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2 A intertextualidade na teoria literária e nos estudos bíblicos Nesta parte será apresentada a conceituação e as principais características da intertextualidade tanto na teoria literária quanto nos estudos bíblicos. 2.1 O conceito de intertextualidade A conceituação da intertextualidade compreenderá a definição do termo, suas formas, seus graus e suas manifestações. 2.1.1 A definição de intertextualidade O termo intertextualidade foi cunhado por Julia Kristeva, nos anos 60, quando analisava os estudos da linguagem desenvolvidos pelo formalista russo Mikhail Bakhtin. 1 Repensando a teoria de Bakhtin sobre a dimensão da palavra nos espaços dos textos e, principalmente, sobre o conceito de dialogismo 2 , Julia Kristeva, no quarto 1 Cf. ORR, Mary. Intertextuality: Debates and Contexts. Cambridge: Polity Press, 2003, p. 20; ALLEN, Ghaham. Intertextuality (The New Critical Idiom). London: Routledge, 2000, p.39; VIGNER, Gerard. Intertextualidade, norma e legibilidade. In: GALVES, Charlotte; ORLANDI, Eni P. & OTONI, Paulo. O texto, leitura e escrita. Campinas: Pontes, 1997, p.32. 2 Para Bakhtin a linguagem é dialógica, pois se manifesta sempre entre um falante e um interlocutor que, por sua vez, trazem nos seus enunciados ecos de outros enunciados. Para ele, todo discurso humano é uma rede complexa de inter-relações dialógicas com outros enunciados. Esse elemento dialógico é oposto à ideia de monólogo, no qual os enunciados são proferidos por uma única pessoa ou entidade. A oposição está no fato do primeiro ser constituído de apenas uma voz e reconhecer somente a si mesmo e o seu objeto, não considerando a palavra do outro; ao passo que o segundo, além de ser composto por duas ou mais vozes, leva em conta a palavra do(s) interlocutor(es) e as condições concretas da comunicação verbal. Através do conceito de dialogismo Bakhtin também defende que os

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A intertextualidade na teoria literária e nos estudos bíblicos

Nesta parte será apresentada a conceituação e as principais características da

intertextualidade tanto na teoria literária quanto nos estudos bíblicos.

2.1

O conceito de intertextualidade

A conceituação da intertextualidade compreenderá a definição do termo, suas

formas, seus graus e suas manifestações.

2.1.1

A definição de intertextualidade

O termo intertextualidade foi cunhado por Julia Kristeva, nos anos 60, quando

analisava os estudos da linguagem desenvolvidos pelo formalista russo Mikhail

Bakhtin.1

Repensando a teoria de Bakhtin sobre a dimensão da palavra nos espaços dos

textos e, principalmente, sobre o conceito de dialogismo2, Julia Kristeva, no quarto

1 Cf. ORR, Mary. Intertextuality: Debates and Contexts. Cambridge: Polity Press, 2003, p. 20; ALLEN, Ghaham. Intertextuality (The New Critical Idiom). London: Routledge, 2000, p.39; VIGNER, Gerard. Intertextualidade, norma e legibilidade. In: GALVES, Charlotte; ORLANDI, Eni P. & OTONI, Paulo. O texto, leitura e escrita. Campinas: Pontes, 1997, p.32. 2 Para Bakhtin a linguagem é dialógica, pois se manifesta sempre entre um falante e um interlocutor que, por sua vez, trazem nos seus enunciados ecos de outros enunciados. Para ele, todo discurso humano é uma rede complexa de inter-relações dialógicas com outros enunciados. Esse elemento dialógico é oposto à ideia de monólogo, no qual os enunciados são proferidos por uma única pessoa ou entidade. A oposição está no fato do primeiro ser constituído de apenas uma voz e reconhecer somente a si mesmo e o seu objeto, não considerando a palavra do outro; ao passo que o segundo, além de ser composto por duas ou mais vozes, leva em conta a palavra do(s) interlocutor(es) e as condições concretas da comunicação verbal. Através do conceito de dialogismo Bakhtin também defende que os

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capítulo do seu ensaio de Introdução à Semanálise, “A Palavra, o Diálogo e o

Romance”,3 diz que “a palavra (o texto) é um cruzamento de palavras (de textos),

onde se lê, pelo menos, uma outra palavra (texto).4

É com essa frase que Kristeva cunha, elabora e fixa o conceito de

intertextualidade, dizendo que um texto é um conjunto de enunciados, tomados de

outros textos, que se cruzam e se relacionam ou que “todo texto se constrói como

mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um em outro texto”.5

Essa concepção de texto como “mosaico de citações” acarreta a infinita

reinvenção e repetição de formas e conteúdos, uma rede interminável em que

diferentes sequências transformam-se em outras sequências, (re)utilizando de

incontáveis maneiras os materiais textuais existentes.6 Em outras palavras, um texto

só existe em relação a outros textos anteriormente produzidos, seja em conformidade

ou em oposição ao texto preexistente.7

falantes e os interlocutores, através do diálogo, constituem-se enquanto ser histórico e social, pois cada enunciado exposto é realizado a partir de uma perspectiva de visão do mundo, que reflete a procedência sócio-histórica e cultural do sujeito falante. No âmbito textual, para este formalista russo, todo texto apresenta uma dupla relação dialógica: (1) entre os interlocutores e (2) entre outros textos. Cf. conceito de dialogismo em: LIPTAK, Roman. Tides of Intertextuality. In: Coming to terms with

intertextuality: Metodology Behind Biblical Criticism Past and Present. Dissertation. Department of Ancient Languages. University of Pretoria, 2003, pp. 10-20; JUNQUEIRA, Fernanda Gomes Coelho. Dialogismo, Polifonia e Construção de conhecimento. In: Confronto de vozes discursivas no contexto

escolar: percepções sobre o ensino de gramática da língua portuguesa. Dissertação. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Letras, 2003, pp. 23-32; LESIC-THOMAS, Andrea. Behind Bakhtin: Russian Formalism and Kristeva's Intertextuality. Paragraph, vol. 28, n.3, 2005, pp.1-20; PAULINO, Graça; WALTY, Ivete e CURY, Maria Zilda. Intertextualidades: Teoria e

Prática. São Paulo: Formato/Saraiva, 2005, p. 21. 3 ALLEN , Ghaham. Intertextuality (The New Critical Idiom). London: Routledge, 2000, pp. 14-15 e 35-36; PROENÇA FILHO, Domício. A Linguagem Literária. 7ª ed. São Paulo: Ática, 2004, p. 70; BAEL, Timothy. Ideology and Intertextuality: Susplus of Meaing ad Crontrolling the Means of Production. In: FEWELL, Danna Nolan (ed). Reading Between Texts: Intertextuality and the Hebrew

Bible (Literary Currents in Biblical Interpretation). Louisville: Westminster/John Knox Press, 1992, p.29; KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. 2ª edição. Trad. Lúcia Helena França Ferraz. São Paulo: Perspectiva, 2005, pp. 67-68. 4 KRISTEVA, Julia, op .cit., p. 68. 5 KRISTEVA, Julia, loc.cit. 6 PINEDA CACHERO, Antonio. Comunicación e intertextualidad en el cuarto de atrás, de Carmen Martín Gaite (1ª. parte): literatura versus propaganda. Revista Especulo, n.16, nov. 2000/fev. 2001. Disponível em: <http://www.ucm.es/info/especulo/numero16/pineda1.html>. Acesso em 16 ago. 2006 ao referir-se à intertextualidade na obra El cuarto de atrás, de Carmen Martín Gaite, diz: “Textos sobre textos, textos dentro de textos, textos que condicionan y configuran la lectura de otros textos, y que, en última instancia, determinan el mundo de la protagonista.” 7 VIGNER, Gerard. Intertextualidade, norma e legibilidade, p. 32.

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Para Kristeva, o texto literário é uma rede de conexões.8 Por isso, a inserção de

elementos dentro do texto constrói uma rede dialógica da escritura-leitura. Um texto

estranho entra na rede da escritura e esta o absorve. Assim, no programa de um texto,

funcionam todos os textos do espaço lido pelo escritor.9 Nesse sentido, ler é

reinterpretar e perceber o trabalho de reescritura.10

Segundo a crítica francesa, a intertextualidade é um fenômeno que se encontra

na base do próprio texto literário, imbricada com sua inserção num múltiplo conjunto

de práticas sociais relevantes. A partir de Kristeva, texto passa a ser entendido como o

evento situado na história e na sociedade, que não apenas reflete uma situação, mas é

a própria situação. Pelo seu modo de escrever, lendo o corpus literário anterior ou

sincrônico, o autor vive na história, e a sociedade se escreve no texto.11

Após Kristeva, vários estudiosos ampliaram as noções de intertextualidade

possibilitando o surgimento de novas teorias, conceitos e aplicações do termo, como

as desenvolvidas por Roland Barthes – que aliou o termo à “morte do autor” – e

Jacques Derrida.12

2.1.2

As formas e os graus de intertextualidade

A intertextualidade tem duas formas básicas: interna e externa. A

intertextualidade interna é compreendida como a relação feita entre dois textos do

mesmo campo discursivo ou corrente de conhecimento.13 Koch, que denomina essa

8 KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise, p. 99. 9 KRISTEVA, Julia., op.cit., pp. 67-68. 10 VIGNER, Gerard. Intertextualidade, norma e legibilidade, p. 34. 11 KRISTEVA, Julia., op.cit.., pp. 66-67. 12 ORR, Mary. Intertextuality, pp. 21-22. 13 MAINGUENEAU, Dominique. Novas Tendências em Análise do Discurso. Campinas: Pontos, 1989, p. 87; BRANDÃO, Maria Helena Nagamine. Introdução à análise do discurso. 2ª ed. São Paulo: Unicamp, 1993, p. 76; CHARAUDEAU, Patrick e MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de

Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2004, p. 289; KOCH, Ingedore Villaça. O Texto e a

Construção dos Sentidos. São Paulo: Contexto, 2005, p. 62. Diz-se que quando um advogado redige uma petição e cita artigos da Constituição Federal, faz uma intertextualidade com textos de mesmo campo discursivo – neste caso, do direito –, entre a sua petição (novo texto jurídico) e o texto do Constituição (antigo texto jurídico).

