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1200301056 I111 '" I 11" I" I 1I I"I I 1/"" I I 111I1I11I OS CAMINHOS DA LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL (LRF): INSTITUIÇÕES, IDÉIAS E INCREMENT ALISMO BANCA EXAMINADORA: Prof. Orientador Dr. Fernando Luiz Abrucio Profa. Dra. Maria Rita Loureiro Durand Prof. Dr. Cláudio Gonçalves Couto

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1200301056I111'" I 11"I" I 1II" II 1/"" II 111I1I11I

OS CAMINHOS DA LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL (LRF):

INSTITUIÇÕES, IDÉIAS E INCREMENT ALISMO

BANCA EXAMINADORA:

Prof. Orientador Dr. Fernando Luiz Abrucio

Profa. Dra. Maria Rita Loureiro Durand

Prof. Dr. Cláudio Gonçalves Couto

Page 2: I111'" I11"I"I1II"II1/"" II111I1I11I OS CAMINHOS DA LEI DE

FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGASESCOLA DE ADMINISTRAÇÃO DE EMPRESAS DE SÃO PAULO

CLAUDIA YUKARI ASAZU

OS CAMINHOS DA LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL (LRF):

INSTITUIÇÕES, IDÉIAS E INCREMENT ALISMO

Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação da EAESP/FGV como requisito paraobtenção do título de mestre em AdministraçãoPública e Governo.Área de Concentração: Finanças Públicas

Fundação (;etuUo Vargas •Esc.oia de Administração ~ ~

~ rte Empreoas de SI" Paulo (~~BiblioteCA ~

(")

~~N<,C.DLO~

Orientação: Prof. Dr. Fernando Luiz Abrucio

1200301056

SÃO PAULO

2003

Page 3: I111'" I11"I"I1II"II1/"" II111I1I11I OS CAMINHOS DA LEI DE

Escola de Administração deSEmpresas de São Paulo

Data N° de Chamad~

05 05 ~b.trS(&~._- To-;b~ A4q~c...

jOsçj.2003 'Qt .e .1-

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AGRADECIMENTOS

Eu devo o presente trabalho, que conclui meu mestrado de três anos e um esforçoconcentrado de criação dissertativa de dois meses, a inúmeras pessoas, algumas das quaisgostaria de mencionar.

Em primeiro lugar, agradeço ao meu querido mestre, professor Fernando Luiz Abrucio.Entre análises sobre a última performance do Corinthians e sobre as medidas fiscaisadotadas nos últimos anos, este trabalho só foi possível com a sua preciosa orientação eseus inúmeros rabiscos nos primeiros trabalhos.

Em segundo, agradeço profundamente à EAESP!FGV e à CAPES, que me possibilitaram ofinanciamento de dois dos três anos desta empreitada. Aos funcionários da Biblioteca, quefreqüentei quase diariamente durante o mestrado, o meu especial agradecimento.

À professora Maria Rita Loureiro Durand e ao professor George Avelino, gostaria deexternar a minha mais profunda gratidão pelas aulas e pelo convívio fora delas. Aoprofessor Francisco Vignoli, agradeço pela atenção em compartilhar seus conhecimentossobre Finanças Públicas. A José Roberto Afonso agradeço pelo tempo dedicado emresponder ao meu questionário.

Aos colegas de mestrado e: de biblioteca, em especial Fátima, Eduardo, Dani, Hiro,Fernando e Elaine, a minha gratidão pela convivência, pela troca de idéias e pelo apoiomútuo na dor e na alegria de escrever uma dissertação.

À minha amiga Denise Delboni, agradeço pelos almoços, pelas conversas bastantesprodutivas e pela parceria nos papers.

Dedico este trabalho à minha família, que entre uma compreensão infinita e críticas umtanto amargas que só familiares conseguem fazer, nunca deixou de me apoiar nestes longostrês anos.

Por fim, a Yoshinori, Érica, Andrea, Kátia, Akemi e Agostina, um agradecimento carinhosopela paciência, pela amizade e por me fazerem sempre acreditar que no final tudo dá certo;se não deu, é porque não se chegou ao final.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 1

CAPÍTULO I

INSTITUIÇÕES E PROCESSO DECISÓRIO: LIMITES E POSSIBILIDADES 9

, 1. O processo político brasileiro: entre a fragmentação e a coesão 12

2. O papel das idéias e o decision-making como aprendizado 23

CAPÍTULO II

O PANO DE FUNDO FEDERATIVO: DO DESARRANJO AO

REORDENAMENTO 26

1. O choque da crise da dívida externa e o desajuste federativo 28

2. A virada no jogo federativo e a nova configuração de poder

2.1 Os antecedentes do Plano Real.. 37

2.2 O Plano Real, a centralização de poder da União e a fraqueza dos Estados 41

3. Ajuste fiscal pós-Real: incrementalismo e path dependence 56

CAPÍTULO III

A TRAMITAÇÃO LEGISLATIVA DA LRF: INSTITUIÇÕES E IDÉIAS 65

1. A relação Executivo-Legislativo 68

2. A mídia e a LRF 83

3. A construção do consenso no Legislativo 86

4. Conclusão 91

CONSIDERAÇÕES FINAIS 92

BIBLIOGRAFIA 96

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INTRODUÇÃO

"Política Literária"

o poeta municipal

discute com o poeta estadual

qual deles é capaz de bater o poeta federal

Enquanto isso o poeta federal

tira ouro do nariz.

Carlos Drummond de Andrade

o tema ajuste fiscal incorporou-se à agenda política brasileira nos anos 90, tendo a

redução do déficit público, a partir de então, se tomado issue premente para- garantir a

estabilidade econômica. O presente trabalho constitui um esforço tentativo de análise do

ciclo de ajuste fiscal brasileiro desse período, com ênfase em um de seus pontos cruciais: a»>

Lei de Responsabilidade Fiscal.

Constitui objeto desta pesquisa o processo de aprovação da LRF e seus

antecedentes, um período compreendido entre 1993 e 2000. Seu objetivo é demonstrar que

o ciclo de mudanças na área fiscal, iniciado na era FHC, foi resultado 1) de profundas

mudanças na distribuição de poder e de recursos no plano federativo (em prol da União) a

partir de 1993/1994, 2) de path dependence e "incrementalismo", ou seja, de medidas que

foram gradualmente implementadas e que, a cada vez, limitavam a tomada de decisão

seguinte à idéia de ajuste e 3) de um processo de aprendizado social e político, ressaltando-

se o papel Idas idéias (HALL, 1993) e do acúmulo de experiência. Destaca-se neste trabalho

os dois últimos aspectos -a idéia de path dependence e de aprendizado político, sem

entretanto, esquecer a dimensão federativa da questão. Trata-se de um estudo que perpassa

pela análise dos atores políticos envolvidos, das arenas decisórias, da interação entre a,-

burocracia e a política e do papel das idéias.

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A problemática que motivou esta pesquisa procurou responder à seguinte pergunta:

as mudanças na área fiscal decorreram de aprendizado? Se sim, como e, mais importante,

por que se sucedeu ele?

O período de 1982 a 1994 se caracteriza pelo grave desarranjo fiscal, tendo como

pano de fundo o esgotamento do modelo econômico até então vigente e o enfraquecimento

do governo federal sobretudo no plano das relações federativas. Em termos gerais, pode-se

afirmar que duas grandes crises marcam esse período: a crise da dívida externa na década

de 80, que veio à tona em 1982, com o corte quase integral do financiamento internacional

por parte dos bancos privados, e a crise da dívida interna, nos anos 90, resultante do

descontrole fiscal que havia se instaurado na década anterior e que se tomara mais patente

com o controle da inflação a partir de 1993. Ao mesmo tempo, falava-se também em crise

institucional: nenhum dos cinco planos de estabilização anteriores ao Real se mostrara

sustentável e insistia-se que as causas da ingovernabilidade se deviam à estrutura decisória

no país (MAINW ARING, 1993). O referendo realizado em 1993 para decidir sobre qual o

regime de governo a ser adotado -ou mantido- parecia ser o resultado dessa perspectiva

negativa a respeito das instituições políticas brasileiras.

Renegociadas as dívidas com os parceiros internacionais, a partir da década de 90 os

fluxos financeiros retomam ao país, gerando certa folga. Tratava-se de uma primeira

mudança nesse cenário. Deflagrava-se, por outro lado, a crise das dívidas estaduais,

resultantes do fim do mecanismo de float dos orçamentos, que mascarava, com a inflação, a

gravidade dos déficits e do excesso de comprometimento dos balanços com gastos não-

financeiros.

Nesse contexto, segundo o diagnóstico prevalecente à época, fazía-se urgente a

adoção de medidas de equacionamento dos problemas fiscais. O ano de 1993, com 'a

nomeação de Fernando Henrique Cardoso ao Ministério da Fazenda, marcou o início das

mudanças no âmbito fiscal.

O que impulsionou tais mudanças? Em primeiro lugar, a reviravolta do desarranjo

federativo. Assistiu-se, a partir desse período, ao fortalecimento das prerrogativas fiscais do

governo central em detrimento do enfraquecimento dos Estados. Respaldado pelo sucesso

do Plano Real, o poderio que a União chamava para si contrapunha-se ao "caos federativo"

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que se instalava, num cenário em que os Estados anunciavam sua bancarrota: investimentos

eram paralisados, o pagamento dos salários de seus funcionários era adiado e greves se

sucediam. Tal situação conferiu ao presidente legitimidade para constituir-se como força

propulsora das mudanças que propunha e neutralizar o veto dos "barões".

Por outro lado, verificou-se a emergência de novas concepções a respeito das causas

inflacionárias (PIO, 2001). No plano fiscal, em particular, tomou-se consenso entre os

economistas que compunham a equipe que formulou o Plano Real a necessidade de

equacionar os problemas dessa área atacando o que era considerado sua raiz: a rigidez das

despesas com pessoal ativo e inativo, que apresentava déficits crescentes a níveis sem

precedentes. Era preciso também "pôr os pingos nos is" das relações fiscais entre a União e

os demais entes federados e criar lei que regulamentasse o art. 163 da CF, disciplinando as

finanças públicas no país. Ressalta-se também que o Plano Real, bem como as medidas

fiscais implementadas posteriormente, basearam-se em grande nos erros e acertos de planos

e ações anteriores, mostrando o resultado de um aprendizado, como procurarei mostrar

mais adiante.

°ajuste fiscal tomou-se, assim, núcleo duro da agenda política a partir de 1993, e o

reordenamento das relações federativas passou a ser um ponto central. Como se sabe,

mudanças na dinâmica fiscal impõem não apenas perdas concentradas e ganhos difusos em

termos, digamos, quantitativos, como aponta SHICK (1993), como também perdas

imediatas e ganhos de prazo longo e incerto, em termos temporais, dificultando sua

implementação. Implicam, em vista disso, o comprometimento de (ou a capacidade de fazer

comprometer) múltiplos atores do jogo federativo, estando qualquer tentativa de ajuste, do

contrário, fadada ao fracasso, como se verificou ao longo da década de 80. Reforça-se aqui

a idéia de que mudanças na área fiscal constituem basicamente uma questão federativa, e õs

resultados positivos obtidos nessa área no período analisado deveram-se, em grande parte, à

"virada" do jogo federativo em prol do Executivo federal. Vejamos.

As perspectivas políticas a partir de 1993 passavam a acenar positivamente para a

promoção das reformas. A despeito dos traços fragmentadores do decision-making no

Brasil resultante do sistema federativo que dificulta a tomada de decisões por parte do

Executivo, de-regras eleitorais que levam a um multipartidarismo exacerbado e predatório e

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da estrutura política que incentiva o comportamento individual e auto-interessado dos

parlamentares (MAINWARING, 1993), a eficácia do Plano Real assegurou à gestão FHC,

pelo menos num primeiro momento, nível de coesão e coordenação sem precedentes na

história política nos 20 anos de redemocratização, consolidando bases para um

presidencialismo de coalizão "robusta". Tal se sucedeu pelo o apoio dos maiores partidos

no Congresso -PSDB, PMDB, PFL, PTB e PPB-, garantindo ainda uma esfera de

influência maior do Executivo sobre as mesas diretoras e o colégio de lideres no Congresso,

principallocus decisório no Legislativo (LIMONGI & FIGUEIREDO, 1998; LOURE1RO

& ABRUCIO, 2000).

° sucesso do Plano Real garantiu, ádemais, legitimidade ao presidente FHC e sua

equipe para levar a diante sua agenda, neutralizando eventuais vetos e moldando as

preferências dos diversos atores do jogo federativo, uma legitimidade que nenhum dos

presidentes civis anteriores havia conseguido assegurar por muito tempo.

Em 1994, a mensagem que encaminhou a MP que criou a URV definia o programa

de estabilização como um plano de três fases, contemplando o "estabelecimento em bases

permanentes do equilíbrio das contas do governo" como prioridade (Exposição de Motivos

n° 47 da MP n° 434/94). Inicialmente, medidas pontuais como a criação do Fundo Social de

Emergência (FSE), posteriormente denominado de FEF (Fundo de Estabilização Fiscal) e o

aumento de receitas provenientes de impostos e contribuições sociais não compartilhados

com Estados e Municípios deveriam sanear as contas no curto prazo. No longo prazo,

reformas de caráter estrutural (nas áreas Tributária, Previdenciária e Administrativa)

garantiriam as "bases permanentes" desse processo.

Tais iniciativas constituíam, em larga medida, uma contra-agenda da ordem fiscal

estabelecida pela Constituição de 1988. As mudanças nos regimes trabalhistas do setor

público e a expansão dos beneficios previdenciários, disposta na Carta Magna ao longo dos

quase 80 artigos relativos a essa matéria, resultaram em saldos negativos crescentes nas

contas públicas. Ademais, a descentralização fiscal cristalizada pela Constituição

incentivou comportamentos predatórios nas relações fiscais entre União e entes federados e

alimentaram um processo de endividamento irresponsável crescente (ABRUCIO & Costa,

1999), uma das distorções que medidas como a Emenda Constitucional n° 3, o Senado

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(embora não muito bem sucedido, como veremos) e a criação de uma lei como a LRF

procuraram corrigir.

Mesmo estabelecidas as medidas de estabilização monetária em 93/94, porém, o

cenário fiscal ainda não era nada animador. Apesar do esforço de arrecadação e de

concentração dos recursos distribuídos, a melhora nos saldos fiscais não foi significativa,

principalmente por conta do aumento considerável das despesas rígidas, ou seja, gastos com

pessoal e previdência social e despesas vinculadas, que engessavam o orçamento federal,

gerando pressões sobre as contas fiscais.

Houve, por outro lado, avanços significativos a partir desse período. A principal

"torneira" de financiamento dos Estados -a emissão de títulos por parte de bancos estaduais

para cobrir seus rombos de caixa- foi fechada com o processo de saneamento dessas

instituições. A Emenda Constitucional n° 3 constitui um primeiro passo no sentido de

limitar o endividamento predatório dos entes subnacionais. A partir desse processo,

criaram-se bases para negociar contrapartidas fiscais dos Estados, que teriam, para

conseguirem renegociar suas dívidas com a União, que cumprir regras de ajuste nas contas.

A promulgação da Lei Camata, em 1995, buscou conter o avanço dos gastos com o

funcionalismo, impondo tetos de gastos com pessoal do Executivo nas três esferas da

federação. Na tentativa de reverter o déficit na balança comercial, foi aprovada em 1996, lei

desonerando a exportação de produtos semi-elaborados do ICMS, apesar das queixas dos

governadores contestando os mecanismos de compensação de perdas.

Por outro lado, fechava-se uma torneira e abria-se outra. A emissão de títulos e

autorizações de endividamento (feitas junto ao Senado) para pagamento de precatórios

passou a ser um mecanismo de financiamento disfarçado, o que somente veio a ser

controlado com maior rigor com as repercussões da CPI dos Precatórios (1996 a 1999).

No plano federativo, Estados, em especial São Paulo, Paraná e Bahia, governados

por partidos aliados ao presidente, acirravam a chamada guerra fiscal. Duas CPls -a do

Orçamento e a dos Precatórios- com grande destaque na mídia, apresentaram resultados

aquém dos esperados e subtraíam a legitimidade do Congresso, embora tenham contribuído

enormemente para dar visibilidade a esses problemas. A disputa entre o Judiciário, que

buscava garantir aos seus servidores aumentos, e o Executivo também tinha efeito danoso

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sobre a imagem do primeiro, mas contava "pontos positivos" ao Executivo.

Responsabilidade fiscal parecia, nesse contexto, ter um forte apelo moral.

Entretanto, nem todas as iniciativas do Executivo federal lograram sucesso face à

nova realidade federativa. Apenas para fazer um contraponto analítico, a reforma da

Previdência, iniciada em 95, se processou de forma errática e só veio a ser aprovada três

anos e nove meses depois (lembrando que essa reforma, por alterar dispositivos

constitucionais, requeria 3/5 dos votos, quando a LRF, uma lei complementar, exige

50%+ 1), com o conteúdo original bastante modificado e sem conseguir atingir a principal

fonte dos déficits e das distorções, a Previdência Pública. É bem verdade que o governo foi

bem sucedido na desconstitucionalização de alguns dispositivos, o que permitiu, por

exemplo, recorrer à legislação ordinária para instituir a cobrança de contribuição dos

inativos (MELO, 2002). Entretanto, o esforço se revelou inútil, tendo em vista que a

medida foi derrubada pelo Supremo Tribunal Federal.

° processo que envolveu a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal seguiu um

caminho menos tortuoso. ° projeto iniciou-se em 1997, no BNDES, em conjunto com o

Ministério da Fazenda e o Banco Central, todos alinhados à idéia do ajuste fiscal. A

Emenda Constitucional n? 19, de junho de 1998, estipulou a apresentação desse projeto de

lei até dezembro desse ano. Ele foi inicialmente apresentado em forma de anteprojeto, já

com nome de "Lei de Responsabilidade Fiscal", inspirado no ''Fiscal Responsibility Act"

da Nova Zelândia no final de 98, sendo encaminhado ao Congresso em abril de 99, com

grande cobertura (favorável), principalmente dos jornais diários.

Ao contrário do que se verificou no processo de reforma da Previdência, por

exemplo, o Executivo pôde fazer amplo uso de seu poder de agenda (e utilizar o pedido de

formação de comissão especial e do pedido de urgência na Câmara) para agilizar -a

aprovação. Nas duas Casas legislativas, o projeto conseguiu votação expressiva: na

Câmara, obteve 385 votos a favor, 86 contra e 4 abstenções -eram necessários 257 votos-

e, no Senado, 60 votos a favor, 10 contra e 3 abstenções.

Promulgada, o Judiciário rejeitou liminarmente as Ações Diretas de

Inconstitucionalidade (ADIns) impetradas pelos partidos de oposição, mostrando-se

cauteloso com relação à matéria. Como colocou o presidente do STF, ministro Marco

..

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7

Aurélio de Mello, o tribunal tem marchado com muita cautela com relação a essa lei, pois

percebe que ela é um avanço em termos de Administração Pública".

O que explica o comportamento diverso dos atores políticos?

A mudança nas relações federativas e na dinâmica da distribuição de poder e

recursos em favor da União, como se falou, tiveram peso decisivo. Mas não o explicam por

completo. Nesse sentido, atenta-se para o fato de que o processo decisório no caso da

aprovação da LRF foi resultado de um "social learning" (HALL, 1993), ou seja, de um

aprendizado gradual envolvendo os diferentes atores políticos no sentido de aceitar a idéia

de mudança.

HALL define social learning como uma tentativa deliberada de ajustar os objetivos

e instrumentais da política (palicy) em resposta às experiências passadas e novas

informações. Tendo como foco empírico as políticas macroeconômicas ocorridas na

Inglaterra entre 1970 e 1989, o autor estabelece três ordens de mudanças no processo de

aprendizado. A primeira ordem diz respeito a mudanças incrementais: pontuais,

pertencentes à rotina da administração pública. A segunda ordem de mudança se dá por

meio do desenvolvimento de novos instrumentais políticos que, por sua vez, abrem

caminho para ações estratégicas. Por fim, mudanças de terceira ordem, que representam a

mudança de paradigmas, de~loci decisórios, de aprendizado via tentativa e erro que

resultam de debates públicos que se tomam políticos (com efeitos eleitorais) e incorporam a

agenda política .

.A análise empírica do ciclo de ajustes fiscais que culminou com a aprovação da

LRF, grosso modo, mostra que se sucederam os três níveis de mudança, ressaltando-se

também o caráter incremental desse processo. O Plano Real, a Lei Camata, a CPI dos

Precatórios, a renegociação das dívidas dos Estados e a LRF enquadram-se nas três ordens

de mudanças, promovidas de forma incrementaI, tal como a sedimentação de "camadas

geológicas" (LOUREIRO & ABRUCIO, 2002).

Assim, busca-se mostrar neste trabalho que o sucesso do ciclo de mudanças na área

estritamente fiscal não resultou de reformas do tipo "once for alI", como se buscava nas

reformas Tributária e Previdenciária, mas de medidas gradualmente implementadas. As

idéias e o consenso em tomo delas, as mudanças de preferências dos diversos atores em

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razão da distribuição de recursos e das "opiniões de legitimidade" têm igualmente papel

decisivo nesse processo. Não por outra razão o projeto da LRF passou por uma tramitação

rápida e com votação expressiva e tampouco vem sofrendo "interferências" por parte do

Judiciário.

Não se nega o peso das instituições nesse processo. Pelo contrário. As instituições

têm papel central nos processos decisórios. Mas busca-se aqui enxergá-las dentro de seu

contexto, sem esquecer que, sob os mesmos constrangimentos institucionais, verificam-se

diferentes resultados, preferências distintas, politicas diversas.

Este trabalho se divide em cinco partes, incluindo esta introdução. O Capítulo I

aborda sobre os efeitos das instituições sobre o decision-making político e as possibilidade

e as limitações analíticas das abordagens "puramente" institucionalistas. Procuro mostrar

que sim, as instituições impactam sobre o processo político, mas não bastam em si para

explicá-lo. No Capítulo TI, procura-se traçar o pano de fundo da crise fiscal da década de

90 e entendê-lo sob o ponto de vista político. Especial atenção é dada às mudanças no

arranjo federativo brasileiro (e suas causas) a partir desse periodo. Busco mostrar também,

nesse cenário, quais as medidas fiscais adotadas, que, posteriormente, pavimentaram o

caminho para a implementação de ajustes mais estruturais. o Capítulo TIl dedica-se à

tramitação da lei no Congresso. Por fim, o Capítulo IV fecha o trabalho.

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Capítulo I

Instituições e processo decisório: limites e possibilidades

Que as instituições, entendidas como o conjunto de regras formais e informais do

jogo político, importam no decision-rnaking e na produção de políticas, pouco se questiona.

De fato, um consenso cristalizado em vasta literatura aponta que a estrutura de

constrangimentos e incentivos institucionais desempenha papel central na formatação das

políticas e molda as escolhas dos atores políticos.

Uma primeira ordem de análise procura demonstrar a força dos traços institucionais

básicos, as "macroinstituições", quais sejam, regime de governo, sistemas de governo e

sistema de partidos no processo político (MAINWARING, 1993; TSEBELIS, 1997;

WEAVER & ROCKMAN, 1993; SIllCK, 1993; ALESINA & PEROTTI,. 1999). A

conclusão a que chegam esses autores é que tais parâmetros geram sim distintos padrões da

interação de poderes, que se traduzem ou não em governabilidade ou na promoção de

mudanças de acordo com a agenda estabelecida. Em linhas gerais, o que se defende é que

quanto mais centralizado o arranjo institucional, maior é a possibilidade de mudança.

Assim, sistemas presidencialistas, federativos e multipartidários, embora altamente

"accountables", apresentariam as maiores dificuldades em termos de governabilidade .. O

caso brasileiro, ao qual se agrega a fragmentação e a indisciplina partidária, constituiria "o

pior dos mundos" em termos de eficiência, tendo um Executivo dinâmico buscando

promover mudanças e um Legislativo reacionário buscando barrá-las (MAINW ARING,

1993).

Se tal hipótese explica o processo político brasileiro compreendido entre o periodo

de 1985 e 1994, ela encontra limitações analíticas no período posterior a essa data. Como se

sabe, a balança do jogo político brasileiro, ainda que sob as mesmas regras previstas na

Constituição de 1988, passou a pesar mais sobre o Executivo, mais fortalecido e, assim,

mais eficiente. Houve, portanto, uma mudança na distribuição de recursos e de poder, em

prol da União, sem que tivesse ocorrido alterações nas macroinstituições.

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Uma segunda geração busca então incorporar outras variáveis -a organização

interna do Legislativo é uma delas- na abordagem institucionalista. A premissa básica é

que a conjugação de presidencialismo, federalismo e multipartidarismo resulta em

fragmentação do poder decisório e ingovernabilidade somente se vistos isoladamente, de

forma «monolítica" (LIMONGI & FIGUEIREDO, 1998; SANTOS, 2002). ° que se

verificou no pós-1994, ao contrário do que poderiam prever as análises anteriores, é que

tais traços básicos não configuraram como obstáculos à governabilidade tendo em vista as

regras vigentes no processo decisório no interior do Legislativo, que constituem, digamos

«microinstituições". De fato, as variáveis apontadas pelos autores de primeira geração

sugerem a existência de traços fragmentadores no decision-making brasileiro, que são

contornados pelas prerrogativas que o Executivo dispõe para conseguir coordenar a ação do

Legislativo a seu favor.

Entretanto, essa abordagem igualmente esbarra em limitações analíticas. É fato que,

em larga medida, principalmente no primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso,

entre 1994 e 1998, evidências empíricas apontam nessa direção. Um exemplo são as

edições e, mais importante, as reedições sucessivas de Medidas Provisórias, que sugerem

«delegação" de poderes por parte do Legislativo em prol do Executivo na consecução de

sua agenda econômica'. Por .outro lado, encontra limites para explicar, por exemplo, as

dificuldades enfrentadas pelo Executivo nas reformas Tributária e Previdenciária (MELO,

2002), para as quais as prerrogativas legislativas do Executivo ou a estrutura organizacional

do Legislativo que favorece o primeiro pouco importaram ou tiveram efeito.

Uma terceira ordem de análise reconhece as limitações da abordagem macro/micro

institucional e busca olhar não apenas para as variáveis propostas por ela, mas conjugá-las

com variáveis não-institucionais, seja aquelas específicas de cada arena decisória (MELO,

2002, ARRETCHE, 2002), seja contingenciais (LOUREIRO, 2002), seja não

convencionais, tal como o papel das idéias e das preferências dos atores (HALL, 1993;

ALMEIDA & MOYA, 1997; Azevedo & :rv.tELO,1997; LOUREIRO, 2001; LOUREIRO &

ABRUCIO, 2002).

I Durante o primeiro mandato de FHC, foram editadas 160 Medidas Provisórias e reeditadas 2449, das quaisapenas 82 foram convertidas em lei pelo Congresso.

