54
OCTAVIO IANNI ESCRAVIDÃO E RACISMO EDITORA HUCITEC São Paulo, 1978

IANNI-escravidao-e-racismo-hucitec-1978-pp-1-80-127-142-ianni-o

Embed Size (px)

DESCRIPTION

IANNI-escravidao-e-racismo-hucitec-1978-pp-1-80-127-142-ianni-o

Citation preview

  • OCTAVIO IANNI

    ESCRAVIDOE RACISMO

    EDITORA HUCITEC

    So Paulo, 1978

  • Direitos autorais 1978 de Octavio lanni. Direitos de publicao da Editora deHumanismo, Cincia e Tecnologia Hucitec Ltda., Alameda Ja, 404, 01420 SoPaulo, SP. Telefone (01 1) 287-1825. Capa de Lus Daz.

    D/HL Compras M~r$ (ao -00

    Prefcio

    SUMRIO

    Primeira Parte

    ESCRAVIDO E CAPITALISMOAcumulao primitiva e trabalho escravo 3

    / Aspectos da formao social escravista 12Expanso capitalista e crise da escravatura 19

    V O senhor e o escravo '. 25O senhor, o burgus e o escravo 29Transparncia e fetichismo da mercadoria : 37Liberdade e mais-valia -. 42

    RAA E CLASSERa,a e cultura 51Casta e classe ,' ' 57Reproduo social das raas 64Conscincia de alienao . , *9Conscincia poltica 75 '

    Segunda Parte

    ESCRAVIDO E HISTRIAO presente e a idealizao do passado 82Eficcia e humanidade da escravatura 87Tempo sem durao 91O declnio da perspectiva histrica . , 94A formao social escravista 96 /

    ESCRAVIDO E RACISMOTipologias e ideologias raciais 101Razes histricas dos antagonismos raciais 111A historicidade do presente 118

  • RAA E POLTICASignificado poltico dos problemas raciais 127

    i Antagonismos e conflitos raciais 128J Condio racial e desigualdade econmica 132

    A poltica das relaes raciais 135 Problemas raciais e contradies estruturais 140

    PREFCIO

  • Toda anlise sobre as relaes entre escravatura e capitalismo, nasAmricas e Antilhas, tende a girar em torno de algumas questesbsicas. Independentemente das contribuies histricas e tericasdas monografias e ensaios, em geral os escritos sobre escravido ecapitalismo focali^arn QUstcs~tais cojaek^s seguintes: .Como e porqueocapitalismo criaTQdesenvojyft^destror^ escravatura? QuandoT~crno as contr^uli>4tcrtasW-*teffias, em cada uma das

    , formaes sociais escravistas, passam a desenvolver-se ei manifestar-se de forma irreversvel, ou revolucionrias, provocan-l do a extino do regime de trabalho escravo? Em que medida as

    peculiaridades da formao social escravista e do processo abolicio-nista, em cada pas, influenciam, ou determinam, as peculiaridadesdas formas de integrao e antagonismo raciais aps a extino doregime de trabalho escravo? Como se cruzam, ou no, raa e classe,nos quadros das relaes capitalistas de produo? Qual a relaoentre capitalismo e racismo?

    Essas questes so retomadas neste livro. No pretendo terrealizado uma discusso completa dessas questes. Fao apenasuma ejtlocjUx-brevg- da~-pjxihlemiit^ joamprej^dlda.. poxjdas.Mas penso que essa explorao permite propor, ou recolocar, temasde interesse para discusso e pesquisa.

    Os trabalhos que compem este livro so autnomos, no sentidode que" cada um pode ser lido de per si. Entretanto, todos estoreciprocamente referidos, quanto aos problemas que abordam. Emconjunto, focalizam as questes mencionadas acima, sempre sob amesma perspectiva terica. Foram escritos em 1974-76.

    Quero agradecer a Helosa Rodrigues Fernandes e CarlosGuilherme Mota, que tiveram a gentileza de ler e fazer sugestessobre a primeira verso dos trabalhos reunidos neste livro.