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forma de intertextualidade de conteúdo, acrescenta que os textos em diálogo, além de

serem do campo discursivo, se servem de conceitos e expressões comuns.14 A

intertextualidade externa é entendida como relação dum texto com outro texto e feita

entre um discurso e discursos de campos distintos.15

Além de ser interna e externa, a intertextualidade pode ser explícita e implícita.

A intertextualidade é explícita quando a fonte usada está explícita no novo texto

através de citações e referências16 e é implícita quando ocorre sem a citação expressa

da fonte, mas através da alusão, paródia, ironia e paráfrase, tornando perceptível ao

leitor com qual texto se está dialogando.17

A relação entre os textos também é mesurada em graus. Para Carlos Reis, a

intertextualidade tem três graus: (1) mínimo, (2) médio e (3) máximo. O grau mínimo

de intertextualidade é marcado pelas características formais, como o ritmo e as

estruturas narrativas e os tipos de personagem. O grau médio é marcado por reflexos

discretos de uns textos em outros que, por continuidade ou por rejeição, contribuem

para a configuração do espaço intertextual. O grau máximo, quando um texto altera

ou não o sentido de outro pela presença das epígrafes, citações e referências.18

14 KOCH, Ingedore Villaça. O Texto e a Construção dos Sentidos, p. 62. 15 MAINGUENEAU, Dominique. Novas Tendências em Análise do Discurso, p.87; BRANDÃO, Maria Helena Nagamine. Introdução à análise do discurso, p. 76 e CHARAUDEAU, Patrick e MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de Análise do Discurso, p. 289. A matéria da revista Veja “Quanto o cérebro é o médico e o monstro” (São Paulo, 28 de junho de 2006, edição 1962, n.25) ao relacionar literatura com medicina utilizou-se de uma intertextualidade externa. Ao abordar o impacto das emoções e da psique na cura das doenças faz uma alusão ao clássico “O Médico e o Monstro” (STEVENSON, R. L. O Médico e o Monstro. São Paulo: Martin Claret, 2002) e usa a dualidade do personagem principal de R. L. Stevenson, que tinha dentro de si um lado bom e um lado mau, para aludir a pessoas que tanto podem somatizar como ajudar no processo da cura das doenças. 16 KOCH, Ingedore Villaça. O Texto e a Construção dos Sentidos, p. 63. 17 KOCH, Ingedore Villaça, loc.cit. Como exemplo de intertextualidade implícita tem-se o quadro no programa Fantástico, da Rede Globo, “Ser ou não Ser”, da filósofa e escritora Viviane Mosé, que faz uma alusão à conhecida frase de Shakespeare em “Hamlet” e remete o telespectador à pergunta existencial da filosofia. 18 REIS, Carlos. Técnicas de Análise Textual – Introdução à Leitura Crítica do Texto Literário. Coimbra: Almedina, 1981, p.133. Como exemplo de grau mínimo tem-se o poema “O Amor Bate na Aorta”, de Carlos Drummond, que faz referência a Carlitos, um famoso personagem cinematográfico: “Meu bem, não chores, / hoje tem filme de Carlito!”. Exemplo de grau médio é a capa e a matéria principal da revista Veja, “Apocalipse já”, onde se faz alusão ao livro do Apocalipse e as catástrofes como indícios de final dos tempos. Como exemplo grau máximo tem-se a primeira estrofe do poema “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias: “Minha terra tem palmeiras, / Onde canta o sabiá; / As aves, que aqui gorjeiam, / Não gorjeiam como lá”, que tem seu sentido alterado quando citado por Oswald de Andrade: “Minha terra tem palmares / onde gorjeia o mar / os passarinhos daqui / não cantam como os de lá”.

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Ampliando essa classificação, Markl aponta cinco critérios para medir os graus

de intertextualidade: (1) Referência (considera-se a intensidade das referências entre

os textos e em que medida um texto espelha outro pela temática); (2) Comunicação

(se há ou não a clareza acerca da relação entre os textos; se há como determinar que

um texto queira referir-se com outro; se o autor deixa algum traço de que conhece o

outro texto, através de indicações como a utilização de termos, expressões,

construções); (3) Estrutura (a proporção em que os textos apresentam elementos que

mostram semelhanças de função dentro da estrutura do texto); (4) Seletividade (a

proporção do uso das palavras entre os textos e em relação aos restantes textos); e (5)

Diálogo (o espelhamento da tensão semântica e de pensamento entre os dois textos e

em que medida os contextos dos textos se relacionam nestes dois aspectos).19

Para o autor, dá-se o grau máximo de intertextualidade: (a) quanto menor for a

frequência dos elementos linguísticos comuns aos dois textos na Bíblia; (b) quanto

maior for o número dos elementos linguísticos entre os dois textos; e (c) quando há

termos e expressões que são utilizados exclusivamente entre dois textos.20

Enquanto presença de um texto em outro texto, a intertextualidade é

manifestada na estrutura do texto, nas personagens e suas ações, na trama dos fatos,

em referências a determinados objetos, enfim, em tudo que estabelece um diálogo

entre os textos. Esse diálogo manifesta-se pela presença de epígrafe, citação,

referência, alusão, eco, traço, paráfrase, paródia, ironia e pastiche. 21

19 MARKL, D. Hab 3 in intertextueller und kontextueller Sicht, Bib, n.85, 2004, p.100. 20 Segundo Markl, o critério (c) seria o que Fischer chamou de “exklusive Verbindungen”. Cf. G. Fischer, Das Trostbüchlein. Text, Komposition und Theologie von Jer 30–31 (SBB 26). Stuttgart: 1993, pp. 186-224. 21 Vários autores sinalizam sobre as manifestações da intertextualidade, conf. em MISCALL, Peter. Isaiah: New Heavens, New Earth, New Book. In: FEWELL, Danna Nolan (ed). Reading Between

Texts: Intertextuality and the Hebrew Bible (Literary Currents in Biblical Interpretation). Louisville: Westminster/John Knox Press, 1992, p. 44 diz que a intertextualidade pode ser baseada em citações, referências diretas, alusões, semelhanças de palavras, etc.; RASHKOW, Ilona N. Intertextuality, Transference and the Reader in/of Genesis 12 and 20. In: FEWELL, Danna Nolan (ed). Reading

Between Texts: Intertextuality and the Hebrew Bible (Literary Currents in Biblical Interpretation). Louisville: Westminster/John Knox Press, 1992, pp. 57-58 diz que a tipologia é uma das manifestações de intertextualidade encontrada nos textos bíblicos, haja vista prefigurarem simbolicamente características e cenas de eventos futuros; AICHELE, George & Phillips, Gary. Introduction: Exegesis, Eisegesis, Intergesis. Semeia – Intertextuality and The Bible, n.69/70, 1995, p. 11 diz que a intertextualidade se manifesta na alusão, citação e alegoria; MOYISE, Steve. Intertextuality and Biblical Studies: A Review. VetE, n. 23, 2002, p. 428 diz que a intertextualidade através das citações, alusões e ecos permite uma nova compreensão dos textos bíblicos; GROHMANN, Marianne. The Word is Very Near to You! (Deuteronomy 30:14). Reader-Oriented Intertextuality in Jewish and

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2.1.3

As manifestações da intertextualidade

A manifestação de um texto em outro pode ocorrer de forma explícita, na

superfície do texto, através da epígrafe, citação e referência, ou implícita, dentro do

discurso, através da alusão, eco, traço, paráfrase, paródia, ironia e pastiche.22

2.1.3.1

As manifestações explícitas da intertextualidade

A primeira manifestação explícita de intertextualidade é a epígrafe, uma escrita

introdutória a outra que deixa sua marca quando a menção de um texto ou parte dele

na introdução de outro dá novo valor e sentido ao primeiro.23

Considerada o modo mais evidente de intertextualidade,24 a segunda

manifestação explícita de um texto em outro é a citação, a retomada de um fragmento

de texto no corpo de outro texto25 ou, como define Glenna Jackson, “a reprodução de

Christian Hermeneutics. Old Testament Essays: Festschrift James Alfred Loader: Special Issue, vol. 18, n.2, 2005, p. 240 defende que a intertextualidade se manifesta através da citação, referência e alusão; SHARON, Diane M. Some Results of a Structural Semiotic Analysis of The Story of Judah and Tamar. JSOT, n.29, 2005, pp. 292-230 diz, citando V. M. Colapietro, que “as relações intertextuais incluem anagrama, alusão, adaptação, tradução, paródia, pastiche, imitação e outros tipos de transformações”; KOCH, Ingedore Villaça. O Texto e a Construção dos Sentidos, pp. 62-63; PAULINO, Graça; WALTY, Ivete e CURY, Maria Zilda. Intertextualidades: Teoria e Prática, pp. 28-42 e OLIVEIRA, Wellington de; SANTOS, Raida Barbosa dos; SILVA, Denise Gallo da; SANTOS, Rosângela Aparecida dos. A escritura intertextual - Um estudo comparado entre os textos de Clarice

Lispector e Lewis Carroll. Disponível em <http://www.brazcubas.br/professores /sdamy/mubc11.html> . Acesso em: março de 2006. 22 A proposição de classificar as manifestações da intertextualidade entre explícitas e implícitas deu-se pela necessidade de clarear a opinião de estudiosos quando estes afirmavam, por exemplo, que a citação é uma manifestação forte de diálogo entre textos enquanto que a alusão, o eco e o traço são manifestações fracas. KEESMAAT, Sylvia C. no seu artigo Exodus and the Intertextual Transformation of Tradition in Romans 8.14-30. JSNT, vol.16, 1994, p. 32, cita Morgan dizendo “as relações entre textos podem ocorre em numerosos caminhos: elas podem ser explícitas ou implícitas, intencionais ou não intencionais. A mais explícita relação intertextual é a citação e a mais implícita é a alusão ou eco”. Cf. também em: PAULINO, Graça; WALTY, Ivete e CURY, Maria Zilda. Intertextualidades: Teoria e Prática, p.25-26; MOYISE, Steve Intertextuality and Biblical Studies: A Review. VetE, n. 23, 2002, pp. 421-422. 23 PAULINO, Graça; WALTY, Ivete e CURY, Maria Zilda, op. cit., pp. 25-26. 24 MAINGUENEAU, Dominique. Novas Tendências em Análise do Discurso, p. 87 e PAULINO, Graça; WALTY, Ivete e CURY, Maria Zilda, op.cit., p. 28. 25 PAULINO, Graça; WALTY, Ivete e CURY, Maria Zilda, op. cit., p. 28.