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Aqui, as instituições continuam importando e não são ignoradas. Mas assume-se que

elas, per si, não conseguem explicar os fenômenos políticos de forma satisfatória porque

existe, para além da análise estática das variáveis institucionais seja de nivel macro, seja de

micro, e dos resultado políticos, uma interação dinâmica entre as regras do jogo, o jogo em

si, seus resultados e os atores políticos, que foi pouco explorada pela abordagem

estritamente institucional. Nesse sentido, a dinâmica da distribuição de recursos e poder

entre os diferentes entes federativos é melhor captada aqui,

É um consenso, como se afirmou anteriormente, que as instituições formatam as

escolhas dos atores e o processo político. O arranjo institucional desempenha papel central

na configuração da polity, das politics e das policies. A força -e, por que não, a beleza- da

abordagem institucionalista reside em sua capacidade de identificar os possíveis

determinantes dessas escolhas, ou seja, mostrar quais os atores estão envolvidos, sob quais

regras estão eles sujeitos e por que, em vista disso, lançam mão de determinadas escolhas

em detrimento de outras. Em outras palavras, para usar uma expressão popular, a grande

possibilidade explorada por essa abordagem foi a de "dar nomes aos bois" do jogo político.

Entretanto, instituições não bastam em si, tampouco são fundamentos estáticos que

geram sempre resultados previsíveis, tal como ocorre nas ciências exatas, e aqui se encontra

os limites das análises meramente macro/micro institucionalistas. Ao contrário, são

dinâmicas e alteram-se de acordo com as condições contingenciais (condições políticas,

capacidade de coordenar as burocracias, etc) e com as estratégias adotadas pelos atores

políticos. Seu funcionamento varia, muitas vezes, de acordo com o issue area tratado. E,

um ponto particularmente relevante para este trabalho, são influenciadas em grande medida

pelas idéias e preferências dos atores políticos e pelo aprendizado.

Os atores políticos, diz HALL (1993), trabalham dentro de uma estrutura de idéias-e

padrões que determinam não apenas as metas a serem alcançadas, mas também quais os

instrumentos serão utilizados para resolverem os issues que eles julgam como mais

problemáticas. Essa estrutura constitui o paradigma político e tem peso determinante sobre

os rumos do processo político. Daí o seu papel decisivo, que o presente trabalho vai

procurar focar.

11

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12

Em resumo, pode-se dizer que, sim, as instituições formatam o jogo político, mas

também se alteram e são formatadas por ele, numa relação dinâmica na qual, "policies

follow politics" e o contrário "politics follow policies" também ocorre, afetando,

particularmente no caso brasileiro, também a polity.

Ressalta-se aqui o trabalho de COUTO & ARANTES (2002). O processo político,

mostram os autores, apresenta três dimensões: a da normatividade constitucional (polity), a

dos embates e coalizões políticas (politics) e a da normatividade governamental (policy). A

primeira dimensão diz respeito às regras do jogo político. A segunda, ao jogo político em si

e a terceira, aos resultados do jogo político. As constituições, por conseguinte, fazem

referência à polity. Entretanto, a Constituição brasileira de 1988 promoveu a

constitucionalização de diversos dispositivos referentes à policy, engessando a capacidade

de promover alterações nessa dimensão. Exige do Executivo, assim, um esforço redobrado

de negociação e a adoção de estratégias mais bem elaboradas na dinâmica de distribuição

de recursos e poder, uma análise que escapa um pouco do escopo proposto pela abordagem

institucionalista de primeira e segunda ordem.

A seguir, procuro fazer um rápido overview da literatura, mostrando sua evolução

ao longo do tempo, baseando-me na leitura de PALERMO (2000) sobre o debate

institucionalista, ressaltando, ao final, a discussão sobre o papel das idéias e da mudança de

preferência dos atores em diferentes políticas.

o processo político brasileiro: entre a fragmentação e a coesão

A análise do processo de formulação e implementação de políticas sob a ótica

institucionalista, como se falou, tem sido objeto de intenso debate. O pressuposto básico

que permeia esse debate é que o desenho institucional influi sobre a capacidade de governo

e a efetividade das políticas públicas. Cada desenho apresenta vantagens e desvantagens,

gera riscos e oportunidades aos atores (WEA VER & ROCKMAN, 1993)

Entretanto, o consenso se esgota aqui. Grosso modo, a discussão, em especial no

que tange o processo político brasileiro, polariza-se entre aqueles que, olhando os

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13

parâmetros básicos -WEA VER & ROCKMAN (1993) os categorizam em nível 1 e 2 de

instituições' - concluem que o decision-makíng brasileiro é fragmentado e, como tal, gera

ingovernabilidade ou, ao contrário, apresenta fortes traços de coesão o que não constitui

entrave algum para a governabilidade.

PALERMO (2000) divide o debate em quatro enfoques, partindo de quatro

diferentes premissas, quais sejam: 1) o poder decisório é disperso, gerando problemas de

governabilidade, 2) o poder decisório é concentrado e, por isso mesmo, gera

ingovernabilidade, 3) o poder decisório é concentrado, mas, ao contrário, permite a

governabilidade e, por fim, 4) o poder decisório é disperso, e a governabilidade é possível.

O primeiro enfoque parte dos parâmetros institucionais básicos e assume que há

dispersão do poder decisório e que geram, por conseguinte, problemas de governabilidade.

Sob essa ótica, o Brasil seria ingovernável -entendendo governabilidade como capacidade

de decidir e implementar mudanças- dado seu desenho institucional, uma combinação

entre presidencialismo e um sistema multipartidário fragmentado.

Tal desenho, sustenta MAlNWARING (1993) é "especialmente desfavorável à

emergência de um governo democrático eficaz", sendo que "a probabilidade de ocorrerem

impasses Executivo/Legislativo e paralisia decisória é particularmente alta", o que, tendo

como foco empírico o periodo compreendido entre 1985 e 1994, de fato parece ser

irrefutável.

Partindo também dos parâmetros básicos, TSEBELIS (1997) avalia a capacidade de

um governo mudar as políticas públicas introduzindo o conceito de veto players. De acordo

com esse autor, a estabilidade das políticas públicas (ou seja, incapacidade de alterar o

status quo) aumenta quando aumenta o número dos veto players. A conclusão a que chega

esse autor é que os sistemas presidencialistas (que têm múltiplos veto players institucionais)

apresentam forte tendência à estabilidade do processo de formulação de políticas, ou seja, à

2 WEAVER e ROCKMAN diferenciam três níveis de instituições. No nível 1, figura osistema de governo, no nível 2, o tipo de regime e, no nível 3, o modelo institucional amploe características institucionais secundárias como as condições políticas e metas dospolíticos, condições socioeconômicas e demográficas, escolhas políticas passadas ouherdadas.

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ineficácia, sendo, de tal forma, muito semelhantes aos governos de coalizão nos sistemas

parlamentaristas (que têm múltiplos veto players partidários).

No caso brasileiro, aponta MAINWARlNG (1993), a situação de paralisia tende a se

exacerbar tendo em vista o caráter frouxo dos partidos. Trata-se de um contexto em que se

ampliam as possibilidades de o presidente se sentir forçado a passar por cima do

Congresso, a enfraquecer este e os partidos e a se envolver em outras práticas como, por

exemplo, a criação de agências executivas, distribuição de patronagem.

Análises setoriais também chegam a conclusões semelhantes quanto ao impacto das

instituições. Contrapondo a ascensão da social-democracia na Espanha ao do

conservadorismo na Inglaterra, ambos na década de 1980, BOIX (1998) procura

demonstrar que os partidos políticos têm papel-chave na tomada de decisão econômica. Em

linhas gerais, os primeiros defendem o aumento da produtividade via investimento em

capital humano e fixo, além do aumento dos impostos como forma de sustentar uma

política expansionista e voltada para uma melhor distribuição de renda (equality). Os

conservadores, por outro lado, defendem a redução dos impostos como forma de estímulo à

poupança e, conseqüentemente, ao investimento, priorizando o crescimento econômico.

Ambos, entretanto, face à emergência de crises financeiras, adotaram políticas fiscais

restritivas.

Particularmente sobre esse último aspecto, os processos de ajuste fiscal, objeto do

presente trabalho, ressaltam-se os trabalhos de SmCK (1993) e ALESINA & PEROTTI

(1999).

Tendo como foco empírico as políticas fiscais implementadas na década de 1980 na

Holanda, nos EUA e na Suécia, SmCK mostra que diferentes instituições políticas, em

especial referentes aos sistemas eleitorais e os regimes de governo, têm peso determinante

na coesão governamental, que, por sua vez, influencia a capacidade de o governo em

reduzir déficits. Como coloca o autor:

"...From a parliamentary perspective, lhe fusion of executive and

legislative powers offers several advantages for government

priority setting. (...) A presidentialist perspective, on the other hand,

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suggests that the institutional advantages of a parliamentary system

in providing a centralized forum for priority setting and government

cohesion are likely to be largely illusory. (...) single-party majority

governments seem likely to have an advantage over coalitional and

minority governments. (...) Divided government clearly can reduce

elite cohesion and increase the likelihood that mutual vetoes will

lead to stalemate, exacerbating difficulties in priority setting that

are inherent in the separation of powers. (...) bicameralism and

federalism also affect government capabilities" (idem: 189-91)

Assim, nos EUA, durante toda a década de 80, a política foi pautada pela ausência

de coesão governamental resultante de conflitos entre um Executivo dominado pelo partido

Republicano e o Legislativo pelo partido Democrata e vice-versa. A Holanda

parlamentarista enfrentou situação semelhante, sem conseguir coordenar as ações no

interior da coalizão que sustentava o gabinete. Apenas na Suécia parlamentarista e

governada por partido majoritário se verificou sucesso em tal empreitada.

ALESINA & PEROTTI (1999) reforçam o argumento, mostrando que crescentes

déficits públicos resultam, em .grande parte, de decisões de ajuste fiscal que são adiadas ou

simplesmente não adotadas por governos fragmentados, tais como os governos

parlamentaristas de coalizão dos países da OCDE e o governo dividido norte-americano. A.

centralização ou não das "instituições orçamentárias" -normas relativas à elaboração e

implementação dos orçamentos- também exerce influência decisiva nos resultados fiscais.

Instituições hierarquizadas -aquelas que, por exemplo, atribuem amplas prerrogativas

fiscais ao primeiro-ministro ou ao ministro da Fazenda para vetar demandas orçamentáriàs

de outros ministérios em negociações intragovernamentais- tendem a ser mais eficazes na

implementação de restrições fiscais comparadas às instituições colegiadas, nas quais há

ênfase nas regras democráticas a cada estágio de formatação do orçamento. Há, por outro

lado, um trade-off entre esses dois tipos de instituições: a existência de instituições

hierarquizadas tendem de fato a ser mais bem sucedidas para evitar déficits significativos e

persistentes e implementar medidas de ajuste mais rapidamente. No entanto, a

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accountability fica prejudicada, havendo ainda a possibilidade de gerar déficits para

favorecer grupos majoritários em detrimento dos grupos minoritários. As instituições

colegiadas, ao contrário, são altamente "accountables", mas pouco eficientes'.

O segundo enfoque tratado por PALERMO (2000), o de que o poder decisório é

concentrado e que, em razão disso, gera-se a ingovernabilidade, enfatiza a utilização de

expressivos poderes legislativos por parte do presidente da República, num jogo em que os

demais atores, ainda que tenham poder de veto, são excluídos. O uso recorrente de Medidas

Provisórias torna esse processo um instrumento ordinário de legislação, usurpando o poder

do Legislativo. Nesse contexto, cria-se um clima de conflito latente entre os dois Poderes -

"os excluídos servem ao presidente o prato frio da vingança'<-, o que, por sua vez, dificulta

a decisão e implementação das políticas. Trata-se, por outro lado, de enfoque pouco

debatido, que não é consistente com as evidências empíricas.

Assim, ambas as visões esbarram num problema analítico: não explicam o processo

político brasileiro do pós-1994. Dado que a estrutura institucional permanece a mesma

desde a Constituição de 1988, o que explicaria as mudanças no padrão de relações entre o

Executivo e o Legislativo, que possibilitaram a governabilidade e, mais especificamente, a

implementação de mudanças relativas ao ajustamento das contas públicas? Ainda que seja

fato que os poderes pró-ativos. do Executivo tenham sido recorrentemente utilizados, não se

estabeleceu uma relação conf1.itivacom o Legislativo, em especial no que tange às medidas

de caráter econômico. Além disso, a despeito desses traços fragmentadores, o Executivo foi

bem sucedido no encaminhamento do processo de ajuste fiscal.

Procurando preencher essa lacuna analítica, o terceiro e quarto enfoques partem do

princípio de que os atores institucionais não são dominados por uma pauta conflitiva. Pelo

contrário. Legislativo e Executivo -tendo este último como ator central- agem de fornia

coordenada, de forma que a imagem de um Executivo atuante lutando contra um

Legislativo reacionário não vinga. Não cabe falar, desta forma, em fragmentação, mas em

3 Argumentam os autores: " ...there is a trade-off between these two types of institutions: hierarchicalinstitutions are more likely to enforce fiscal restraint, avoid large and persistent deficits, and implement fiscaladjustments more promptly. On the other hand, they are less repsctful ofthe rights ofthe minority, and morelikely to gnerate budgets heavily tilted in favor ofthe interests ofthe majority. Collegial institutions have theopposite features" (idem: 17)

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coesão. Os dois enfoques divergem quanto à forma como essa interação se processa: se, de

acordo com o terceiro enfoque, tendo o Executivo como "indutor" e "comandante" da

coordenação, ou se, pelo último enfoque, isso se dá por meio de negociações.

Defendendo que a governabilidade se obtém pela concentração do decision-making

na figura do presidente, LIMONGI & FIGUEIREDO atentam para os poderes legislativos

disponíveis ao Executivo (1997) e para as instituições que regulam o processo decisório no

Legislativo (1998).

O primeiro aspecto refere-se à prerrogativa do Executivo de editar Medidas

Provisórias, expediente recorrentemente utilizado para a implementação de medidas

econômicas no período democrático mais recente. Qual a natureza desse comportamento?

De acordo com os autores, essa prática constituiria uma delegação de poderes do

Legislativo ao Executivo (e não uma usurpação de poder), com ganhos para todos:

"...as MPs foram o principal instrumento de formulação de

políticas de estabilização e de medidas de natureza administrativa e

social complementares aos planos implementados. Estas políticas

podem redundar em ganhos generalizados, mas implicam custos

certos no presente, sobretudo para grupos especificos. Inflingem,

portanto, perdas certas no momento em que são implementadas,

sem ganhos no futuro. Por esta razão, parlamentares teriam

interesse em delegar função legislativa so Executivo nesta área de

política pública, uma vez que não apareceriam como responsáveis

diretos por medidas impopulares perante suas constituencies. Por

outro lado, se o plano fracassa, os parlamentares não podem ser

responsabilizados individualmente. Do ponto de vista institucional,

a delegação nessa área de política poderia interessar também, pois,

dado que procastinar eleva os custos do ajuste, o Legislativo não

apareceria como empecilho para tomadas de decisões que

poderiam beneficiar a todos. " (idem, 1997: 153)

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Ademais, o que permite o Executivo dominar o processo legislativo é o poder de

agenda (capacidade de determinar quais propostas serão objeto de consideração do

Congresso e quando o serão), processada e votada por um Poder Legislativo organizado de

forma altamente centralizada em torno de regras que distribuem direitos parlamentares de

acordo com princípios partidários (idem, 1998). No interior deste quadro institucional, o

presidente dispõe de meios para "forçar" os palamentares à cooperação. Os parlamentares

não encontram um arcabouço institucional próprio para perseguir interesses particularistas.

Assim, sustentam LIMONGI & FIGUEIREDO, a melhor estratégia para a obtenção de

recursos visando retornos eleitorais é votar disciplinadamente.

Executivo centraliza o poder de agenda, influindo diretamente sobre os trabalhos

legislativos, minimizando os efeitos da separação dos poderes. Trata-se de um poder de

barganha assimétrico diante de legisladores individuais, garantido também pelo fato de que

a distribuição de recursos orçamentários é prerrogativa do Executivo, o que lhe garante

maior status para coordenar as ações e permitir o controle de agenda.

SANTOS (2002) aprofunda a análise da dinâmica dessa barganha assimétrica

atentando para o papel desempenhado pelos partidos dentro da Câmara de Deputados e

incorporando o conceito de "presidencialismo de coalizão racionalizado". A questão básica

diz respeito à lógica que orienta parlamentares e comissões a seguirem a orientação do

partido em detrimento da tomada de ações individuais, ao contrário do que acontecia no

regime democrático do pré-1964. Para o autor, a disciplina partidária é uma importante

estratégia para se proteger da ação monopólica do presidente. Os partidos, assim, agem

como entidades coletivas, coordenando ações na busca de aumentar o poder de barganha

frente ao presidente e tornando-as, em larga medida, mais previsíveis. Dai por que se dizer

em "racionalização".

Esse enfoque, porém, apresenta novos desafios analíticos. Se é, em grande medida,

verdade que o uso eficiente das regras internas do Legislativo vem garantindo o poderio do

presidente, não se pode ignorar que nem sempre tais regras funcionaram a favor do

Executivo, como mostra a análise das reformas Tributária e Previdenciária durante o

primeiro mandato de FHC feita por MELO (2002). A reforma Tributária malogrou, tendo

sido marcada pela "falta de paternidade" da proposta governista, um indicativo da falta de

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coesão interburocrática, e pela hostilidade demonstrada pelo Legislativo ao projeto. A

reforma Previdenciária, por sua vez, destaca-se, tomando como referência a América

Latina, pelo seu processo errático e longo de discussão e encaminhamento das propostas,

também sendo alvo de hostilidades por parte dos parlamentares". É certo que, ao fim e ao

cabo, parte da proposta governista foi levada adiante pela via infraconstitucional (a Lei

Kandir e a desconstitucionalização da norma relativa à cobrança de contribuição

previdenciária por parte dos inativos são exemplos), mas, ainda assim, aquém da agenda

inicial. Além disso, a problemática anterior persiste: dado que as variáveis ressaltadas não

mudaram desde a Constituição de 88, o que explicaria a diferença de padrão político entre o

período de 1988-1994 e o pós-1994?

PALERMO (2000) aponta ainda outras lacunas analíticas. A disciplina partidária,

que vem garantindo ao Executivo um determinado grau de certeza quanto aos resultados

segundo alguns autores, é, na verdade, um indicador incompleto do comportamento

parlamentar. Não diz, como argumenta o autor, "quais as dificuldades dos líderes

[partidários) para ordenar sua tropa", tampouco mostra o quanto de fato os partidos

responderam disciplinadamente ao presidente - a "disciplina" pode ter sido uma resposta ao

líder partidário e não necessariamente ao chefe do Executivo.

Ademais, a prerrogativa legislativa do Executivo não abarca, por motivos político-

institucionais, toda e qualquer área temática, devendo algumas matérias necessariamente

passar pelo crivo do Congresso. Trata-se, por sinal, de um aspecto histórico no processo

político brasileiro. Questões, por exemplo, que afetam os diferentes atores da Federação -a

LRF é um exemplo - devem, para serem "legitimadas", ser avalizadas pelo Congresso. A

centralização de poderes em torno do Executivo Federal facilita sua proposição e trâmite

pelo Legislativo, mas não deixa de exigir o aval deste. Um agravante é que, como já se

assinalou, a Constituição de 1988 promoveu a constitucionalização de diversas normas

relativas às policies (COUTO, 2001), cerceando a mobilidade do Executivo de instituir

4 Na comissão temática que analisou o projeto de reforma Previdenciária, o cargo de relator ficou com odeputado Euler Ribeiro (pMDB-AM) e a presidência, com o deputado Jair Soares (PFL-RS). Ambosmanifestamente colocavam-se contra a proposta governista, favorecendo a obstrução dos trabalhos (MELO,2002)

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mudanças. Alterar tais dispositivos constitucionais implica obter pelo menos 3/5 do apoio

congressual.

Daí a importância da capacidade de produção negociada de decisões, entrando no

quarto enfoque feito por PALERMO. ° poder decisório é disperso - ou seja, há uma

pluralidade de atores que podem concordar ou vetar as proposições do Executivo -, os

quais chegam a um entendimento pela via da negociação. Esse componente vem sendo

destacado em alguns estudos setoriais (ALMEIDA & MOYA, 1997; Azevedo & MELO,

1997; COUTO, 2001; LOUREIRO, 2001; MELO, 2002), que ressaltam, grosso modo, que

o papel do Congresso não vem sendo nem o de constituir obstáculo às políticas propostas

pelo Executivo, nem o de simplesmente submeter-se a este.

A análise de COUTO (2001) sobre a agenda constituinte do governo FHC é um

exemplo. Esse governo notabilizou-se, além do uso recorrente das reedições de MPs, pela

capacidade de encaminhar de forma bem-sucedida sua agenda constituinte. Nem tanto o

"decretismo desenfreado" e nem tanto as "negociações extenuantes visando à construção de

coalizões", ambas as situações coexistiram durante esse período

A delegação de poderes e a capacidade de induzir o Legislativo a uma "coordenação

forçada" tiveram implicações sobre a agenda constituinte. Como coloca o autor:

"A delegação mostrou-se útil aos dois poderes [Executivo e

Legislativo} não só por conferir maior eficácia decisória à

implementação das MPs editadas e reeditadas, mas também por

transbordar esse ganho de eficácia à agenda constitucional, que

ganhou mais espaço na pauta de negociações entre os dois poderes.

Se toda a legislação implementada e mantida por MPs tivesse de

ser também apreciada pelo Congresso, tornar-se-ia mais extensa

essa pauta e conseqüentemente, mais custosa e de encaminhamento

mais vagaroso. " (idem: 40)

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21

Entretanto, a delegação não explica per si por que, por exemplo, conseguiram ser

aprovadas 16 emendas constitucionais no primeiro governo FHC, lembrando, sobretudo,

que sua aprovação demanda 3/5 dos votos do Congresso, em duas votações nas duas Casas.

Aqui, voltando ao enfoque defendido por PALERMO, entra a questão da

negociação. Enquanto no campo da policy há espaço para imposições -o papel de impor

cabe aos grupos majoritários- e se define o perde-ganha da política, no campo da polity

traçam-se limites para que tal não se transforme em uma "tirania da maioria". Trata-se de

uma garantia de que grupos minoritários terão voz no processo decisório. Por outro lado,

"quanto mais se aumentam essas garantias, mais se aguça o consociativismo do sistema,

reforçando a necessidade de negociação e elevando a possibilidade de veto a certas

iniciativas", o que, por sua vez, requer um grau maior de habilidade negociadora (COUTO,

2001).

Para conseguir levar adiante sua agenda reformista, FHC preCISOU alterar

dispositivos constitucionais. Valeu-se, para tanto, de sua capacidade de barganha e

negociação, num contexto, que procuro tratar nos capítulos seguintes, favorável ao

Executivo. Sob a bandeira da estabilização e na esteira do sucesso do Plano Real, pôde

fazer amplo uso de suas prerrogativas legislativas previstas na Constituição e aproveitar-se

da estrutura no interior do Legislativo que lhe garante certo poderio para promover as

mudanças que propôs. E o fez com grande sucesso, pelo menos na área econômica. Como

COUTO ilustra, das 16 emendas constitucionais aprovadas no primeiro governo de FHC,

nada menos que 13 referiam-se a essa temática. Apenas duas emendas (as de número 15 e

16, tratando, respectivamente, da criação de novos municípios e da reeleição para cargos no

Executivo) referiam-se especificamente à polity.

As privatizações e concessões do setor de telecomunicações, para citar um exemplo,

somente conseguiram tomar impulso com a aprovação da Emenda Constitucional n° 8, que

pavimentou o caminho para a criação das normas infra-constitucionais regulamentando esse

processo (COUTO, 2001).

No entanto, porquanto tenha sido relevante o peso das negociações em tais

mudanças, é também patente que o sucesso na empreitada reformista restringiu-se, no mais

das vezes, a alterações na área econômica, mais particularmente, de ajuste fiscal. Como

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ressalta COUTO (idem), fica nítido nas reformas constitucionais o teor de política

econômica, as quais, por sua vez, permitiram, em nível infra-constitucional, adotar medidas

de correção dos desequilíbrios nas finanças públicas. Ressalte-se que a Emenda

Constitucional n? 19/98, que impõe novas regras para o funcionalismo e estipula um prazo

para que o Executivo apresente projeto de lei complementar regulamentando o art. 163 da

Constituição, constituiu um passo importante para apressar os trabalhos de elaboração e

encaminhamento do projeto de Lei de Responsabilidade Fiscal5.

O que explica esse tratamento "privilegiado" para as questões econômicas?

O estudo de ALMEIDA & MOYA (1997) a propósito do programa de privatização,

oferece algumas pistas. De 1990 a 1996, o Legislativo foi responsável pela produção de 21

leis e 5 emendas constitucionais sobre a matéria, sendo a maioria inconteste de iniciativa do

Executivo -apenas uma lei, a de n° 8.987/95 (Lei das Concessões) teve origem no

Legislativo, de autoria do então senador Fernando Henrique Cardoso.

Para além das variáveis institucionais, no entanto, os autores chamam a atenção para

a distribuição de preferências no interior do Legislativo, que afetam o grau de coesão e

congruência deste com relação às propostas do Executivo.

Por meio de três surveys, ALMEIDA & MOY A mostram que, inegavelmente, o

Executivo constituiu a força .propulsora da política de privatização e que o Legislativo

atuou sobre uma pauta que não fora por ele definida. Entretanto, disso não se pode concluir

que o Legislativo foi omisso ou submisso. Pelo contrário. O arcabouço legal sofreu

alterações em seu trâmite e teve de ser negociado. E, acima de tudo, refletiu as preferências

dos atores legislativos do Congresso. Como apontam os autores, " ... desde 1991, pelo

menos, a retirado do Estado da produção de bens e oferta de serviços, diretamente, contava

com a simpatia de cerca de 70% do Congresso Nacional. Essa inclinação favorável 1privatização era maior ainda quando se tratava da siderurgia e da petroquímica, por sinal os

setores que encabeçavam a lista de empresas privatizáveis do Programa Nacional de

Desestatização" (idem: 126).

5 Prevê o art. 30 da EC n019/98: "O projeto de lei complementar que se refere o art. 163 da ConstituiçãoFederal será apresentado pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional no prazo máximo de cento e oitentadias da promulgação desta Emenda."

22

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23

Em síntese, a lição que se extrai é que a atuação do Legislativo na política em

questão derivou não simplesmente do arcabouço institucional à disposição do Executivo,

mas também da distribuição de preferência dos parlamentares, que se aproximavam da

agenda governista. Nesse sentido, ressalta-se o papel que as idéias desempenham na

formatação das políticas, uma variável pouco observada pelos autores institucionais mais

tradicionais.