    So Paulo, agosto de 1977CEBRAP-PUC Octavio lanni

  • JPRIMEIRA PARTE

  • ESCRAVIDO E CAPITALISMO

    Acumulao primitiva e trabalho escravo

    tn

    1 Em primeira aproximao, parece um paradoxo o fato de que namesma poca em que na Europa implantava-se o trabalho livre, noNovo Mundo criavam-se distintas formas de trabalho compulsrio.Ao longo dos sculos XVI a XVIII , na Europa, primeiro expandiu-se a manufatura e depois surgiu a grande indstria, ao mesmotempo que se generalizou o trabalho livre. Nessa mesma poca, nas

    i colnias do Novo Mundo, criaram-se e expandiram-se as planta-fl tions, os engenhos e as encomiendas. O trabalho escravo era a base da produo e da organizao social nas plantations e nos> : engenhos; ao passo que nas encomiendas e outras unidadesj produtivas predominavam distintas formas de trabalho compuls-

    1 rio. Tratava-se de dois processos contemporneos, desenvolvendo-se no mbito do processo mais amplo e principal de reproduo do

    i; capital comercial. O motor desse processo mais amplo era o capital'.; comercial, que subordinava a produo de mercadorias na Europa

    [g' 1[ e nas colnias do Novo Mundo e em outros continentes. Em''l decorrncia da maneira pela qual expandia-se o capital comercial,]' criavam-se as condies struturais no seio das quais iriaj, desenvolver-se o capitalismo.J medida que se expandia o capitalf comercial, amplamente dinamizado com os resultados dos grandesIj descobrimentos martimos, isto , devido colonizao de novas

    terras e formao de plantations, engenhos, fazendas, encomien-das, repartimientos e haciendas, corria na Europa, e principalmentena Inglaterra, a acumulao primitiva. Nesse pas, de forma maisacentuada e ampla que em outros, verificava-se intensa acumula-o de capital comercial, ao mesmo tempo que ocorria o divrcioentre o trabalhador e a propriedade dos meios de produo,surgindo assim o trabalhador livre. Em sntese, foi o capitalcomercial que gerou as formaes sociais construdas nas colniasdo Novo Mundo, provocando dessa maneira uma intensa acumula-

    i co de capital nos pases metropolitanos, em particular na Inglater-j r. Devido sua preeminncia crescente no sistema mercantilista

  • mundial, a Inglaterra pde impor Espanha, Portugal e outrospases condies de comrcio que aceleraram a acumulao decapital em seu territrio. Acresce que sob o mercantilismo os lucroseram bastante elevados.

    As naes se jactavam cinicamente com cada ignominia que lhe servisse paraacumular capital. Vejamos, por exemplo, os ingnuos anais do comrcio, do probo A.Anderson. A trombeteia-se como triunfo da sabedoria poltica ter a Inglaterra, napaz de Utrecht, extorquido dos espanhis, com o tratado de Asiento, o privilgio deexplorar o trafico negreiro entre frica e Amrica Espanhola, o qual ela realizara atento apenas entre frica e ndias Ocidentais Inglesas. A Inglaterra conseguiu aconcesso| dejfornecer anualmente Amrica Espanhola, at o ano de 1743, 4.800negros. Isto servia, ao mesmo tempo, para encobrir sob o manto oficial ocontrabando britnico. Na base do trfico negreiro, Liverpool teve um grandecrescimento. O trfico constitua seu mtodo de acumulao primitiva ... Liverpoolempregava 15 navios no trfico negreiro, em 1730; 53, em 1751; 74, em 1760; 96, em1770, e 132, em 1792.

    A indstria algodoeira txtil, ao introduzir a escravido infantil na Inglaterraimpulsionava ao mesmo tempo a transformao da escravatura negra dos EstadosUnidos que, antes, era mais ou menos patriarcal, num sistema de exploraomercantil. De fato, a escravido dissimulada dos assalariados na Europa precisavafundamentar-se na escravatura, sem disfarces, no Novo Mundo (1).

