - acreditando que ele provocaria o mesmo

conteúdo no amigo. Pelo equipamento telégrafo passou só a forma porque nenhum

meio é capaz de transmitir conteúdo. Conteúdo não se transfere pois as

subjetividades são atributos pessoais, intransferíveis. O que é possível é coloca-las

em correspondência, compatibiliza-las numa contradição não antagônica de modo a

que produzam conteúdos próximos, que se combinam e se complementam, e não que

Page 15: Humano Versus Idiota LUCIANO CASTRO LIMA* Humano e idiota

se conflitem. E a comunicação, a informação só acontece quando ao conteúdo de

partida, a subjetividade de quem acionou o sistema, corresponde a produção de

conteúdo compatível, não antagônico, na subjetividade que recebe o sinal no final do

processo. Os conteúdos produzidos dependem não do meio, mas tanto das

subjetividades pessoais envolvidas, quanto da subjetividade coletiva criada entre

elas, a cultura. O meio físico é apenas o instrumento material que possibilita a

realização da comunicação mas que, por si próprio, não a garante.

É por isto que a televisão, com seus filmes maravilhosos cheios de efeitos especiais,

o livro, com gravuras e textos extraordinários, o computador conectado a internet que

possibilita o acesso a um gigantesco depósito de dados científicos, artísticos e

culturais, não bastam para que a educação e a aprendizagem aconteçam. Não basta

encher uma pessoa, seja criança ou adulto, de livros, coloca-la na frente de uma

telinha, seja de uma tv à cabo, seja de um monitor conectado ao mundo da internet,

posto que não existe educação à distância; quem afirma que educa à distância está,

na verdade, se distanciando da educação. Os recursos materiais exuberantes não

garantem o movimento educativo que se dá, apenas e tão somente, quando as

subjetividades pessoais começam a se combinar constituindo uma subjetividade

coletiva, também conhecida como cultura, geradora de conteúdos compatíveis, não

antagônicos. Os humanos se comunicam, se educam, se informam produzindo

cultura, que é o encontro das subjetividades pessoais combinando-se na formação da

subjetividade (ou sujeito) coletivo. A educação só acontece no interior de um

movimento produtor de cultura; e a cultura só é produzida quando centrada na

educação.

Um educador por exemplo, de matemática, entra na classe para ensinar logaritmo.

Pode ser que para ele este item do programa tenha um determinado conteúdo. O pior

de tudo é quando, para o professor, o conteúdo é a matéria que vai dar, é a disciplina

que vai ensinar. Quando o conteúdo é a forma, a subjetividade é a matéria, a criação

é a disciplina não há nada a se fazer. Aí o professor atuará para adestrar o aluno no

tema e, muitas vezes, obterá dele, como conteúdo, um sentimento de inutilidade, de

frustração ou de ódio. Mas, no nosso caso, temos mais que um professor, um

educador matemático que atribui significado e conteúdo para este tema, logaritmo.

Page 16: Humano Versus Idiota LUCIANO CASTRO LIMA* Humano e idiota

Apesar disto, para o aluno ele se apresenta como uma forma vazia, trabalho morto,

totalmente desprovido de conteúdo, de significado. Esta é a questão central que se

coloca para o educador: como atuar com as pessoas, como combina-las para que elas

se mobilizem para preencher com os seus conteúdos pessoais, com as suas

subjetividades, aquela forma vazia? Combinar pessoas, movimentos subjetivos

pessoais é criar cultura, sujeito coletivo. O leva a colocarmos a questão da seguinte

forma: como produzir a cultura que mobilize as pessoas para preencherem de

conteúdo a forma logaritmo?

Os idiotas, cretinos da objetividade, pretendem criar o humano idiotizado, a

subjetividade objetivada, o sujeito fora do sujeito, a racionalidade fora da

consciência, a consciência fora do organismo, no mecânico, a subjetividade, a

substância sem matéria, com quarks e gluons. O mecânico é o prolongamento não

orgânico do corpo, é o equipamento extra-corpóreo. Os idiotas pretendem inverter

esta relação: que o corpo passe a ser prolongamento da máquina, que o extra-

corpóreo se torne corpóreo e que o corpóreo se torne extra-corpóreo, que o

prolongamento se torne central (orgânico) e que o central (o orgânico) se torne

prolongamento. Mas o equipamento extracórporeo não pode produzir o significado, o

conteúdo, o sentido, a relação mental, elementos que compõem a subjetividade. Isto

porque qualquer prolongamento não orgânico do corpo, apresenta-se inicialmente

sempre como uma forma vazia que só adquire caráter útil quando preenchido de

conteúdo pelo sujeito. Nenhum equipamento objetivo, mesmo o pós-moderno traz

em si conteúdo, significado. O máximo que traz são relações físicas, materiais, feitas