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várias palavras consecutivas de um texto em outro texto”.26 Segundo Júnia Lessa

França, as citações “são trechos transcritos ou informações retiradas das publicações

consultadas para a realização de um trabalho, sendo mencionadas no texto com a

finalidade de esclarecer ou completar as ideias do autor, ilustrando e sustentando

afirmações”.27 Já Moiyse diz que a citação “envolve uma quebra consciente no estilo

do autor para introduzir palavras de outro contexto”.28

Enquanto manifestação da intertextualidade, a citação deixa claro para o leitor

que houve o empréstimo de um texto em outro texto, que houve uma relação

dialógica de textos. Essa explicitação dialógica tem por função reforçar para o leitor

uma espécie de repetição, estabelecendo uma espécie de conveniência e ancorando o

discurso recém-produzido no discurso já conhecido.29

A terceira manifestação explícita de intertextualidade é a referência, que Glenna

Jackson define como a “menção de um texto ou a direção individual para um texto

abrigado na livraria portátil do leitor”30 e Graça Paulino como algo explícito de um

texto em outro que possibilita o leitor a fazer uma associação.31

Já para Lowell, referência é um tipo de citação onde “um poeta não

simplesmente cita as palavras de outro poeta, mas alguém [no texto] está falando

essas palavras”.32

26 JACKSON, Glenna S. Enemies of Israel: Ruth and the Canaanite Woman. HTS, vol. 59, n.3, 2003, pp. 782-783. 27 FRANÇA, Júnia Lessa et al. Normas para normalização de publicações técnico-científicas. Belo Horizonte: UFMG, 1996, p. 128. 28 MOYISE, Steve. Intertextuality and Biblical Studies: A Review, VetE, p. 419. 29 VIGNER, Gerard. Intertextualidade, norma e legibilidade, p. 34. No romance machadiano “Memórias póstumas de Brás Cubas”, no capítulo “O Emplasto”, há a citação “decifra-me ou devoro-te”, frase com que a esfinge, híbrido da mitologia grega de leão e mulher, iniciava a proposição de enigmas, devorando aqueles que não conseguissem responder-lhe: “Uma vez pendurada, entrou a bracejar, a pernear, a fazer as mais arrojadas cabriolas de volatim, que é possível crer. Eu deixei-me estar contemplá-la. Súbito, deu um grande salto, estendeu os braços e as pernas, até tomar a forma de um X: decifra-me ou devoro-te.” Cf. ASSIS, Machado. Memórias Póstumas de Brás Cubas. 28ª edição, São Paulo: Editora Scipione, 1994, p. 8. 30 JACKSON, Glenna S. Enemies of Israel: Ruth and the Canaanite Woman, loc.cit. 31 PAULINO, Graça; WALTY, Ivete e CURY, Maria Zilda. Intertextualidades: Teoria e Prática, p. 29. 32 LOWELL, Edmunds. Intertextuality and the Reading of Roman Poetry. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 2001, p. 134. Exemplo de referência é o verso do Hino Nacional Brasileiro (“nossos bosques têm mais vida / nossa vida, no teu seio, mais amores”) que faz referência ao poema “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias, reafirmando o sentido de exaltação à natureza do Brasil (“Nossos bosques têm mais vida / nossa vida mais amores”). Apesar de ser um tipo de citação, a

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2.1.3.2

As manifestações implícitas da intertextualidade

A primeira manifestação implícita de intertextualidade é a alusão ou “uma leve

menção a um texto ou a um de seus componentes em um segundo texto”33 ou, como

prefere Moyise, é “uma citação menos precisa de um texto em termos de palavras”34.

Para Donna Fewell a alusão é “a mobilização de inominadas fontes e endereços”,

“uma referência implícita, indireta e escondida de um texto em outro” ou ainda,

citando Ziva Ben-Perat, é “um dispositivo de ligação entre textos que transpassa os

limites do texto no qual é achado”.35 Para Sylvia Keesmaat, alusão é uma menção

intencional e consciente de um texto em outro.36 Já B.D. Sommer define o termo

como “um identificável elemento ou modelo em um texto que pertence a outro texto

independente”.37 Segundo Glenna Jackson, a alusão ocorre quando “um texto partilha

algo com outro texto, sem, entretanto, reproduzir exatamente as palavras deste;

estabelece o último como um substrato para o leitor”.38 Ampliando um pouco esses

conceitos, Williamson, citando B.D. Sommer, diz que a alusão “pode ser reconhecida

a partir de um produtor, de um elemento identificável ou do modelo de um texto por

baixo de outro texto independente.”39

Para França, existem quatro tipos de alusão: (1) nominal, quando se refere a um

nome próprio do conhecimento geral; (2) pessoal, quando se refere a um indivíduo do

conhecimento particular do autor, podendo incluir-se nesta categoria as

autorreferências; (3) histórica, quando se refere a acontecimentos passados ou

referência é necessariamente curta – uma palavra, expressão ou pequena frase – ao passo que a citação é longa – trechos ou partes maiores de textos. 33 PAULINO, Graça; WALTY, Ivete e CURY, Maria Zilda. Intertextualidades: Teoria e Prática, p. 29. 34 MOYISE, Steve. Intertextuality and Biblical Studies: A Review, VetE, p. 419. 35 FEWELL, Danna Nolan (ed). Reading Between Texts: Intertextuality and the Hebrew Bible

(Literary Currents in Biblical Interpretation). Louisville: Westminster/John Knox Press, 1992, p.21. 36 KEESMAAT, Sylvia C. Exodus and the Intertextual Transformation of Tradition in Romans 8.14-30. JSNT, vol.16, 1994, p. 32. 37 WILLIAMSON, H.G.M. Isaiah 62:4 and the problem of inner biblical allusions. JBL, vol. 119, n.4, 2000, p. 734. 38 JACKSON, Glenna S. Enemies of Israel: Ruth and the Canaanite Woman, pp.782-783. 39 WILLIAMSON, H.G.M., op. cit., p. 734.

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recentes; e (4) textual, quando remete a textos preexistentes na tradição literária

através referência, citação ou alusão.40

A segunda manifestação implícita de intertextualidade é o eco ou traço. Para

Sylvia Keesmaat eco é a “manifestação não intencional de um texto em outro”41 e

para Moyise, o eco é “o tênue traço de texto, provavelmente, quase inconsciente, mas

que emerge da mente impregnada na herança textual de Israel”.42 Danna Fewell diz

que o valor do eco está na possibilidade de “expressar caráter intertextual de cada

escrito ainda que mantendo, mesmo que através da metáfora, a estrutura textual”.43

Junto ao conceito de eco, tem-se o de traço, que Fewell define como algo que,

num determinado texto, foi excluído, reprimido ou que ficou totalmente ausente, mas

a partir do qual o leitor, via comparação, torna perceptível o significado do texto.44

A terceira manifestação implícita de intertextualidade é a paráfrase, que em

grego significa “continuação ou repetição de uma sentença”, e pode ser definida

como “o desenvolvimento de um texto mantendo as mesmas ideias do original, cujo

objetivo é reescrever e interpretar um texto”45 ou como “a reafirmação, em palavras

diferentes, do mesmo sentido de uma obra escrita, podendo ser uma afirmação geral

40 FRANÇA, Júnia Lessa et al. Normas para normalização de publicações técnico-científicas, p. 128. Exemplo de alusão nominal são os versos de António Ferreira em “Carta a D. Simão Silveira”, em Poemas Lusitanos: “Quantos antes de Homero mal cantaram! / Quanto tempo Sicília, quanto Atenas, / Que depois tal som deram, se calaram!”. Nos versos, “Homero” representa o primeiro modelo de poeta; “Sicília”, a escola de poetas e “Atenas” sintetiza a tradição literária pré-clássica e clássica, que serviu de modelo a toda a cultura ocidental. Como exemplo de alusão é histórica tem-se a fala de Boileau dizendo de Homero que “tudo quanto tocou se transformou em ouro”, aludindo à lenda do rei Midas. Quanto à alusão textual, tem-se exemplo em “Homenagem a Tomás António de Gonzaga”, onde Jorge de Sena escreve que “Gonzaga, podias não ter dito mais nada,/ (…) Mas uma vez disseste: ‘eu tenho um coração maior que o mundo’” (SENA. Jorge de. Poesia III. Lisboa: Edições 70, 1989, p. 95). A alusão textual mencionada por França é também uma citação. 41 KEESMAAT, Sylvia C. Exodus and the Intertextual Transformation of Tradition in Romans 8.14-30, p. 32, afirma que a utilização de uma tradição pode ser não intencional (eco) ou intencional (alusão). Em outras palavras, quando um autor, de maneira inconsciente, utiliza o texto de outro autor, faz um “eco” intertextual. Em seu texto, exemplifica dizendo que Paulo, em Romanos, faz uso de tradições do Antigo Testamento de forma não intencional, quase inconsciente (eco), mas, outras vezes, faz intencionalmente, aludindo a textos veterotestamentários. 42 MOYISE, Steve. Intertextuality and Biblical Studies: A Review, VetE, p. 419. 43 FEWELL, Danna Nolan (ed.). Reading Between Texts: Intertextuality and the Hebrew Bible

(Literary Currents in Biblical Interpretation), p. 21. 44 FEWELL, Danna Nolan (ed.), op. cit., p. 24. 45 PAULINO, Graça; WALTY, Ivete e CURY, Maria Zilda. Intertextualidades: Teoria e Prática, p. 30; DUARTE, Paulo Mosânio Teixeira. Elementos para o estudo da paráfrase. Revista Letras, Curitiba, n.59, jun./jul. 2003, p. 242.