    Estes so os elementos do paradoxo: o mesmo processo deacumulao primitiva, que na Inglaterra estava criando algumascondies histrico-estruturais bsicas para a formao do capitalis-mo industrial, produziac-no Novo Mundo a escravatura, aberta oudisfarada. Ocorre que a acumulao primitiva foi um processo, dembito estrutural e internacional, gerado por dentro do mercantilis-mo. Penso que conveniente especificar um pouco melhor oconceito. Convm lembrar que a categoria acumulao primitivaenvolve um conjunto de transformaes revolucionrias, a partir dasquais se torna possvel o desenvolvimento capitalista. A acumulaoprimitiva poderia ser considerada o processo social, isto , poltico-econmico, mais caracterstico da transio do feudalismo aocapitalismo. Como processo de mbito estrutural, a acumulaoprimitiva envolveu principalmente a fora de trabalho e o capital,nos seguintes termos. Quanto fora de trabalho, o que ocorreu foium divrcio generalizado e radical entre o trabalhador e a proprie-dade dos meios de produo. Historicamente, esse fenmeno ocorreutanto na agricultura como nos grmios e corporaes de ofcios. Elese deu em concomitncia com a criao de valores culturais e

    (1) Karl Marx. O Capital, 3 fivros, trad. de Reginaldo Sant'''Anna, EditoraCivilizao Brasileira, Rio de Janeiro, 1968 a 1974; citao do Livro l, vol. 2, p.877-878.

    padres de comportamento que compreendiam os princpios dacidadania, principalmente a faculdade de oferecer-se livremente nomercado, sem as limitaes ou amarras das instituies gremiais,patriarcais, comunitrias ou outras. Quanto ao capital, o processo deacumulao primitiva envolveu intensa acumulao e concentraodo. capital, inclusive dos meios de produo. Apoiado na ampliao eintensificao do comrcio internacional, nos quadros do mercanti-lismo, o capital comercial reproduziu-se em elevada escala.

    As descobertas de ouro e de prata na Amrica, o extermnio, a escravizao daspopulaes indgenas, foradas a trabalhar no interior das minas, o incio daconquista e pilhagem das ndias Orientais e a transformao da frica num vastocampo de caada lucrativa so os acontecimentos que marcam os albores da era daproduo capitalista. Esses processos idlicos so fatores fundamentais da'acumulaoprimitiva (2).

    Os diferentes meios propulsores da acumulao primitiva se repartem numaordem mais ou" menos cronolgica por diferentes pases, principalmente Espanha,Portugal, Holanda, Frana e Inglaterra. Na Inglaterra, nos fins do sculo XVII, socoordenados atravs de vrios sistemas: o colonial, o das dvidas pblicas, o modernoregime tributrio e o protecionismo. Esses mtodos se baseiam em parte na violnciamais brutal, como o caso do sistema colonial(3).

    O tratamento que se dava aos nativos era naturalmente mais terrvel nasplantaes destinadas apenas ao comrcio de exportao, como as das ndiasOcidentais, e nos pases ricos e densamente povoados, entregues matana e pilhagem, como Mxico e ndias Orientais (4).

    O sistema colonial fez prosperar o comrcio e a navegao. As sociedadesdotadas de monoplio, de que j falava Lutero. eram poderosas alavancas deconcentrao do capital. As colnias asseguravam mercado s manutaturas emexpanso e. graas ao monoplio.umai acumulao acelerada. As riquezas apresadasfora da Europa, pela pilhagem, escravizao e massacre refluam para a metrpoleonde se transformavam em capital(S).