É certo, por outro lado, que o caso das privatizações, diz respeito a uma questão que

implica ganhos concentrados e imediatos e perdas bastante difusas. Apenas a título

ilustrativo, vale lembrar que a partir da criação do arcabouço legal relativo a essa matéria,

foi obtida uma receita de US$ 78,6 bilhões e transferidas dívidas de US$ 14,8 bilhões entre

1995 e 20026. Questões que alteram a dinâmica das relações fiscais, como é o caso da LRF,

implicam, ao contrário, perdas concentradas e imediatas e ganhos difusos e de longo prazo.

Reforça-se, a contrario sensu, o peso que as idéias e o aprendizado, bem como a dinâmica

das relações federativas exercem sobre o processo político dessa arena.

o papel das idéias e o decision-making como aprendizado

Como nascem e como se implementam as políticas? É certo que a dimensão

institucional exerce influência decisiva no processo político. Por outro lado, é certo também

que sua capacidade explicativa se esgota diante do fato de que, sob as mesmas variáveis

institucionais, por vezes se verificam diferentes resultados políticos. As instituições, de tal

forma, constituem condições necessárias para formatar o decision-making, mas não

suficientes para explicá-las.

Alguns autores vêm focando, nesse contexto, o papel das idéias. Como assinalei

anteriormente, o estudo de HALL (1993) é um deles. Em sua visão, as idéias desempenham

papel central no processo de mudanças de paradigmas políticos, resultantes, por sua vez, de

um aprendizado social (sociallearning).

6 Dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio

J

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24

Tal aprendizado se verifica quando ocorrem mudanças políticas como resultado do

processo de ajuste de metas e instrumentais políticos em resposta a experiências passadas e

novas informações. Ora, sustenta HALL, as transformações políticas ocorridas na Inglaterra

entre a década de 1970 e 80 -do paradigma keynesiano ao paradigma monetarista-

claramente resultaram desse processo.

Essa mudança de paradigma deve levar em conta três componentes: a mídia, as

pressões dos mercados financeiros em especial sobre a dívida pública e o câmbio e a

expansão das idéias econômicas para além do mercado financeiro e da mídia. De um lado, a

mídia, após a ascensão de Margaret Thatcher ao poder, "magnificou a importância da

doutrina monetarista" não apenas constituindo um espelho da opinião pública, mas

ampliando a visibilidade dos issues por ela escolhidos. De outro, a popularidade das

doutrinas monetaristas no meio financeiro influenciaram tanto o Banco da Inglaterra quanto

o governo a realizar ajustes ad hoc entre 1974 a 79. Por fim, a circulação das idéias

monetaristas para meios alheios à mídia ou à City criou uma espécie de "rede política"

(policy networky, incorporando outsiders no processo político.

Na mesma linha, Pio (2001) incorpora as idéias como variável independente no

processo de formulação, decisão e implementação em duas políticas econômicas: o Plano

Cruzado (1986) e o Plano Real (1993) e traz o conceito de redes políticas (political

networksy, "construídas a partir das ideais criadas, professadas e/ou compartilhadas pelos

economistas de fora do governo" e a partir das quais se definem quem irá assumir os cargos

mais importantes da burocracia.

Na análise dos dois planos, o autor ressalta que enquanto no primeiro pelas disputas

burocráticas no interior da equipe econômica sobre os instrumentos de política e conjunto

final de medidas corretivas, o segundo se notabilizou pelo baixo grau de conflito a partir do

momento em que FHC assumiu o cargo de Ministério da Fazenda, em 1993. Em grande

medida, destarte, o sucesso da estabilização econômica do periodo pós-1993 se deveu a um

"processo de emergência de uma nova compreensão acerca das causas da inflação no país",

que uniu os técnicos do Ministério da Fazenda em torno de uma única idéia.

A partir da chegada de FHC à presidência, esse ministério passa a centralizar as

decisões econômicas e controlar o comportamento dos demais ministérios, como mostram

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25

LOUREIRO & ABRUCIO (1999). A formação do gabinete no Brasil, como se sabe, impõe

um dilema ao presidente: de um lado, faz-se necessário distribuir os cargos atendendo aos

partidos que sustentam a coalizão. De outro, é preciso encontrar meios de manter o controle

sobre a agenda. Esse dilema foi superado, durante o governo FHC, com o fortalecimento do

Ministério da Fazenda, que passou, ao ter a prerrogativa de estabelecer critérios de

liberação de recursos via Secretaria do Tesouro Nacional (STN), a controlar os demais

ministérios. Além disso, ainda que determinado cargo ministerial tivesse sido preenchido

por critérios políticos, uma boa escolha para as respectivas secretarias executivas garantiria

o entendimento intra e interburocrático.

Em suma, ainda que pouco exploradas pela literatura, as idéias têm peso decisivo

sobre a definição das políticas. Especificamente abordando a temática proposta por este

trabalho, LOUREIRO (2001) e LOUREIRO & ABRUCIO (2002) apontam o consenso em

tomo de idéias como ingrediente fundamental para o sucesso do ciclo de ajuste fiscal

promovido por FHC. É esse consenso que garantiu, em larga medida, a coesão

governamental', que permitiu levar adiante a agenda fiscal estipulada.

No entanto -e resgato aqui os objetivos a que se propõe este trabalho-, não há que

se falar no papel das idéias sem atentar para o contexto em que elas surgiram. As mudanças

de preferências dos diferentes atores políticos entre o período anterior e o posterior a

1993/1994 em razão das transformações na lógica de distribuição de recursos e de poder e

das opiniões de legitimidade (resultantes do sucesso do Plano Real) também têm peso

determinante. Como e, mais importante, por que se processaram tais mudanças é o que

procurarei demonstrar no capítulo seguinte.

7 Segundo LOUREIRO (2001), a coesão governamental depende não apenas dos arranjos institucionais, mastambém de fatores políticos contingentes, quais sejam: "o grau de liderança ou habilidade do governante nasnegociações entre os poderes legislativo e executivo ou dentro dos gabinetes parlamentares, a construção deconsensos entre as forças políticas e a coordenação político-administrativa no seio do aparato do governo"(idem: 77)

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26

Capítulo 11

o pano de fundo federativo: do desarranjo ao reordenamento

"Todas as cidades pecam, menos

Brasília. Em Brasília, todos são

inocentes e todos são cúmplices"

Nelson Rodrigues

o período compreendido entre a cnse da dívida externa (1982) e o Plano Real

(1994), como assinalado, se caracteriza pelo profundo desarranjo das relações federativas,

decorrente da emergência de um novo modelo federativo na redemocratização: o

federalismo estadualista. Nesta nova dinâmica federativa, governadores -os ''Barões da

Federação"- passaram a atuar como forte veto player às políticas propostas de estabilização

monetária e fiscal dos três primeiros governos civis. A conjugação entre a grave crise

resultante do fechamento dos. canais de financiamento externos em 1982, a aceleração do

processo inflacionário e o federalismo de cunho estadualista instauraram um cenário de

ingovernabilidade nos dez primeiros anos de redemocratização, com um saldo de cinco

planos de estabilização fracassados, descontrole inflacionário, desgaste do Executivo

federal e endividamentos crescentes.

Tal quadro começou a dar os primeiros SInaIS de mudança em 1993, mais

precisamente a partir da nomeação de Fernando Henrique Cardoso ao Ministério da

Fazenda e da redistribuição dos poderes e de recursos no plano federativo.

Isso se deveu, em primeiro lugar, o sucesso do Plano Real, capitaneado pelo

ministro da Fazenda FHC, e das medidas que o antecederam. Além de garantir-lhe a vitória

na disputa pela presidência da República e assegurar a vitória de aliados nos três principais

Estados da Federação (São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais), conferiu à equipe

econômica legitimidade para levar adiante uma agenda que governos anteriores não haviam

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27

conseguido implementar. Em segundo, ao retorno do fluxo de recursos externos a partir de

1992, como reflexo da abertura econômica promovida ainda no governo Collor (1989-

1992), que garantiam fôlego financeiro ao Executivo federal tanto para equacionar a

questão da dívida externa como para conferir maior poder de fogo frente a uma eventual

crise monetária, o que também lhe assegurou condição de player principal no novo jogo

federativo.

Os "barões", ao contrário, perdiam espaço no cenário político. Débitos resultantes

de um década de descontrole fiscal ganhavam visibilidade com o fim da inflação e da

possibilidade de float, revelando a profundidade a crise fiscal. A federalização dos bancos

estaduais retirou dos governadores um importante instrumento de crédito e de repasse de

déficits estaduais à União. Gastos com pessoal em níveis fora de controle e crises nos

respectivos funcionalismos enfraqueciam ainda mais o poderio dos governadores.

Nesse contexto abre-se uma 'janela de oportunidade" para o reordenamento das

finanças públicas. O ajuste fiscal se torna núcleo duro da agenda FHC. Inicialmente, foram

adotadas medidas pontuais de centralização das prerrogativas financeiras, sendo o passo

inicial dado com a aprovação do Fundo Social de Emergência (FSE), em 1993. O aumento

das contribuições sociais, não compartilhadas com os entes subnacionais, e a instituição de

tributos igualmente não compartilhados como o lPMF (e, posteriormente, CPMF), também

sinalizavam a disposição do Executivo federal de resgatar o controle sobre as suas receitas.

Medidas de caráter estrutural, que impactam sobre as relações federativas, foram também

implementadas, dentre as quais destacam-se a Lei Camata, de 1995, a crescente limitação

da capacidade de endividamento dos Estados e a Lei de Responsabilidade Fiscal ...

O objetivo deste capítulo é analisar cada um desses períodos, não perdendo de vista

a importância da questão da distribuição de poderes e recursos entre os entes federativos ria

formatação das preferências dos atores políticos. Por óbvio, a "virada" do jogo federativo

no pós-1993 e a implementação das medidas de reforma do Estado que propunha o governo

FHC não se deram de forma contínua e nem sempre foram bem sucedidas. Houve

descontinuidades significativas, e o malogro das reformas Tributária e Previdenciária é

exemplo disso. Os contrangimentos e incentivos institucionais eram os mesmos, os atores

políticos eram os mesmos. Ainda assim, os resultados foram diferentes.

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28

Daí por que se atentar também para o papel central das idéias e do aprendizado nas

preferências dos atores políticos no processo de ajuste fiscal recente. Enfatiza-se ainda o

caráter incrernental das mudanças.

O capítulo está dividido em três partes. Na primeira parte, busca-se traçar o pano de

fundo federativo no período compreendido entre 1982 e 1993. Na segunda parte, faz-se

uma análise do período pré e pós Real, dando ênfase a algumas das medidas econômicas de

cunho fiscal adotadas no período. Por fim, procura-se focar as medidas de ajuste estruturais

implementadas, que criaram condições para que a promulgação de uma norma como a

LRF.

I. O choque da crise da dívida externa e o desajuste federativo

A crise da dívida externa da década de 80 representou, grosso modo, a ruptura do-

modelo de crescimento que sustentara o "milagre econômico" dos anos 70, fortemente

calcado na captação de recursos externos no mercado privado, grande parte dos quais

contratados a taxas de juros flutuantes 1.

Esse modelo implicou grande vulnerabilidade do país a choques no mercado

internacional, como se verificou a partir de agosto 82, em vista das condições em que seus

bancos passaram a operar a partir do anúncio de moratória por parte do México (Baer,

1993), interrompendo o fluxo de recursos aos países latino-americanos. A reação dos

bancos estrangeiros à moratória mexicana representou o momento de explicitação da crise:

os recursos financeiros internacionais passaram de uma faixa de US$ 13 bilhões a US$ 14,5

bilhões anuais em 1981-1982 a um patamar insignificante em 1983, restringindo-se apenas

ao suficiente para evitar que país declarasse unilateralmente a moratória.

Face à interrupção do fluxo de financiamento, a estratégia adotada foi então utilizar

a desvalorização cambial como mecanismo de incentivar as exportações -a única

I Como aponta a autora, "na virada da década de 70 para a de 80, em torno de três quartos da dívida externabrasileira de médio e longo prazo estavam contratados a taxas de juros flutuantes, o que implicou um impactoforte e imediato da política de valorização do dólar praticada pelos Estados Unidos a partir de 1978. Em 1981-1982, os juros internacionais deram um salto de 5 a 7 pontos percentuais em termos reais" (idem: 75).

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29

alternativa de geração de recursos em moeda forte- para promover o ajuste externo do

balanço de pagamentos. A estratégia logrou resultados favoráveis quando forte superávits

comerciais foram registrados, como em 84 e 88. Em 84, por exemplo, a melhoria das contas

externas resultante do superávit de US$ 13 bilhões alcançado nesse ano, permitiu realizar

todos os pagamentos atrasados, além de recompor o nível de reservas (Baer, idem).

Por outro lado, tal estratégia revelou-se perniciosa. Em primeiro lugar, porque a

desvalorização causou forte impacto sobre os detentores de débitos em moeda forte, em

especial no caso do Setor Produtivo Estatal (SPE). Em segundo, porque a fórmula para

substituir a restrição ao financiamento externo e cobrir o crescente passivo nas contas

públicas, a emissão de títulos, iniciou um círculo vicioso de endividamento, fazendo com

que "o setor público como um todo entrasse numa situação de Ponzi financeí: o

financiamento interno se fazia essencialmente através de títulos públicos, cujo custo era

elevado, com o que aumentavam os encargos financeiros e o Estado expandia seu

endividamento interno para cumprir com estes mesmos encargos" (idem: 114).

A tabela 1 mostra a evolução da divida líquida do setor público ao longo da década

de 80 até o início dos anos 90. Vê-se que, por conta das sucessivas desvalorizações, o

montante da dívida do setor passa de 32,8% do PIB para 55,8% em 1984.

2 Ponzi, como explica Giambiagi e Além (2000), era um financista de Boston da década de 1920, quecomprometia-se a pagar uma taxa de juros de 50% por depósitos de 45 dias. Decorrido o prazo, o pagamentoera realizado com o ingresso de novos recursos, captados da mesma forma. A idéia básica era sanar osproblemas de caixa contando com fllLXOS futuros. Em pouco tempo, porém, a divida acumulada fugiu aocontrole. Por analogia, Ponzi finance diz respeito a um tipo de financiamento calcado na "colocação de títulosque elevam a relação divida/PIB e que só têm demanda por oferecerem taxas de juros extremamente atraentes,que entretanto geram um círculo vicioso de novos aumento da divida e da taxa de juros" (idem: 151).

,

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30

Tabela 1. Dívida líquida do setor público

%doPIB

ANO GOVERNO ESTADOS E EMPRESAS TOTAL INTERNA EXTERNACENTRAL MUNICÍPIOS ESTATAIS

1982 8,9 6,0 17,9 32,8 14,9 17,91983 19,0 6,5 26,0 51,5 18,4 33,11984 21,7 7,0 27,1 55,8 22,4 33,41985 18,9 7,1 26,6 52,6 21,7 28,81986 20,0 6,6 22,9 49,4 20,6 28,81987 20,4 7,9 22,0 50,3 19,3 31,01988 19,6 6,7 20,6 46,9 21,3 25,61989 19,9 5,9 14,4 40,2 21,7 18,51990 15,2 7,8 17,6 40,6 17,8 22,81991 12,7 7,2 18,0 37,9 13,9 24,01992 12,2 9,2 15,8 37,2 18,5 18,71993 9,7 9,3 14,0 33,0 18,6 14,5

Fonte: Banco Central

Havia outro agravante. Se de um lado o passivo era público, o superávit comercial

obtido era de natureza privada, obrigando o setor público a emitir moeda para pagar os

exportadores, o que gerava forte pressão inflacionária, num cenário em que era também

preciso manter as taxas de juros em níveis elevados para remunerar os títulos.

O Executivo federal não conseguia trazer propostas coerentes e coesas nas suas

diferentes esferas de negociação. No front externo, nenhum dos presidentes durante toda a

década de 80 mostrou-se capaz de articular uma estratégia de negociação junto aos credores

internacionais, mesmo em tempos, como no início do Plano Cruzado, em que havia espaço

para tal. No front interno, não logrou implementar medidas que resultassem em um efetivo

ajuste fiscal. A moratória da dívida, decretada em fevereiro de 87 -uma conjugação do

insucesso do Plano Cruzado, da perda de reservas internacionais, do descontrole

inflacionário e da falta de articulação entre os diversos atores políticos e incapacidade de

impor ajustes- ilustra bem essa situação, que marcou toda a década de 80 e os primeiros

anos da década de 90,

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31

Sem ter mecanismos nem institucionais, nem políticos para eX1gIT o

comprometimento dos entes subnacionais em medidas de ajuste fiscal e articular bases

políticas de sustentação, cinco planos de estabilização -Cruzado, de 1986, Bresser, de

1987, Verão, de 1989, Collor I e Il, respectivamente de 1990 e 91- obtiveram sucesso

apenas inicial, fracassando em seguida. Aqui entra o componente político da questão e,

particularmente, destaca-se a importância da dinâmica da distribuição de poder e de

recursos entre os entes federativos.

Como se assinalou, um novo federalismo, de configuração estadualista, centrífuga e

predatória da federação brasileira, emergiu com a redemocratização e foi consolidada pela

Constituição de 1988 (ABRUCIO e Costa, 1998).

Como se formatou essa distribuição de poderes? Em pnmeiro lugar, com o

fortalecimento dos governadores, que, formando coalizões junto aos parlamentares federais,

constituíram-se em forte veto às mudanças que modificassem a estrutura de distribuição de

recursos. Isso não apenas serviu para ampliar o poder de negociação por uma maior fatia de

recursos, mas também no repasse, à União, dos déficits de seus respectivos Estados. Nesse

jogo, "a arma que os Estados tinham em cada negociação com o governo federal era a

promessa de apoio em determinados projetos no Legislativo, ou, então, o que também é

fundamental no jogo parlamentar, a promessa de não interferir, bloquear ou se articular

contra determinado projeto" (idem:47).

É nesse sentido, sustentam ABRUCIO e Costa, que se fala em jogo predatório entre

União e Estados: os governos subnacionais apropriam-se de recursos do governo federal e

repassam perdas, não assumindo os custos de suas decisões, oferecendo como moeda de

troca o apoio dos parlamentares de sua alçada no Congresso. Não por outra razão, os

bancos estaduais, cujas diretorias são escolhidas a dedo pelos governadores e portanto são

politicamente controladas pelos "barões", constituíram mecanismo de excelência desse

jogo, emitindo títulos para cobrir gastos ordinários, por exemplo, de pessoal.

A União, por outro lado, incentivava o comportamento permissivo ao sempre

socorrê-los. Nos programas de saneamento dos bancos estaduais em 83, 84, 85 e 87, o

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32

governo federal injetou nada menos que US$ 33 bilhões] Em 94, em plena campanha

eleitoral, também foi prestado socorro de US$ 5 bilhões". Tratava-se de um socorro

proveniente do Banco Central, em geral sob forma de substituição de títulos "podres", ou

seja, sem valor de mercado, por títulos federais. Os papéis do Banespa em mãos do BC, por

exemplo, chegavam, em 1994, às vésperas da intervenção do banco, a R$ 5,5 bilhões.

Na relação dos Estados entre si, o jogo, por sua vez, é de competição não

cooperativa, que se revela sobretudo na ausência de instituições que pudessem ordenar o

jogo federativo interestadual, de modo a instituir um accountability intergovernamental. A

guerra fiscal, que se intensifica a partir de meados dos anos 90, é o exemplo mais apurado

desse jogo.

As sucessivas renegociações das dívidas estaduais tanto no governo Sarney quanto

no governo Collor pouco deram frutos nesse contexto. Como apontam ABRUCIO e

COUTO, "em todas as negociações de rolagem da dívida vistas até aquele momento, a

União teve a iniciativa, mas ou não conseguiu vencer a resistência das unidades estaduais,

ou quando aprovou um projeto de repactuação dos débitos, este não foi cumprido. (..) os

Estados burlam inclusive acordos e legislações por eles ratificadas. Em suma, no caso das

relações financeiras intergovernamentais no Brasil, os contratos federativos têm tido

pouquíssimo poder de vincular normas a todos os jogadores. E não há federalismo que

funcione democraticamente sem contratos e pactos fortes" (idem:44-45). Os autores

concluem que a rationale por trás disso reside tanto na facilidade de se obter créditos

quanto na crença, comprovada por vários jogos, de que haverá o socorro do governofederal.

Estados e Municípios apresentaram, ao longo do período analisado, crescimento

quase contínuo da dívida, aumentando o peso de suas dívidas sobre o montante total, o que

mostra que os esforços fiscais, em grande parte, se limitaram aos da União.

A Constituição de 1988, por sua vez, cristalizou as demandas descentralizadoras,

principalmente no que tange à distribuição dos recursos. Na verdade, trata-se de uma

3 Jornal do Brasil, 2/2/1996, apud ABRUCIO e Costa 1998" Folha de S.Paulo, 23/10/94

Page 38: I111'" I11"I"I1II"II1/"" II111I1I11I OS CAMINHOS DA LEI DE

33

tendência já :finnada desde a década de 70, sendo constante a elevação dos percentuais do

IR e do 1PI destinados aos Fundos de Participação, como mostra a tabela abaixo:

Tabela 2 - Evolução do percentual do IR e do IPI destinados ao FPM e ao FPE

ANO DISPOSITIVO LEGAL FPlv! FPE

1976 Emenda Constitucional 5/75 6,0% 6,0%

1979/80 Idem 9,0% 9,0%

1981 Emenda Constitucional 10,0% 10,0%17/80

1984 Emenda Constitucional 13,5% 12,5%23/83

1985 Idem 16,0% 14,0%

1985/88* Emenda Constitucional 17,0% 14,0%27/85

1988 Constituição Federal 20,0% 18,0%

1993 Idem 22,5% 21,5%

Fonte: STN

Ives Gandra Martins (1988), ao comentar as novas disposições constitucionais à

época, faz uma análise bastante pertinente, que reproduzo abaixo.

"...Hoje [1988], a União detém um déficit público de 30% do seu

PIB, com as receitas e com as atribuições que tem. O que

acontecerá no futuro? ...A União perderá cinco impostos: os três

únicos, o Imposto sobre Transportes e o sobre comunicações. E,

dos principais impostos, o IPI e o IR, a União, que hoje transfere

para Estados e Municípios 33%, transferirá 47% (de imediato

38%). (..) Ora, se a União perde receitas, deveria em

contrapartida perder atribuições. Nossos constituintes assim

pensaram? Não. O Poder Legislativo Federal pela atual

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34

I

Constituição será consideravelmente maior do que o atual Poder

Legislativo. Foram criados três novos Estados, passou a ter mais

senadores, representantes desses Estados. A União, portanto,

gastará mais com o Poder Legislativo. E o Poder Judiciário? A

União também gastará mais com o Poder Judiciário, não obstante

a outorga de independência financeira, porque serão criados novos

Tribunais. Os Tribunais Federais de Recursos regionais. O

Tribunal Superior de Justiça, já que o Tribunal Federal de

Recursos se transformará, será maior. (..) O Poder Executivo

ficará maior. A Previdência Social será maior. Ter-se-á um

Executivo com mais áreas de monopólio, com mais áreas de

reserva de mercado, com maiores áreas de intervenção no domínio

econômico. E ter-se-á, portanto, não uma descentralização de

atribuições, mas uma concentração de atribuições, apesar de perda

substancial de receita. " (idem: 4)

Cabe ainda mencionar um outro traço institucional distintivo da política brasileira,

que COUTO e Arantes (2902) chamam de "problema constitucional brasileiro": o

engessamento do policy-making em razão da constitucionalização de dispositivos referentes

à policy, implicando a necessidade de um modus operandi no plano legislativo mais

complexo para alterar o status quo.'

A agenda política, a partir de 1988, passou aSSIm a ser sempre uma agenda

constitucional, que, para utilizar os termos de Tsebelis (1997), apresenta forte tendência à

estabilidade das políticas, ou seja, ausência do potencial de mudança das politicas

existentes.

Nesse sentido, a construção de amplas maiorias -lembrando que são necessários 3/5

dos votos do Congresso, em dois turnos de votação-, passou a ser condição necessária

mínima para implementar políticas, o que, apontam com razão os autores, é "algo

especialmente difícil no contexto institucional de um Estado federativo e de um regime

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35

presidencialista multipartidário como o brasileiro", e, acrescentamos, fortemente calcado

em interesses estadualistas e predatório nas relações com a União.

Com isso, ademais, incorporou-se ao plano do policy-making mais um veto player,

o Judiciário, na medida em que o Supremo Tribunal Federal (STF), o "guardião da

Constituição", passou a ser mais acionado para controlar a constitucionalidade de atos

normativos com caráter de policy, reduzindo ainda mais o raio de manobra do policy-

maker.

Configurava-se, de tal forma, "o pior dos mundos" em termos de govemabilidade,

alimentando um círculo vicioso de paralisia decisória: a cada plano de estabilização,

seguia-se um período em que o Executivo cercava-se de certo prestígio com o controle

temporário da inflação. Passada a fase de euforia, entretanto, a inflação voltava e o

Executivo perdia legitimidade e apoio político (que, vale lembrar, deve ser suficiente para

superar o "problema constitucional brasileiro"), sendo cerceado de qualquer possibilidade

de levar adiante sua agenda. Na tentativa de superar a paralisia e "renovar ânimos", novo

plano surgia, reiniciando o ciclo.

Nesse cenário pernicioso, a inflação galopante, que no início dos anos 90 chegava a

quatro dígitos, passou a ser, de 1990 a 1994, um importante instrumento de controle de

recursos para o Executivo federal, reprimindo as despesas orçadas, como aponta BACHA

(1994).

A inflação atuava de duas formas na redução do déficit orçamentário: em pnrneiro

lugar, ao emitir uma previsão inflacionária bem menor do que a inflação efetivamente

observada, reduzia-se o valor real das despesas executadas, mesmo sem controle do caixa.

Em segundo, por meio do controle do caixa, quando o Ministério da Fazenda adiava a

liberação das verbas orçamentárias, fazia com que o valor real dessas despesas fosse

adicionalmente reduzido pela inflação.

BACHA (idem) cita um estudo de PATINKlN (1993)5 sobre o processo de

estabilização fiscal em Israel, de 1985, no qual, sob o ponto de vista da teoria dos jogos, a

inflação foi utilizada como um mecanismo do ministério "economizador" para forçar os

5 PATINKIN, Don. (1993). "Israel's stabilization program of 1985, or some simple truths of monetarytheory", Joumal ofEconomic Perspectives 7(2): 103-28, 1993

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36

ministérios "gastadores" a operarem dentro das regras do primeiro. A inflação, para o

Executivo israelense formado por uma coalizão partidária, constituía uma espécie de

"imposição de um imposto pelo ministro da Fazenda aos demais ministros do governo",

dado que a coalizão não garantia poder a esse ministro para forçar os demais ministérios a

cooperarem no esforço fiscal. A estratégia é, de tal sorte, aparentar aceitar as demandas e

posteriormente "financiar o déficit imprimindo dinheiro e deixando a inflação resultante

produzir a necessária redução nas despesas governamentais reais. Por implicar uma

redução linear, esse pode ser de fato o caminho de menor resistência para o ministro da

Fazenda" (idem: 10).