de partículas de matéria e de força, de supercordas, previamente selecionadas e

combinadas por alguém que as conectou a partir de um significado determinado. Mas

este conteúdo está na subjetividade de quem fez a combinação, o sujeito produtor, e

não de quem entra em contato com ela desconhecendo-a, o sujeito consumidor. Este

primeiro contato se dá sempre, inicialmente, através de reflexos, o fenômeno

material orgânico mais próximo da formação da mente e que lhe serve de base. A

partir daí o sujeito potencialmente consumidor ativará (ou não) a sua usina para

produzir a subjetividade que preencherá (ou não) de conteúdo e significado aquele

objeto. Mas esta subjetividade criada pelo sujeito consumidor nunca será a mesma do

Page 17: Humano Versus Idiota LUCIANO CASTRO LIMA* Humano e idiota

sujeito produtor. Primeiro porque se volta para o consumo e não para a produção;

segundo porque o produtor, assim como o consumidor, tem uma subjetividade que

lhe é própria, a sua marca pessoal, que o distingue de todos os outros sujeitos do

universo, os que já existiram, os que existem e os que vão existir.

As relações materiais, sejam físicas, químicas ou biológicas, acontecem através de

impulsos elétricos, de troca de elétrons, de formação de íons, de reações, da

combinação de supercordas. O significado, o conteúdo, o sentido do eu, a

consciência subjetiva do protagonista, não são dados físicos, materiais. São atributos

humanos que não nasceram com o organismo. São processos psíquicos e culturais

que se formam na combinação do sujeito pessoal com o sujeito coletivo.

O sonho divino de criar sujeito fora do sujeito, vida fora da vida, enquanto estímulo

para criar processos técnicos novos pode ser tolerado. Que o físico, que acha que já

chegou a 0,00001 segundo do big-bang, busque o seu momento exato, o do Fiat lux.

Que o biólogo, que acha estar a 0,00001 segundo do momento da criação da vida,

com os seus genomas e clones, procure o instante preciso em que o barro começa a

pulsar. Nestas brincadeirinhas de Deus podem chegar, aqui e a ali, a conclusões

secundárias interessantes à maneira de Arquimedes que criou o cálculo logaritmo ao

pretender contar os grãos de areia que cabiam no universo. Mas daí tornarem este

rebaixamento do humano, da subjetividade, plano de ação para toda a humanidade já

é uma questão que extrapola aos joguinhos de laboratório. Querem interferir na

caminhada humana, impondo os seus objetivos idiotas e anti humanos aos próprios

humanos! Aí é hora dos humanos darem um basta. Idiotas reduzam-se às suas

insignificâncias. Senhores Franksteins, vocês são deuses apenas para a vossa

patotinha de cretinos. Franksteins economistas: vocês querem impor a vossa verdade

de que o mercado é uma objetividade natural maior do que a humanidade. Boa

viajem! Franksteins políticos: vocês querem impor a vossa verdade de que o estado e

as instituições são objetividades naturais acima da humanidade; boa viajem!

Franksteins sociólogos: vocês querem impor a vossa verdade de que as classes são

formas naturais de organização da humanidade; boa viajem! Franksteins

psicológicos: vocês querem impor a vossa verdade de que os comportamentos

funcionais são as formas naturais de relacionamentos dos humanos; boa viajem!

Page 18: Humano Versus Idiota LUCIANO CASTRO LIMA* Humano e idiota

Frankesteins escolares: vocês querem impor a vossa verdade de que o objeto ensina,

informa e forma o sujeito; boa viajem! Vão com Deus, vocês que já são deuses.

O psíquico não é lógico e, portanto, não é passível de redução algorítmica. O

mecanismo é lógico e, portanto, é algorítmico. O humano é cultural; o mecanismo é

tecnológico. O humano é sempre inesperado, processual, faz-se no movimento. O

mecanismo é sempre esperado, fixado, prévio. O humano é a consciência se

formando no interior do inconsciente. O mecanismo é a lógica, o algoritmo, se

formando no interior da consciência.

A máquina programável é a ultima realização da tecnologia, a transferência completa

do algoritmo para o mecanismo. Os idiotas entendem educação como o contato com

o algoritmo, o que pode ser obtido pela simples relação material e física do homem,

ser inferior, com o mecanismo, ser superior. Para os humanos educação é o

movimento de mobilização do homem para se tornar humano.

Do ponto de vista humano, o homem faz-se a si próprio em processos culturais de

constituição do sujeito coletivo combinado com os sujeitos pessoais. Do ponto de

vista idiota o homem faz-se a si próprio através de algoritmos que podem ser

codificados em programas. O programa novo é o máximo que o idiota pode criar. A

conexão nova, não prevista, artística, que pode ou não corresponder à uma relação

natural é a base do humano. Nenhum mecanismo pode criar o que não está previsto

em sua lógica. Só o humano pode criar o que não é lógico, o que não está previsto.