    (2) Karl Marx, Op. dl., Livro l, vol 2, p. 868.(3) Ibidem, p. 868-869.(4) Ibidem, p. 871. Quanto violncia inerente ao escravismo vigente no Brasil:

    "Terrvel, e lastimosa sorte a de um cativo! Se come, sempre a pior e mais viliguaria; se veste, o pano mais grosseiro e o trajo o mais desprezvel; se dorme, oleito muitas vezes a terra fria e de ordinrio uma tbua dura. O trabalho contnuo,a lida sem sossego, o descanso inquieto e assustado, o alvio pouco e quase nenhum;quando se descuida, teme; quando falta, receia; quando no pode, violenta-se, e tirada fraqueza foias". Cf. Jorge Benci, Economia crist dos senhores no governo dosescravos (livro brasileiro de 1970), Editorial Grijalbo, So Paulo, 1977, p. 221.

    (5) Karl Marx, Op. cit.. Livro l, vol. 2, p. 871.

  • Foi o capital comercial que comandou a consolidao e ageneralizao do trabalho compulsrio no Novo Mundo. Todaformao social escravista dessa rea estava vinculada, de maneiradeterminante, ao comrcio de prata, ouro, fumo, acar, algodo eoutros produtos coloniais. Esses fenmenos, protegidos pela ao doEstado e combinados com os progressos da diviso do trabalhosocial e da tecnologia, constituram, em conjunto, as condies datransio para o modo capitalista de produo. Assim, paracompreender em que medida o mercantilismo "prepara" o capitalis-mo, necessrio que a anlise se detenha nos desenvolvimentos dasforas produtivas e das relaes de produo. Mas para compreen-der esses desenvolvimentos preciso situ-los no mbito dastransformaes estruturais englobadas na categoria acumulaoprimitiva. Nesse sentido que a acumulao primitiva expressa ascondies histricas da transio para o capitalismo. Foi esse ocontexto histrico no qual se criou o trabalhador livre, na Europa, eo trabalhador escravo, no Novo Mundo. Sob esse aspecto, pois, oescravo, negro ou mulato, ndio ou mestio, esteve na origem dooperrio.

    claro que esse enfoque no pretende desprezar, ou esquecer, ascondies particulares em que se constituram e desenvolveram asdistintas formaes sociais no Novo Mundo. Essas condies particu-lares foram responsveis pela fisionomia singular assumida pelaplantation do Sul dos Estados Unidos, a encomienda do Mxico, oengenho de acar do Nordeste do Brasil e outras formas deorganizao social e tcnica das relaes de.produo baseadas notrabalho compulsrio(6). Em cada caso (prata, ouro, fumo, acar,algodo etc.) entravam em jogo exigncias especficas de capital,tecnologia, terra, mo-de-obra, diviso do trabalho social, forma deorganizao e mando etc. Entravam em linha de conta a concentra-o maior ou menor das terras frteis, os depsitos minerais, o vultoe a organizao dos empreendimentos, a preexistncia ou no demo-de-obra local, o custo da compra e manuteno escravo trazidoda frica etc. Na base do arcabouo de cada formao social, noentanto, havia dois elementos fundamentais: o trabalho compulsrioe o vnculo com o capital comercial europeu."\e o sculo XVI, quando se iniciou o trfico de africanos paraorovo Mundo, ao sculo XIX, quando cessou esse trfico e terminoua escravatura, teriam sido transportados da frica cerca de 9.500.000negros. Desses, a maior parte foi levada para Brasil, que importou

    (6) Quanto encomienda e outras formas de organizao social da produo baseadasno indgena, consultar: Juan A. e Judith E. Villamarin, Indian labor in mainlandcolonialSpanish America, Universlty of Delaware, Newark-Delaware, 1975.6

    38 por cento do total. Outros 6 por cento foram levados para osEstados Unidos. Nas Antilhas britnicas entraram 17 por cento, etambm 17 por cento foram s colnias francesas da rea do Caribe.Por fim, outros 17 por cento foram levados s colnias espanholas.Cuba recebeu 702.000 africanos, ou seja, mais do que qualquer outracolnia espanhola; ao passo que o Mxico importou cerca de200.000(7).