Isso se aplicou particularmente ao caso brasileiro. Os traços institucionais apontados

acima fazem com que, para garantir apoio político, o presidente precise lançar mão da

distribuição de cargos ministeriais. Isso, indicam LOUREIRO e ABRUCIO (1999), tem um

efeito paradoxal: se de um lado pode garantir a maioria parlamentar ao chefe do Executivo,

de outra, pode também comprometer sua capacidade de controlar a delegação de poderes.

Foi o que se verificou no governo Sarney, periodo no qual mais se verificou instabilidade

no Ministério da Fazenda, dada a heterogeneidade do grupo que o sustentava. O contrário

também ocorreu: o governo Collor também é marcado pela grande instabilidade, decorrente

de sua estratégia de buscar um governar "independentemente" do Congresso, que provou

não funcionar. Sem conseguir a "sintonia fina" necessária para superar o dilema entre a

patronagem e o controle de agenda na formação ministerial, a inflação parece mesmo ter

constitui do uma espécie de "payback" do ministério "economizador" -entenda-se, o

Minstério da Fazenda- aos demais ministérios, mais responsivos aos partidos do que ao

presidente, e entes subnacionais "gastadores".

Em grande parte, tamanha distorção decorreu da falta de transparência dás

instituições fiscais e do processo orçamentário. ALESINA e PEROTTI (1999) argumentam

que políticos têm poucos incentivos para criar orçamentos transparentes porque procuram

"confundir" tanto os eleitores menos racionais, como aqueles mais racionais, mas nem tão

bem informados, o que garante à engrenagem política a vantagem da assimetria de

informação. Uma estratégia recorrente é a superestimação das receitas de um lado e, de

BIBLIOTECA KARl A. BOEDECKER

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37

outro, a subestimação das despesas, tática amplamente utilizada no Brasil, especialmente

em periodos de hiperinflação. Com um índice inflacionário que chegava, em 1992, a

1.157,95%, a população naturalmente perdia a noção dos preços relativos da economia".

O controle da inflação no periodo subsequente e mudanças no quadro federativo,

entretanto, começam a mudar grande parte do cenário aqui descrito, sobre o qual

discorremos a seguir.

11. A virada no jogo federativo e a nova configuração de poder

2.1 Os antecedentes do Plano Real

O desarranjo no plano das relações federativas começa a mudar a partir de 1993. Em

janeiro, Itamar reúne presidentes de 19 partidos, propondo um "pacto de governabilidade".

O presidente via-se num momento político favorável em decorrência dos desdobramentos

políticos que cercaram a renúncia de Collor, como diagnostica o senador Antônio Carlos

Magalhães, posicionando-se contra um eventual pacto: "Esse já é um governo de

entendimento. Todos os partidos já estão representados na composição do Ministério. Não

sei o que querem mais. Acho que não querem mais nem votação no Congresso"? De

qualquer forma, o "pacto" proposto surtiu efeito e conseguiu aprovar, em março, o primeiro

pacote de medidas de ajuste fiscal, dentre as quais o IP.MF (Imposto Provisório sobre

Movimentação Financeira) calculado em 0,25% do valor dos cheques emitidos até

6 É o que mostra a reportagem "Brasileiro perde noção de preço" (O Estado de São Paulo, 31/1/1993):" ...Quanto custa um Omega, o modelo mais luxuoso da General Motors? Vicente Paulo da Silva, oVicentinho, vai a Brasília terça-feira negociar com empresários um novo acordo do setor automotivo naCâmara Setorial, que pode influenciar muito os preços. O sindicalista arrisca uma resposta: "O Ômega custaCr$ 350 milhões". Passou longe. O preço de tabela é Cr$ 677 milhões. "Perdi totalmente a noção do valor dodinheiro", confessa Vicentinho. O mesmo mal acomete a outra ponta do setor produtivo. Empresário já nãosabem os preços de mais nada. O vice-presidente da Fiesp, Carlos Eduardo Uchoa Fagundes, acredita que umSantana, carro muito ao gosto do empresariado, custa Cr$ 200 milhões. Pela tabela, o modelo GLS 2000 duasportas sai por Cr$ 446 milhões. Por um litro de leite B ele acredita que pagaria Cr$ 2.500. "Acertei?",pergunta. Na verdade, o preço está por volta de Cr$ 6 mil..."

7 "Pacto divide PFL", O Estado de São Paulo, 2/1/1993

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dezembro de 1994, constituiu o maior trunfo, gerando uma receita estimada em US$ 7,2

bilhões.

o front externo acenava para perspectivas mais positivas. Em 92, o país registrou

um superávit comercial recorde de US$ 15,6 bilhões, além de um ingresso de US$ 7

bilhões em investimentos e reinvestimentos estrangeiros, o maior volume de recursos

recebido desde a eclosão da crise em 1982. Com isso, diminuiu-se consideravelmente o

peso da dívida externa no montante total da dívida do setor público, como se pode ver na

tabela 1.

Os superávits comerciais sucessivos (em 1991, o resultado havia sido superavitário

em mais de US$ 10 bilhões), aliada à retomada do ingressos de recursos estrangeiros no

país reduziram o volume da dívida exterior, enquanto a dívida interna adquiria peso cada

vez maior sobre o montante total.

O cenário de instabilidade política no interior do governo começava a também ser

alterado. Itamar nomeava em março Fernando Henrique Cardoso para o cargo de ministro

da Fazenda, o quarto ministro em oito meses de mandato. Em junho, era decretado o corte

de três zeros na moeda, que passa a se chamar Cruzeiro Real, e anunciado o PAl (programa

de Ação Imediata), um conjunto de medidas preparatórias para a implementação da UR V e

do Plano Real.

O programa enfrentou menos obstáculos políticos e teve vários avanços em relação

aos planos anteriores. Em primeiro lugar, conseguiu capitalizar a grande visibilidade da CPI

que investigava o "esquema PC" para focar a questão orçamentária e a necessidade de

cortes nos gastos", levando adiante um programa de corte de gastos de US$ 6 bilhões já no

orçamento de 93 e a regulamentação do IP.MF, com aval do Congresso. Levantou também a

questão da recuperação de receitas tributárias com o combate à evasão fiscal, o fim da

8 Diz a exposição de motivos do PAI: "... Ninguém que tenha noção da realidade das finanças públicasacredita que será possível realizar a totalidade da despesa prevista no orçamento da União deste ano [1993].Essa é uma ficção que precisa ser abolida ... ( ..) Mas não basta o Executivo reprimir reprimir precariamenteo déficit orçamentário através do corte de despesas na boca do cofre do tesouro. Isso apenas adia despesas.Além disto, tem sido uma tremenda fonte de fisiologismo e corrupção na corrida pela liberação de verbas,fato aliás salientado no relatório final da CPf do Senado sobre a atuação do senhor Paulo César Farias no?overno Collor de ueu«:

As denúncias foram feitas por um ex-assessor de Orçamento da Câmara, inicialmente preso por suspeita deassassinato de sua mulher, em entrevista à Veja. A CPI apurou que o esquema envolvia uma rede de

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inadimplência de Estados e Municípios em relação às dívidas com a União, o controle dos

bancos estaduais, o saneamento dos bancos federais e a privatização. Transcrevo abaixo o

diagnóstico do relacionamento da União com os Estados e Municípios e o receituário

sugerido:

"Para muita gente, governo, no Brasil, significa apenas

Governo Federal. Nada mais falso. Os governo estaduais e

municipais detém 45% da receita tributária disponível. Pagam uma

folha salarial três vezes maior que a da União e investem cinco

vezes mais. Devem em cruzeiros o equivalente a US$ 40 bilhões de

dólares à União e não vêm pagando. No período de setembro de

1991 a dezembro de 1992, deixaram de pagar à União mais de US$

2 bilhões ... Em relação a eles, o Governo Federal atuará com

flexibilidade, mas com determinação no sentido de: 1. Reduzir as

transferências não constitucionais de recursos do orçamento

federal; 2. regularizar os pagamentos da dívida vencida para com a

União; 3. impedir o retorno de Estados e Municípios ao

endividamento insolúvel. "

Em segundo, sua implementação se deu ao longo de um período de fraqueza

institucional do Congresso por conta das denúncias relativas aos desvios de verbas

orçamentárias envolvendo os chamados "Anões do Orçamento" e da grande visibilidade

que o tema ganhou na imprensa".

É bem verdade que grande parte das medidas era por demais ambiciosa para ser

adotada em meio ao clima político vigente e apenas conseguiu ser implementada após o

Plano Real e ao longo dos dois mandatos de FHC, ou seja, com a mudança do quadro

12 empreiteiras, 17 deputados e wn senador, que apresentavam emendas em troca de "caixinhas" de, emmédia, 3% do valor das obras. As audiências da CPI eram transmitidas com chamadas ao vivo pela televisão etiveram grande repercussão mesmo entre os estratos mais pobres da população, principalmente com odepoimento de um dos deputados acusados, que afirmou ter acumulado sua renda ganhando várias vezes naloteria.

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federativo. No entanto, o PAI teve o mérito de ter formatado uma espécie de script fiscal,

que foi razoavelmente seguido durante os anos subsequentes.

Em dezembro, o governo lança o Plano FHC 2, no qual a FSE (Fundo Social de

Emergência), um fundo formado, entre outros, pela retenção de 15% da receita tributária da

União, pelo aumento da Contribuição Social sobre o Lucro e cobrança do PIS das

instituições financeiras e, originalmente, também pela retenção de 15% dos repasses

constitucionais pelo aumento de 5% dos impostos federais, era o carro-chefe. Tratava-se de

uma receita estimada em US$ 16 bilhões, a ser utilizada para financiar 20% das despesas

não-financeiras, já prevista na proposta de Orçamento da União de 1994, enviada ao

Congresso no final do ano de 93.

A aprovação da emenda da FSE enfrentou diversos obstáculos. Em primeiro lugar,

em virtude da forte rejeição dos congressistas ao novo aumento de impostos e ao bloqueio

dos repasses a Estados e Municípios, em ano eleitoral. As duas medidas eram desaprovadas

por 81,2% e 76,5% dos congressistas, respectivamente, segundo pesquisa apresentada pelo

jornal "O Estado de S.Paulo"lO. "Não temos nenhuma disposição em dar mais dinheiro para

o governo, porque o Estado gasta mal para burro", afirmava o deputado Delfim Netto

(então PPR-SP), mostrando a pouca disposição dos partidos em negociar!'.

O governo mobilizou-se para pôr a Emenda Constitucional da FSE em votação no

Congresso revisor (desta forma, seriam necessários apenas a maioria absoluta dos votos e

não os 3/5 dos votos), no que foi bem sucedido. A CPI do Orçamento, entretanto,

praticamente esvaziou o Congresso durante esse período, paralisando as atividades.

A tática do ministro FHC, então, foi a de radicalizar seu discurso, ameaçando deixar

o cargo caso a emenda não fosse aprovada. Em pronunciamento em rádio e TV, no dia

8/2/1994, FHC criticou a postura dos congressistas, afirmando que chegara "ao limite do

possível". "[Os congressistas] sabem pedir e reivindicar, mas fogem às suas

responsabilidades. (...) É preciso que decida e diga sim ou não, que não se omita, nem

deixe para depois. Se não estiver de acordo com o plano proposto, recuse-o, pois não

10 "Plano FHC2 corre riscos no congresso", O Estado de São Paulo, 12/12/199311 "Maiores partidos rejeitam Fundo Social", Folha de S.Paulo, 8/12/1993

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faltará quem busque outros caminhos e formule alternativas. (...) O Brasil tem pressa e o

governo está pronto para agir", disse.

Na verdade, o ministro também tinha muita pressa. Candidato à presidência nas

eleições de outubro, seu prazo de desincompatibilização terminava em março, e o PAI e o

Plano Real seriam sua principal plataforma política, a qual não se concretizaria sem a

aprovação da proposta de orçamento que, por sua vez, dependia da FSE.

O Congresso aprovou a emenda ao final de fevereiro. Cinco pontos da proposta

original -a retenção de parcela dos fundos de participação de Estados (FPE) e Municípios

(FPM) , de parcela de ressarcimento do IPI (FPEX), e de parte dos fundos do Norte e

Nordeste (FNO e FNE), além da limitação de gastos com o funcionalismo aos mesmos

valores de 1993 e o aumento do IRPJ- caíram ao longo das negociações. A emenda final

teve votação expressiva, sendo aprovada por 402 votos a favor, 95 contra e 3 abstenções'".

Grande parte dessas medidas atingia diretamente recursos destinados a Estados e

foram retiradas por lobby dos governadores sobre suas bancadas parlamentares, o que

demonstra a força dos "barões" ainda nesse período.

Por outro lado, não se podia mais adiar a votação por muito tempo. A CPI do

Orçamento, observa MELO (2002), deixou o Congresso incapaz de contestar o governo a

questões relativas gasto público. "Beneficiando-se da fragilidade do Congresso para

oferecer resistência, o governo manejou estrategicamente a agenda da revisão,

convertendo-a virtualmente num pacote de pequenas mudanças na área fiscal. Decorre daí

que o Fundo Social de Emergência tenha se constituído na primeira emenda promulgada e

na única mudança significativa realizada na Constituição" (idem: 65).

O resultado também decorreu, em larga medida, da falta de alternativa frente a

ameaça de hiperinflação. Não havia outra proposta além daquela apresentada pela equipe

de FHC. Já fragilizado, o Congresso quis evitar ser responsabilizado pela inércia

institucional caso rejeitasse a proposta -é a tática do "blame avoidance"-, como mostra a

declaração do deputado mineiro Tarcísio Delgado, líder do PNIDB na Câmara à época: "O

governo deve estar se sentindo muito bem. Agora, cresce a responsabilidade do governo e

do ministro para tocar o plano econômico. Transferimos a bomba que estava em nossas

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mãos para a mão de Fernando Henrique Cardoso. Não temos a ufania de achar que

aprovamos a melhor coisa do mundo. Fizemos o possível e o ministro deve desencadear a

implementação do plano. Ele fica fortalecido e não tem razões para deixar o cargo" 13 . A

aprovação da FSE foi o primeiro passo em direção à implementação da URVedo Plano

Real e suas repercussões políticas, que analisamos a seguir.

2.2. O Plano Real, a centralização de poder da União e a fraqueza dos Estados

A aprovação da emenda da FSE permitiu ao governo equilibrar em níveis mínimos

o orçamento de 1994. Estava assim cumprida o que a equipe econômica definia como a

primeira etapa do Plano Real. A tônica do plano -como já dito, a plataforma política do

candidato FHC à presidência- era a "estabilização sem choque, sem congelamento e sem

confisco", um resultado do aprendizado de tentativas (e erros) anteriores.

A próxima etapa seria a introdução de unidade de conta estável (uma espécie de pré-

moeda, chamada de Unidade Real de Valor, URV) e conversão dos contratos. Essa fase, a

principal novidade em relação aos planos precedentes, durou quatro meses e teve como

objetivo alinhar os preços relativos da economia. O governo atuou de maneira informal na

arbitragem das conversões -a capacidade de produzir decisões negociadas, para lembrar

Palermo (2000), é uma das condições para a governabilidade-, criando fórum não oficial

para estabelecer acordos, numa prática que ficou conhecida como "dallarização", um

trocadilho com o nome do principal responsável pela negociação de preços, José Milton

Dallari (BACHA, 1997).

Na Medida Provisória da URV, também foram incluídos mecanismos de proteção

aos salários, o que serviu para "convencer a Justiça do Trabalho a cooperar com O governo,

aceitando aplicar estritamente os termos da nova lei salarial, sem tentar, como de costume,

restabelecer o valor de pico dos salários a cada negociação anual" (idem)!", o que garantiu

também o apoio das centrais sindicais menos "radicais" ao plano.

12 "Cogresso aprova em segundo turno o FSE", Jornal do Brasil, 24/2/1 99413 "Repercussão", Folha de S.Paulo, 9/2/l99414 Um desses mecanismos previa "um aumento salarial, na data-base subseqüente de cada categoria, casoficase comprovado que, nos quatro meses de vigência da URV, o total dos salários convertidos em URV forainferior ao que teria sido pela lei salarial anterior. Como na maioria dos casos verificou-se uma diferença

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No front externo, o governo conseguia, em abril, fechar um acordo de renegociação

da dívida externa no valor de US$ 52,9 bilhões (o débito totalizava US$ 134 bilhões),

liderado pelo então presidente do Banco Central, Pedro Malan. O acordo saiu mesmo sem o

aval do FMI (Fundo Monetário Internacional), tendo o pais se comprometido a oferecer, em

troca, garantias no valor de US$ 2,5 bilhões, tirado de suas reservas. Havia fôlego para tal:

desde 1992, o Brasil registrava ingresso de recursos da ordem de US$ 8,5 bilhões/ano, o

maior desde a crise de 1982. O cenário internacional também favorecia esse movimento: o

fluxo de investimentos no mundo todo, que somava US$ 50 bilhões em 1985, passava para

US$ 200 bilhões no início da década de 90, totalizando US$ 800 bilhões ao final dela':'. No

momento da conversão monetária da URV para o Real (30 de junho de 1994), as reservas

internacionais somavam US$ 41,1 bilhões, garantindo poder de fogo ao governo contra

eventuais ataques especulativos.

A conversão monetária, terceira e última fase do plano, derrubou de imediato os

índices de inflação para um dígito. A sobrevalorização da nova moeda, o Real, representou

um ganho real em termos salariais, aumentando o poder aquisitivo das camadas mais

pobres da população.

Isso garantiu à equipe econômica e ao principal mentor do plano, o candidato à

presidência Fernando Henrique Cardoso, grande prestígio político, que se traduziu nas

urnas: FHC obteve vitória em primeiro turno, com 54,3% dos votos. O ano de 94 também

se encerrava com um saldo positivo das medidas fiscais implementadas: um superávit

primário de 5,3% do PIB, apesar da perda do imposto inflacionário que, segundo dados do

Banco Central, produzia uma receita em torno de 2% a 2,5%.

Além do clima político favorável -pesquisa do Datafolha, realizada entre os dias 12

e 14 de dezembro, indicava que o índice de aprovação do Plano Real era de 79%- a eleição

presidencial desse ano teve ainda outra peculiaridade. Foi a primeira eleição "casada" com

as disputas para deputado federal e governador depois da redemocratização. O presidente

eleito teve, assim, ao contrário de pleitos anteriores, influência decisiva na formação da

Câmara. Além de respaldado pelo sucesso do Plano Real, FHC conseguiu em sua

positiva a favor da URV, este mecanismo não afetou o comportamento dos salários após a introdução doReal" (BACRA, idem).

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campanha mobilizar o establishment político-partidário, em especial o PFL, com forte

. ascendência sobre os Estados nordestinos, contra o avanço de Lula, possibilitando a

formação de um bloco hegemônico no Congresso.

O mesmo ocorreu nos pleitos para os governos estaduais: aliados do presidente

foram eleitos nos cinco Estados mais importantes da Federação: São Paulo, Minas Gerais,

Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Bahia (ABRUCIO, 1998).

Em suma, como mostra ABRUCIO (idem), a vitória de FHC foi marcada por um

contexto de:

a) eleição "casada" com as disputas pela Câmara e pelos governos estaduais, nas

quais o presidente eleito teve influência decisiva;

b) vitória de aliados nos principais Estados da Federação

c) cenário econômico favorável tanto no plano interno quanto no externo

É nesse contexto em que se fala em fortalecimento institucional do Executivo e

"delegação de poder" por parte do Congresso ao Executivo, o qual, fazendo bom uso dos

mecanismos institucionais pró-Executivo no interior do Legislativo, conseguiu não apenas

fazer valer a sua agenda (LDylONGI e FIGUEIREDO, 1998), mas também neutralizar a

ação dos "barões". Como vimos, o principal locus de barganha entre o presidente e os

governadores era o Legislativo -os parlamentares federais apoiavam ou não as iniciativas

do Executivo federal em consonância com as inclinações dos governadores. Isso passou a

mudar a partir das circunstâncias da vitória de FHC, principalmente porque o presidente

eleito teve influência decisiva na formação do Congresso.

ABRUCIO elenca ainda um quarto aspecto decisivo na mudança no pêndulo

federativo, que passo a discutir agora: a crise dos Estados.

O efeito imediato do controle da inflação foi o fim do float, ou seja, da prática que

permitia proteger a receita (impostos) da inflação, enquanto as despesas permaneciam em

termos nominais, cobrindo o "rombo" (efeito Oliveira-Tanzi às avessas ou efeito BACHA).

15 Dados da UNCTAD (2002)

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o controle da inflação também desencadeou uma crise no sistema bancário, com o

fim dos ganhos inflacionários, que chegavam a representar 30% das receitas para a maioria

dos bancos privados. Bancos públicos, em especial os estaduais, por sua vez, tinham outro

agravante: os passivos acumulados com seus respectivos governos.

O uso político dos bancos estaduais constituía, como vimos, prática recorrente para

a obtenção de crédito fácil e repasse de déficits. Em São Paulo, por exemplo, os títulos

estaduais em mãos do Banespa, em 1994, eram equivalentes a R$ 9 bilhões, os quais não

tinham valor algum no mercado. Além disso, 90% dos ativos do Banco estavam

emprestados ao governo do Estado".

Em dezembro de 1994, o Banco Central intervém nos dois pnncipais bancos

estaduais, o Banespa (SP) e o Banerj (RJ), numa prévia do PROES (Programa de Redução

da Presença do Setor Público Estadual na Atividade Financeira Bancária ). "Em um caso

desses, ou é intervenção ou liquidação. Agora só tem um jeito, a superprofissionalização

dos bancos. Tirar toda a influência política dos bancos, inclusive do governador", disse o

ministro da Fazenda Ciro Gomes'", justificando a medida.

A intervenção ficou acertada para ocorrer antes da transição para o novo governo

para evitar atritos diretos entre FHC e os governadores de seu partido Mário Covas (SP) e

Marcello Alencar (RJ). Após. o anúncio do PROES, entretanto, todos os demais bancos

estaduais tiveram de aderir ao programa, que previa a federalização do banco para posterior

liquidação, privatização ou saneamento a cargo do governo do respectivo Estado, para obter

o socorro da União. Ao longo desse processo, de um total de 33 instituições, apenas oito

ficaram de fora do programa. O saneamento dos bancos estaduais custou à União um aporte

total de R$ 60 bilhões". Com isso, em novembro de 1997, os títulos estaduais em mãos do

Banco Central somavam R$ 42,3 bilhões.

A federalização dos bancos estaduais retirou dos ''barões'' outro importante

instrumento no manejo das políticas fiscais locais -o primeiro, como dissemos, foi a

inflação. No caso do saneamento dos bancos, entretanto, cabe ressaltar que a grande adesão

dos governadores ao PROES deveu-se antes ao custo fiscal - e político- que manter o

16 "Banco Central vai nomear direção do Banespa", Folha de S.Paulo, 26/11/199417 "Banco Central intervém no Banespa e Banerj", Folha de S.Paulo. 31112/1994

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status quo (não federalizar) representaria ao seu governo. Explica-se. A política de juros

praticada a partir do governo FHC teve forte impacto sobre as dívidas estaduais em mãos

dos respectivos bancos. A título de exemplo, a dívida do Estado de São Paulo com o

Banespa, de R$ 9 bilhões em 94, passou para R$ 20 bilhões ao final de dois anos, o que

representava quase a metade do total da dívida desse Estado com a União (R$ 56 bilhões).

Assim, federalizar e repassar os custos à União se tornou a única alternativa viável aos

Estados. Nesse sentido, como apontam ABRUCIO e COSTA (1998), "a criação do PROES

nasceu não só do projeto de reestruturação do sistema financeiro estadual idealizado pelo

governo federal, mas também da pressão dos outros Estados para ter condições tão

favoráveis como a do governo paulista em sua negociação ..." (idem:84-85).

Recorrer à União passou a ser, assim, uma questão de sobrevivência, principalmente

em vista do descontrole das despesas não-financeiras.

Em 1995, os aumentos de salários dos funcionalismos estaduais concedidos ao

apagar das luzes das administrações passadas amarravam os orçamentos de praticamente

todos os principais Estados e Municípios. No Estado de São Paulo e em Santa Catarina, por

exemplo, os gastos com pessoal representavam 70% das receitas. No Rio Grande do Sul,

esse percentual chegava a 77% e, no Rio de Janeiro, ultrapassava 80%19. Atrasos no

pagamento dos servidores passaram a ser freqüentes, apesar do aumento da arrecadação do

ICMS de 1994 a 199720. Os Estados mais industrializados também começavam a alegar

perdas em razão do acirramento da guerra fiscal21.

Ancorado no sucesso do Plano Real -os patamares de aprovação ao plano se

mantiveram entre 79% e 69% até setembro de 1997, segundo o Datafolha22-, o governo

federal, por outro lado, consolidava legitimidade para levar adiante o núcleo duro de sua

agenda -o ajuste fiscal e as reformas Tributária, Previdenciária e Administrativa-, que se

contrapunha à fragilidade fiscal e ao enfraquecimento político dos Estados.

I~ "Socorro da União a bancos estaduais chega a R$ 60 bilhões", Folha de S.Paulo, 26/7/199919 "Estados mais ricos gastam dinheiro de impostos com salários de servidores", Gazeta Mercantil, 293/199520 "ICMS cresce 10,6% em São Paulo", Folha de S.Paul0, 5/1/1996; "Receita do ICMS de 97 só não supera ade 96". O Estado de São Paulo. 5/3/9821 "Sã~ Paulo perdeu R$ 1,9 bi'de ICMS em 94" O Estado de São Paulo, 24/7/9522 "Popularidade do Real mantém-se estável", Folha de S.Paulo, 16/3/1998. Esse percentual refere-se àsrespostas obtidas quando perguntados se o Real era considerado bom ao país.

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A prorrogação do FSE, rebatizado de FEF (Fundo de Estabilização Fiscal) até junho

de 1997, é um exemplo disso'". Sem perspectivas de melhora imediata no quadro fiscal -o

aumento dos gastos com o funcionalismo federal era uma das fontes de pressão do

déficie4- o governo voltou a considerar a FSE medida prioritária. Buscou para tanto o

apoio dos governadores para aprová-la, firmando um "Pacto pelas reformas", acordado em

setembro de 1995, oferecendo em troca a renegociação das dívidas". Na mesma linha, o

governo central também se esforçou para aprovar a Emenda Constitucional n° 12, que

institui a CPMF (antigo IPMF).