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da ideia de uma obra como esclarecimento de uma passagem difícil”.46 Diante dessas

definições, entende-se que a paráfrase, mais do que um efeito retórico e estilístico, é

um efeito ideológico de continuidade de um pensamento ou procedimento estético.47

Um reforço dos paradigmas já estabelecidos, a paráfrase é um desvio mínimo e

tolerável de um texto. Um desvio que conteria o máximo de inovação que o texto

poderia admitir sem que seja subvertido ou pervertido o seu sentido.48

A paródia, quarta manifestação implícita de intertextualidade, é um efeito

sintomático de linguagem nascido entre os séculos V-VI a.C. e que originalmente foi

definida para o âmbito musical como “uma ode que perverte o sentido de outra

ode”.49 Em livro dedicado ao estudo da paródia, Margaret A. Rose diz que,

originalmente, o termo nomeava a literatura clássica ou poética grega e era entendida

como um poema ou uma canção burlesca ou uma citação cômica, imitação ou

transformação.50

Trazida para a tradição ocidental, a paródia foi definida como o emprego da fala

de um autor por outro com uma intenção que se opõe diretamente à original, entrando

em antagonismo com a voz original que a recebeu, forçando-a a servir a fins

diretamente opostos.51 Reforçando essa definição, Maingueneau e Graça Paulino

concordam que a paródia se manifesta quando autor escreve um texto que foge às

intenções sérias do original e utiliza a caricatura e a intenção jocosa para com este.52

Ainda em termos de conceituação, Pippin diz que a paródia pode ser “algo a-histórico

e não-histórico (...) entretanto, por um duplo processo de instalação e ironização,

46 SANT'ANNA, Affonso Romano. Paródia, Paráfrase e Cia. 3ª ed. São Paulo: Ática, 1988, p.17. 47 SANT'ANNA, Affonso Romano, op. cit., p. 22. 48 SANT'ANNA, Affonso Romano, op. cit., pp. 27-28; 38-39. Exemplos dessas inovações estão os versos de Carlos Drummond, nos quais há uma paráfrase do poema “Canção do Exílio”: “Como era mesmo a ‘Canção do Exílio’? / Eu tão esquecido de minha terra.../ Ai terra que tem palmeiras/ onde canta o sabiá”. 49 SANT'ANNA, Affonso Romano, op. cit., p. 7. 50 ROSE, Margaret A. Parody: Ancient, Modern and Post-modern. London: Cambridge University Press, 1995, pp. 5-6 e 49. No primeiro capítulo do seu livro a autora dedica-se a fazer uma extensa etimologia da palavra chegando à conclusão que, independente dos teóricos do termo, a paródia sempre foi entendida como algo humorístico ou ridicularizante (pp. 5-53). 51 SANT'ANNA, Affonso Romano, op. cit., pp. 13-14. 52 MAINGUENEAU, Dominique. Elementos de Linguística Para o Texto Literário. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 100; PAULINO, Graça; WALTY, Ivete e CURY, Maria Zilda. Intertextualidades: Teoria e Prática, pp. 34-36.

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sinaliza como uma representação ganha novas ideologias”.53 Também analisando a

paródia pelo viés histórico, Lowell vai dizer que a paródia não é uma ridicularização

com intenção destrutiva, simplesmente. Para ele, “a paródia não destrói o passado; de

fato, parodiar é tanto iluminar o passado como questioná-lo”.54

Enquanto antagônica à voz original, a paródia faz uma disputa com o texto

original, inaugura um novo paradigma e constrói uma evolução do discurso e da

linguagem que resulta num choque de interpretação.55

Quanto aos tipos, a paródia pode ser: (1) verbal (com alteração de uma ou outra

palavra do texto); (2) formal (quando o estilo e os efeitos técnicos de um escritor são

usados como forma de zombaria); e (3) temática (quando se faz a caricatura de forma

e do espírito do autor).56 Quanto à função, é catártica, haja vista propor uma nova e

diferente maneira de ler o convencional. Nas palavras de Sant'Anna “é um processo

de libertação do discurso; é uma tomada de consciência crítica (...) é um ato de

insubordinação, (...) um gesto inaugural da autoria e da individualidade”.57

A quinta manifestação é a ironia, cuja definição é dizer o que é contrário ao

real; é, de forma paradoxal, anular o que se está dizendo sem diretamente negá-lo58

ou “dizer por uma derrisão, ou humorística ou séria, o contrário do que se pensa ou

do que se quer que se pense”59 ou ainda “dizer alguma coisa de forma a ativar, não

uma, mas uma infinidade de interpretações subversivas”.60

Sofrendo diversas modificações conceituais desde o século XVI, a ironia fora já

utilizada por Sócrates, significando uma forma de persuadir alguém, por Demóstenes,

para significar que alguém fugiu à sua responsabilidade como cidadão por fingir ser

inadequado e por Aristóteles, que refutou utilizar o vocábulo com a idéia de

53 PIPPIN, Tina. Jezebel Re-Vamped. Semeia - Intertextuality and The Bible, n. 69/70, 1995, p. 228. 54 LOWELL, Edmunds. Intertextuality and the Reading of Roman Poetry, p. 142. 55 SANT'ANNA, Affonso Romano. Paródia, Paráfrase e Cia, pp.27-30. 56 SANT'ANNA, Affonso Romano, op. cit., p.12. 57 SANT'ANNA, Affonso Romano, op. cit., pp.30-32. Alguns versos de Carlos Drummond de Andrade parodiam e polemizam com “Canção do Exílio”: “Minha terra tem palmeiras? / Não. Minha terra tem engenhocas de rapadura e cachaça / E açúcar marrom, tiquinho, para o gasto”. 58 MAINGUENEAU, Dominique. Novas Tendências em Análise do Discurso, pp. 98-102; COLEBROOK, Claire. Irony. London: Routledge, 2004, p.5; ROSE, Margaret A. Parody: Ancient,

Modern and Post-modern, p. 87. 59 MAINGUENEAU, Dominique. Elementos de Lingüística Para o Texto Literário, p. 95. 60 LINAFELT, Todd. Taking Women in Samuel: Readers/Responses/Responsibility. In: FEWELL, Danna Nolan (ed). Reading Between Texts: Intertextuality and the Hebrew Bible (Literary Currents in

Biblical Interpretation), p. 122.

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“autodissimulação”. Abandonando seu berço grego e passando para o latino, a ironia

foi utilizada pela primeira vez em inglês em 1502, mas foi entre os séculos XVII e

XVIII que ela começou a ser empregada com freqüência, significando “escarnecer,

zombar de” ou como “dizer o contrário do que significa”, “dizer algo mas significar o

contrário”. Em 1748, ironia foi empregada como uma estratégia satírica. Em 1752, foi

usada em conexão com “contradição”, mas foi em 1800 que a palavra ganhou novos e

importantes significados: “trazer algo para oposição”, “algo que reside na atitude de

um observador irônico ou na situação observada”, “uma visão da vida que reconhece

que a experiência é aberta para múltiplas interpretações e que coexiste com

incongruências como parte da estrutura da existência”.61

Apesar de ter assumido diversos significados, atualmente o emprego da ironia

resume-se em fazer um contraste entre a realidade e a aparência; entre dizer uma

coisa, causando uma aparência que não corresponde à realidade.62

A sexta manifestação implícita de intertextualidade é o pastiche, definido

geralmente como uma imitação estilística.63 Para Margaret A. Rose o pastiche é a

falsificação de algo, mas nem sempre com a intenção de falsear ou enganar.64 Apesar

de entender o termo como uma imitação, Peter e Linda Murray o definem como uma

criação original feita pela primeira vez por um artista, cuja base é a recombinação de

motivos trazidos de outros trabalhos.65 Mantendo a ideia de que o pastiche é um

trabalho original e não simplesmente uma imitação, Edward Lucie-Smith diz que o

61 MUECKE, C.D. Irony. London: Methuen & Co., 1970, pp. 14-24. O autor apresenta em seu livro um extenso status quaestionis sobre as ocorrências da palavra ironia ao longo dos séculos, apontando os escritores famosos que a empregaram e como se processou a evolução de sua conceituação. 62 MUECKE, C.D., op.cit., p.30. Muecke dedica várias páginas (pp. 25-58) para expor sobre os elementos da ironia, como: (a) a inocência e a inconsciência; (2) contraste entre realidade e aparência; (3) elemento cômico; (4) elemento de indiferença ou neutralidade; (5) elemento de estética. De todos os elementos expostos, o mais interessante para esta tese é o segundo, o qual converge para atual emprego do termo entre os estudiosos bíblicos. 63 MAINGUENEAU, Dominique. Novas Tendências em Análise do Discurso, pp. 104-106; MAINGUENEAU, Dominique. Elementos de lingüística para o texto literário, p. 101; PAULINO, Graça; WALTY, Ivete e CURY, Maria Zilda. Intertextualidades: Teoria e Prática, p. 40; ROSE, Margaret A. Parody: Ancient, modern and post-modern, p. 73 diz que no vol. 11 do Old English

Dictionary, p. 321 o pastiche é definido como a imitação do estilo de outro artista. 64 ROSE, Margaret A. Parody: Ancient, Modern and Post-modern, p. 72. 65 MURRAY, Peter & Linda. A Dictionary of Art and Artists. Harmondworth, 1960, p. 234.