    Ao mesmo tempo, foi amplo e intenso o intercmbio comercialentre as metrpoles europeias e as suas colnias no Novo Mundo.Esse comrcio era comandado pelo capital comercial, controladopelos governos e empresas estatais e privadas metropolitanas. Aolongo de todo o perodo colonial - e principalmente nas pocas doapogeu da produo de prata, ouro, acar, fumo, algodo e outrosprodutos -foi bastante elevada a exportao de excedente econmicopara as metrpoles. Tanto por meio das administraes metropolita-nas nas colnias, como por intermdio das empresas e do comrcioprivado, as exportaes coloniais excediam s importaes. Apenasuma parcela do excedente gerado nas colnias permanecia ali, paraa continuidade dos empreendimentos, das transaes e das estrutu-ras de administrao e controle(S). Essas relaes econmicas,

    (7) Robert W. Fogel e Stanley L. Engerman, Time on thecross(The economics ofAmerican negro slavery), 2 vols., Little, Brown and Company, Boston, 1974, primeirovolume, cap. 1. Consultar tambm: Maurcio Goulart, Escravido africana no Brasil,Livraria Martins Editora, So Paulo, 1950; Rolando Mellafe, Breve historia de Iaesclavitud en Amrica Latina, Sep-setentas, Mxico, 1973; Magnus Morner, Estado,razas y cambio social en Ia Hispanoamrica colonial, Sep-setentas, Mxico, 1974;Magnus Morner, Race misture in the history of Latin America, Little, Brown andCompany, Boston, 1967; Nicolas Sanchez-Albornoz e, Jos Luis Moreno, Lpoblacin de Amrica Latina (Bosquejo Histrico), Editorial Paidos, Buenos Aires,1968; Arthur Ramos, As culturas negras no Novo Mundo, Editora CivilizaoBrasileira, Rio de Janeiro, 1937; Roger Bastide, Ls Amriques noires, Payot, Paris,1967.

    (8) Enrique Semo, Histria dei Capitalismo en Mxico (Los origenes: 1521-1763).Ediciones Era, Mxico, 1973, esp. p. 230-237; Caio Prado Jnior. Formao doBrasil Contemporneo (Colnia), 4" edio. Editora Brasiliense. So Paulo. 1953.esp. p. 226-234; Roberto C. Simonsen, Histria econmica do Brasil (1500-1820). 5aedio, Companhia Editora Nacional, So Paulo. 1967. esp. cap. XI I I : Samuel E.Morison, The Oxford history of the American people, Oxford Oniversity .Press. NewYork, 1965, esp. caps. XII. XI I I e XIV; Lawrence A. Harper. "Mercantilism and theAmerican revolution", publicado por Cari N. Degler (Editor). Pivolal inlerpreta-tions of American history, 2 vols., Harper Torchbooks. New York. 1966. vol. I. p.77-90; Srgio Bagu. Economia de Ia sociedadcolonial (Ensayo de historia comparadade Amrica Latina). Librera El Ateneo Editorial. Buenos Aires. 1949: Stanley J.Stein e Barbara H. Stein. The colonial heritage of Latin America (Essays oneconomic dependence in perspective). Oxford University Press. New York. 1970.esp. caps. II e V; Demetrio Ramos Perez. Historia de In coloni:acin espanolaenAmrica, Ediciones Pgaso, Madrid. 1947. esp. livro II.

  • organizadas segundo as exigncias do mercantilismo, foram a basesobre a qual se formaram as sociedades coloniais. Em essncia, pois,foi o capital comercial que comandou a constituio e o desenvolvi-mento das formaes sociais baseadas no trabalho compulsrio nascolnias europeias do Novo Mundo. A explorao do trabalhocompulsrio, em especial do escravo, estava subordinada aosmovimentos do capital comercial europeu. Este capital comandava oprocesso de acumulao sem preocupar-se com o mando do processode produo. O comerciante europeu se enriquece comprando barato- com as vantagens da exclusividade que a metrpole mantm sobreos negcios da colnia-e vendendo mais caro. O dinheiro se valorizano processo de circulao da mercadoria.