Receita para fazer o humano

Para facilitar o trabalho dos doutores Franksteins forneceremos, como humilde

contribuição, um rápido roteiro à guisa de receita. Esperamos, com ele, economizar

trabalho idiota, saltando etapas inúteis. Atenção, idiotas de todo o mundo: papel e caneta na

mão!

O universo é uma totalidade em movimento onde tudo se relaciona com tudo

compondo infinitas conexões. O universo é complexo e inesgotável. Cria-lo seria uma

tarefa muito complicada mesmo para vocês, Franksteins sérios e dedicados. Como vimos

um bom número de seres da espécie físicos estão empenhados em produzi-lo em

laboratório. Nada contra. Mas, em nossa receita de criar o humano fora do humano,

Page 19: Humano Versus Idiota LUCIANO CASTRO LIMA* Humano e idiota

recomendamos que esta etapa seja pulada. Ainda bem que o universo já está criado, o que

facilita em muito a vida de idiotas que não são muito chegados na física.

Movimentando-se em suas infinitas relações, a materialidade universal gerou um

movimento particular em seu interior: a vida. As infindáveis conexões materiais

combinaram-se, em si, até que, em dado momento, num salto qualitativo, emerge uma nova

totalidade, a vida. Um dos seus elementos mais simples, a célula, traz, em si, o impulso

vital, a chama do querer viver. A totalidade viva é a combinação de infinitas relações

materiais complexas. Homens superiores e que se intitulam biólogos buscam produzi-la em

laboratório. Mas queremos criar o humano numa receita mais simples e por isto vamos

também pular esta etapa. Afinal, a vida já está criada pelo vosso colega Deus (também

conhecido como Jeová, Alá e quejandos) o que facilitou em muito a vossa tarefa. Alguns

Franksteins biólogos e médicos estão descontentes com esta vida e querem criar uma

melhor. Querem abrir uma concorrência leal e colocar no mercado um produto melhor.

Jóia! Outros idiotas, mais diretos, querem ir logo ao centro da questão e sabem que a vida é

condição necessária mas não suficiente para a geração do humano. Com estes últimos

recomendamos que esta etapa seja pulada nos laboratórios.

Passamos pelos movimentos de criação da matéria e da vida. É certo que os

simplificamos bastante. No interior destes há infinitos movimentos de criação que são

impossíveis de serem listados e descritos. Poderíamos até destacar alguns como os

movimentos de formação dos elementos, das substâncias, das formas de energia na

materialidade universal; e de formação do vegetal, do animal e das diversas espécies na

biosfera. O humano começa no universo material como tudo o que existe. Aprofunda-se na

formação da vida mas não é isto que o faz humano. Até aqui ele não se diferencia enquanto

totalidade no interior de outras totalidades primárias (universos material e vivo). Mas o

importante é que, agora, aproximamo-nos do movimento que nos interessa: o da formação

da consciência. É com ela que se cria o humano. Atenção, Franksteins da alma, da psique e

do sujeito, porque aqui começa a receita do que vos interessa.

Alguns estudiosos da alma nos legaram conceitos importantes que precisamos tomar

como pontos de partida para a nossa receita. Apesar deles não serem idiotas, vocês, que são

convictos, sabem que o objetivo e a ciência estão acima destas veleidades corporativas e

devem considerar o que é importante mesmo quando não vem da confraria dos imbecis.

Page 20: Humano Versus Idiota LUCIANO CASTRO LIMA* Humano e idiota

Tudo que é humano é interessante (“humano non alienum puto est” - tudo que é

humano não me é estranho). Mas para vocês, idiotas científicos, não basta ser humano para

ser interessante. É preciso que seja humano manipulável, isto é, que possa ser invertido e

adquira utilidade para a prática de opressão e exploração. Um humano interessante (e vocês

sabem disto, pelo tanto que tem usado de seus conceitos) é Pavlov com a sua teoria dos

reflexos. Para nossa receita vamos tomar o conceito de reflexo enquanto relação primária

entre todos os elementos da natureza. Tudo reflete em tudo, o grão de areia na estrela (e

vice versa), a luz lâmpada do quarto na luz da super nova (e vice versa). Baseados nesta

idéia os físicos criaram teoria das super cordas. A menor porção de matéria não são

partículas de coisas e sim a relação entre as coisas - cordinhas formadas por partículas de

força.