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pastiche é um trabalho de arte que toma emprestado o estilo e alguns elementos de

outros trabalhos, mas sem necessariamente produzir uma cópia.66

Com relação à sua função, alguns pensam que ele tem o intuito ridicularizante,67

mas outros pensam que o pastiche não apresenta necessariamente uma crítica ou algo

humorístico sobre determinado assunto, mas tem uma postura neutra.68

2.2

A Intertextualidade e o Antigo Testamento

A partir de 1960, com a difusão do conceito de intertextualidade, a

hermenêutica bíblica começou a ser reavaliada e, consequentemente, enriquecida com

os novos vocabulários e técnicas.69 Os dois primeiros livros publicados sobre os

estudos da intertextualidade aplicados à Bíblia foram lançados na década de 80,

respectivamente Echoes of Scripture in the Letters of Paul, de Richard Hays, e

Intertextuality in Biblical Writings: Essays in honour of Bas van Iersel, de Sipke

Draisma.70 Todavia, foi na década de 90 que os estudiosos conceituaram e aplicaram

a intertextualidade aos textos do Antigo Testamento.

2.2.1

O conceito de intertextualidade entre os estudiosos do AT

Os estudiosos do Antigo Testamento conceituaram o fenômeno da

intertextualidade de várias formas.71 Segundo Dana Nolan Fewell, o conceito de

66 LUCIE-SMITH, Edward. The Thames and Hudson Dictionary of Art Terms. London: 1984, p. 141. 67 MAINGUENEAU, Dominique. Novas Tendências em Análise do Discurso, pp. 104-106; MAINGUENEAU, Dominique. Elementos de lingüística para o texto literário, p. 101; PAULINO, Graça; WALTY, Ivete e CURY, Maria Zilda. Intertextualidades: Teoria e Prática, p. 40. 68 ROSE, Margaret A. Parody: Ancient, Modern and Post-modern, pp. 72-73. 69 LUZ, Ulrich. Intextexts in the Gospel of Matthew. HTR, vol. 97, n. 2, 2004, p.119. 70 Segundo MOYISE, Steve. Intertextuality and Biblical Studies: A Review, VetE, pp. 418-419 as duas primeiras publicações foram: HAYS, Richard Echoes of Scripture in the Letters of Paul. New Haven: Yale University Press, 1987 e DRAISMA, Sipke. Intertextuality in Biblical Writings: Essays in

Honour of Bas van Iersel. Kampen: J. H. Kok, 1989. 71 Em 1999, James A. Sanders lança o vídeo Biblical Intercontextuality the Bible is Full of Itself onde, além de apresentar o conceito de intertextualidade, discute as formas como os estudiosos têm usado a teoria intertextual em seus trabalhos, partindo do pressuposto de que as Escrituras estão cheias de

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intertextualidade passa pela compreensão de que “textos falam uns com outros,

ecoam uns nos outros, empurram-se uns para outros; guerream uns com outros (...)

são vozes em coros, em conflito e em competição”. Dessa compreensão de texto,

Fewell diz que intertextualidade é o “diálogo de vozes no texto”.72

Concordando com esse conceito, Sylvia Keesmaat, Christine Mitchell, Glenna

S. Jackson e M. D. Terblanche dizem que intertextualidade é todo o potencial de

relacionamento entre textos73 e Deborah Krause acrescenta que a função desse

diálogo é produzir uma nova leitura que desloque o lugar da leitura dominante.74

Também concordando com Fewell, Jackson, Terblanche e Krause, Nikaido, além de

reforçar o conceito de Kristeva, diz que a intertextualidade deve olhar como os textos

cruzam-se uns com outros no nível literário ou na linguagem artística, considerando-

se o motivo, estrutura, técnicas verbais, etc. Nas palavras do estudioso,

intertextualidade é “uma investigação de como os textos inerentemente aderem-se e

modelam-se”.75

Também seguindo essa linha de definição, Aichele e Phillips dizem que a

intertextualidade é um conceito fértil que tem servido para ajudar a interpretar

tradições, escritores, leitores e contextos institucionais, mas que à luz dos textos

bíblicos, deve-se estudar os textos relacionando sociedade com história, ontem e hoje,

inter-referências cujos temas são comuns em múltiplos versos. Cf. SANDERS, James A. Biblical

Intercontextuality the Bible is Full of Itself. Washington: Biblical Archaeology Society, 1999. 72 FEWELL, Danna Nolan (ed). Introduction. In: Reading Between Texts: Intertextuality and the

Hebrew Bible (Literary Currents in Biblical Interpretation). Louisville: Westminster/John Knox Press, 1992, p.12. 73 KEESMAAT, Sylvia C. Exodus and the Intertextual Transformation of Tradition in Romans 8.14-30, p. 31 diz que intertextualidade “é a relação estrutural entre dois ou mais textos”; MITCHELL, Christine. Transformations in Meaning: Solomon's Accession in Chronicles. JHS, vol. 6, 2002. Disponível em <http://www.arts.ualberta.ca/JHS>. Acesso em 04/10/2006, diz no §2.4-2.5 que intertextualidade é o “inter relacionamento de textos, incluindo, mas não limitando, absorção, reescritura, reutilização e diálogo de um texto com outro texto”; JACKSON, Glenna S. Enemies of Israel: Ruth and the Canaanite Woman, p.782; TERBLANCHE, M.D. An Abundance of Living Waters: The Intertextual Relationship Between Zechariah 14:8 and Ezekiel 47:1-12. Old Testament

Essays, vol.17, n.1, 2004, p.121. Neste artigo o autor define intertextualidade como “um potencial transmissível de declarações (sentenças ou fragmentos textuais) além da margem do texto e sua assimilação em novas estruturas”. 74 KRAUSE, Deborah. A Blessing Cursed: The Prophet’s Prayer for Barren Womb and Dry Breasts in Hosea 9. In: FEWELL, Danna Nolan (ed.). Reading Between Texts: Intertextuality and the Hebrew

Bible (Literary Currents in Biblical Interpretation). Louisville: Westminster/John Knox Press, 1992, p. 91. 75 NIKAIDO, S. Hagar and Ishmael as Literary Figures: An Intertextual Study. VT, vol. LI, n. 2, 2001, p. 220.

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afinal, intertextualidade “não é simplesmente alusão ou dependência de fonte, mas

transformação”. Para os estudiosos, esse entendimento de intertextualidade provoca

no leitor uma leitura crítica da Bíblia e ajuda a clarear não apenas os mecanismos e

processos textuais, mas a transformar práticas culturais.76 Concordando com esses

autores, Schultz diz que a intertextualidade é uma “rica aventura de possibilidades

interpretativas”.77

Já Gail O'Day entende a intertextualidade como o caminho pelo qual um novo

texto é criado a partir de metáforas, imagens e mundo simbólico, advindos de um

antigo texto ou tradição. Para este autor, a interação entre o texto recebido e o novo

contexto social traz à luz um novo texto e o mundo simbólico no qual está inserido.78

O estudioso Timothy K. Beal define a intertextualidade como um “perpétuo e

indeterminado processo de acatamento de texto para texto”, tornando o escrito num

“campo de transposição”.79 Para Beal, todo texto tem uma intertextualidade inerente,

pois sementes de significação estão sempre sendo disseminadas de um texto para

outro, gerando novos relacionamentos entre textos.80

Entendendo que um “texto não é uma ilha”, Peter Miscall define

intertextualidade como empréstimos pessoais e influências que ocorrem de um texto

para outro, que fluem de um texto para outro. Nas suas próprias palavras,

“intertextualidade é um termo que cobre toda as possibilidades que podem ser

estabelecidas entre textos, (...) desde citações, referências diretas, alusões,

semelhanças de palavras, etc”.81

Em outro texto, escrito três anos depois, complementa seu pensamento dizendo

que a intertextualidade é mais rica do que o estabelecimento de simples paralelos e

76 AICHELE, George e PHILLIPS, Gary A. Introduction: Exegesis, Eisegesis, Intergesis. Semeia - Intertextuality and The Bible, n. 69/70,1995, pp. 7-12. 77 SCHULTZ, Richard L. The Ties That Bind: Intertextuality, the Identification of Verbal Parallels, and Reading Strategies in the Book of the Twelve. In: Paul L. Redditt and Aaron Schart (ed.). Thematic Threads in the Book of the Twelve. Berlin: Walter Gruyter, 2003, p. 31. 78 O'DAY, GAIL R. Jeremiah 9:22-23 and I Corinthians 1 26-31 – A Study in Intertextuality. JBL, vol. 109, n .2, 1990, pp. 259. 79 BAEL, Timothy. Ideology and Intertextuality: Susplus of Meaning ad Crontrolling the Means of

Production, pp. 27-30; LINAFELT, Todd & BEAL, Timothy. Sifting For Cinders: Leviticus 10:1-15. Semeia – Intertextuality and The Bible, n .69/70, p. 19. 80 LINAFELT, Todd & BEAL, Timothy. Sifting For Cinders: Leviticus 10:1-15, pp.19-20. 81 MISCALL, Peter. Isaiah: New Heavens, New Earth, New Book, pp. 41-45.

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analogias entre textos, mas um “cruzamento crítico de textos”. Esse cruzamento é,

entretanto, produto de um leitor que entende e faz a intertextualidade.82

Chamando-a de um termo alusivo, David Penchansky define intertextualidade

como “a congruência de elementos de vários textos”.83 Concordando com essa

definição, Jan James Granowshi diz que a intertextualidade é metafórica e só ocorre

de fato quando o leitor, o verdadeiro criador da intertextualidade, percebe que o texto

está incompleto, necessitando de um texto “suplementar”.84 Também consciente da

importância do leitor para a existência da intertextualidade, Voelz acrescenta que esta

é o “produto de vários discursos culturais” que ganham significação na leitura.85

Na opinião de Tina Linafelt, a intertextualidade acontece quando há

convergência entre um texto e um leitor, trazendo um novo trabalho literário à

existência.86 Concordando com Linafelt, Biddle diz que é o ato da leitura que gera a

relação entre textos e as dependências genéricas.87

Para Susan Graham, intertextualidade substitui o conceito de influência.