    Qualquer que seja a organizao social das esferas de produo donde saem asmercadorias trocadas por intermdio dos comerciantes, o patrimnio destes existesempre como haveres em dinheiro e seu dinheiro exerce sempre a funo de capital.A forma desse capital sempre D - M - D; o ponto de partida o dinheiro, a formaindependente do valor-de-troca, e o objetivo autnomo o aumento do valor-de-troca. A prpria troca de mercadorias e as operaes que a propiciam -separadas na produo e efetuadas por no-produtores-so apenas meio de acrescera riqueza, mas a riqueza em sua forma social geral, o valor-de-troca(9).

    O movimento do capital mercantil D - M -D ; Por isso, o lucro do comercianteprovm, primeiro, de atos que ocorrem no processo de circulao, os atos decomprar e de vender, e, segundo, realiza-se no ltimo ato, o de venda. portantolucro de venda, profit upon alienation. evidente que o lucro comercial puro,independente, no pode aparecer, quando os produtos se vendem por seus valores.Comprar barato, para vender caro, a lei do comrcio. No se trata portanto detrocar equivalentes(lO).

    O desenvolvimento autnomo e preponderante do capital como capital mercantilsignifica que a produo ho se subordina ao capital, que o capital portanto sedesenvolve na base de uma forma social de produo a ele estranha e delemdependente(ll).

    (9) Karl Marx. O capital, citado. Livro 3. vol. 5. p. 376.(10) Ibidem. p. 379.( 1 1 ) Ibidem, p. 377. Quanto aos caractersticos do mercantilismo e s relaes do

    capital comercial europeu com o trfico de africanos e a escravido no Novo Mundo,consultar: Eric Williams, Capitalism & slavery, Capricorn Books. New York. 1966;Thomas Mun. La riqueza de Inglaterra por el comercio exterior - Discurso acerca deicomercio de Inglaterra con Ias ndias Orientales. trad. de Samuel Vasconcelos. Fondode Cultura Econmica. Mxico. 1954. Earl J. -Hamilton. El florecimiento deicapitalismo v olros ensavos de historia econmica, trad. de Alberto Ullastres. Revistade Occidente. Madrid. 1948; Karl Polanyi. Dahomey and lhe s/ave trade, University ofWashington Press, Seattle, 1966; Eli F. Hecksher. Mercantilism. 2 vols. trad. deMendel Shapiro. George Allen & Unwin. London. 1953, esp. vol. l, cap. VII ."Foreing trade and busines organization"; Henri See. Origen y evolucin dei

    Essas reflexes indicam claramente que o que singulariza ahegemonia do capital mercantil que ele torna autnomo, ousubstantiva, o processo de circulao, subordinando o processo deproduo. Tanto assim que a produo de mercadorias pode dar-sesob as mais diversas formas de organizao social e tcnica dasrelaes de produo: seja nos grmios, corporaes e manufaturas,seja nas haciendas, encomiendas, fazendas, engenhos eplantafions.

    Note-se, no entanto, que na poca em que o capital mercantil autnomo e preponderante, relativamente ao processo produtivo, asmercadorias no so trocadas com base em seus valores, equivaln-cias. ou segundo as quantidades de trabalho social nelas contidos. Aequivalncia entre elas fortuita, j que o comerciante se dedicapura e simplesmente a comprar barato e vender caro. Ele opera nombito do mercado europeu, da comercializao dos produtosprovenientes do Novo Mundo e outras partes do sistema colonialeuropeu surgido com o mercantilismo. Beneficia-se do monopliocolonial, caracterstico do mercantilismo, para aumentar mais oumenos vontade o seu lucro comercial. Nessas condies, secundrio o valor real da mercadoria, em termos de contabilidadede custos, ou trabalho social nela cristalizado. Esse valor, seja qualfor a maneira de avali-lo, somente tem importncia para o dono daplantation, engenho ou outras unidades produtivas baseada notrabalho compulsrio ou formas de cooperao simples. Para ocapital mercantil, era bastante secundria a forma de produo dofumo, acar, algodo, prata, ouro e outros produtos. Mesmo porque,no apogeu do capital comercial, o comerciante no domina oprocesso produtivo, mas sim o processo de circulao.