A Lei Kandir é outro exemplo. A sobrevalorização do Real, combinada com a

liberação das importações e o aquecimento da demanda interna, havia provocado uma

brusca virada do saldo comercial a partir de novembro de 1994. De um superávit mensal

médio de US$ 1 bilhão, passou-se a um déficit de US$ 750 milhões por mês, entre

novembro de 1994 e março de 1995 (Simonsen, 1995), uma tendência que se agravaria ao

longo dos anos. Para desonerar as exportações, o governo propôs em 1996 uma lei,

posteriormente conhecida como Lei Kandir, prevendo a não incidência do ICMS -tributo

estadual que é principal fonte de receita no sistema tributário nacional- na compra de bens

de capital e nas exportações de semi-elaborados e produtos primários e compensação das

perdas dos Estados.

A tramitação envolveu longas negociações com os governadores e seus

parlamentares correligionários, em especial com a bancada paranaense -grande Estado

exportador dos produtos beneficiados-, em torno da fórmula de cálculo do valor de

compensação. O secretário da Fazenda de São Paulo, Yoshiaki Nakano, sintetizou a

insatisfação geral: "O projeto é bom para a economia de São Paulo, mas ruim para as

23 A proposta do governo era prorrogar o FSE até 1999, quando, segundo sua previsão, as reformas estariamconcluídas. O governo conseguiu aprovar somente uma prorrogação de um ano e meio. Nova prorrogação foienviada ao final de 96, sendo válida até 99. Em 98, foi enviada nova proposta, sendo a medida, desta vezrebatizada de DRU (Desvinculação das Receitas da União), válida até 2003.24 As despesas com pessoal da União, que somavam R'S 18,9 bilhões em 1987, passaram para R$ 44,7 bilhõesno início do governo FHC, por conta da expansão dos gastos previdenciários e das despesas do Judiciário e doLegislativo, de acordo com dados do jornal "O Estado de S.Paulo" ("Disparam gastos com pessoal no serviçopúblico", 25/511997). A reportagem mostra que "os tribunais federais contrataram 11.652 novos funcionáriosentre janeiro e novembro do ano passado. Foram 35 admissões por dia Nesse mesmo período, a Câmara e oSenado contrataram outras 4.645 pessoas. Foram 14 admissões por dia ".25 "Cardoso troca FSE por dividas", Gazeta Mercantil, 26/9/1995

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AO'tO

finanças do Estado porque a compensação é insuficiente para cobrir as perdas".

Entretanto, apesar dos protestos dos Estados, o projeto foi aprovado pela Câmara por 303

votos a favor, 70 contra e 4 abstenções, depois de ter sido acertada, com os Estados, uma

antecipação de R$ 500 milhões relativo ao ressarcimento de perdas de 199726. Os Estados

exportadores dos produtos beneficiados, entretanto, sofreram perdas significativas na

receita do ICMS de 1996 a 1997, apesar de, no cômputo geral, grande parte dos Estados

terem apresentado ganhos significativos. No Rio Grande do Sul, registrou-se queda de

7,38% e no Rio de Janeiro, de 7,04%. O Paraná perdeu 6,5% e Minas Gerais teve queda de

3,75%, num periodo em que 14 outros Estados registravam crescimento real da arrecadação

por conta do crescimento de 3,4% do PIB27. São Paulo registrou no ano aumento de 1,7%

na receita do ICMS, mas anunciava perdas de R$ 850 milhões relativas à lei. A questão do

ressarcimento das perdas é ainda hoje um ponto de controvérsia entre União e Estados.

A despeito do bom desempenho da máquina arrecadatória dos Estados entre 1994 e

1997, porém, as crises dos funcionalismos estaduais se agravaram. A greve coordenada das

policias civil e militar em 12 Estados, em julho de 1997, trouxe à tona a profundidade do

problema. Na maioria dos Estados, os pagamentos do funcionalismo estavam atrasados há

vários meses, apesar de os governos terem demitido, de 94 a 97, cerca de 30 mil

funcionários e promovido prowamas de demissão voluntária. Em Alagoas, por exemplo, 17

mil dos 45,8 mil funcionários haviam aderido ao programa". A greve geral de julho, por

outro lado, forçou os governos a concederem aumentos, quando suas folhas de pessoal já

consumiam grande parte das receitas. Em Minas, os gastos com pessoal, que chegavam a

86% da receita do Estado antes da greve, chegavam a 92% com a concessão feita aos

grevistas. Apenas 7 Estados da Federação cumpriam as regras da Lei Camata, que

estipulou, em 1995, que os gastos com pessoal não deveriam exceder 60% da receita

líquida.

26 "Câmara aprova projeto do ICMS", Gazeta Mercantil, 28/8!l99627 "Receita do ICMS de 97 só não supera a de 96", O Estado de São Paulo, 5/3/9828 "Crise do Estado faz AL liderar demissões", 26/1 0/1997

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49

Além disso, acirrava-se a competição não-cooperativa entre os Estados em razão da

guerra fiscal. Como mostram ABRUCIO e COUTO (1998), a guerra se iniciou no inicio

dos anos 90 por Espírito Santo, com a concessão de beneficios na importação de

mercadorias para estimular a utilização de seus portos, sendo tal iniciativa seguida pelos

demais Estados. As decisões do Confaz (Conselho Nacional de Política Fazendária),

instância responsável pela resolução dos conflitos envolvendo questões tributárias passaram

a ser sumariamente desconsideradas.

Não houve tampouco iniciativas consistentes para reverter tal quadro. O governo

central, ao contrário, passou a alimentar esse processo, inclusive aceitando o repasse dos

custos dessa guerra, principalmente a partir de 1999. Uma das poucas medidas foi o projeto

original da Lei Kandir (1996), que previa mecanismos de fortalecimento do Confaz e inibia

a concessão de incentivos fiscais diferenciados por Estados, cuja inclusão fora negociada

pelo ministro do Planejamento à época, Antônio Kandir, com os secretários de Fazenda do

Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Entretanto, na

tramitação do Senado, ficou acertado que as cláusulas referentes a essa questão senam

retiradas por veto presidencial, atendendo aos governadores dos Estados menos

industrializados. A competição predatória continuava e se agravaria ainda mais ao longo do

tempo, enfraquecendo os laços interestaduais.

Vê-se, assim, que o jogo federativo mudou de figura a partir do governo FHC. Os

Estados não apenas perderam importantes prerrogativas fiscais (o uso dos bancos estaduais

e do float) como encontravam-se, por conta da política de juros praticada pelo governo

central e pela expansão dos gastos não-financeiros, em total bancarrota. Dependiam, assim,

dos recursos provenientes da União, em uma situação em que sua influência sobre os

parlamentares federais já não era tão forte como fora antes. Tampouco conseguiam articulàr

verticalmente estratégias coesas para fazer frente ao poderio crescente da União. Ao

contrário, brigavam entre si na concessão de beneficios fiscais cada vez maiores e de

retomo questionável.

O presidente, por outro lado, respaldado pelo sucesso de seu plano de estabilização

monetária, chamava para si um grau de legitimidade que outros não haviam conseguido,

inclusive para levar adiante propostas de alteração de dispositivos constitucionais

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50

(mudanças, portanto, no nível da polity) e no jogo político (politics). Isso garantiu também

maior independência ao presidente na montagem de seu gabinete. FHC conseguiu estruturar

seu governo não apenas com base na distribuição de cargos a partidos importantes e, em

menor medida, a governadores aliados, mas sobretudo resguardando para a "quota do

presidente" ministérios e secretarias-executivas estratégicos, nos quais alocou pessoas de

sua estrita confiança e de alto nível técnico (LOUREIRO e ABRUClO, 1999).

A formação da equipe econômica e mais particularmente do Ministério da Fazenda,

como observam LOUREIRO e ABRUClO (idem), é um claro indicativo disso. Durante os

dois mandatos de FHC verificou-se forte centralidade das decisões econômicas em torno

desse ministério, alçado à condição de "órgão superior e controlador do gabinete". Tal

centralidade esteve associada "primeiro, a uma situação marcada pela escassez de recursos

e a necessidade constante de controlar as contas públicas .. (...) segundo, à importância do

plano de estabilização para o sucesso político do presidente; terceiro, aos laços de

confiança estabelecidos entre o presidente e a cúpula do MF, que se originam da gestão de

Fernando Henrique na Fazenda no governo Itamar; e, por fim ... à importância estratégica

que o Ministério da Fazenda teve como controlador dos outros órgãos cuja distribuição do

poder foi feita para garantir maioria parlamentar ..." (idem:85-86). Trata-se, neste último

caso, de um controle exercido. basicamente pelo poder de liberação e contingenciamento de

recursos da Secretaria do Tesouro Nacional (STN), essencial para a implementação das

políticas dos ministérios e das demandas parlamentares.

O governo federal conseguiu ainda encaminhar uma agenda constituinte. O jogo

político brasileiro, como dissemos, enfrenta um "problema constitucional": o engessamento

do policy-making em razão da constitucionalização de dispositivos referentes à policy. O

efeito imediato disso é que se faz necessário, para implementar a agenda política,

implementar antes uma agenda constitucional, que, por sua vez, requer a formação de

amplas coalizões partidárias.

O governo FHC foi bem sucedido nessa agenda constitucional, como ressaltam

COUTO e Arantes (2002): "Ao longo de 14 anos de vigência da Constituição de 1988, 44

emendas constitucionais foram aprovadas, sendo 6 durante o já mencionado processo de

Revisão -as Emendas Constitucionais de Revisão- e outras 38 como Emendas

BIBLIOTECA KARL A, BOEDECI<ER

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51

Constitucionais comuns. Destas últimas, 34 foram aprovadas somente durante o governoI

Fernando Henrique Cardoso (entre os anos de 1995 e 2002) tendo sido, na sua maior

parte, propostas de iniciativa do Poder Executivo e recaindo majoritariamente sobre

matérias que compunham uma agenda tipicamente governamental e não necessariamente

constitucional, no sentido mais rigoroso que essa expressão possa conter' (idem: 6).

No primeiro mandato, o governo procurou centrar esforços para aprovar mudanças

relativas à ordem econômica, aprovando um total de 13 emendas constitucionais, grande

parte dos quais tiveram algum tipo de efeito fiscal. O quadro abaixo elenca as ECs

aprovadas durante os dois mandatos de FHC, classificadas de acordo com seu teor.

Quadro 1 - Emendas Constitucionais e respectivo teor (1995 - 2002)

EMENDAS TEOR

6,7,8,9 elO

19,20,25,30,33

10,12, 17,21,27 e 37

Desregulamentação e desestatização da economia/efeitos:fiscais indiretosReforma do Estado/efeitos :fiscais estruturais

Propósitos :fiscais imediatos

15, 16, 22, 23, 24, 35 Caráter eminentemente político

11, 18, 14, 26, 28, 29, 31, 32, 34, Temas sociais e gerais/efeitos fiscais indiretos36,38FONTE: COUTO (2001), adaptado pela autora

As emendas a partir da EC n° 21, inclusive, foram aprovadas no segundo mandato

Dentre as medidas classificadas como de efeito fiscal estrutural, destacam-se a da

Reforma Administrativa (EC n? 19), que tramitou por exatos três anos e a da Previdência

(EC n° 20), que teve um longo trâmite de 46 meses. A EC n" 30, que regula a emissão de

precatórios, também entra nesse rol. Ao contrário, as prorrogações do Fundo Social de,Emergência (EC revisional n° 1, aprovada quando FHC era ministro da Fazenda do governo

Itamar) e seus sucessores (EC n° 10, quando foi rebatizada de Fundo de Estabilização Fiscal

e EC n° 17 e EC n? 27, quando passou a ser chamada de Desvinculação das Receitas da

/ União), além da instituição e prorrogações do IPMF (EC n° 3) e do CPMF (EC n° 12 e EC °21) configuram como medidas fiscais de impacto imediato e de caráter provisório (embora

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52

venham sendo sucessivamente prorrogadas), que se sucederam às diversas cnses

internacionais.

A despeito da ênfase dada ao equacionamento do déficit fiscal e das medidas

implementadas, as contas apresentaram, a partir de 1994, uma rápida deterioração, exigindo

maior esforço de ajuste fiscal para a obtenção de superávits primários. A tabela 3 traz a

evolução no pós-Real da relação dívidaIPIB, que volta a partir de 1998 aos níveis do início

da década de 80.

Tabela 3. Dívida líquida do setor público - evolução pós-Real

%doPIB

ANO GOVERNO ESTADOS E EMPRESAS TOTAL INTERNA EXTERNA

CENTRAL MUNICÍPIOS ESTATAIS

1993 9,7 9,3 14,0 33,0 18,6 14,5

1994 12,5 9,7 6,9 29,2 20,7 8,4

1995 13,2 10,6 6,7 30,5 24,9 5,6

1996 15,9 11,5 5,9 33,3 29,4 3,9

1997 18,8 13,0 2,8 34,5 30,2 4,3

1998 25,3 14,3 2,9 42,6 36,0 6,6

1999/maio 30,6 15,5 3,5 49,6 38,8 10,8

Fonte: Banco Central

Grande parte da deterioração corresponde ao aumento das taxas de juros que se

sucederam às crises externas -do México, em 1995, da Ásia, em 1997 e da Rússia, em

1998. Como se sabe, o país é altamente dependente da atração de recursos externos para o

financiamento dos déficits de transações correntes. A dependência aos recursos externos foi

ainda maior até a crise deflagrada em 1999, dada a utilização da âncora cambial como

estratégia de estabilização monetária, estratégia essa abandonada em janeiro daquele ano. A

manutenção de altas taxas de juros, assim, exerceu e continua exercendo papel chave, e

atuou principalmente em resposta às sucessivas crises e à instabilidade econômica.

Como contrapartida do ingresso de reservas internacionais, por outro lado, o

governo emite títulos para "esterilizar" o efeito monetário da acumulação de reservas

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53

internacionais (ou seja, a inflação), aumentando de forma brutal a dívida interna, como

mostra a tabela 3.

O impacto dos juros sobre um montante já considerável de estoque da dívida foi

impressionante. De janeiro de 1995, o início do mandato de FHC a maio de 2002, a dívida

líquida do setor público passou de R$ 153,2 bilhões (30,5% do PIB) para R$ 708 bilhões

(56% do PIB), um aumento de R$ 555,3 bilhões. Os gastos com juros nominais

corresponderam a R$ 506,5 bilhões. A desvalorização cambial, a partir de 1999, aumentou

a dívida em R$ 138,6 bilhões por conta do grande passivo atrelado à moeda forte. Por fim,

o reconhecimento de "esqueletos", muitos dos quais pertenciam aos Estados e foram

reconhecidos a partir de 1995, representou um acréscimo de R$ 103,2 bilhões". A tabela a

seguir ilustra o peso crescente dos juros na dívida e do esforço fiscal efetuado para manter a

relação dívidaIPIB em patamares "aceitáveis pelos credores".

Tabela 4. Evolução do superávit primário, juro e dívida líquida

(1995-2001)

%doPIB

ANO (DEZ.) SUPERAVIT JURO/PIB DJVJDA

PRIlvfÁRlOIPIB LÍQUlDAIPIB

1995 0,'36 7,5 30,5

1996 -0,09 5,8 33,3

1997 -1 5,1 34,5

1998 o 7,9 42,6

1999 3,3 13,8 49

2000 3,5 8 49

2001 3,75 10,7 53

-FONTE: Banco Central, apud NETTO, Delfim. "A independência do BancoCentraI", Folha de S.Paulo, 25/4/2002

De grosso modo, a dinâmica da dívida está intrinsecamente ligada ao resultado

primário, à taxa de juros real e taxa do crescimento do PIB real. Dessas três variáveis,

29 "Dívida do governo salta para 56% do PIB", Folha de São Paulo, 28/6/2002

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54

entretanto, apenas o resultado primário é a mais controlável3o a longo prazo, tendo em vista

que a taxa de juros constitui um instrumento balizador da economia e o crescimento do PIB

é uma perspectiva incerta face à instabilidade e a política monetária adotada. Isso explicaria

o "esforço concentrado" do governo central na obtenção de superávits primários.

Sem entrar no mérito de se os custos do ajustamento fiscal proposto pelo governo

FHC se justificaram ou não, fato é que tal esforço exigiu o ordenamento da situação de

"moral hazard" que se encontrava as finanças subnacionais, que em algum momento

precisaria ser equacionada. O impacto dos juros sobre os passivos estaduais gerou uma

situação de insolvência desses entes, deixando os "barões" sem alternativa senão depender

dos já escassos recursos da União, num quadro em que já não era possível recorrer aos

antigos instrumentos de crédito e artificios inflacionários e tampouco ao mercado. Lembre-

se ainda que o Plano Real, mesmo depois de sucessivas crises e do aumento dos juros,

contava com a aprovação de 61% da população ao final de 1998, garantindo a FHC um

segundo mandato".

O sucesso do Plano Real constituiu, assim, uma "conjuntura critica", ou seja, um

ponto de inflexão a partir do qual a posição relativa dos atores, em temos de poder e

preferências, foi modificada a favor do da proposta de ajuste fiscal (LOUREIRO e

ABRUCIO, 2002). Entretanto, as mudanças não ocorreram com base em reformas do tipo

"once for all", Ao contrário, foram implementadas gradualmente e em base no aprendizado

resultante dos erros anteriores. E aqui incorpora-se a idéia de incrementalismo, que passo a

discutir em seguida.

30 BEVlLAQUA, Afonso. "Resultado primário e dinâmica da divida", Valor Econômico, 28/61200231 "Cresce pessimismo sobre economia" Folha de S.PauJo, 27/12/1998

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55

3. Ajuste fiscal pós-Real: incrementalismo epath dependence

A busca do equilíbrio das finanças públicas tornou-se, como vimos, núcleo duro da

agenda dos anos FHC. Contrapondo-se às experiências anteriores de estabilização e

reforma fiscal, entretanto, essa agenda foi levada adiante de forma paulatina e gradual,

registrando avanços e recuos e envolvendo ainda negociações com os diversos atores

políticos. Foi pautada, assim, por uma lógica essencialmente incrementalista, que conseguiu

capitalizar a concentração de poder e de recursos com a capacidade negociativa e de

aprendizado.

Como ressaltam LOUREIRO e ABRUCIO (2002), o incrementalismo constitui uma

"contraposição analítica e normativa em relação à visão totalizadora de mudança, fundada

numa concepção tecnocrática e insulada". Trata-se, assim, de uma prática que procura

incluir um maior número de atores no decision-making e "estender no tempo o processo de

transformação", o que permite ao policy makers "aprender mais com os possíveis erros de

implementação e tomar as decisões mais responsivas e responsáveis". Cada medida

implementada, por outro lado, orienta as mudanças do patamar seguinte, estabelecendo-se,

de tal sorte, uma relação de path dependence.

A ênfase nas medidas .de ajuste fiscal e de ordenamento das finanças subnacionais

fica clara no PAI (Programa de Ação Imediata), que precedeu a implantação do Real, e nos

demais planos e programas lançados pelo governo FHC (URV, Real, pacote de 1995, de

1997 e de 1998). Destaca-se, dentre tais ações, três tipos de medidas:

1) as de efeito fiscal imediato e provisórias, que buscaram um equilíbrio inicial por

meio da melhoria da capacidade arrecadatória ou pela retenção de parcelas dos

repasses aos entes subnacionais;

2) as que procuraram limitar os diversos mecanismos de endividamento dos

Estados e Municípios;

3) as medidas de contenção e restrição do gasto público, em especial com o

funcionalismo.

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56

o quadro abaixo enumera as principais medidas, classificando-as de acordo com seu

conteúdo.

Quadro 2. Medidas fiscais e respectivo conteúdo

Dispositivo legal Teor

EC 3, art. 2~ECs 10,12,17,21,27 e 37

EC 3, art. 5~' Lei 9496/97 (Lei da Divida); Res.

BC n° 2443/97; MP 1773/98; Res. Senado n o Limitações ao endividamento dos

78/98; EC 19, art. 30, EC n° 30/00, LRFlOO;Res. Estados e Municípios

Efeito fiscal imediato e "provisório"

Senado n 040/01

LC 82/95 (Lei Camata 1); EC 19, art. 21; EC Restrição aos gastos com

19/98; EC 20/98; LC 96/99 (Camata 2), LRF/OO Funcionalismo

Se de um lado é certo que uma boa parte das medidas fiscais foi implementada por

via da edição e reedições de Medidas Provisórias - o PROES é um exemplo disso-, por

outro, observa-se que parte significativa do processo teve necessariamente de passar pelo

crivo do Congresso, ou seja, demandou considerável capacidade de negociação por parte do

Executivo. Decerto que o poderio que o Executivo conseguiu chamar para si, possibilitando

o uso efetivo da engenharia institucional no interior do Legislativo (LIMONGI e

FIGUEIREDO, 1997), respondeu por uma parte considerável dos resultados da produção

legislativa.

O Legislativo atuou sobre uma pauta que não era de sua iniciativa, e parlamentares

eram muitas vezes chamados a decidir sobre issues que atentavam interesses federativos,

sendo pressionados por governadores e prefeitos correligionários. Entretanto, sua atuação

não foi resultado de "adesismo" à agenda governamental por força dos mecanismos

institucionais, mas refletiu uma tomada de posição dos congressistas em prol da idéia de

ajuste fiscal. Isso se deu, em grande parte, às, digamos, "microconjunções críticas", quais

sejam, as sucessivas crises e a ameaça da instabilidade que pairava. Prova disso é que

grande parte das medidas aprovadas constituiu uma resposta legislativa às crises.

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57

Dentre as medidas de efeito fiscal imediato, como já falamos, está a instituição do

FSE (Emenda Revisional 1), que constituiu um dos instrumentos mais importantes para o

balanceamento das contas no ano de 1994, abrindo caminho para a implementação do Plano

Real, a grande "promessa" de combate ao fantasma da inflação.

O FSE foi, por outro lado, segundo argumenta BACHA (1994), um dos principais

articuladores do Plano Real, uma espécie de "demonstração de força" -além de permitir

equilibrar o orçamento ex ante, possibilitou mostrar que o governo central era capaz de

promover um ajuste sem depender do imposto inflacionário. Constituiu ainda um primeiro

passo na direção da centralização de poderes distributivos em tomo do Executivo, uma

tendência que vai se cristalizando à medida que os demais dispositivos foram sendo

aprovados.

O que estava previsto para ser provisório, entretanto, passou praticamente a ser

perene durante o governo FHC. O FSE foi prorrogado por três vezes (EC 10/96, EC 17/97,

e EC 27/00), sempre tendo como justificativa a iminência de crise -e, de fato, houve quatro

crises no período- e a ameaça de que, sem a aprovação desse dispositivo, o país iria à

bancarrota.

A instituição do IP.MF/CP.MF (EC 3, art. 2°) e suas prorrogações (EC 12 e EC 37,

art. 3°) constituem outro exemplo de perenização de instrumentos tidos como provisórios e

que se tomaram essenciais para "fechar o caixa". A adoção de um imposto "em cascata",

que onera bastante o setor produtivo, contrapunha-se à preocupação em incentivar o

aumento das exportações -a Lei Kandir (1996) é um claro sinal disso-, um dos paradoxos

que ênfase no ajuste fiscal também gerou. Por outro lado, garantiu ao governo uma receita

anual de em tomo de R$ 9 bilhões, o que, somado ao aumento das contribuições sociais, do

ICMS sobre combustíveis, energia elétrica e telecomunicações, além da majoração da

alíquota do IOF e da melhoria na fiscalização, asseguraram um crescimento constante da

receita tributária. Dados do BNDES mostram que a carga tributária, que era, em 1947, de

13,84% do PIB, passou a 21,2% em 1989 e chegou a 34% em 2001, a maior em 54 anos da

série histórica do IBGE32, o que contribuiu enormemente para o esforço fiscal.

32 "Termômetro fiscais da tributação e da descentralização - posição: novembro de 2002", BNDES, 2002

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58

Fato é que esses instrumentos conseguiram garantir ao governo federal poder dej

fogo para levar adiante uma agenda fiscal tendo como prioridade o ordenamento das

relações federativas e a realização de um esforço fiscal geral voltado para a geração de

superávits primários.

Tal ordenamento se deu com o fechamento gradual das "torneirinhas" de crédito

fácil à disposição dos governadores e prefeitos, abertas com a conivência tanto do Senado,

que tem a prerrogativa constitucional. de autorizar o endividamento dos três níveis de

governo da Federação, quanto a do Banco Central, a quem cabe a análise técnica do pedido

de autorização de dívida.

Em primeiro lugar, proibiu-se, por meio da EC 3/93, em seu art. 5°, a emissão de

títulos da dívida pública estadual e municipal que não fosse para o refinanciamento do

principal e do serviço da dívida correspondente. A emissão desses papéis, adquiridos quase

integralmente pelos bancos dos respectivos Estados, como se viu, era a principal fonte de

crédito dos governadores. A partir dessa limitação, procurou-se criar condições 'para evitar

o inchaço ainda maior do rombo dos bancos estaduais, pavimentando caminho para sua

federalização nos moldes do PROES. A única ressalva feita dizia respeito à emissão de

títulos para pagamento dos precatórios judiciais.

Fechada essa "torneira:', a próxima etapa foi a de renegociar as dívidas estaduais e

criar condições para que os acordos fossem cumpridos, fortalecendo o "enforcement" do

dispositivo legal. As primeiras negociações começaram já em 1996, na CAE (Comissão de

Assuntos Econômicos) do Senado, envolvendo nove Estados, dentre os quais São Paulo

(que respondia por 54% do total da dívida), que apresentaram seus protocolos de intenção.

A proposta governista era de assumir um total de dívidas no valor, à época, de R$ 72,8

bilhões, a serem parceladas em 15 ou 30 anos, a juros anuais de 6% e correção pelo IGP-DI

-bem abaixo dos 20% cobrados pelo mercado.

Negociações de dívidas subnacionais não eram novidade nas relações federativas. A

primeira delas data de 1989 (Lei 7.976), pela qual se refinanciou a dívida externa dos

, Estados por 20 anos, com correção cambial mais a taxa "libor", além de um adicional de

13% a 16% ao ano. A segunda negociação (Lei 8.727/93) abarcou as dívidas relativas ao

FGTS, por um prazo de 20 anos, prorrogáveis por mais 1O, com limite de

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59

comprometimento de 11% da receita líquida dos Estados'". Com a aprovação da Lei

9.496/97, porém, parte significativa do remanescente até então não negociado da dívida foi

levada à mesa de negociação.

A contrapartida dos Estados implicava um grande ônus. Era necessário, antes de

tudo, comprometer de 11,5% a 15% das receitas líquidas e cumprir metas de resultados

primários, de arrecadação de receitas próprias, de privatização, permissão ou concessão de

serviços públicos e de despesas com funcionalismo público. A lei reforçou ainda a

proibição de emissão de títulos prevista no art. 5° da EC 3, proibindo a colocação de novos

papéis da dívida enquanto a dívida financeira do Estado for superior à sua receita líquida

anual. Novos endividamentos, inclusive junto a organismos internacionais, só seriam

permitidos caso o ente estivesse cumprindo as metas previstas na lei.