Citando Jay Claton e Eric Rothstein diz que esta é uma influência impessoal que

favorece o cruzamento de textos, lugares onde, através do leitor, o “conectador de

textos”, a interpretação começa.88

Steve Moyise, apesar de utilizar a definição de Kristeva para intertextualidade,

também defende a importância do leitor no processo intertextual e diz que a leitura

intertextual não pode ser confundida com Midrash, tipologia ou exegese.89

82 MISCALL, Peter. Texts, More Texts, a Textual Reader and a Textual Writer. Semeia – Intertextuality and The Bible, n .69/70,1995, pp. 252-253. 83 PENHANSKY, David. Staying the Nigth: Intertextuality in Genesis and Judges. In: FEWELL, Danna Nolan (ed). Reading Between Texts: Intertextuality and the Hebrew Bible (Literary Currents in

Biblical Interpretation). Louisville: Westminster/John Knox Press, 1992, pp. 77-78. 84 GRANOWSKI, Jan Jaynes. Jehoiachin at the King’s Table: A Reading of the Ending of the Second Book of Kings. In: FEWELL, Danna Nolan (ed.). Reading Between Texts: Intertextuality and the

Hebrew Bible (Literary Currents in Biblical Interpretation). Louisville: Westminster/John Knox Press, 1992, pp. 181-182. 85 VOELZ, James. Multiple Signs, Aspects of Meaning and Self as Text: Elements of Intertextuality. Semeia - Intertextuality and The Bible, n . 69/70, 1995, pp. 149-150. 86 LINAFELT, Todd. Taking Women in Samuel: Readers/Responses/Responsibility, p. 99. 87 BIDDLE, Mark E. Ancestral motifs in 1 Samuel 25: Intertextuality and characterization. JBL, vol. 4, n. 121, 2002, p. 619. 88 GRAHAM, Susan. Intertextual Trekking: Visiting the Iniquity of the Fathers Upon the Next Generation. Semeia – Intertextuality and The Bible, n. 69/70, 1995, pp. 196 e 199. 89 MOYISE, Steve. Intertextuality and Biblical Studies: A Review, VetE, pp. 418-419 e MOYISE, Steve. Intertextuality and Historical Approaches to the Use of Scripture in the New Testament. VetE, n. 26, 2005, pp. 447-448.

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Diante dessas conceituações, pode-se concluir que, para os estudiosos do

Antigo Testamento, a intertextualidade é o reflexo da relação dialógica entre textos,

que, a partir do leitor, produz uma nova leitura e interpretação.

2.2.2

A aplicação da intertextualidade entre os estudiosos do AT

Assim como apresentaram vários conceitos para intertextualidade, os estudiosos

do Antigo Testamento aplicaram de várias formas a teoria intertextual. Traçando um

panorama da aplicação da intertextualidade, Steve Moyise classificou cinco tipos

mais utilizados de intertextualidade: (1) eco intertextual; (2) intertextualidade

narrativa; (3) intertextualidade exegética; (4) intertextualidade dialógica e (5)

intertextualidade pós-moderna.90

O eco intertextual é a utilização, inconsciente, de uma citação ou alusão entre

dois ou mais textos.91 A intertextualidade narrativa é definida como “o contar uma

nova história (ou escrever um novo texto) usando seus próprios argumentos, mas, ao

mesmo tempo, recontar e recordar a tradição, incluindo elementos de transformação”.

A intertextualidade exegética é marcada por uma detalhada atividade exegética feita

entre textos a fim de provar determinado argumento. A intertextualidade dialógica é

uma mútua influência entre textos que acontece em dois caminhos: no novo texto

afetando o antigo e o antigo texto afetando o novo. E a intertextualidade pós-moderna

é percepção e a determinação do significado do texto através do complexo de

intenções e ideologias que o tornam possível.92

90 MOYISE, Steve. Intertextuality and Biblical Studies: A Review, pp. 418-431. 91 A falta de uma precisa definição para eco intertextual faz com que muitos estudiosos o confundam com a alusão. Segundo Moyse o eco diferencia-se da alusão por ser algo feito inconscientemente pelo escritor na hora de escrever seu texto. Para o estudioso, a alusão é algo colocado consciente e intencionalmente pelo escritor. Nas palavras do autor: “(...) echos, faint traces of texts that are probably quite unconscious but emerge from minds soaked in the scriptural heritage of Israel”. Cf. a mesma citação publicada em dois textos: MOYISE, Steve Intertextuality and Biblical Studies: A Review, p. 419 e MOYISE, Steve. The Old Testament in the New – Essays in Honour of J. L. North. Sheffield Academic Press, 2000, pp. 18-19. 92 MOYISE, Steve, op.cit., pp. 421-428.

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A classificação de Moyise não abrange todas as leituras intertextuais feitas

pelos estudiosos, que têm aplicado a teoria intertextual por cinco acessos: (1) a partir

de elementos inerentes a textualidade; (2) a partir do deslocamento, descentralização,

dispersão e disseminação; (3) a partir de cenas-tipo; (4) a partir da textualidade, da

cultura e da interpretação e (5) a partir das formas de manifestação da

intertextualidade.93

2.2.2.1

A partir de elementos inerentes à textualidade

A intertextualidade a partir de elementos inerentes a textualidade é uma leitura

comparativa de dois ou mais textos. Apontam-se semelhanças e diferenças entre os

textos através do elenco de paralelos léxicos, de personagens e de temas (enredos,

conceitos e motivos teológicos). Este grupo, que reúne a maioria das publicações

sobre a intertextualidade aplicada ao Antigo Testamento, pode ser subdivido em duas

linhas: (1) análise com suporte exegético; e (2) análise sem suporte exegético.

2.2.2.1.1 Análise com suporte exegético

Essa linha, onde a intertextualidade é feita com o suporte exegético a fim de

aprofundar os paralelos e salientar as diferenças e semelhanças entre os textos, pode

ser subdividida em: (a) Análise de paralelos léxicos; (b) Análise conjunta de paralelos

léxicos e de temas; (c) Análise conjunta de paralelos léxicos e personagens.

a) Análise de paralelos léxicos

Nesta categoria, os estudiosos, primeiramente, apresentam as passagens

pontuando algumas possíveis similaridades. Em seguida, fazem a exegese dos textos

93 A necessidade de propor uma nova classificação deu-se também porque, atualmente, na classificação de Moyise os cinco tipos de intertextualidade pontuados podem ser enquadrados em um único grupo.

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e, partir dos resultados exegéticos, focalizam-se na análise conjunta dos paralelos

léxicos – palavras, verbos e expressões – existentes entre as passagens.

A abordagem de Deborah Krause em “A Blessing Cursed: The Prophet’s Prayer

for Barren Womb end Dry Breasts in Hosea 9” ilustra a categoria. Em seu artigo

propôs uma relação intertextual a partir da comparação léxica entre a raiz verbal !tn

em várias passagens de Salmos e Oséias e do significado a expressão “ventre estéril e

seios secos” em Os 9,14 e Gn 49,25. Nos Sl 85,7; 27,12 e 74,19 a raiz verbal !tn

funciona ironicamente como uma interseção para o julgamento divino, e em Os 2,12;

11,8 e 13,10 a mesma raiz verbal demonstra que YHWH seria a fonte de toda dádiva.

Comparando essas conclusões, a autora diz que em Os 9,14 Efraim está sendo punido

porque negou que sua fonte de bênçãos é YHWH. E mais, através das palavras

“ventre” e “seios” ligados Efraim, Os 9,14 é uma reapropriação da benção formulada

em Gn 49,25. Assim, à luz de Gn 49,25, a profecia de Oséias reverte os elementos

traditivos da promessa e eleição contra Efraim/Israel, que agora não mais terão

fertilidade (cf. Gn 49,25), mas sim infertilidade (cf. Os 9,14).94

b) Análise conjunta de paralelos léxicos e de temas

Subgrupo que reúne a maioria dos estudiosos, a intertextualidade é demonstrada

a partir da exegese parcial ou total de cada um dos textos, seguida pela análise

conjunta dos paralelos léxicos – palavras, verbos e expressões – e dos temas das

passagens.

Lena-Sofia Tiemeyer, em “The Question of Indirect Touch: Lam 4,14; Ezek

44,19 and Hag 2,12-13”, por exemplo, analisa e compara as passagens, defendendo

que expressam a ideia de transferência do estado ritual através do toque indireto por

meio das roupas. Primeiro expõe as peculiaridades gramaticais de Ag 2,12-13 e a

compara com Ez 44,19, constatando que as passagens expressam diferenças entre o

santificar-se através do toque. Depois, analisa exegeticamente Lm 4,14 e diz que o

94 KRAUSE, Deborah. A Blessing Cursed: The Prophet’s Prayer for Barren Womb and Dry Breasts in Hosea 9, pp. 191-203. Aqui estão também HAPNER, Gershon. Verbal Resonance in the Bible and intertextuality. JSOT, n. 26, 2001, pp. 1-24; BERGEY, Ronald. The song of Moses (Dt 32,1-43) and Isaianic Prophecies: A case of Esarly intertextuality?. JSOT, n. 28, 2003, pp. 33-54.

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texto mostra que os profetas e os sacerdotes de Jerusalém estavam contaminados e

por isso não poderiam ser tocados pelo povo. Concluindo, analisa o sacerdócio em

Ag 2,10-14, Ez 44,19 e Lm 4,14: Ag 2,12-13 e Lm 4,14 concordam que a impureza

pode ser transferida via toque indireto e criticam a impureza do comportamento

sacerdotal; já Ez 44,19 afirma que a santidade pode ser transferida via toque indireto;

e em Ag 2,12-13 há uma confluência das duas tradições, afirmando que a impureza

pode ser transferida por toque indireto, mas não a santidade.95

c) Análise conjunta de paralelos léxicos e personagens

Nesta categoria, os estudiosos, após apresentarem a exegese das passagens em

estudo, analisam conjuntamente os paralelos léxicos e personagens das passagens

para as quais propõe a relação intertextual.