    Comprar barato, para vender caro. a lei do comrcio. No se trata portanto detrocar equivalentes. O conceito de valor est ai implcito, na medida em que asdiferentes mercadorias representam todas valor e por conseguinte dinheiro;qualitativamente so todas elas por igual expresses do trabalho social. Mas. noso valor da mesma magnitude. No inicio, inteiramente fortuita, casual, a relaoquantitativa em que os produtos se trocam. Assumem a forma de mercadoria, namedida em que so permutveis, isto , expresses do terceiro termo que as tornahomogneas. A troca continuada e a reproduo mais regular para troca eliminacada vez mais essa casualidade; no comeo, porm, no para os produtores econsumidores, e sim para o intermedirio entre ambos, o comerciante, que comparaos preos em dinheiro e embolsa a diferena. Com as prprias operaes estabeleceele a equivalncia.

    capitalismo moderno, trad. de M. Garza. Fondo de Cultura Econmica. Mxico, 1944;Eric Hobsbawn, En torno a los orgenes de Ia revolucin industrial, trad. de OfliaCastillo e Enrique Tandeter, Siglo Veimiuno Editores. Buenos Aires, 1971; MauriceDobb, A evoluo do capitalismo, 3* edio. trad. de Affonso Blacheyre. ZaharEditores. Rio de Janeiro. 1973. esp. cap. V, "A acumulao de capitais e mercantilis-mo"; Christopher Hill. Reformation to industrial revolution (A social and economichistoryofBritain: 1530-1780). Weidenfeld & Nicolson, London, 1968.

  • Nos primrdios, o capital mercantil movimento mediador entre extremos queno domina e pressupostos que no cria(I2).

    importante observar que por sob o processo de circulao demercadorias, governado pelo capital mercantil, encontrm-se vriasformas de produo. A despeito de que o lucro do comerciante serealiza no comrcio, ele no pode realizar-se a no ser com base emquantidades crescentes de mercadorias. E estas so produzidas nascolnias europeias no Novo Mundo, principalmente sob distintasmodalidades de trabalho compulsrio. Aqui, pois, coloca-se umproblema crucial. Em ltima instncia, por sob o lucro do comer-ciante est o sobrevalor criado pelo sobretrabalho realizado pelonegro e o ndio aberta ou veladamente escravizados. Ou seja, em umnvel, o comerciante lucra comprando barato e vendendo mais caro.Em outro nvel, no entanto, preciso que ele possa comprarquantidades crescentes de mercadorias, para expandir os seusnegcios e ampliar a escala da acumulao. Se as mercadorias soproduzidas em condies convenientes - quanto ao volume, presteza, qualidade e outros requisitos - claro que o comerciantepode ampliar e dinamizar os seus negcios; melhorar a suacompetitividade e ou a sua margem de lucro.

    E nesse ponto que a escravatura e as outras formas de trabalhocompulsrio se situam. O capital comercial absorve quantidadescrescentes de mercadorias. Para que estas se produzam nas colniasdo Novo Mundo, necessrio atar o trabalhador aos outros meios deproduo. Ele no pode ser assalariado, porque a disponibilidade deterras devolutas permitiria que se evadisse, transformando-se emprodutor autnomo. Da a escravizao aberta, ou disfarada, dendios e negros na encomienda, hacienda, plantation, engenho,fazenda e outras modalidades de organizao social e tcnica dasrelaes de produo e das foras produtivas.