Ainda assim, 25 Estados aderiram à negociação +apenas Tocantins e Amapá ficaram

de fora das renegociações no âmbito dessa lei-, a maioria dos quais logo após a sua

promulgação ou ao longo de 1998.

A questão do "enforcement" também foi enfatizada. O art. 3°, § 6° da lei prevê a

substituição dos encargos financeiros subsidiados pelo custo médio da captação da dívida

mobiliária federal, acrescido de um por cento ao ano, além da elevação de quatro pontos

percentuais do nivel de comprometimento da receita quando da não observância dos

compromissos. A previsão de garantias, vinculadas às receitas próprias dos Estados e aos

repasses constitucionais, também foi uma inovação (art. 4°), cuja execução foi de fato

levada a cabo contra Estados inadimplentes.

Em 99, os governadores recém-empossados passaram a questionar os .termos das

negociações, feitas pelas administrações anteriores. Os Estados viam-se em situação

financeira dramática. A crise econômica havia reduzido a receita do ICMS do ano anterior

e os gastos com pessoal avançavam, consumindo grande parte da receita líquida dos

Estados. Os fracos resultado das Reformas Administrativa, que não conseguiu derrubar de

imediato a questão da estabilidade do servidor público, o que facilitaria um corte maior do

funcionalismo, e Previdenciária, que pouco alterou a situação da previdência pública- não

abriram espaço para equacionar os principais gargalos das administrações públicas.

33 "Estados devem R$ 127 bilhões à União", Jornal do Brasil, 10/1/1999

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60

A rejeição do acordo pelo governo de Minas Gerais, tendo à frente o governador

Itamar Franco (pMDB-MG) e o anúncio da moratória no início de janeiro de 99, entretanto,

foram "exemplarmente" punídos. As garantias -retenção dos repasses constitucionais a esse

Estado, como prevê a Lei da Dívida- foram executadas, com aval do Supremo Tribunal

Federal". Governadores que sinalizavam alinhar-se a Minas, como o caso do Rio de

Janeiro (Antony Garotinho, PDT-RJ), recuaram". Ainda que o peso da dívida renegociação

fosse grande, a situação dos Estados era de "ruim com a renegociação, pior sem ela", como

sintetizou o governador Mário Covas (pSDB-SP): "Quero ver qual é o governador que

prefere rolar sua divida no mercado financeiro... O que está parecendo é que eles estão

oscilando entre pagar e não pagar e não se trata disso... É óbvio que sai mais barato não

pagar, mas condições melhores do que as previstas nos acordos, são muito dificeist'",

defendendo os acordos. O governo paulista vinha cumprindo rigorosamente suas

obrigações com a União, embora internamente estivesse em uma "quase moratória",

atrasando os pagamentos aos fomecedores'".

Até 2001, todos os 27 Estados da Federação aderiram a algum tipo de renegociação,

seja pela Lei da Dívida, seja pela Medida Provisória 1.773/98, que abriu a possibilidade

para empréstimos destinados ao saneamento dos bancos estaduais exclusivamente para sua

privatização ou transformação em agência de fomento, ou ainda pela possibilidade de

empréstimos para o saneamento dos gastos com funcionalismo por meio da promoção de

PDVs. A dívida financiada chegou a R$ 197 bilhões": A renegociação, que envolveu

também, na etapa final, os Municípios, foi incentivada com a perspectiva de aprovação da

LRF, que proibiu qualquer tipo de renegociação depois de sua entrada em vigor.

O Senado assumiu na renegociação e no processo de controle do endividamento

papel de extrema relevância. Tendo a prerrogativa constitucional de autorizar os pedidos de

endividamento de todos os entes da Federação, seu controle constitui a mais importante

atividade legislativa exclusiva do Senado. Cerca de 80% das resoluções dessa Casa entre 89

34 "Governo bloqueia R$ 11,7 mi de repasses federais a Minas", Folha e S.Paulo, 12/1/199935 "Pedetista fala em não pagar", Folha de S.Paulo, 5/1/1999; "Garotinho afasta hipótese de aderir àmoratória", O Estado de São Paulo, 8/1/1999; "Depois do calote, o isolamento", O Globo, 10/1/199936 "Covas defende respeito a acordos com União", O Estado de São Paulo, 10/2/199937 "Governo atrasa pagamento de fornecedores", idem38 "Entre Estados e União débitos estão acertados", Gazeta Mercantil, 18/11200 I

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61

a 99, envolveram autorização para endividamento ou repactuação de dívidas (LOUREIRO,

2001). LOUREIRO (idem) descreve o processo de autorização:

"...os governos interessados em emitir títulos ou estabelecer

contratos de créditos encaminham seus pleitos ao Banco Central,

que analisa cada caso e em seguida envia ao Senado parecer

conclusivo, recomendando ou não a autorização. Uma ez no

Senado, o parecer é recebido e discutido pela Comissão de

Assuntos Econômicos (CAE), composta por 27 senadores, que

aprova ou rejeita o pedido, enviando-o para a dcisão final do

plenário. Como todos os pareceres emitido pela Comissão são

sempre aprovados no plenário, a CAE acaba sendo o loeus

decisório central do processo de controle do endividamento público

no Brasil" (idem:54).

Entretanto, como a CPI dos Precatórios mostrou, muito dessa prerrogativa foi

flexibilizada no atendimento das demandas de governadores e prefeitos. O próprio relatório

da CPI, instaurada em novembro de 1996 e encerrada em julho do ano seguinte, constatou

que o desvio das verbas destinadas ao pagamento de precatórios, envolvendo os Estados de

Pernambuco, Alagoas e Santa Catarina, além dos Municípios de São Paulo, Campinas,

Osasco e Guarulhos, foi favorecida pela negligência do Senado e do Banco Central na

avaliação do processo de endividamento. O endividamento dos entes subnacionais para o

pagamento precatórios, vale ressaltar, era a única brecha permitida tanto na EC 3, art. 5°,

quanto na Lei da Dívida, que passaram a ser, pelo menos aos envolvidos, uma importante

fonte de crédito. A permissividade do Senado também se revela também nas 50 operações

de crédito aprovadas ao longo de 1997, totalizando R$ 11,7 bilhões, cuja maioria, como

mostra reportagem do jornal "O Estado de São Paulo", contrariou as normas do próprio

SenadoJ9.

39 "Senado amplia gastos de Estados em R$ 11,7 bi", 8/3/1998

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Apesar de nenhum dos acusados pela CPI ter sido judicialmente processado", as

repercussões da CPI serviram para conter outra das "to meirinhas" de crédito dos Estados e

Municípios. Nesse sentido, a resolução 78/98 deu dois passos significativos, ampliando as

restrições quanto à emissão de títulos, à contratação de AROs e limitando, paradoxalmente

sua atuação, ao determinar ao Banco Central somente o encaminhamento dos pedidos de

endividamento de Estados devidamente em dia com as dívidas da União. A limitação das

AROs, em particular, veio a reforçar o controle antes feito pela Resolução do Banco

Central 2.443/97.

Por outro lado, pressões políticas em CIma do Senado ampliavam-se com o

agravamento da crise financeira dos Estados. Ao final de 1999, os acordos de renegociação,

por exemplo, estiveram a um passo de serem revistos pelo Senado, atendendo a um pedido

do Piauí. O Estado havia requerido a revisão do percentual de 13% de comprometimento de

sua receita líquida mediante um novo acordo com a União, o que abriria uma brecha para

que todos os demais Estados assim o fizessem. O pedido havia sido aprovado pela CAE e,

em plenário, obteve 28 votos contra e 28 votos a favor. Ele somente foi derrubado com o

voto de minerva do senador baiano Antônio Carlos Magalhães (PFL).

Além disso, os débitos relativos aos precatórios dos Municípios apontados pela CPI

foram incluídos nas rolagens elas dívidas municipais, com aval do próprio Senado, o que foi

duramente criticado pelos editoriais de jornais. O Jornal do Brasil sintetiza dessa forma:

cc .. A questão [dos precatórios} veio finalmente esta semana ao plenário do Senado e foi

agraciada com tratamento familiar: transformou-se em privilégio a ser pago com o

dinheiro do contribuinte. O lado moral foi arquivado e afalcatrua trocou de personalidade

graças à resolução autorizando a União a financiar o pagamento dos supostos precatórios

em dez anos. O prazo não faz diferença moral: a irregularidade é a mesma com outra

aparência, e agora premiada?":

Por outro lado, muito das medidas serviram de base e foram absorvidas pela Lei de

Responsabilidade Fiscal, promulgada em maio de 2000. Constituíram, assim, uma espécie

40 "Ninguém é punido quase 3 anos após CPI", Folha de S.Paulo, 19/3/200041 "Epitáfio do Escândalo", 25/6/1999. "O Estado de São Paulo" faz críticas semelhantes em seu editorial dodia 24/6/1999, "A patifaria consolidada".

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de "prévia" da LRF. Outra medida de igual importância à formação da LRF diz respeito à

limitação dos gastos com o funcionalismo.

O limite dos gastos com pessoal está previsto no art. 169 da Constituição de 1988.

Entretanto, à falta de regulamentação até 1996, os Estados estabeleceram um limite médio

de 70% das receitas para o funcionalismo.

A regulamentação veio com a Lei Complementar 82/95, proposta pela deputada Rita

Camata (pMDB-ES) em 1989 e aprovada em 1991 pela Câmara. O projeto ainda demoraria

quatro anos para ser aprovado pelo Senado, sendo sancionado em março e 1995

A Lei Camata 1 previa um limite de até 60% da receita corrente líquida para as

despesas totais com pessoal ativo e inativo da administração direta e indireta da União e de

70% para Estados e Municípios. A lei entraria em vigor a partir de 1997, estabelecendo um

prazo de três anos para o enquadramento nos limites, sendo que, a cada exercício

financeiro, a redução deveria ser de um terço do excedente.

Entretanto, face à crise financeira dos Estados e aos aumentos concedidos por

governadores e prefeitos às vésperas de eleições, além do avanço constante dos gastos com

o Legislativo e o Judiciário, poucos foram os Estados que conseguiram, próximo ao prazo

final previsto pela lei, enquadrar -se aos limites.

Transcrevo abaixo o editorial do ''Estado de São Paulo", de 3/6/1999, descrevendo a

situação dos Estados:

" ... .Em dez Estados, o desequilíbrio era tão grande que os

servidores estavam com seus vencimentos em atraso: Minas,

Espírito Santo, Pernambuco, Santa Catarina, Mato Grosso do Sul,

Piauí, Alagoas, Acre, Rondônia e Roraima, o desequilíbrio era tão

grande que os servidores estavam com seus vencimentos em atraso.

E atrasos de três, quatro meses, como no Espírito Santo, Santa

Catarina, Piauí e Rondônia. Em seis Estados, mais o Distrito

Federal, as despesas com pessoal chegaram a 75%, ou mais, da

receita líquida: Alagoas (78%), Distrito Federal (76%), Espírito

Santo (82%), Minas Gerais (80 %), Rio de Janeiro (79%), Rio

•.

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64

Grande do Sul (77%) e Rondônia (80%). Estavam em dia com a lei

apenas três Estados: Ceará, Bahia e Maranhão ..".

Em maio de 1999, nova lei (96/99, a Lei Camata 2) é editada, concedendo prazo de

mais dois anos para o enquadramento. O novo dispositivo, reduziu o limite de gasto da

União para 50% e dos Estados e Municípios para 60%, mas, como apontou o mesmo

editorial, constituiu praticamente uma moratória.

Entretanto, continuou não sendo cumprida pela maioria dos Estados e Municípios.

O principal argumento dos governadores e prefeitos para o não cumprimento dizia respeito

ao aumento dos gastos com os demais poderes.

O mérito da lei, apesar de seu enforcement ter sido fraco, foi a de delimitar um

parâmetro para que os Executivos pudessem realizar cortes por insuficiência de recursos,

um parâmetro que não existia antes.

Serviu também para trazer à tona o fato de que o ajuste fiscal não poderia

concentrar-se apenas no esforço de um dos poderes. É nesse sentido que a LRF passou a

contemplar limites nos três Poderes, atendendo aos pleitos dos chefes dos Executivos.

É também nesse sentido que se argumenta que a LRF constituiu o resultado de uma

lógica incrementaI, incorporando uma série de aprendizados. Isso fica claro nos

antecedentes e na tramitação da lei, que discuto no próximo capítulo.

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65

CAPÍTIJLom

A TRAMITAÇÃO LEGISLATIVA DA LRF: INSTITUIÇÕES E IDÉIAS

Vimos no capítulo anterior que o ajuste fiscal implementado no periodo que

antecedeu o Plano Real e durante todo o governo FHC seguiu uma lógica diferente daquilo

que se pode imaginar de uma reforma em seu sentido totalizador. Ao contrário, trataram-se

de medidas restritivas do gasto e do endividamento gradualmente adotadas, tendo o projeto

de Lei Complementar n° 18, posteriormente denominado Lei de Responsabilidade Fiscal

(LRF), encerrado o ciclo de ajustes fiscais estruturais da Era FHC.

A lei foi aprovada na Câmara dos Deputados no dia 25/0112000, após uma

tramitação de um pouco mais de nove meses. De pronto, o que chama a atenção é a rapidez

no trâmite e a pouca modificação no seu sentido original. Tais características ganham mais

destaque levando-se que a LRF implica, de um lado, imposição de perdas concentradas a

certos atores (no caso, particularmente governadores e prefeitos), e de outro, obtenção de

beneficios difusos (no caso, para os cidadãos de modo geral, dados os ganhos econômicos e

sociais advindos de uma restrição orçamentária mais accountable nos planos imediato e

intertemporal). Mesmo considerando a maior dificuldade de se aprovar uma Emenda

Constitucional (EC), a Reforma Administrativa, por exemplo, passou 34 meses na Câmara,

num processo marcado por diversas descontinuidades e alterações na proposta original

(Melo, 2002).

A imensa quantidade de votos favoráveis ao projeto também constitui um traço

distintivo - 385 votos a favor, 86 contra e 4 abstenções. Novamente a título de comparaçã?,

ressalta-se o trabalho de JAIRO NICOLAU (2000), no qual se procura avaliar o grau de

apoio dos partidos às proposições do Executivo durante o primeiro mandato de FHC. Ao

longo desse período, os partidos governistas (pFLIPSDB/ P.MDB/ PPBIPTB) somaram, em

média, 396 cadeiras, o que possibilitaria a aprovação tranqüila de Emendas Constitucionais.

Todavia, os parlamentares situacionistas contribuíram na mediana com 318 votos durante

as tramitações das ECs, ou seja, pouco acima dos 308 (3/5) necessários para aprová-las. Na

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aprovação da LRF, eram necessários 257 (50% + 1), mas a votação obtida garantiu uma

notável margem de 128 votos.

O resultado da tramitação da LRF se torna ainda mais significativo porque o

pêndulo político já não se mostrava tão favorável ao Executivo federal, como fora no

primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso. O fato é que, encerrado o pleito de 1998

e com os efeitos negativos da crise cambial de janeiro de 1999 -algo agravado

posteriormente com o chamado "apagão", em 2001-, os partidos iniciaram tomadas de

posições antecipando as eleições seguintes, dificultando a manutenção da coalizão que

assegurava maioria no Congresso (RANULFO, 2002). O episódio envolvendo a definição

do salário mínimo e o alarde ao redor deste tema nos primeiros meses de 2000 ilustra bem a

alteração do humor dos congressistas (SANTOS, 2002).

Possíveis obstáculos à aprovação da LRF poderiam derivar também do plano

subnacional. O recrudescimento da disputa entre governadores da base aliada em tomo da

concessão de incentivos fiscais para atração de indústrias - a chamada guerra fiscal -, em

especial envolvendo os governadores Mário Covas (PSDB/SP), César Borges (PFLIBA) e

Jaime Lerner (pFL/PR), sinalizava uma crise política no plano interestadual. Some-se isso a

oposição e o lobby de prefeitos e os dos governantes dos 20 estados que não haviam

realizado ajustes fiscais nos: moldes, por exemplo, de São Paulo, os quais poderiam

pressionar os parlamentares durante o trâmite da matéria na Câmara e no Senado, num

momento em que os redutos políticos municipais se mobilizavam para a eleição de 2000.

A despeito destes fatores, vinha .se criando no Brasil, pelo menos desde da CPI do

Orçamento (1993), um clima de opinião pública favorável à responsabilidade fiscal. Foi um

processo igualmente paulatino e incremental, com amplo destaque na midia, tanto na escrita

-mais importante para os formadores de opinião- como na televisiva -que atinge ós

estratos mais pobres da população. Podem ser elencados neste processo, além do escândalo

dos "Anões do Orçamento" citado anteriormente, a grave crise financeira dos governos

estaduais, com a quebra de seus bancos e o atraso nos pagamentos a funcionários públicos e

fornecedores (1995-96); a CPI dos Precatórios (1996-99), que, mesmo não tendo

responsabilizado judicialmente nenhum dos atores participantes das operações, revelou,

como se assinalou, vários mecanismos perversos de utilização do dinheiro público e

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67

apontava para a necessidade de maior controle dos governantes; as denúncias contra a

, Administração Celso Pitta em São Paulo, episódio conhecido como "máfia dos fiscais",

com grande repercussão nacional em horário nobre da TV Globo; a disputa entre os três

Poderes em tomo da fixação de tetos salariais, com o Legislativo e o Executivo sugerindo

R$ 10,8 mil e o Judiciário insistindo nos R$ 12,7 mil, briga esta que desgastava ainda mais

a imagem dos comandantes do poder público frente à população em geral.

Configurava-se, assim, uma espécie de "clamor público" pela criação de

mecanismos que exigissem dos administradores públicos maior responsabilidade no trato

da coisa pública, fato refletido nas notícias e editoriais veiculados à época e que também

ganhava eco nos discursos de parlamentares de diferentes clivagens. Nesse sentido, é

inegável que o termo "responsabilidade fiscal" per si ganhava um forte caráter político,

com sinalização positiva a quem o defendia.

A temática do ajuste fiscal, ademais, tem adquirido contornos suprapartidários, tal

como mostra BOIX (2000), ao analisar o processo de ajuste na Inglaterra da era Thatcher e

na Espanha de Felipe González. Com certa independência em relação à orientação política,

ajustar as finanças havia se tomado um consenso tanto entre conservadores ingleses como

entre partidários de esquerda espanhóis. Guardadas as devidas diferenças, esse processo de

formação de consenso e mudança de preferências dos atores políticos a favor da idéia do

ajuste fiscal também ocorria no Brasil, num processo incrementaI, tal como a formação,

fazendo paralelo a uma outra ciência, de "camadas geológicas" (LOUREIRO e ABRUCIO,

2002).

Não obstante esta situação maquiaveliana de fortuna favorável à LRF, sua

tramitação não dispensou os instrumentos de barganha política ou o uso da peculiar

engenharia institucional brasileira, que garante a predominância do Executivo no poder de

agenda. Pelo contrário. Uma análise mais atenta da trajetória do projeto no Legislativo

indica que o resultado favorável exigiu habilidade do governo para manobrar os

instrumentos de controle de agenda disponíveis no Congresso, particularmente a formação,

dentro da Câmara, de Comissão Especial, cujos membros são eleitos a dedo, e o

requerimento de urgência na votação, nas duas Casas. Ou seja, contaram aqui -e bastante-

as variáveis institucionais fortalecedoras do Executivo federal no processo decisório, que

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68

foram habilmente utilizadas. Mas isso não seria suficiente sem a pressão de opinião, que

levou a uma alteração no cálculo e nas preferências dos agentes congressuais.

O amplo espaço destinado à matéria na mídia possibilitou reforçar a idéia da

necessidade do ajuste via a aprovação da LRF, embora a imprensa, mais do que produtora

dessa idéia, contribuía para a construção de um consenso que ultrapassava suas fronteiras.

Fato é, entretanto, que editoriais chegavam a ponto de categorizar, de forma quase

maniqueísta, os que eram contra a lei, notadamente o PT e o PSBIPC do B, como os "do

mal", enquanto aqueles que se posicionavam a favor eram tidos como os "do bem", o que

fortalecia sobremaneira a posição do Executivo, propositor da lei, frente à opinião pública.

Um olhar sobre os discursos parlamentares nas sessões que antecederam a votação

do projeto revela como estavam atentos à opinião pública, bem como aponta para uma

convergência de interesses de diversos partidos ao redor da idéia de "responsabilidade

fiscal".

Neste sentido, pode-se dizer que o resultado verificado no processo de aprovação da

LRF derivou da conjugação ótima entre o uso eficiente dos mecanismos institucionais pró-

Executivo existentes no âmbito do Legislativo (1), o clima de opinião expresso e reforçado

nos principais veículos de comunicação (2) e a formação de um consenso em tomo da

matéria entre os parlamentares. (3).

I. A relação Executivo-Legislativo

A aprovação da LRF pode ser entendida, primeiramente, pela dinâmica que orienta

as relações entre o Executivo e o Legislativo. A importância dos trabalhos legislativos nós

processos decisórios foi enfatizada inicialmente por FIGUEIREDO e LIMONGI (1997).

Segundo estes autores, longe de ser um obstáculo intrínseco, o Congresso Nacional vem

apresentando, em especial com a eleição de Fernando Henrique Cardoso, comportamento

disciplinado e bastante previsível. Qual a rationale por trás desse comportamento, que

implica "delegação de poderes" por parte do Legislativo ao Executivo?

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Uma primeira explicação recai sobre a prática de "blame avoidance" por parte do

Legislativo, em particular em se tratando de matéria relativa a questões econômicas. Face à

crise econômica ou à sua iminência, a estratégia adotada pelos parlamentares quando

chamados a decidir sobre políticas nessa área é alinhar-se ao Executivo. Evita-se, assim,

uma exposição desnecessária: votando favoravelmente, o congressista deixa de ser

responsabilizado por ter sido obstáculo a uma medida que poderia ter dado certo. Por outro

lado, fracassando o programa, cumpre-lhe o papel de dizer que o Executivo fora o

responsável único pelos erros. A partir daí, lança-se mão de plataformas políticas

diferenciadas com relação à oficial, de forma a dissociar-se dela - ou seja, "marcar

posição" -, prática recorrente entre os partidos da base em 1999, face às incertezas

decorrentes da desvalorização do real em janeiro daquele ano (AMORIM, 2001).

As edições e, mais importante, reedições sucessivas e recordes de medidas

provisórias durante praticamente todo os dois mandatos de FHC constituem o exemplo

mais apurado dessa prática, assegurando ao Executivo preponderância legislativa.

Uma segunda explicação atenta para a estrutura decisória no interior do Legislativo,

em particular na Câmara federal (FIGUEIREDO e LIMONGI, 1998). Ainda que o voto de

cada parlamentar tenha igual peso, regras internas fazem com que a distribuição de funções

e prerrogativas seja desigual. variando de acordo com o porte do partido ao qual o

representante está vinculado. O Regimento Interno da Câmara, por outro lado, traz

prerrogativas que resguardam ao Executivo o poder de agenda. Contando com maioria na

Casa, garante-se ainda o controle do processo e do timing de votação.

Como se operam os processos decisórios nessa Casa e qual a dinâmica entre os dois

poderes?

A Câmara é composta por quatro órgãos: a Mesa, eleita no início do primeiro e do

terceiro ano de cada legislatura; o Colégio de Líderes, formado pelos líderes da maioria, da

minoria, dos blocos parlamentares e do governo; a Procuradoria Parlamentar, formada por

membros designados pelo presidente da Câmara; e, por fim, as Comissões. O processo

decisório se dá na Mesa, no Colégio de Líderes e nas Comissões.

Os dois primeiros órgãos constituem as instâncias preliminares de decisão. São os

responsáveis por definir a quem e a quantos de cada partido serão distribuídas as

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70

prerrogativas parlamentares previstas no Regimento Interno. Já à Mesa Diretora, entidade

central dentro da Câmara, cabe a direção dos trabalhos legislativos durante as sessões e a

resolução de desentendimentos. Ou seja, a ela cumpre arbitrar as controvérsias emergentes

durante o Plenário. Os requerimentos de retirada de proposição da Ordem do Dia, por

exemplo, expediente comum dos partidos que querem obstruir votações, é encaminhado e

julgado pela Mesa. Dar continuidade ou não ao processo de votação, assim, depende do

interesse desta. Incumbe-lhe ainda, ouvido o Colégio de Líderes, a fixação do número de

deputados por partido ou bloco parlamentar em cada Comissão Permanente e a organização

da agenda com a previsão de proposições. O presidente da Mesa, proveniente do partido

majoritário, tem a prerrogativa de nomear Comissão Especial e distribuir as matérias às

Comissões Permanentes ou Especiais.

O Colégio de Líderes, por sua vez, constitui um órgão de assistência à Mesa. A ele,

amparado por um terço dos membros da Câmara, cabe encaminhar o pedido de urgência à

Mesa, a qual dispensa a maioria dos requisitos regimentais (art. 154, 11do RI). Aprovar o

requerimento de urgência, a ser feito por votação simbólica (ou seja, o presidente anuncia a

votação, e os deputados a favor permanecem sentados, promovendo-se então a contagem

dos votos), constitui uma das prerrogativas que asseguram ao Executivo com maioria na

Casa um resultado mais tranqüilo.

Se à Mesa e aos líderes cabe formatar por quem e como o jogo deve ser jogado,

cabe às Comissões definir seu conteúdo, apreciar as proposições e sobre eles deliberar, em

forma de parecer. A composição das Comissões também leva em conta a representação

proporcional dos partidos e dos blocos parlamentares.

Observa-se, então, pelas regras estipuladas pelo Regimento Interno, que o princípio

ordenador da distribuição dos direitos parlamentares é o partidário e concentra poderes ria

figura da Mesa e dos líderes, facilitando a coordenação e disciplinamento partidário.

Ademais, agir coordenadamente seguindo as orientações do partido traz vantagens

ao parlamentar considerado individualmente em negociações com o Executivo. Cada

congressista, sozinho, tem pequeno poder de barganha. Caso resolva posicionar-se contra o

Executivo para forçar uma negociação, precisa tomar sua ameaça crível, e para tanto adotar

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71

uma ação articulada com os demais parlamentares (FIGUEIREDO e LIMONGI, 1999).

Nesta mesma linha, argumenta FABIANO SANTOS (2002):

"Organizados em partidos minimamente disciplinados, eles

[parlamentares} protegem-se da ação monopólica do presidente.

Isso, por sua vez, garante o fluxo de projetos no plenário da

Câmara e, em compensação, os legisladores recebem do Executivo

benefícios de patronagem a ser distribuídos em seus redutos

eleitorais. Nesse sentido, a adesão às proposições políticas do

partido é um bem público para a bancada como um todo, e esse

benefício somente pode ser alcançado se os parlamentares delegam

aos líderes uma parte considerável de seu controle sobre a pauta

legislativa com a finalidade de remover os problemas de

coordenação" (idem: 224).