Mark E. Biddle, em “Ancestral motifs in 1 Samuel 25: Intertextuality and

characterization”, aponta, por exemplo, paralelos de personagens e semelhanças

verbais entre 1 Sm 25, Gn 24, Gn 32-33 e Gn 30-31. Entre as personagens paralelas 95 TIEMEYER, Lena-Sofia. The Question of Indirect Touch: Lam 4,14; Ezek 44,19 and Hag 2,12-13. Bíblica, vol. 87, 2006, p.64-74. Nesta categoria também estão O’DAY, GAIL R. Jeremiah 9:22-23 and I Corinthians 1,26-31 - A Study In Intertextuality, p.259-267; HAWK, L. Daniel. Strange Houseguests: Rahab, Lot and the Diynamics of Deliverance. In: FEWELL, Danna Nolan (ed). Reading Between

Texts: Intertextuality and the Hebrew Bible (Literary Currents in Biblical Interpretation). Louisville: Westminster/John Knox Press, 1992, p.89-98; SAVRAN, G. Beastly Speech: Intertextualy, Ballam’s Ass end the Garden of Eden. JSOT, n. 64, 1994, p.38-41; KEESMAAT, Sylvia C. Exodus and the Intertextual Transformation of Tradition in Romans 8.14-30, p.29-56; SOMMER, Benjamin D. A

Prophet Reads Scripture: Allusion in Isaiah 40-66 - Contraversions: Jews and Other Differences. Stanford: Stanford University Press, 1998; POLASKI, Donald C. Reflections on a Mosaic Covenant: The Eternal Covenant (Isaiah 24.5) and Intertextuality. JSOT, vol. 23, n.3, 1998, p. 55-73; SCHULTZ, Richard L. The Ties That Bind: Intertextuality, the Identification of Verbal Parallels, and Reading Strategies in the Book of the Twelve, p.27-45; MOYISE, Steve. The Language of the Psalms in the Book of Revelation. Scriptura, 2003, p.246-261; FISCHER, Bettina. The Lord Has Remembered: Dialogic Use of the Book of Zechariah in the Discourse of the Gospel of Luke. JNTSSF, vol.37, n.2, 2003, p.199-220; PYEON, Yohan. You Have Not Spoken What Is Right About Me: Intertextuality and

the Book of Job. New York: P. Lang, 2003; TERBLANCHE, M.D. An Abundance of Living Waters: The Intertextual Relationship Between Zechariah 14:8 and Ezekiel 47:1-12, p.120-129; SHIELDS, Mary E. Circumscribing the Prostitute: The Rhetorics of Intertextuality, Metaphor and Gender in

Jeremiah 3.1-4.4. London: T&T Clark, 2004; GROHMANN, Marianne. The Word is Very Near to You! (Deuteronomy 30:14), p.240-252; HIBBARD, J. Todd. Isaiah xxvii 7 and Intertextual Discourse About 'Striking' in the Book of Isaiah.. VT, vol. 55, n.4, 2005, p.461-476; BOTHA, Phil J. Intertextuality and the interpretation of Psalm 1. OTE, vol.18, n.3, 2005, p.503-520; BERNSTEIN, Marc Steven. Stories of Joseph: Narrative Migrations Between Judaism and Islam. Detroit: Wayne State University Press, 2006; HIBBARD, J. Todd. Intertextuality in Isaiah 24-27: The Reuse and

Evocation of Earlier Texts. Tuebingen: Mohr Siebeck, 2006; VASSAR, John S. Recalling a Story

Once Told: An Intertextual Reading of the Psalter and the Pentateuch. Mercer University Press, 2007.

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estão Nabal e Labão – ambos envolvem questões sobre a proteção dos pastores (Gn

31,6.31-32.36-42 e 1 Sm 25,7.15-16), de pagamento pelo cuidado (Gn 30,31 e 1 Sm

25,7.15.21), em ambos a inocência do “herói” é contrastada por uma ofensa (Gn

31,32-33.37 e 1 Sm 25,28), o conflito entre os personagens ocorre num contexto de

pastoreio de ovelhas (Gn 31,19 e 1 Sm 25,2.4.7.11); entre Saul e Labão –, ambas as

personagens foram objetos de protestos com relação à inocência de seus subalternos

(1 Sm 24,11-12 e Gn 31,36), em momentos de conflitos, ambos pedem um

julgamento de YHWH para suas questões (1 Sm 24,13 e Gn 31,53); e Saul e Nabal.96

2.2.2.1.2 Análise sem suporte exegético

A intertextualidade feita sem o suporte exegético apresenta uma análise da

superfície literária do texto final. Essa linha divide-se em: (a) Análise apenas de

paralelos de temáticos e (b) Análise de paralelos de personagens.

a) Análise de paralelos temáticos

Metodologicamente, faz-se uma análise literária dos textos, buscando

semelhanças e diferenças entre os seus enredos, sem preocupações de ordem

exegética.97

Representante dessa categoria é Nikado S., autor de “Hagar and Ishmael as

literary figures: an Intertextual Study”, onde analisa um tema frequente na Bíblia

Hebraica: a história de uma criança especial nascida de pais especiais. Nele faz-se

uma análise comparativa entre os enredos das histórias de Agar e Abraão, de Agar e

96 BIDDLE, Mark E. Ancestral Motifs in 1 Samuel 25: Intertextuality and Characterization, pp. 617-63. Cf. DAVIES, Ellen F. Job and Jacob: The Integrity of Faith. In: FEWELL, Danna Nolan (ed.). Reading Between Texts: Intertextuality and the Hebrew Bible (Literary Currents in Biblical

Interpretation). Louisville: Westminster/John Knox Press, 1992, pp .203-223. Nesta categoria estão ainda HEARD, R. Christopher. Echoes of Genesis in 1 Chronicles 4:9-10: An Intertextual and Contextual Reading of Jabez's Prayer JHS, vol. 6, 2002. Disponível em <http://www.arts.ualberta.ca/JHS> acessado em 04/10/2006; MITCHELL, Christine. Transformations in Meaning: Solomon's Accession in Chronicles. JHS, vol. 6, 2002. Disponível em <http://www.arts.ualberta.ca/JHS>. 97 Os autores não fazem uma investigação exegética, envolvendo crítica textual, análise da forma, análise da redação, análise semântica, etc, mas uma análise dos elementos perceptíveis a partir da superfície do texto final.

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Ana e de Ismael e José.98 Três são as semelhanças entre histórias de Agar e Abraão:

ambas têm a presença de uma voz do céu que chama pelos personagens em

momentos críticos onde a vida de uma criança estava para ser tirada (cf. Gn 21,17 e

22,11-12); em ambas há uma jornada que desemboca num lugar desolado onde a vida

da criança é salva por uma intervenção divina (cf. Gn 21,14a e Gn 22,13-15) e em

ambas há uma mesma resposta para o avistamento da divindade: uma teofania com a

presença do verbo “ver” (cf. Gn 16 13-14 e 22,14).99

Com relação às semelhanças das narrativas de Agar e Ana, o autor diz que nas

duas narrativas uma mulher sofre na mão de uma esposa enciumada (Gn 16,6 e 1 Sm

1,6-7), a figura masculina (marido) é passiva (Gn 16,6 e 1 sm 1,8.23), as mulheres

atacadas resolvem buscar refúgio (Gn 16,6-8 e 1 Sm 1,9-10), as heroínas são

retratadas como “transtornos” (Gn 22,14-16 e 1 Sm 1,12-14), as heroínas falam com

mensageiros de YHWH (Gn 16,7-9 e 1 Sm 1,14-18), ambas têm um filho homem

cujo nome reflete a assistência dada por YHWH (Gn 16,20 e 1 Sm 1,17.20.28-29).100

Com relação às semelhanças das narrativas de Ismael e José, o Nikaido diz que

em ambas as crianças (Ismael e José) foram separadas dos seus pais contra suas

vontades (Gn 16,2. 21,10 e 39,3-6), há uma mulher que sente atração e repulsão pela

criança quando esta já está crescida (Gn 16,2 e 39,6-7), as crianças foram expulsas

por motivos fúteis (Gn 21,9-12 e 39,21), as crianças são resgatadas do deserto (Gn

21,15-19 e 37,20-28).101

Ainda enquadram-se aqui os artigos de Danna Nolan Fewell, Todd Linafelt,

Patricia K. Willey, Lasine Stuart, Jan Jaynes Granowski, G. Savran, Peter Miscall,

Dennis Ronald MacDonald, Sylvia C. Keesmaat, Beth LaNeel Tanner.102

98 NIKAIDO, S. Hagar and Ishmael as Literary Figures: an Intertextual Study, pp. 219-242. 99 NIKAIDO, S. , op. cit., pp. 221-229. 100 NIKAIDO, S. , op. cit., pp. 230-232. 101 NIKAIDO, S. , op. cit., pp. 232-242. 102 Cf. FEWELL, Danna Nolan (ed). Introduction., pp. 13-15; LINAFELT, Todd. Taking Women in Samuel: Readers/Responses/Responsibility, p.99-113; WILLEY, Patricia K. The Important Woman of Tekoa and How She Got Her Way. In: FEWELL, Danna Nolan (ed). Reading Between Texts:

Intertextuality and the Hebrew Bible (Literary Currents in Biblical Interpretation). Louisville: Westminster/John Knox Press, 1992, pp. 115-131; LASINE, Stuart. Reading Jeroboam’s Intentions: Intertextuality, Rhetoric and History in 1 King 12. In: FEWELL, Danna Nolan (ed.). Reading Between

Texts: Intertextuality and the Hebrew Bible (Literary Currents in Biblical Interpretation). Louisville: Westminster/John Knox Press, 1992, pp. 133-151; GRANOWSKI, Jan Jaynes. Jehoiachin at the King’s Table: A Reading of the Ending of the Second Book of Kings, pp. 173-190; GRAHAM, Susan.