Tudo está amarrado a tudo pelas super cordinhas. E a matéria viva também é

composta por reflexos. Um ser vivo é composto por células que refletem com tudo o que

existe no universo material. As células, elementos da matéria viva refletem enquanto

matéria mas apresentam uma novidade em relação à matéria morta. É Antonio Damásio

(outro humano interessante) que chama atenção para esta novidade: a célula quer viver, isto

é, traz em si o impulso vital. As relações das células com o universo se dá, portanto, através

de reflexos vitais. Um ser vivo pode ser concebido (atenção, idiotas, uma redução

esquemática como vocês gostam!) como um conjunto de reflexos. É nesta infinidade de

reflexos que se inicia o movimento de formação do humano apesar de que, a sua simples

existência não é ainda a consciência. Certamente que é complicado produzir em laboratório

uma infinidade de reflexos. Mas os idiotas que querem ir direto ao assunto podem pular

esta parte e, como muitos já tem feito desde que foi inventada a tal civilização, tomar

conjuntos de células vivas já dadas pela natureza que atendam pelo nome de Zé ou Maria

da Silva. Trata-se de uma matéria abundante e de grátis.

Continuemos com a nossa receita idiota para produzir o humano. Recomendamos

que seja pego um ser vivo, o homem, que já tem uma combinação especial de células. Se

formos tomar qualquer outro ser vivo será muito complicado produzir nele o humano. Um

vegetal qualquer, por exemplo, dará um trabalho danado para ser humanizado. É muito

mais fácil tornar o homem um vegetal, como vocês, idiotas, tem feito desde as origens da

sociedade, do que fazer do vegetal um homem. Nos dez mil anos do vosso domínio vocês

Page 21: Humano Versus Idiota LUCIANO CASTRO LIMA* Humano e idiota

criaram processos de transformar o homem em todo tipo de animal e vegetal: nabo,

abobrinha, burro de carga, toupeira, cão de guarda, etc. Sabem até transforma-lo em

natureza morta como bucha de canhão, suporte de apoio, alavancas, ferramentas, máquinas,

etc. Transformar homem em coisa, em máquina, é o que vocês mais sabem fazer, p´ra não

dizer que é a única coisa que sabem fazer. Este é o principal saber fazer, a principal técnica

que desenvolveram nestes dez mil anos de domínio. Mas fazer o movimento inverso,

transformar coisas mortas e outros seres vivos, em homens, vocês ainda não conseguiram.

Certamente porque nunca interessou. Aliás foi quando o trabalho humano por fim gerou a

máquina programável que vocês tiveram a súbita inspiração de que podem produzir o

humano a partir das coisas já que para vocês o mecanismo é a máxima expressão do

humano.

Nós vamos tomar o casal Silva (Zé e Maria) como matéria prima para a produção do

humano. Já vocês querem produzi-lo a partir da máquina programável. Como nós não

estamos interessados nisto, vamos aplicando a nossa receita nos seres de carne e osso

enquanto vocês a vão convertendo para seres de aço e plástico. O homem (ou a mulher) é

um conjunto articulado de reflexos vivos enquanto a máquina programável é um conjunto

articulado de reflexos mortos. Alguns consideram a máquina programável um organismo

vivo porque entendem o reflexo como puro impulso elétrico. Há controvérsias. Para supera-

las aceitemos o bit como matéria viva. Os idiotas mais exigentes, não satisfeitos com esta

simplificação, tem uma lição de casa: criar uma máquina programável com células, isto é,

com matéria viva (desde que ela não seja o homem, pois este já é nossa matéria prima).

Esta infindável rede de reflexos corpóreos é recolhida em todo o organismo por um

sistema de células especiais chamado sistema nervoso. Os terminais nervosos, espalhados

por todo o corpo, conduzem estes reflexos da periferia (sistema nervoso periférico) até o

núcleo cerebral (sistema nervoso central) formado por outras células especiais, os

neurônios. Como esta condução se dá por impulsos elétricos é fácil vocês reproduzi-las nos

vossos mecanismos eletrônicos. Para desempenhar a função dos terminais nervosos vocês

dispõem das células foto-elétricas e outro tipos de mecanismos. Em contrapartida ao

cérebro humano vocês dispõem do tal cérebro eletrônico, o disco rígido que apresenta uma

vantagem: enquanto o que trazemos em nossa cabeça tem um número limitado de

Page 22: Humano Versus Idiota LUCIANO CASTRO LIMA* Humano e idiota

neurônios (alguns bilhões, aproximadamente dez, dizem os contadores de células) vocês

podem colocar muito mais no HD: quantas forem necessárias para as funções desejadas.

A sensação

Ao chegar no cérebro, os reflexos provocam impulsos elétricos entre os neurônios

(as sinapses).