Toda esta engrenagem partidária e de ação parlamentar, no entanto, sofre forte

influência dos poderes básicos do Executivo, a saber: cargos, liberação de verbas e atuação

junto às bases locais. De tal modo, as regras internas ao Congresso podem favorecer uma

lógica mais partidária, contanto que os "mecanismos governistas" façam o jogo funcionar

devidamente.

Por mais que haja instrumentos incentivadores do jogo governista, em issues de

extrema relevância como a Reforma da Previdência, a Câmara atuou como verdadeiro veto

player institucional, utilizando-se das mesmas regras para obstruir e modificar as propostas

do governo (MELO, 2002). Em outras palavras, a estrutura institucional contém grandes

incentivos à concentração de poder, nas mãos do Executivo e dos partidos situacionistas;

porém, o conteúdo da questão tem um peso considerável sobre o funcionamento do jogo.

Vejamos agora como a engenharia institucional operou durante o trâmite da Lei de

Responsabilidade Fiscal no Congresso.

O projeto de lei (PL), que regula o art. 163 e o art. 169 da Constituição, de iniciativa

do Executivo, chegou à Câmara federal no dia 13 de abril de 1999. Por determinação da

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72

Mesa, presidida por Michel Temer (p.MDB-SP), o PL foi enviado para deliberação a quatro

Comissões Permanentes, sendo a de Finanças e Tributação encarregada da análise do

mérito e da "adequação financeira ou orçamentária da proposição", tendo seu parecer

caráter terminativo (art. 54 do RI). Foi criada, além disso, a Comissão Especial da Lei de

Responsabilidade Fiscal, atendendo ao art. 34 do Regimento Interno, que prevê a formação

de comissão especial quando a proposição versa sobre matéria de competência de mais de

três comissões, lembrando que a competência para definir a quantas e quais comissões

determinada matéria deve ser apreciada é prerrogativa do presidente da Mesa.

Toda proposição, antes da deliberação em plenário, deve passar pelas comissões de

mérito a que a matéria estiver vinculada, pela Comissão de Finanças e Tributação (CFT)

para análise do aspecto financeiro, pela Comissão de Constituição e Justiça e de Redação

(CCJR) para exame de constitucionalidade, legalidade e técnica legislativa, todas

Comissões Permanentes, e pela Comissão Especial (CESP), instaurada ad hoc.

Uma semana depois de chegar à Câmara, entretanto, a proposta é retirada das

Comissões Permanentes por ato da própria presidência e passa exclusivamente à análise da

Comissão Especial, com prazo máximo de 40 sessões para apresentar parecer (o prazo de

trâmite ordinário).

A retirada das Comissões Permanentes foi o primeiro trunfo do governo. Na CESP,

a matéria deixaria de ser objeto de análise em três comissões e passaria a ser deliberada por

apenas uma delas, cujos membros são escolhidos criteriosamente pelo Colégio de Líderes,

diminuindo consideravelmente seu grau de exposição e possibilidade de emendas, o que de

fato se verificou aposteriori.

O segundo trunfo foi o de ter garantido a eleição de Joaquim Francisco (PFL-PE)

para a presidência da comissão e, a nomeação, por este, de um relator favorável à proposta

do governo. A relatoria, responsável pela elaboração do parecer, de caráter terminativo,

sobre a admissibilidade do projeto e a apresentação ou não de substitutivos, ficou a cargo

de Pedro Novais (P.MDB-MA), que havia sido presidente da comissão que analisou o

Fundo Social de Emergência na Câmara - outro processo em que o governo havia sido

vitorioso. Vale lembrar, novamente a título comparativo, que um dos revezes do trâmite da

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reforma Previdenciária na Câmara se deu em razão da incapacidade do governo de

assegurar um presidente e um relator favoráveis à sua proposição (Melo, 2002).

O terceiro feito governista foi o de ter conseguido apressar os trabalhos da CESP,

cujo parecer foi concluído e votado em 27 sessões. Como já observou MARCUS MELO

(2002):

"( ...) interessa ao Executivo encerrar o mais rápido possível

os trabalhos em uma Comissão Especial, porque no plenário as

decisões são mais politizadas, e seu conteúdo substantivo pouco

discutido devido: a) ao número de atores envolvidos ser maior; b)

ao fato de que a Comissão (ao contrário do plenário, em geral,

reúne parlamentares com conhecimento especializado, que podem

divergir por razões técnicas de propostas do governo; c) ao fato de

que o tempo disponível para exame da matéria é menor,

considerando que o prazo máximo de 40 sessões' pode ser

encurtado" (idem: 161).

O início dos trabalhos, por outro lado, foi marcado por manifestações contrárias do

relator a pontos principais do projeto do governo. Em entrevista a "O Estado de São Paulo",

do dia 24 de julho de 19991, Novais afirmou que "a lei foi muito malfeita e, como está, será

dificil aprová-la. C.) Acredito que [o projeto, com 111 artigos] não fica na metade do que

tem aí".

o deputado considerou também, ainda de acordo com a reportagem, "exagero" do

Executivo federal a tentativa de enquadrar outros Poderes e outras esferas de governo à lei,

de engessar o Senado quanto à atribuição de fixar limites de endividamento e restringir -a

contabilização de restos a pagar, atacando pontos principais do projeto.

O relator também se mostrou contra a exclusão do Banco Central no que tange o

financiamento desse órgão pelo Tesouro e vice-versa, bem como a emissão de títulos

públicos pelo BC sem respeitar os limites previstos na lei. O "esquecimento" do BNDES,

com o não enquandramento do uso dos recursos do Fundo de Assistência ao Trabalhador

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74

(FAT), e a exclusão do pagamento de juros também foram consideradas falhas. "A lei

f enquadra tudo e todo mundo, enquadra pequenos funcionários e prefeitos miseráveis, mas

permite que R$ 40 bilhões ou mais do orçamento sejam consumidos com o pagamento de

juros fique livre'", afirmou o deputado.

Notório era que, de fato, como coloca o relator: ''A proposta da LRF foi elaborada

com contribuições em separado do BNDES, do BC e do Ministério da Fazenda. Ao final, os

técnicos do Planejamento compilaram as sugestões. Mas cada um deles retirou limites

fiscais em suas áreas de atuação'",

O posicionamento do relator reproduzia pontos atacados por partidos de oposição:

"(:») É o caso de os Deputados se perguntarem: quem é o

responsável pelo grande desajuste fiscal da nossa economia? A

irresponsabilidade monetária dos gestores da nossa política

econômica, que levou, por exemplo, a um crescimento de US$ 103

bilhões na dívida no mês de janeiro, devido à mudança no câmbio,

não é considerada. Aliás, o Banco Central fica de fora da Lei de

Responsabilidade Fiscal. Estava explícita essa exclusão no

anteprojeto anterior. Na proposta atual, enviada para o Congresso,

está feita de forma sub-repticia. Explícitas ficam as exclusões do

BNDES, do BNB, do BASA.

(.) O .Senador Esperidião Amim faz uma lei, uma mudança

constitucional para fixar limites de gastos para o Poder Legislativo

municipal. A Lei de Responsabilidade Fiscal trata esse tema como

questão comum.

(.) Limitar gastos de forma apressada, apenas para agradar aos

americanos do FMl, é uma irresponsabilidade. Será que é

constitucional? Seria um assunto para ser tratado na Comissão de

J "Relator quer mudar Lei de Responsabilidade Fiscal", O Estado de São Paulo, 24/7/19992 idem3 "LRF deve limitar emissões de títulos públicos pelo BC", Gazeta Mercantil, 11/8/1999

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75

Constituição e Justiça e de Redação. Mas não: vai a uma Comissão

Especial. É um projeto que todos discutem e defendem,

argumentando que deve haver responsáveis fiscais. Ninguém é

contra a responsabilidade fiscal. Mas isso não é responsabilidade

fiscal, caros Deputados. Isso é arrocho do acordo com o FMI. Isso

é a necessidade de gerar superávit primário para pagar a

irresponsabilidade monetária do Sr. Malan, do Sr. Pedro Parente,

do Sr. Arminio Fraga, que fazem com que o Brasil pague os

maiores juros reais do mundo." (Deputado Sérgio Miranda,

discurso, sessão ordinária de 15/4/99).

o PT também se posiciona na mesma linha, como mostra o discurso do deputado

João Fassarela (pT-MG), também titular da Comissão Especial da Lei de Responsabilidade

Fiscal:

"Na nossa avaliação, ela [a lei] se transforma até num elemento

fundamental para a implementação da política deste Governo. E

nisso ai discordamos profundamente do Governo. Na verdade, o

Governo quer que o ajuste empurrado à Nação, que obriga o

Governo Federal à obtenção de um enorme superávit primário

para que sobre dinheiro para os encargos da dívida; um ajuste feito

às custas da qualidade dos serviços públicos em todas as áreas -

saúde, educação, justiça -, seria obrigatório para todos os entes

federativos, a fim de atender aos compromissos que a União

assumiu com o Fundo Monetário Internacional, seja qual for o

sacrifício imposto à Nação. Para isso, o Governo viola a autonomia

dos Municípios e dos Estados e a independência dos Poderes

Judiciário e Legislativo. "(Discurso, sessão ordinária de 12/5/1999)

Page 81: I111'" I11"I"I1II"II1/"" II111I1I11I OS CAMINHOS DA LEI DE

76

Da mesma forma, o TCU (Tribunal de Contas da União) se colocava

manifestadamente contrário ao projeto, afirmando, em parecer, que a proposta governista

continha inúmeras inconstitucionalidades e constituía uma intervenção gerencial e

financeira do governo federal nos demais entes federativos".

A reação do governo foi recuar e abrir o projeto para negociações, dispensando-lhe

tratamento prioritário após ter sido barrada, por decisão do STF, a cobrança dos inativos e o

aumento da alíquota dos servidores na ativa, medidas que gerariam uma receita prevista em

R$ 2,38 bilhões.

O parecer do relator, apresentado em 2/12/1999 à CESP, posicionou-se

favoravelmente à proposta do governo, recomendando, no mérito, aprovação com

substitutivo.

A versão inicial do substitutivo incorporou a proibição da emissão de títulos por

parte do BC dois anos após a entrada da LRF em vigor. Atendendo ao pleito dos

governadores para ampliar o escopo da Lei Camata e fixar tetos de gastos com pessoal para

os três Poderes - de forma a obrigar não apenas o Executivo ao ajuste fiscal -, o

substitutivo estendeu os limites, tendo como parâmetro a média de despesas com

funcionários de 1997 a 1999. Também atendendo a demandas dos governos locais,

estabeleceu ainda a redução ~do limite de comprometimento das receitas líquidas dos

estados no pagamento das dívidas renegociadas com a União de 13% para 10%, além de

incluir na rolagem das dívidas estaduais os contratos de pagamento de fornecedores

firmados até 1994. Estabeleceu ainda um "limite referencial" ao pagamento dos juros, a ser

prevista na LDO.

O governo mobilizou sua base dentro do P:MDB -o substitutivo foi primeiro

apresentado ao partido ao qual pertence o relator - para derrubar duas modificações: 'a

assunção de dívidas contratuais dos estados e a diminuição do comprometimento da receita

líquida no pagamento da dívida renegociada. Em troca, flexibilizou as penalidades ao não

cumprimento da lei, estipulando sanções apenas de ordem administrativa e retirando da lei

a previsão de reclusão dos administradores. O substitutivo conseguiu incluir a previsão de

"limite referencial" ao pagamento do serviço da dívida, que foi derrubada por veto

4 "TeU diz que lei de responsabilidade fere autonomia federativa", Gazeta Mercantil, 16/9/1999

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77

presidencial posteriormente. Ainda assim, o governo considerou que "90% do parecer do

, relator está de acordo com as intenções do projeto original do governo'".

A votação do parecer do relator e do substitutivo, no dia 14 de dezembro, foi

aprovado na Comissão Especial com ampla margem - obteve 17 votos a favor e 5 contra-,

conseguindo derrubar todos os 82 destaques de votação em separado (DVS). O destaque é

um mecanismo que permite excluir as emendas e subemendas ou partes de um texto, que

apenas volta a integrar o texto original caso seja aprovado em votação específica, o que

acaba retardando o processo de votação. Constitui, assim, um dos instrumentos mais

utilizados pelos partidos e representantes que se colocam contrários à determinada

proposição.

Aprovado o parecer e o substitutivo, o projeto passana então à deliberação em

Plenário, prevista para ocorrer durante a convocação extraordinária da Câmara, entre os

dias 5 de janeiro e 14 de fevereiro.

Para apressar o encaminhamento, o governo novamente mostrou-se hábil no uso da

engenharia institucional legislativa: mobilizou desta vez sua bancada para aprovar um

requerimento de urgência, que dispensa a observância de todos os trâmites para o

encaminhamento do projeto à deliberação, de acordo com o art. 152 do RI. O requerimento,

para ser submetido à votação em plenário, deve ser apresentado, alternativamente, por dois

terços dos membros da Mesa, um terço dos membros da Câmara ou líderes que representem

esse número ou dois terços dos membros da comissão que opinar sobre o mérito da

proposição.

Reunindo os líderes do governo, PFL, PSDB, PTB, PPB e PMDB, conseguiu, no dia

18/01/2000, aprovar a urgência com maioria absoluta dos votos, instrumento que inclui

automaticamente a matéria na Ordem do Dia para discussão e votação imediata, e dispens-a

ainda o segundo turno de votação. A urgência traz ainda outra vantagem: limita o uso da

palavra ao autor, relator e a seis deputados, além de reduzir o tempo de fala previsto em

tramitação normal pela metade e permitir, aos líderes que representem a maioria absoluta, a

encerrar as discussões após a exposição dos deputados. Por fim, restringe a possibilidade de

5 "Relator cede e muda proposta de Lei Fiscal", O Estado de São Paulo; "Planalto cede à alteração naResponsabilidade Fiscal", Gazeta Mercantil, 9/12/1999

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modificações, já que as proposições urgentes têm como regra receber apenas emendas de

comissão ou subscritas por um quinto dos deputados ou de líderes que representem esse

número (art. 120, II, § 4° do RI).

Contando com quorum elevado (486 deputados) por conta realização na mesma

época das votações da reforma do Judiciário, a idéia do governo era colocar o projeto em

votação no dia 20. Foram apresentadas ao substitutivo 124 emendas, das quais 23 foram

aprovadas integralmente e 7, parcialmente.

A votação, porém, foi adiada por objeções levantadas pelo líder do PFL, Inocêncio

de Oliveira, solicitando o adiamento da votação para o dia 25/01, sendo atendido pelo

presidente da Câmara, deputado Michel Temer. Depois de reunir-se com secretários

rnurucrpais de Fazenda e prefeitos correligionários (Luiz Paulo Conde, do Rio, Roberto

Magalhães, do Recife, Antônio Imbassahy, de Salvador e Cássio Taniguchi, de Curitiba), o

PFL decidiu requerer ao governo prazo maior -um período de transição de dois anos - para

a entrada em vigor da lei, anunciando que apresentaria DVS levantando esse ponto.

O governo contava com apoio informal do PDT. O PT, embora apresentado quase

caricaturalmente por editorial de "O Estado de São Paulo" como principal voz destoante ao

projeto", chegou a negociar com o governo apoio na votação. Não o obtendo, resolveu

apresentar substitutivo. A mais importante reivindicação do partido não era a questão dos

juros, como foi divulgada pela mídia, mas a proibição da renegociação das dívidas,

antevendo uma possível vitória de Marta Suplicy na corrida para a prefeitura de São Paulo.

Tal fato fica claro no discurso proferido por Aloizio Mercadante (PT/SP), pouco antes da

votação:

"(..) É evidente que o País precisa de uma lei de

responsabilidadefiscal - mais do que isso, precisamos dessa lei

com urgência, por estarmos em um ano eleitoral e, se não a

implementarmos agora, perderá um pouco seu sentido, sua

6 Diz o editorial: "(...) O contratempo [o adiamento da votação}, ao que parece, não ameaça a aprovação doprojeto, sobre cuja necessidade existe um consenso raras vezes registrado na política brasileira. A exceção,como sempre, é do PT, que vê em pontos do projeto o fantasma de sempre: 'O interesse do F1vfI, que quer agarantia de atendimento aos credores"'. "Lei que será marco na história", O Estado de São Paulo, 23/1/2000

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79

eficácia. A bancada do PT vem trabalhando para viabilizar a

legislação e permitir que seja implantada.

No entanto, temos divergências de fundo em relação a

quatro artigos. Desde quinta-feira aguardamos reposta do Governo

para avaliar se a bancada marchará coesa no sentido de sustentar

esse projeto, que é muito melhor do que aquele anteriormente

apresentado pelo Governo ...

Nossa divergência está nos arts. 4~ 17, 31 e 35. Quais

são as divergências fundamentais? Em primeiro lugar, é o

tratamento dos juros. Todas as despesas públicas são

rigorosamente fiscalizadas por essa lei, inclusive reforçando

mecanismos já existentes na Resolução n° 78 do Senado Federal,

que trata das dívidas, ou na Lei Camata, que trata dos gastos com

pessoal. No entanto, os juros continuam sendo o objetivo

fundamental do esforço de ajuste fiscal.

(...) Em segundo lugar - e aí vem uma questão central -,

temos o problema da rolagem das dívidas. A lei estabelece que não

será possível mais refinanciamento de dívidas entre Estados e

Municípios e a União. Vamos pegar o exemplo de São Paulo, que

hoje comemora seu aniversário: o Prefeito Celso Pitta, quando era

Secretário da Fazenda de Paulo Maluf, assumiu uma dívida do

Município de R$ 1,95 bilhão, para um orçamento que era de R$ 4,5

bilhões, ou seja, a dívida era metade do orçamento. Oito anos

depois de Maluj e Pitta, a dívida está em R$ 12 bilhões, e o

orçamento da cidade é de R$ 6,5 bilhões. A dívida é o dobro do

orçamento. Agora, ele assinou um acordo que diz que a taxa de

juros de 9% cai para 6%; há um alívio, portanto, no estoque da

dívida. Só que no ano que vem o futuro Prefeito terá de pagar no

primeiro ano 20% do principal da dívida. Estamos falando de R$ 2

bilhões em um ano. Nem que venda o Pacaembu, o Anhembi, o

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80

Ibirapuera, o Obelisco, será possível viabilizar esse serviço

irresponsável, esse contrato que foi assinado. E o que resta a São

Paulo? Se a lei for aprovada, não será possível repactuar e

refinanciar a dívida." (Discurso, sessão de 25/1/2000)

Nenhuma das reivindicações do partido foi atendida. No dia da votação, o

presidente Fernando Henrique Cardoso telefonou aos líderes orientando para que não se

fizesse concessões ao PT - ou seja, não votasse no substitutivo apresentado pelo partido -

ou aos prefeitos. Contando com ampla cobertura favorável da mídia, convocou a imprensa

para um pronunciamento de oito minutos, no qual ressaltou o fato de ter assumido mais de

R$ 100 bilhões em dívidas estaduais e municipais para sanear suas finanças, enfatizando

ainda que o esforço realizado pelo Executivo para conter gastos não era acompanhado com

o mesmo empenho pelos demais Poderes. O discurso presidencial incluiu ainda um apelo

maniqueísta:

''Aproveito a oportunidade para reiterar minha confiança

no Congresso. Tenho certeza de que aprovará a lei. E pedir que os

congressistas mostrem, pelo comparecimento maciço, que estão do

lado bom da sociedade, que é um lado que quer um país com menos

dívidas, um país que não tenha que pagar tantos juros, que não

tenha que fazer obras que, muitas vezes, são suntuárias e se iniciam

sem provisão de recursos",

Para garantir uma ampla margem de vitória, o Planalto mostrou também sua face

secular, negociando também o apoio da frente parlamentar do cooperativismo, que reúne

219 deputados e senadores, garantindo em troca que o Tesouro assumiria riscos de crédito

de R$ 800 milhões de novos empréstimos para sanear cooperativas".

7 "Eleições de torneiras fechadas", O Globo, 26/1/20008 "Lei de Responsabilidade Fiscal é aprovada", Gazeta Mercantil, 2611/2000

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81

Outro grupo importante na votação era constituído pelos 150 deputados que eram

candidatos nas eleições daquele ano, como observa Gustavo Franco ("A revolução fiscal

apenas começou", O Estado de São Paulo, 13/2/2000). Apesar de a lei representar o

engessamento dos gastos aos futuros prefeitos, ela contém dois componentes de peso no

cálculo eleitoral. Primeiro, ela alivia os custos futuros, impedindo que os atuais prefeitos -

muitos deles adversários dos deputados-candidatos- deixassem "restos a pagar"

inexeqüíveis ao apagar das luzes. Segundo, constitui um grande ganho imediato dada à

ampla cobertura do tema pela imprensa, como se falou, servindo de plataforma eleitoral.

Colocada em votação em turno único, o governo conseguiu derrubar uma manobra

do PT para retirar da pauta da Ordem do Dia. Após a exposição de seis deputados, como

prevê o RI, mobilizou os líderes para encerrar as discussões e proceder à votação.

Foram apresentados, ao todo, 140 DVSs. O destaque, como mencionei

anteriormente, é um mecanismo que permite excluir as emendas e subemendas ou partes de

uma proposição, que apenas volta a integrar o texto original caso seja aprovado em votação

específica. Em Plenário, por outro lado, o uso de destaques é limitado, seguindo,

novamente, a lógica da proporcionalidade partidária. Para votação em separado de parte de

proposição, ele deve ser requerido por um décimo dos deputados (art. 161, I do RI). Se

apresentada por bancada de partido, ela obedece a seguinte proporcionalidade: de 5 a 24

deputados, um destaque; de 25 a 49 deputados, dois destaques; de 50 a 74 deputados, três

destaques; mais de 75 deputados, quatro destaques.

De qualquer forma, a votação de destaques atrasa o encaminhamento da matéria, o

que demanda uma negociação prévia entre os líderes para retirada dos DVSs. Na votação

da LRF, todos os 129 destaques apresentados pelos líderes aliados foram retirados, restando

apenas 11 a serem votados em outra sessão.

As bancadas do PT e do PSBIPC do B orientaram expressamente seus

correligionários a votarem contra o projeto, mas foram votos vencidos: ao final, o projeto

havia obtido 385 votos a favor, 86 contra e 4 abstenções, quando precisava de 257 votos a

favor para ser aprovada. O substitutivo apresentado pelo PT, além disso, foi derrubado.

A votação dos destaques restantes refletiu o clima favorável ao governo: apenas os

dois apresentados pelo governo - um para incluir no limite de despesas com pessoal os

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gastos com serviços terceirizados e outro para retirar do texto a obrigatoriedade do

Legislativo examinar as contas do Executivo antes de entrar em recesso parlamentar-foram

aprovados.

No Senado, onde o governo contava com maioria absoluta, a tramitação prometia

ser tranqüila, como assegurava seu presidente, o senador Antônio Carlos Magalhães: ''Não

vou apoiar o pleito dos prefeitos. Sou a favor da entrada imediata da lei em vigor. É a lei da

moralização e não pode ser jogada de lado. Daqui para frente, quem fizer safadeza merece

punição'".

A matéria chegou à Casa no dia 3/2/2000. Como prevê o Regimento Interno do

Senado, foi encaminhada, por determinação de seu presidente, a apreciação do projeto pelas

Comissões de Constituição e Justiça (CCJ) e pela Comissão de Assuntos Econômicos

(CAE).

Na CCJ, a matéria foi aprovada em 2412, com uma única emenda de redação, ou

seja, que não alterava o conteúdo do projeto. Foram rejeitadas todas as demais emendas,

inclusive os pedidos de destaque para votação em separado. Na CAE, onde praticamente se

define se uma proposta será ou não aprovada - não há registros de matérias aprovadas na

CAE e posteriormente rejeitadas em plenário -, a relatoria ficou a cargo do senador

Jefferson Peres (PDT/AM), que, assumindo o cargo, acertou, em encontro com FHC, que

não apresentaria emendas alterando o conteúdo das proposições - caso em que o projeto

teria de retornar à Câmara -, de modo a apressar o trâmite.

Se durante o trâmite na Câmara os prefeitos haviam marcado sua posição, no

Senado foi a vez dos governadores. Em fevereiro de 2000, governadores de 20 Estados se

reuniram em Curitiba para a sa Conferência Nacional de Governadores. As reivindicações

eram centradas no aumento dos ressarcimentos relativos às perdas decorrentes da Lei

Kandir e na inclusão dos débitos referentes aos precatórios na renegociação das dívidas

estaduais com a União, tendo como moeda de troca o apoio ou não ao projeto de LRF que

tramitava no Senado. A idéia dos governadores era acionar suas bancadas no Senado para

barrar o andamento da tramitação e forçar uma negociação com o Executivo. Como

9 "Lei fiscal sem obstáculos", Jornal do Brasil, 31/ 1/2000

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afirmava Espiridião Amin, governador de Santa Catarina (PPB), "Boi só sai do mato se

tiver mutuca"!".

A iniciativa dos governadores, entretanto, não vingou, em especial depois de o

presidente do Senado manifestar-se igualmente contra o pleito dos governadores. Na

verdade, em meio ao agravamento da crise decorrente da queda na arrecadação do ICMS,

do acirramento da guerra fiscal e das perdas dela decorrentes e ao engessamento dos

orçamentos estaduais por conta da renegociação das dívidas, posicionar-se contra a lei era a

"última cartada" possível dos governos estaduais, que provou não ter sido acertada. A

reação da mídia, criticando a postura dos governadores de "oportunista" e elogiando o

presidente da República, fortalecendo ainda mais a posição deste, fizeram os governadores

recuar.

o editorial de "O Globo", de 11/2/2000 (''Dizer não") registra esse fato: "...os

governadores voaram para Brasília ameaçando mobilizar suas bancadas no Senado contra

o projeto.: Mas o presidente manteve no Planalto a postura de Paritins... Sua

inflexibilidade encontrou sintonia na posição do senador Antônio Carlos Magalhães, que

anunciou aos governadores a aprovação do projeto sem mudanças. Os governadores

mudaram de tom: de ameaçadores passaram a reivindicantes. É a postura certa ...". Um dia

antes, "O Estado de São Paulo" também havia publicado editorial na mesma linha,

afirmando que "...Não poderia ser maior, portanto, o contraste entre a visão imediatista

dos governadores -embora reconheçam que a futura lei é "garantia do ajuste fiscal global

em nosso país"- e o descortino manifestado pelo presidente da República ao subordinar

tudo à mais rápida entrada em vigor da legislação ...".

Colocada em votação em 11 de abril no plenário, a proposta recebeu 13 emendas de

partidos de oposição. No entanto, afirmando que "o lobby dos prefeitos [que, sob 'o

comando da Confederação Nacional dos Municípios, reivindicavam a entrada em vigor da

lei após um período de transição] está fortíssimo"!', o senador antecipou a votação,

rejeitando todas as emendas. A vitória do governo se confirmou novamente com ampla

margem: 60 votos a favor, 10 contra e 3 abstenções.