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b) Análise de paralelos de personagens

Nesta categoria a preocupação é apenas com as personagens, a partir das quais

são apresentadas semelhanças e diferenças entre os textos. David M. Gun, “Samson

of Sorrows: An Isaianic Gloss on Judges 13-16”, por exemplo, parte da história de

Sansão e traça paralelos entre este e Servo Sofredor (Is 40-55). Dentre as diversas

semelhanças, destacam-se: as duas personagens têm um nascimento incomum, vindo

ao mundo pela graça, pois são escolhidos de YHWH, separados desde o nascimento

(cf. Jz 13,2-5); ambas as personagens têm uma missão específica desde a sua

concepção (cf. Jz 13,5 e Is 42,1; 44,2-3); ambas são possuidoras do “espírito de

YHWH” para fazer coisas maravilhosas e que estavam em consonância com o

propósito de YHWH (cf. Jz 14,6 e Is 42,2-3); ambas demonstram a força destruidora

de YHWH (cf. Jz 14,19 e Is 42,13); ambas desejam uma reconciliação com suas

“escolhidas” (cf. Jz 15,1 e Is 54,6-8); ambas, ao verem frustrada a reconciliação, dão

uma “resposta furiosa” (cf. Jz 15,3 e Is 41,15-16); e ambas manifestam essa “resposta

furiosa” através do fogo (cf. Jz 15,1-8 e Is 50,11).103

2.2.2.2

A partir do deslocamento, descentralização, dispersão e disseminação

Leitura intertextual feita por Peter Miscall em “Isaiah: New Heavens, New

Earth, New Book”, pressupõe que em alguns textos existem quatro características –

deslocamento, descentralização, dispersão e disseminação – que combinadas dão uma

nova perspectiva à intertextualidade. 104

Intertextual Trekking: Visiting the Iniquity of the Fathers Upon the Next Generation, pp. 195-220; MISCALL, Peter. Texts, More Texts, a Textual Reader and a Textual Writer, pp. 247-260; MACDONALD, Dennis Ronald. Mimesis and intertextuality in antiquity and Christianity. Trinity Press International, 2001; TANNER, Beth LaNeel. The book of Psalms through the lens of

intertextuality (Studies in Biblical Literature – vol. 26). New York: P. Lang, 2001. 103 GUN, David M. Samson of Sorrows: An Isaianic Gloss on Judges 13-16. In: FEWELL, Danna Nolan (ed). Reading Between Texts: Intertextuality and the Hebrew Bible (Literary Currents in

Biblical Interpretation). Louisville: Westminster/John Knox Press, 1992, pp. 228-237. Outra análise de paralelos de personagens foi feita por PIPPIN, Tina. Jezebel Re-Vamped. Semeia – Intertextuality and

The Bible, pp. 221-234. 104 MISCALL, Peter. Isaiah: New Heavens, New Earth, New Book, pp. 41-56.

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Nessa nova perspectiva, os textos, através da alusão ou de ecos, deslocam e

descentralizam outros pela dispersão e disseminação de palavras, de sentenças, de

temas, de imagens e de tramas. Como exemplo tem-se João 8,56-58, onde Jesus diz

que “antes de Abrãao, eu Sou”, fazendo uma alusão a Ex 3,14 onde YHWH diz “Eu

sou aquele que sou”. Neste caso, além de fazer ecoar num texto novo (João) um texto

antigo (Ex 3,14), promovendo um deslocamento, o autor afirma que Jesus era antes

de Abraão e Moisés, indicando uma descentralização.105

Metodologicamente, para essa abordagem intertextual deve-se: (1) examinar as

palavras e frases dos textos e ver as correlações; (2) ver como um texto explora os

elementos do outro texto; e (3) apontar qual a nova leitura que o texto mais recente

faz dos mais antigos.106

2.2.2.3

A partir de cenas-tipo

Essa intertextualidade é caracterizada pela apresentação de semelhanças e

diferenças entre cenas-tipo ou sequência de ação entre duas ou mais passagens.

Um exemplo dessa modalidade intertextual é o artigo de Ilona N. Rashkow,

“Intertextuality, Transference and the Reader in/of Genesis 12 and 20”, no qual a

autora afirma que intertextualidade existe num nível micro, quando são apontadas

semelhanças entre palavras e frases, e macro, quando são apontadas semelhanças

entre cenas-tipo ou a sequência de ação.107

Dois elementos são destaques na intertextualidade a partir de cenas-tipo: o

leitor e a tipologia. O leitor tem um papel importante, pois é ele que, ao ler, vivenciar

e reencenar o texto a fim de entender seu significado, faz uma “intertextualidade de

transferência”. Já a tipologia serve como mecanismo para fazer esse tipo de

105 MISCALL, Peter , op. cit., pp. 45-46. 106 MISCALL, Peter , op. cit., pp. 47-55. 107 RASHKOW, Ilona N. Intertextuality, Transference and the Reader in/of Genesis 12 and 20, p. 57.

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intertextualidade, pois características e cenas, simbolicamente, prefigurarem eventos

futuros.108

Exemplificando sua teoria em Gn 12 e 20, Rashkow afirma que as passagens,

quando comparadas por cenas-tipo, mostram um discurso de dominação do

masculino sobre o feminino. Nos textos, Abraão sacrifica sua mulher em prol da sua

segurança e bem-estar, somente Abraão fala e age (Sara está sempre calada e

passiva), Sara não é nomeada (é chamada de “mulher de Abrão” ou por pronomes

pessoais, demonstrativos ou de tratamento). Além desses elementos, há o ressaltar da

transferência, entre os relatos de Abraão-Faraó e Abraão-Abimalek, com relação à

entrega de Sara para a continuação da vida e aumento da fortuna de Abraão e o

ensino sobre imoralidade do adultério e o crime contra a figura feminina.109

2.2.2.4

A partir da textualidade, da cultura e da interpretação

A modalidade intertextual de David Penhansky em “Staying the Nigth:

Intertextuality in Genesis and Judges” é feita por três acessos: (1) através da

textualidade, quando dos textos faz-se uma referência cruzada, elaborando um elenco

de palavras repetidas, conceitos e motivos teológicos; (2) através da cultura do

escritor, faz-se uma intercessão entre a ideologia dos textos; e (3) quando o autor e o

leitor interagem com o texto num novo e criativo caminho, gerando um novo produto

ou novo texto.110

Exemplificando essa intertextualidade pelo viés da textualidade, o autor afirma

que Gn 19, Gn 24 e Jz 19 são três histórias que tratam do tema da hospitalidade, onde

uma festa de recepção é oferecida ao hóspede, a figura da mulher é apresentada como

uma força ordenadora e diretora de vidas e todos contêm a expressão “passar a noite”.

Analisando pelo viés da cultura, o autor, justapondo os três textos com a sociedade

israelita, afirma que eles refletem uma ideologia antifeminista de vitimação da mulher

108 RASHKOW, Ilona N., op. cit., pp. 58-60. 109 RASHKOW, Ilona N., op. cit.,pp. 62-68. 110 PENHANSKY, David. Staying the Nigth: Intertextuality in Genesis and Judges, p. 78.

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(sendo colocada à margem da sociedade, servindo inclusive como objeto de troca) e

de fraternidade de homens para com outros homens. Através dessa interpretação, os

textos geram nos leitores atuais uma crítica às suas próprias ideologias ou às

ideologias modernas, como o problema da inferiorização e desvalorização da

mulher.111

2.2.2.5

A partir das formas de manifestação da intertextualidade

Essa abordagem intertextual feita por Glena S. Jackson em “Enemies of Israel:

Ruth and the Canaanite Woman”, parte da compreensão de que a intertextualidade se

manifesta através da citação, da referência e da alusão para dialogar e

inter(con)textualizar-se.112

Exemplificando sua proposta, analisa como Mt 15,21-28 faz referência, alusão,

dialoga e inter(con)textualiza-se com a história de Rute. Após expor cada uma das

histórias, Jackson aponta as relações intertextuais entre elas, tais como: Mt cita Tiro e

Sidon, alude à reputação da sua população e faz com que seus leitores dialoguem e

inter(con)textualizem mentalmente com o conhecimento que têm sobre as cidades;

Mt faz referência à mulher cananita (Mt 15,22) como aquela que está fora da

comunidade dos judeus e alude à história de Rute – assim como Naomi pede a Rute

para que siga seu caminho e esta não aceita, fazendo com que Naomi volte atrás no

seu requerimento, a mulher cananeia faz um pedido a Jesus e este, em princípio se

nega a atendê-lo, mas devido a insistência da mulher, volta atrás na sua decisão.113

111 PENHANSKY, David. , op. cit., pp. 78-86. 112 JACKSON, Glenna S. Enemies of Israel: Ruth and the Canaanite Woman, pp. 779-783. 113 JACKSON, Glenna S. Enemies of Israel: Ruth and the Canaanite Woman, pp. 784-788.

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2.3

Síntese e Perspectivas

Na primeira parte apresentou-se, a partir da teoria literária, a definição de

intertextualidade – relação dialógica, intencional ou não, entre dois ou mais textos –,

bem como suas formas, graus e manifestações. Na segunda parte analisou-se o

fenômeno intertextual entre os estudiosos do Antigo Testamento.

Nela foram apresentadas as aplicações da teoria intertextual feita pelos

estudiosos veterotestamentários, que tem pontos positivos e negativos. Como pontos

positivos tem-se a preocupação em alicerçar a intertextualidade a partir da exegese,

mesmo que parcial, dos textos que se supõe estar em diálogo; o aprofundamento da

compreensão da semântica dos textos e sua ideologia a partir das semelhanças e

diferenças, da apresentação e compreensão das figuras de retóricas (epígrafe,

referência, citação, etc). Como pontos negativos tem-se a pouca importância, de

alguns, pela exegese, gerando uma intertextualidade que analisa apenas a superfície

dos textos e, modestamente, aponta, os elementos temáticos, culturais e ideológicos já

conhecidos.

Diante dessas constatações, a análise intertextual proposta para este trabalho

partirá de uma acurada exegese dos textos, seguindo-se pela apresentação de

semelhanças e diferenças de temas, personagens, palavras, expressões, sequência

narrativa, conceitos e motivos teológicos e a verificação da presença da epígrafe,

citação, alusão, referência, paráfrase, paródia, ironia e pastiche entre as passagens.

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