A base de todo esse processo é a célula nervosa - que se chama neurônio. Um

neurônio é composto de um corpo celular e de prolongamentos deste, que

funcionam como fios elétricos que conduzem o impulso nervoso. O ponto-

chave do processo de passagem do impulso nervoso é a sinapse, o microscópico

intervalo entre a ponta de um neurônio e o começo do neurônio seguinte. Como

acontece com pedaços de um fio elétrico, para que o impulso passe (e se

transmita de um neurônio para o outro), é preciso que esse espaço seja

preenchido por substâncias químicas - os neurotransmissores. Os diferentes

tipos de neurotransmissores afetam diversas regiões do cérebro, e precisam ser

fabricados continuamente, pois sem eles as mensagens elétricas não passariam

de um neurônio para outro e a comunicação ficaria interrompida. A mensagem

se perderia no meio do caminho, sem atingir o cérebro ou a parte do corpo que

deveria obedecer à ordem enviada pelo cérebro. Mas os neurotransmissores tem

de ser destruídos depois da passagem do impulso, caso contrário a mensagem

ficaria reverberando por ali, e a sinapse ficaria bloqueada para a transmissão de

novos impulsos. (Aratangy, Lídia Rosenberg - Doces venenos - Editora Olho

D´agua - SP/2000)

Nos neurônios os reflexos, que são relações primárias, passam a ser relacionados

entre. Estas relações de relações (relações secundárias) constituem o que os humanos

chamam de sensações. Em vossa máquina programável vocês já sabem como criar algo

fisicamente parecido com a sinapse: a conexão entre os bits. O problema é como tornar a

sinapse uma sensação. É a relação entre o impulso elétrico orgânico e a sensação que

começa a se constituir o psíquico, a mente. A sinapse é material, a sensação não. Sem

sinapse não há sensação. Mas a sinapse não é sensação, é o seu suporte material. O medo é

um impulso elétrico mas um impulso elétrico não é um medo. Como superar esta

Page 23: Humano Versus Idiota LUCIANO CASTRO LIMA* Humano e idiota

contradição? Como tornar um impulso elétrico numa sensação? Mais que isto, como

diferenciar, no impulso elétrico, as várias sensações (medo, alegria, angústia, satisfação)?

Uma sensação é um impulso elétrico. Esta aí a sua base material. Mas a sensação já é feita

daquela substância sem matéria, sem quark ou gluon. Como produzir na matéria impulso

elétrico esta substância não material? Mais ainda como objetivar nela as variações

qualitativas de medo, satisfação, prazer, etc, que só subjetivamente são percebidas?

Cavalheiros, é este processo de correspondência entre o material e o psíquico que os

neurologistas ainda não desvendaram. Esta aí a primeira lição de casa para vocês: como

transformar o impulso elétrico da máquina programável numa sensação da máquina? Como

mecanizar a sensação? O próximo passo da nossa receita só será possível depois de

respondido esta primeira questão fundamental. Mas, para não travar por milênios o nosso

esquema (será que, algum dia, será resolvida esta questão?) vamos considera-la respondida,

pois na nossa matéria prima, o homem, podemos continuar a nossa busca da criação do

humano.

O inconsciente

Temos a vantagem do Zé (e da Maria) já trazerem em seus corpos, em si, a solução

da conversão da relação elétrica em sensação. Os seus cérebros elaboram uma infinidade de

sensações, apesar deles não saberem disto. Em cada instante produzem um oceano de

sensações que se ajuntam com o gigantesco oceano já produzido. Este mare nostrum

ilimitado forma o que Freud (mais um humano interessante) chamou de inconsciente. Daí

extraímos a próxima lição de casa para vocês, meus caros idiotas que pretendem fabricar o

humano em série: resolvido o problema da sensação passem a se dedicar, imediatamente,

para resolver o problema da criação do inconsciente. Dica: façam algo análogo ao que

fizeram com os reflexos. O corpo é um conjunto infindável de reflexos. O inconsciente é

um conjunto infindável de sensações. Vocês tiveram de criar um processo material que,

análogo à transformação da sinapse em sensação, transformasse o impulso elétrico interior

da máquina programável, no correlato da sensação, uma espécie de choquinho que tocasse

não vocês mas o corpo mecânico. É difícil? Virem-se, problema de vocês, os deuses. Ao

fazerem isto terão dado um gigantesco passo do tipo um pequeno passo para um homem,

Page 24: Humano Versus Idiota LUCIANO CASTRO LIMA* Humano e idiota

um enorme passo para a humanidade (entenda-se, “idiotidade”): terão começado a criar o

inconsciente mecânico.