10 "Governadores vão a FHC pedir aumento de repasses", Folha de S.Paulo, 5/21200011 "LRF é aprovada, mas deputados aliviam penas", Gazeta Mercantil, 12/412000

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A tramitação da matéria contou com razoável destaque e forte apoio por parte da

midia. Ela era, ao mesmo tempo, criadora e refletora de um consenso em torno da idéia de

"responsabilidade fiscal", num processo de retroalimentação. Passo agora a avaliar a

atuação dos meios de comunicação nesse processo.

ll. A mídia e a LRF

Analisando o processo de formação da opinião pública sob um pnsma mais

filosófico, SARTORI (1994) ressalta a atuação central dos meios de comunicação. É certo,

sustenta este autor, que opiniões podem ser formadas pela atuação de formadores de

opinião - "entre 5% a 10% de um público que acompanha as questões públicas" -, ou pelo

"borbulhar" opiniões a partir das massas ou, por fim, ser geradas por elementos não-

informativos, como, por exemplo, a identificação com um grupo de interesse. SARTORI,

entretanto, não deixar de relegar papel de destaque à mídia: "o mundo é - para o público

em geral - a mensagem dos meios de comunicação".

HALL (1997) traz uma abordagem mais factual sobre o papel da mídia na mudança

do paradigma Keynesiano para o monetarista, ocorrida na Inglaterra a partir da década de

1970. Durante esse período, a imprensa britânica não apenas serviu como veículo de

transmissão de diferentes pontos de vista de economistas, mas "magnificou a importância

dada à doutrina monetarista e catapultou o pensamento monetarista na agenda pública". De

tal sorte, na visão de HALL, a imprensa constitui, ao mesmo tempo, um espelho da opinião

pública e uma espécie de lente de aumento para os issues que ela escolhe.

A mídia brasileira colocou-se, desde o primeiro momento, favorável à iniciativa do

governo de propor uma "lei de responsabilidade fiscal", dedicando razoável espaço para o

tema. Chama a atenção, entretanto, que o debate na mídia sobre a lei focava não o conteúdo

do projeto proposto pelo Executivo federal, mas a importância de uma lei que regulasse

com maior eficiência a "gastança de dinheiro público" promovida pelos governantes.

A análise da atuação dos veículos de comunicação que apresento a seguir é

resultado do acompanhamento de 6 jornais diários, dos quais três são paulistas (O Estado

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de São Paulo, Folha de S.Paulo, Gazeta Mercantil), dois do Rio de Janeiro (O Globo e

Jornal do Brasil) e um de Brasília (Correio Brasiliense), pelo período de 15/4/1999, ou seja,

os primeiros dias após a chegada do projeto de lei à Câmara, até o dia 19/5/2000, ou seja,

os dias que precederam a aprovação da Lei dos Crimes Fiscais na Câmara, lei ordinária de

caráter penal que prevê as sanções às condutas que violem os dispositivos da LRF.

No período em tela, foram publicadas 137 inserções que expressamente faziam

referência à LRF, entre reportagens acerca do trâmite, editoriais, colunas assinadas por

colunistas fixos e por convidados, lembrando que a contagem não levou em conta

reportagens ou colunas iguais'".

A maior cobertura foi dada pelos jornais "O Estado de São Paulo" e pelo "Jornal do

Brasil", que foi o primeiro a tratar em editorial o tema, após o início do trâmite na Câmara.

O diagnóstico do jornal carioca sobre a situação financeira do país, que fazia eco em

todos os demais, era que o desarranjo fiscal resultava da "ineficácia dos mecanismos de

controle dos gastos nos três níveis da Federação", o que seria corrigida com a proposta

enviada pelo governo central ao Legislativo 13.

O espaço destinado aos críticos à lei foi quase nulo. Dentre as 137 reportagens,

editoriais e colunas contabilizados, apenas quatro traziam opiniões contrárias ao projeto

proposto".

É dificil avaliar em que medida a mídia influencia os trabalhos legislativos.

Entretanto, é bastante provável que a mídia tenha, para usar os termos de Hall,

"catapultado" a idéia de ajuste do governo na agenda pública, "magnificado" a importância

da LRF e, de certa forma, alterado as preferências de atores importantes.

Um exemplo disso é a mudança na atuação do relator do projeto de LRF na Câmara,

deputado Pedro Novais A postura crítica do relator com relação a alguns pontos do projeto

12 Jornais como o Correio Brasiliense compram, da Agência Folha ou da Agência Estado, matérias prontas,que são publicadas, em geral, sem alteração alguma. Alguns colunistas - fixos ou não - também publicam amesma coluna em mais de um jornal, e foram contabilizadas apenas uma vez.13 "Austeridade", Jornal do Brasil, 15/4/1999, editorial14 São eles: "TCU diz que lei de responsabilidade fiscal fere autonomia federativa", Gazeta Mercantil,16/9/1999; "Lei fiscal é criticada por diretor do BC", Jornal do Brasil, 11111/1999; "Irresponsabilidade",assinada pelo deputado Sérgio Miranda, O Globo, 30/1/2000; "Responsabilidade fiscal e social", assinadapelo governador do Paraná, Jaime Lerner, O Globo, 4/2/2000.

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era acusada pelos jornais e apontada como causa do impasse na votação da LRFl5. As

alterações por ele propostas eram também criticadas. Em "O Globo" de 3/12/1999

(''Relator exclui previdência e inativos da lei Camata"), por exemplo, o jornal coloca que o

relator "mudou quatro pontos da lei por conta própria", desfigurando a lei. Dias depois, o

relator volta atrás, o que é registrado pelo Estadão como trunfo das lideranças governistas,

que conseguiram evitar que o deputado Pedro Novais modificasse o texto original".

Pouco do conteúdo da lei era debatido pela imprensa. Todos os 26 editoriais do

periodo mencionado procuraram vender a idéia de que a LRF era uma garantia de vida

financeira saudável'? e de que a credibilidade do pais estaria em jogo sem a aprovação da

lei'". O "Correio Brasiliense" resume dessa forma:

"Que sinal estaríamos enviando ao mundo - nós mesmos incluídos - ao rejeitarmos

uma proposta que pretende instituir no país a responsabilidade no trato com dinheiro

público? A de que aprovamos a irresponsabilidade, não menos que isso" 19.

Mesmo a ''Folha de S.Paulo", que procurava manter uma postura mais critica com

relação ao governo FHC, seguiu a mesma linha dos demais jornais, como mostra o editorial

de 13/412000:

"Parlamentares de oposição levantaram críticas à lei. Algumas delas de fato

parecem fazer sentido. Mas a fato de a legislação não ser perfeita não significa que não

deva ser adotada e, com o tempo, melhorada. O Brasil já não suporta mais ser corroído

pela gastança irresponsável epela corrupção desenfreada'i".

Por outro lado, se é verdade que a mídia exerceu papel decisivo nesse processo, não

se pode deixar de afirmar que existiu, no âmbito do Legislativo, razoável grau de consenso

em torno da idéia de ajuste promovida pelo Executivo. É o que passo a analisar a seguir.

15 "Impasse paralisa lei fiscal", Jornal do Brasil, 2/1111999; "Divergências devem atrasar votação da Lei deResponsabilidade Fiscal", O Estado de São Paulo, 131111999.16 "Responsabilidade Fiscal", O Estado de São Paulo, 6/12/199917 "Responsabilidade Fiscal, uma grande reforma, O Estado de São Paulo, 7/6/199918 "Medo da responsabilidade", Folha de S.Paulo, 8/8/199919 "Reformas abortadas", Nelson Torreão, Correio Brasiliense, 5/6/199920 "Freio à gastança", Folha de S.Paulo, 13/4/2000

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ill. A construção do consenso no Legislativo

o processo de ajuste fiscal durante o pós-1994 foi integralmente de iniciativa do

Executivo, sendo também capitaneado por este. Vasta literatura procura mostrar a

supremacia do Executivo brasileiro frente ao Legislativo no que tange ao poder de

definição da agenda pública, embora tal poder não seja exclusividade do Executivo

brasileiro, como mostra TSEBELIS (1997)21

Prima facie, tal fato leva à conclusão de que o Legislativo atuou de forma passiva,

procurando não bloquear as iniciativas governamentais, deixando de lado sua prerrogativa

de veto player, constitucionalmente garantida.

Os fatos, entretanto, revelam o contrário. A agenda de mudanças foi sem dúvida

proposta pelo governo, mas não foi imposta a um Legislativo inoperante e passivo.

Desde o início dos anos 1990, como se procurou mostrar nos capítulos anteriories, o

Congresso vem apresentando uma significativa produção legal nesse sentido. Emendas

constitucionais visando restringir a capacidade de endividamento dos Estados ou ampliando

a margem de manobra financeira da União em detrimento a dos entes subnacionais foram

aprovadas, sendo um exemplo a EC n° 3, que (re)instituiu o IP!v1F(Imposto Provisório

sobre Movimentações Financeiras), tributo não repartido entre os entes subnacionais, e

limitou a emissão de títulos da dívida pública de Estados e Municípios='. Outro exemplo

são as resoluções do Senado (78, de 1998 e 40 e 41, de 2001), também procurando impor

limites ao endividamento dos governos estaduais. A aprovação das leis Camata 1 e 2,

ambas prevendo limites aos gastos com pessoal do Executivo, também apontam para uma

convergência de opiniões a respeito de como sanar os problemas financeiros do país.

21 TSEBELIS (1997) registra que "em mais de 50% de todos os países, os governos encaminham mais de 90%dos projetos de lei. Além disso, a probabilidade de que esses projetos sejam aprovados é muito alta: mais de60% passam com uma probabilidade superior a 0,9 e mais de 85% são aprovados com uma probabilidademaior do que 0,8" (idem: 34)22 A instituição do IPMF está prevista no art. 2° da EC n" 3/1993: "A União poderá instituir, nos termos de leicomplementar, com vigência até 31 de dezembro de 1994, imposto sobre movimentação ou transmissão devalores e de créditos e direito de natureza financeira". O limite ao endividamento está previsto no art. 5°: "Até31 de dezembro de 1999, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios somente poderão emitir títulos dadívida pública no montante necessários ao refinanciamento do principal devidamente atualizado de suasobrigações, representadas por essa espécíe de títulos, ressalvado o disposto no art. 33, parágrafo ÚIÚCO, do Atodas Disposições Constitucionais Transitórias [que exclui do limite o pagamento dos precatórios)".

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88

LOUREIRO e ABRUCIO (2002) apontam como um dos motivos de sucesso do

ciclo de mudanças institucionais nas finanças públicas durante a Era FHC, concluída com a

aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal, a formação de "uma cultura política de

responsabilidade fiscal" nos atores políticos e na opinião pública, decorrente não apenas ao

sucesso do Plano Real, mas da maior intolerância aos desvios da Administração Pública,

que haviam ganhado maior visibilidade com as CPIs do Orçamento e dos Precatórios.

Agrega-se a isso as pressões externas advindas das sucessivas crises internacionais, que

demandavam a tomada de medidas urgentes de ajuste.

Investigando a atuação do Congresso na política de privatização - que se inserem no

bojo das reformas econômicas do período FHC -, ALMEIDA e MOYA (1997) mostram

que a posição que o Legislativo adotou perante o tema teve influência marcante no desenho

da fisionomia que tal política veio a assumir. Durante o período de 1990 a 1996, o

Congresso foi responsável pela criação de 21 textos legais relacionados ao processo de

privatização. Por trás dessa produção, argumentam os autores, existiu uma distribuição de

preferências revelando uma atitude mais pragmática que ideológica a favor da política de

privatização. A privatização era "apresentada em termos pragmáticos em função da

incapacidade concreta e presente do Estado em continuar assegurando condições de

investimento e eficiência a suas empresas ...".

De forma semelhante, a temática do ajuste e da aprovação de textos legais a ela

referentes parece ter adquirido, ao longo da era FHC, um caráter mais pragmático e menos

ideológico-partidário, o que pode ter facilitado a convergência de partidos de diferentes

c1ivagens em tomo da idéia.

Uma análise dos discursos de parlamentares na Câmara, entre fevereiro de 1999 a

maio de 2000, totalizando 70 discursos, mostra claramente essa convergência e distribuição

de preferências a favor do projeto de LRF proposto pelo Executivo. Desse total, 49 foram

discursos de apoio ao projeto, , muitas vezes citando editoriais de jornais que faziam

referência à lei, de elogio pela aprovação e pela sua imediata implementação. Onze

discursos manifestaram-se contrários à lei, sendo a maiona deles dos dois

partidos/coligações que votaram contra o projeto do governo. Outros dez traziam sugestões

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de aperfeiçoamento da lei, anúncios de emendas ou levantavam questões de ordem na

votação.

A percepção geral sobre a lei pela maioria dos parlamentares pode ser resumida na

fala do deputado Lael Vareia (Sessão Ordinária, 4/5/1999):

"(...) Se já estivesse em vigor a Lei de Responsabilidade

Fiscal, o panorama das contas públicas não teria sido o

responsável por alguns dos principais problemas que ora vimos

enfrentando. O conflito entre os Governos Federal e Estaduais não

teria curso, pelo simples e bom motivo de que a União estaria

proibida de refinanciar a dívida de outras Unidades da Federação.

Boa parte do problema nem existiria, pois a União teria sido

proibida de conceder empréstimos para que Estados e Municípios

pagassem folha de pessoal.

No caso dos Estados e Municípios, não teriam eles

escapado do controle das despesas com folha de pagamento de

pessoal, inclusive nas Assembléias Legislativas, Câmaras de

Vereadores e Judiciários Estaduais. A Lei de Responsabilidade

Fiscal fixa limites de gastos em todos os níveis e em todas as

esferas de governo. Aliás, a limitação dos gastos com o Legislativo

e o Judiciário é uma reivindicação da sociedade.

No final das contas, a regra é bastante simples: não se pode

gastar mais do que se arrecada; não se pode tomar empréstimo que

não possa ser pago. E quem romper essa regra será punido ..."

As criticas ficaram restritas aos partidos que manifestamente se colocaram contra o

projeto proposto pelo governo. Entretanto, vale lembrar que, concluídas as votações, o PT,

a maior bancada opositora, posicionou-se contra o pleito dos prefeitos de adiar a entrada em

vigor da lei, como mostra o discurso de Walter Pinheiro (PTIBA):

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90

"...0 Partido dos Trabalhadores não pode, de forma alguma,

desapontar a expectativa da sociedade - ou melhor, ir na

contramão do voto de confiança que lhe foi dado pela população--,

posicionando-se a favor de mudanças na Lei de Responsabilidade

Fiscal.

Ontem, denunciei o caso do Prefeito de Mairi, que, ao

perder as eleições, adotou a postura de não pagar os salários dos

servidores e pouco se preocupa com o que acontecerá até o dia 31

de dezembro.

Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados, imaginem se a Lei de

Responsabilidade Fiscal for relaxada. Provavelmente, vários

prefeitos que perderam a eleição poderão adotar essa postura de

agora. Não há qualquer tipo de cobertura que obrigue uma conduta

séria. Portanto, não podemos marchar com esse pleito." (Sessão

Ordinária, 8/11/2000)

Tal grau de coesão no interior do Legislativo, para fazer um contraponto, não se

verificou em questões não diretamente relacionadas à temática do ajuste fiscal. Um

exemplo é o debate em tomo da fixação do salário mínimo, no início de 2000, que dividiu a

base aliada e uniu diferentes partidos contra o governo. Matéria de grande visibilidade

política, uma Comissão Especial foi formada na Câmara propondo salário de R$ 177, acima

do R$ 155 proposto pelo Executivo federal. Até então, a praxe legislativa havia sido

aprovar o valor proposto em Medida Provisória.

Mesmo afirmando que "Quem estiver votando contra está contra mim e fora do

governo" e liberando recursos para emendas parlamentares, FHC não conseguiu evitar

dissidências. Na Câmara, dos 375 deputados governistas, 61 votaram contra e 22 se

ausentaram. No Senado, 5 senadores governistas se colocaram contra o pleito presidencial.

Ainda assim, a MP obteve votação expressiva: 306 votos a favor e 184 contra. No

Senado, foram 48 votos a favor e 20 contra. O contra-ataque do governo aos dissidentes se

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concretizou dias depois, com o anúncio de demissões no segundo escalão e advertências

para os partidários dissidentes do PSDB.

O episódio ilustra dois aspectos. Em primeiro lugar, mostra que a base aliada, atenta

à proximidade das eleições municipais em outubro de 2000, já dava claros sinais de

desgaste, ou seja, indicava que cooperar na arena decisória e competir na arena eleitoral

passara a ser insustentável. Segundo, que, em issues de grande visibilidade eleitoral, não há

"adesão" imediata dos parlamentares às propostas governistas, ainda que, como neste caso,

a proposição dos legisladores implique, indiretamente, em descontrole fiscal.

Por outro lado, reforça o argumento de que proposições diretamente relacionadas ao

ajuste fiscal, como no caso da LRF, adquiriram status supra-partidário. De tal sorte,

sofreram menos influência das rupturas políticas que ocorriam em 2000, facilitando a

formação de consenso. Ressalto, assim, novamente o papel das idéias.

IV. Conclusão

As variáveis institucionais contaram em grande medida no processo de apreciação

legislativa da LRF, como se procurou mostrar aqui. O uso hábil da engenharia institucional,

particularmente do pedido de formação de Comissão Especial e do pedido de urgência, foi

decisivo tanto na rapidez da tramitação, quanto na determinação de seu conteúdo no

Congresso. Contaram bastante, além disso, a capacidade negociativa do Executivo tanto

para evitar modificações significativas no conteúdo proposto pelo governo quanto para

neutralizar a ação de potenciais vetos, em especial a dos prefeitos e governadores.

Entretanto, não teria o governo obtido o resultado verificado sem a pressão da-

opinião e das mudanças de preferências dos atores congressuais, num processo em que a

rrúdia teve papel de destaque. Como se procurou ressaltar aqui, a mídia conferiu ao tema

grande visibilidade, tratando a LRF como uma espécie de "tábua de salvação" em meio aos

desvios da Administração Pública, que ganhavam destaque com a CPI do Orçamento, dos

Precatórios e outros "escândalos" locais.

A idéia de responsabilidade fiscal proposta pela lei foi "catapultada", para usar os

termos de Hall, tanto junto à população quanto aos parlamentares. O posicionamento

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favorável dos meIOS de comunicação ao projeto proposto pelo governo e as criticas

dirigidas a seus opositores fazia eco nas preferências dos parlamentares, principalmente em

meio ao agravamento da crise financeira. A expressiva votação obtida pela lei nas duas

Casas legislativas demonstrou claramente essa preferência pela convergência em tomo da

idéia de ajuste fiscal, que não se verificou em outras matérias, sendo a tramitação do salário

mínimo no início de 2000 um contraponto significativo.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Fazendo. uma análise do. processo de ajuste fiscal no. Brasil pós-Real, procuramos

mostrar neste trabalho. que o. ciclo. de mudanças área fiscal, iniciado. na era FHC, resultou,

antes de tudo, de uma. série de profundas transformações no. plano. federativo. a partir de

1993/1994, as quais forarn fortemente calcadas pelo. sucesso. do. plano. de estabilização.

proposto pelo. Executivo. federal. Ancorado na legitimidade conferida pelo. Real, o. governo

central passou a empenhar-se na reconquista de seus poderes distributivos, num esforço. de

centralização. das prerrogativas fiscais.

Tal empreitada resultou em um reordenamento das relações federativas. De um

federalismo. de cunho. estadualista e centrífugo. marcado. pela ingovernabilidade, viu-se a

emergência de um novo modelo no. qual a União. voltava a ser figura central e de maior

peso. na balança federativa, permitindo. levar adiante uma agenda fiscal de caráter bastante

restritivo.

Essa agenda e a "virada?' federativa, por outro lado, não. se deram de forma abrupta

e autoritária. Pelo. contrário. Demandaram uma aplicação. gradual de medidas negociadas

com os diferentes atores da Federação. e o. aproveitamento do. aprendizado. decorrente dos

cinco planosde estabilização. anteriores ao.Real.

Nesse quadro, no. qual surgiram ainda novas concepções a respeito. das causas

inflacionárias, é que se tornou consenso a necessidade de equacionar os problemas fiscais

tendo. corno foco o. controle das despesas chamadas "rígidas" - particularmente os gastos

relativos a pessoal ativo. e inativo- e o. restabelecimento. de relações fiscais mais "sadias"

entre a União. e os demais entes federativos.

Verificou-se, assim, no. período estudado, a criação. de uma vasta produção legal no.

sentido. de restringir o. endividamento. e o. avanço. das despesas rígidas, além da ênfase no.

enforcement dos dispositivos legais. Dentre as medidas mais importantes, destacam-se a

Lei da Dívida, que permitiu a renegociação das dívidas dos entes subnacionais,

equacionando uma das principais anomalias fiscais no. plano. federativo, a Lei Camata 1 e 2,

um primeiro esforço. de controle das despesas corn o. funcionalismo e a Lei de

93

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94

Responsabilidade Fiscal, que, incorporando o aprendizado adquirido ao longo dos sete anos

de ajuste, constitui uma das principais medidas de caráter estrutural desse ciclo de

ajustamento das contas públicas. Nesse sentido, constitui também um grande avanço

institucional.

Tais medidas foram implementadas sob o comando do Poder Executivo central.

Muitas foram adotadas por meio da edição e da reedição de Medidas Provisórias -o Plano

Real, por exemplo, foi regido por MPs por dois anos. Falou-se em "delegação de poderes"

do Legislativo em prol do Executivo na consecução da agenda econômica do governo FHC.

Passou-se a atentar para os mecanismos no interior do Legislativo que permitiam tanto essa

delegação de poderes quanto a o fortalecimento dos poderes do Executivo em detrimento

do enfraquecimento institucional do Legislativo.

Entretanto, muito da agenda fiscal da Era FHC passou pela apreciação do

Legislativo e refletiu não apenas o resultado de uma delegação, mas também uma tomada

de posição a favor do projeto de ajuste fiscaI proposta pelo Executivo. A votação

expressiva obtida na tramitação da LRF nas duas Casas do Legislativo, sobre uma pauta

que atendeu aos propósitos do governo, constitui um argumento irrefutável disso

As variáveis institucionais, por outro lado, tiveram peso decisivo nesse processo de

mudança. Dadas as limitações, oferecidas pela conjugação de presidencialismo, federalismo

e multipartidarismo, que pode levar a uma situação de ingovernabilidade, tal qual se

verificou nos primeiros oito anos de redemocratização, o Executivo precisa armar-se de

grande capacidade negociativa para levar adiante sua agenda. Necessita ainda fazê-lo não

de forma impositiva e buscando soluções totaIizadoras, mas, procurando sedimentá-las de

forma incrementaI. Esse foi, como procurei mostrar aqui, o padrão de implementação das

medidas de ajuste, que provou ser bem sucedido.

Grandes avanços se sucederam de tal modo. Fechadas as diversas "torneirinhas" de

crédito fácil de todos os entes da Federação, quais sejam, a inflação, a emissão

desmesurada de títulos, de precatórios e o endividamento com posterior repasse de custos,

passou-se a exigir, antes de tudo, maior responsabilidade no gasto dos escassos recursos e

maior comprometimento dos Estados e Municípios para obter empréstimos. A questão da

transparência do processo orçamentário, enfatizada na LRF, constituiu sem dúvida um

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grande progresso se lembrarmos que, não faz muito tempo, uma inflação que chegava a

quatro dígitos mascarava déficits e incentivava um comportamento fiscal irresponsável por

parte dos administradores públicos.

A LRF trouxe ainda "externalidades" bastante positivas: ao exigir contrapartidas de

receitas ou corte de gastos para cada beneficio fiscal concedido, tirou dos Estados o

principal instrumento que alimentava a guerra fiscal. Como se sabe, durante praticamente

toda a década de 90, assistiu-se uma briga crescente entre os governos estaduais em torno

da concessão de beneficios fiscais para atrair indústrias, numa guerra de "todos contra todos

e a União a favor de alguns", que não apenas contrapôs Estados industrializados entre si,

mas também contra Estados menos desenvolvidos, a custos altíssimos.

Estendeu ainda o esforço pela busca do equilíbrio fiscal aos três Poderes. A Lei

Camata, como assinalamos, previa metas de gasto com o funcionalismo. Sem amparo legal

para promover cortes de gastos que afetassem outros Poderes, entretanto, no mais das vezes

o esforço de gasto concentrou-se no Executivo, um quadro que foi alterado com a LRF.

No entanto, há enormes desafios pela frente. A questão da Previdência ainda é um

issue premente face ao rápido envelhecimento populacional, à mudança na composição da

população contribuinte por conta do aumento da informalidade e do desemprego e das

distorções de muito dos dispositivos legais relativos a essa matéria.

Uma outra questão diz respeito à capacidade de adimplemento das obrigações

assumidas pelos Estados e Municípios nos acordos da dívida pactuados no âmbito da Lei da

Dívida. A renegociação logrou de um lado equacionar uma dos aspectos mais gritantes do

jogo predatório que marcava a relação entre Estados e a União do período pré-Real.

Entretanto, pairam dúvidas sobre a real capacidade dos entes subnacionais de levar adiante

o ajuste fiscal nos moldes acordados. Trata-se, para além de uma questão política (sem.

dúvida, muitas vezes o é) ou de enforcement, uma questão matemática: as receitas

tributárias vêm apresentando queda em razão da crise econômica, a capacidade de

endividamento, bastante restringida nos últimos anos, já está esgotada e os recursos de

privatização já foram, em sua grande maioria, utilizados.

Há de se lembrar também que a despeito de a receita tributária ter crescido de forma

constante -o percentual da carga tributária em relação ao PIB atingiu recorde histórico em

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2001-, não há dúvida de que o contribuinte não tem obtido uma contrapartida do governo à

altura. O episódio do "apagão" revela uma face do que se poderia chamar de "miopia

fiscal" que orientou as políticas nos últimos anos. A deterioração dos serviços públicos, em

especial no que se refere à segurança pública, aliada à situação de caos fiscal dos Estados e

Municípios, aos quais cabe o fornecimento de serviços mais próximos ao cidadão também

levantam questionamentos sobre os custos do esforço fiscal.

Emerge também a questão da accountability. É certo que a LRF incorporou uma

série de dispositivos que enfocam o aspecto da transparência dos orçamentos e a criação de

mecanismos de responsabilização dos governantes. Entretanto, por trás do movimento de

ajuste fiscal, ficou clara a centralização das decisões fiscais em tomo de órgãos insulados,

em especial a STN, o que, paradoxalmente, contradiz-se à proposta de accontability.

Daí se reforça a importância da continuidade desse processo incremental que

marcou o ciclo de ajuste no periodo pós-Real. Várias camadas de medidas fiscais foram

sedimentadas ao longo desse processo. Mas o desafio é ainda grande.

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