A emoção

Mas o inconsciente não é apenas um infindável oceano de sensações. As sensações,

neste nosso esquema reducionista e empobrecedor da vida (como todo bom esquema deve

ser), constituem o correspondente psíquico das supercordas materiais. São supercordinhas

sem partículas, sem matéria, que não ocupam espaço nem se subordinam ao tempo. Geniais

como só vocês são, já devem ter criado estas supercordas sem partículas no interior da

máquina programável. Vamos, pois, em frente que o mais difícil ainda está por vir. Assim

como os reflexos se relacionam gerando as sensações, estas também se conectam gerando

as emoções. A emoção é uma produção do inconsciente. Ao conectar as sensações entre si

ele produz a emoção, a menor partícula não material do sentimento. Desculpem o abuso

com que lanço mão das palavras: partícula não material realmente é uma enorme besteira.

Mas como considero suprema besteira a intenção de vocês de produzirem o humano em

laboratório, fica tudo elas por elas. Não se esqueçam que, do ponto de vista da imaginação

tudo é possível. Já que vocês imaginam produzir o humano em série, apelo para que vossa

fantasia crie uma partícula não material. Difícil, muito mais difícil que imagina-la vai ser

fabrica-la materialmente. Dificil, extremamente difícil, como dizia o cantor do Bradesco!

Mas é exatamente a isto que vocês se propõem: do material extrair o psíquico, do objeto

chegar no sujeito, da corrente elétrica chegar no amor (apesar de, geralmente, chegarem

com facilidade ao ódio). Boa sorte!

A percepção

Já criaram a emoção na máquina programável? Muito bem! Próximo passo, criar a

percepção. As infindáveis cordinhas das emoções (e são tantas as emoções!) vão se

relacionando umas com as outras, amarrando-se entre si e desamarrando-se das travas da

materialidade, do chamado real, arrumando o que estava jogado e desarrumando o que já

estava arrumado na natureza. Tecem-se, nesta dinâmica psíquica, cordas maiores chamadas

sentimentos. E os sentimentos vão se costurando, chamando os neurônios para a produção

de sinapses especiais, sobre um mesmo objeto. São as percepções. As percepções

Page 25: Humano Versus Idiota LUCIANO CASTRO LIMA* Humano e idiota

constituem um mar especial que se constitui no interior do oceano do inconsciente. Este

mar especial Freud chamou de pré-consciente.

Criem a percepção mecânica, na máquina programável, e terão criado o pré-

conciente mecânico. Novamente um passo pigmeu para o indivíduo se torna o passo de titã

para a “humanidade”. Se este não acontecer restará, infelizmente, somente o passo de

pigmeu. Mas tenham fé e imaginem-se produtor de máquinas dotadas de inconsciente e pré

consciente mecânicos. Estais no umbral do humano, a 0,00001s dele. Mais um passo e

chegareis lá. Vamos a ele.

O eu

Freud nos explica que as percepções desenvolvidas no pré-consciente podem criar

novos nexos entre si ou não. Se não, elas tendem a retornar para a condição inconsciente.

No caso de criarem novos nexos, novas cordas mais fortes, apesar de não materiais, elas

evoluem para a condição de idéias. Estas são criações pessoais, super cordas grossas e

presentes, que tecem o pano da consciência pessoal. Quando começa a criar idéias, o

movimento de criação da psique começa a entrar no ambiente humano, produzindo-o,

reproduzindo-o e o ampliando e aprofundando. Uma das primeiras idéias que a mente gera

neste ambiente, a idéia fundamental, é a do eu. Com ela surge a consciência, o

reconhecimento e a identificação que o sujeito produz de que é ele, o seu eu, quem está ali,

imaginando, ligando percepções (que são suas) e chegando a conclusões (que também são

suas, e não do outro). Com o eu surge a consciência, a pessoa, o sujeito que elabora planos,

prevê resultados, faz experiências e sintetiza os seus resultados, enfim, o homem que traça

a rota do seu movimento pessoal, o navegador de si próprio, que faz o caminho, o homem

humano. É este eu,quem dá peso às coisas, que atribui significado às sensações e

percepções, quem avalia as emoções, que administra os becos sem saídas da vida,

encontrando sempre as saídas ocultadas. É este eu, a consciência pessoal, que enche as

formas com conteúdo, um conteúdo só seu, pessoal, intransferível. É nele que as

infindáveis sensações geradas dos infinitos reflexos dos infinitos momentos vividos, que se

transformaram em múltiplas emoções, geradoras de variados sentimentos, que articularam

tantas percepções que teceram as múltiplas idéias conscientes, condensam a vida pessoal

num conjunto de critérios, a partir do qual aquele ser humano avalia o que é significativo

Page 26: Humano Versus Idiota LUCIANO CASTRO LIMA* Humano e idiota

ou não, o que é interessante ou não, o que é bom ou não, o que é conteúdo ou não, o que

essencial ou não. Esta imensa riqueza que torna cada ser humano original, único, é

chamada de subjetividade.

A consciência pessoal

A consciência surge no interior da pré-consciência e é tão grande quanto uma gota

no oceano do inconsciente. Trata-se de um euzinho tão pequeno quanto pretensioso. Do

fundo da sua pequenez a gota preenche com os seus valores, com os seus nexos, com o seu

conteúdo todas as formas que se apresentam que, apesar de plenas de suas relações

materiais em si, apresentam-se para aquele eu, para si, vazias, a espera do significado que o

sujeito vai lhe atribuir. É neste eu que se realiza o humano. Para vocês, idiotas que já

produziram o inconsciente e o pré consciente mecânicos, que já sintetizaram a sensação, a

emoção, o sentimento e a percepção em laboratório, não será tão difícil assim fabricar a

idéia pessoal e, com ela o eu. Portanto, mãos à obra, cretinos.

A consciência coletiva

E se vocês acharam difícil produzir a sensação, a emoção, o sentimento, a

percepção, o significado, a idéia e o eu na maquina individualizada, pois agora é que vai

começar a dificuldade maior! Este movimento individual, que acontece na unidade homem

ou mulher (Zé ou Maria, ou no Zé Maria), só se realizará se for desencadeado e

impulsionado de fora do indivíduo. Sem indivíduo não há o humano mas não basta existir o

indivíduo para que o humano se faça. Vigostky, mais um humano interessante, explica que

este movimento de formação da consciência, da pessoa, do humano, não acontece por si só,

em si, biológico e geneticamente no interior do corpo individual, do organismo que

constitui a individualidade.

Para sobreviver na natureza cada ser vivo animal dispõe, inicialmente, apenas dos

seus dois instintos primários e fundamentais: de vida e de morte. Logo o indivíduo, a

unidade animal instintivamente cria a sensação de que a individualidade é muito pouco,

muito vulnerável e frágil, frente à totalidade natural. Os instintos semelhantes,

instintivamente, procuram se ajuntar para fortalecer as individualidades isoladas. A procura

dos instintos mais próximos, entre eles o principal é o da reprodução, possibilita que, em

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primeiro lugar se unam em grupos os animais da mesma espécie. Formam, assim, a

manada: a combinação dos instintos dos seres da mesma espécie (entre eles o homem) para

a composição de agrupamentos que fortaleçam pela quantidade a fraqueza qualitativa de

cada individuo isolado. A manada é ainda um instinto, só que coletivo pois implica na

combinação dos instintos individuais, gerando a sensação coletiva. É, por isto, um instinto

superior, que possibilita à espécie ações mais complexas de defesa e de vida.

Na manada os instintos individuais vão sendo elaborados e combinados de modo

que as diferentes espécies e os diferentes agrupamentos nas espécies vão criando

combinações originais que se aprofundam desigualmente conforme a qualidade dos

problemas que a natureza apresenta especificamente e das soluções encontradas pelos

grupos. Entre elas a espécie humana se destacou criando variações cada vez mais originais

e em quantidades cada vez maiores. Num determinado momento a evolução da relação

individuo/manada entre os homens realiza um salto qualitativo gerando a comunidade.

A base sobre a qual se forma a manada é constituída pelos instintos semelhantes. E

o produto da manada é a sensação coletiva. A manada atua com os inconscientes pessoais e

gera o inconsciente coletivo. A comunidade se forma a partir da sensação coletiva da

manada. Ela elabora a combinação das sensações individuais com a sensação coletiva e,

neste processo, produz a percepção coletiva. E ao faze-lo gera dois processos desiguais e

combinados: os sujeitos pessoais e coletivo. Este duplo movimento combinado constitui a

pré-consciência coletiva. A comunidade se realiza no interior da manada assim como a pré-

consciência se sintetiza no interior da inconsciência. Assim como o surgimento da pré-

consciência não implica no fim da inconsciência, do surgimento da comunidade não

decorre o fim da manada. Ambas coexistem enquanto contrários de uma nova unidade,

onde no pólo da manada prevalece o instinto, e no pólo da comunidade prevalece o afeto.

Elaborando a percepção coletiva a comunidade gera a cultura, que é o plano de ação

coletivo que é a orientação resultante para a combinação dos sujeitos pessoais com o sujeito

coletivo.

Na comunidade os processos culturais se desenvolvem numa continuidade que

atravessa gerações resultando em diferentes culturas e etnias. Esta variação se aprofunda e

se diversifica até a produção de um novo salto qualitativo em que é gerada uma nova

combinação dos sujeitos pessoais com o sujeito coletivo: a coletividade. A coletividade é o

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sujeito coletivo que se forma a partir de uma cultura determinada e a aprofunda até torna-la

produtora de conceitos, de processos lógicos e de pensamentos.

A coletividade se forma tendo como base a percepção coletiva da comunidade. Ela

elabora a combinação das percepções individuais que se expressam enquanto idéias

pessoais, com a percepção coletiva, na forma de idéia coletiva e, neste processo, produz o

pensamento, a idéia coletiva definida como referencia geral. Idéia e pensamento, neste

caso, são processos diferentes como nos explica Byon. Idéia é uma elaboração pessoal

enquanto pensamento é uma elaboração coletiva e histórica. Os processos culturais que

geram pensamentos chamamos de conceitos. Este movimento que combina história e

cultura, conceito e pensamento, lógica com criação, constitui a consciência coletiva. A

coletividade se realiza no interior da comunidade assim como a consciência se sintetiza no

interior da pré-consciência. Dois movimentos coletivos combinados e desiguais que se

desenvolvem em paralelo: num aspecto, constituindo a base da partida, a manada e no outro

aspecto., a inconsciência coletiva tecida a partir das inconsciências pessoais. Em seguida,

no inteior destes temos, respectivamente, a formação da comunidade num aspecto, e no

outro, a formação da pré-consciência coletiva, tecida a partir das pré-consciências pessoais.

E por fim, temos, no interior da comunidade a formação de coletividades, e, no interior da

pré-consciência coletiva a consciência também coletiva, costurada com as consciências

pessoais, e que constitui a racionalidade humana. Desta forma a manada coexiste com a

coletividade, a irracionalidade com a razão, o instinto com o conceito, numa totalidade

complexa e sutil que quero ver vocês, senhores idiotas, reproduzirem em laboratório.

É certo que vocês tem tentado materializar a cultura. Mas, sinto muito: os processos

culturais e conceituais jamais serão sintetizados em laboratório. Do movimento cultural o

que se pode materializar é o que Gordon Childe (olha aí, mais um humano interessante)

chamou de equipamento cultural. São os ritos, as celebrações, as proibições invisíveis (os

tabus), os rituais, as tradições que podem ser registradas em calendários, em leis, em

decretos oficiais, em cerimônias com pompa e circunstância, em feriados federais,

estaduais ou municipais, em monumentos (os totens) e outras formas concretas. Isto no lado

grandiloquente. Do lado cotidiano o máximo que vocês tem conseguido é fabricar lixo

cultural, restos de lixo humano, excrementos que sobram depois da digestão da cultura

criada pelos povos em sua luta vital pela sobrevivência.

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Frank Júnior

Mas o mais chato de tudo isto, o mais desagradável desta questão da produção do

humano em laboratório é que, imaginando (porque imaginar é sempre possível) que vocês,

idiotas, consigam fazer cada uma das lições de casa que nós estabelecemos em cada passo,

com o mesmo zelo com que as equipes de FHC e de Lula fazem as lições determinadas

pelo Sistema financeiro mundial; que se vocês conseguirem produzir em laboratório a

sensação, emoção, sentimento, percepção, idéia e pensamento pessoais e coletivos, assim

mesmo, no final, vocês não terão conseguido produzir o humano do mesmo modo que

Palocci e Malan, Zé Dirceu e Serra não produziram desenvolvimento apesar de toda a

subserviência com que cumpriram os seus deveres. Simplesmente porque a receita que

passamos acima não consegue ultrapassar (e jamais uma receita ultrapassará) o limite de

um reles sistema. E um sistema só consegue parir outro sistema do mesmo modo que um

rinoceronte só pode gerar, se estiver saudável, outro rinoceronte. Paloccis geram

paloccinhos, Zes Dirceus, Zédirceuzinhos, tecnocratas, tecnocratinhos, idiotas, idiotinhas, e

máquinas, maquininhas. No final, o máximo que sairia da vossa linha de produção seria

uma espécie de Frank júnior, um Frankstein pós-moderno. E assim, usando o método

matemático conhecido como Reductio ad absurdium (redução ao absurdo, que consiste em

admitir o absurdo, no caso idiotas produzindo o humano, como verdadeiro), tereis

demonstrado para vocês mesmos, em seus próprios laboratórios e com os métodos e

técnicas que lhes são próprios, a nossa tese central: Só o humano pode gerar o humano.

E no final ainda resta uma esperança. A de vocês, nesta procura insana de produzir o

humano, se humanizarem. O que se leva desta vida é a vida que se leva. Tomara que o

resultado humanizante que vocês procuravam fora de vocês aconteça em vocês mesmos, na

vida que vocês levaram procurando levar algo desta vida. Vocês tem potencial para isto

afinal tiveram (e tomara que tenham ainda) mãe, pai, amigos, namoradas, amantes, medos,

prazeres, e tudo que cabem a todos os homens para se tornarem humanos. Prestem atenção

porque a tal verdade pode estar embaixo dos vossos narizes, onde geralmente está, e vocês

ainda não perceberam: se oriente, rapaz.

* Luciano Castro Lima é educador popular e professor.

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