    Em sua anlise das condies que produziram a escravatura noNovo Mundo, Marx ressalta dois pontos. Em primeiro lugar, adisponibilidade de terras baratas ou devolutas, o que permitiria queo assalariado, em pouco tempo, pudes.se abandonar a plantation, oengenho ou outra unidade produtiva, para tornar-se sitiante, aomenos produzindo o essencial prpria subsistncia. Em segundolugar, as metrpoles no dispunham de grandes reservas de mo-de-obra, para encaminhar s colnias e dinamizar a produo de

    tft

    fumo, acar, prata, ouro etc. Essas foram as razes principais dacriao e generalizao do trabalho escravo em vrias colniaseuropeias no Novo Mundo. Nas colnias em que havia indgenas,estes foram submetidos a alguma forma de trabalho compulsrio,nas aldeias, redues, encomiendas etc. Para evitar-se que eles seevadissem dos locais de trabalho, ou sofressem de maneira demasia-do destrutivas as condies de trabalho exigidas pela produocolonial, os ndios do Novo Mundo foram submetidos a formasespeciais de trabalho compulsrio. Em algumas situaes, a escrava-tura era,aberta e organizada como tal; em outras ela era latente,social e tecnicamente organizada de forma diversa daquela (13).Alm dos africanos trazidos para o Novo Mundo, tambm gruposnativos foram submetidos escravido aberta. No conjunto dascolnias europeias no Novo Mundo, a administrao metropolitanaorganizou-se principalmente com trs finalidades. Primeiro, evitar ecombater a penetrao dos interesses de outras metrpoles, noesprito do exclusivismo ou monoplio caracterstico do mercantilis-mo. Segundo, controlar a circulao do trabalhador escravo, sobtodas as formas, para garantir a produo colonial e assegurar avigncia do sistema poltico-social cujo fundamento era o trabalhoescravizado. Terceiro, garantir a continuidade e a regularidade daexportao do excedente econmico produzido na colnia, exceden-te esse essencial reproduo e ampliao do capital mercantilmetropolitano.

    Mas fundamental reconhecer, ainda, que a escravido foitambm um grande negcio para os comerciantes ingleses, holande-ses, franceses, espanhis, portugueses e outros ligados ao trfico denegros da frica ao Novo Mundo. Havia vultuosos capitais metropo-litanos envolvidos no comrcio de escravos, vinculando assim ametrpole, a frica e as colnias do Novo Mundo. A dinmica docapital mercantil envolvido no trfico era um elemento importantena manuteno e expanso da escravatura nas colnias. A produodas colnias, por sua vez, era comandada a partir da dinmica docapital mercantil, cuja rcade realizao e reproduo era a Europa.Assim que se intensifica a acumulao primitiva e, ao mesmotempo, consolidam-se e expandem-se as formas de organizaosocial e tcnica do trabalho compulsrio. Pouco a pouco, essesencadeamentos entre a Europa, a frica e o Novo Mundo adquiremoutros desenvolvimentos, principalmente com o crescimento da

    (12) Karl Marx, O capital, citado, Livro 3, vol. 5,. p. 379-380. Esta citao, bem comoas trs anteriores, foram retiradas do cap. intitulado "Observaes histricas sobre ocapital mercantil''. Consultar tambm:Christopher Hill, Op.cit; e Maurice Dobb.Op.

    (13) Karl Marx, O capital, citado, Livro l, vol. 2, cap. XXV, intitulado "Teoriamoderna da colonizao", p. 883-894; Enrique Semo, Histria dei capitalismo enMxico, citado, esp. cap. V, sobre o trabalho em "La Repblica de los Espanoles", p.188-229.

    10 11

  • produo manufatureira. Em conjunto, essas relaes econmicasinternacionais, aceleram a acumulao de capital na Inglaterra,devido posio privilegiada que esse pas passou a ocupar nomercantilismc"e, em seguida, no capitalismo industrial nascente.

    Williams: Nesse comrcio triangular, a Inglaterra - da mesma maneira que aFrana e a Amrica Colonial - oferecia as exportaes e os navios: a frica ofereciaa mercadoria humana: e as plantations as matrias-primas coloniais. O navionegreiro navegava da metrpole com a carga de manufaturados. Estes eramtrocados lucrativa mente por negros na frica, negros esses que eram comerciadosnas plantalions com mais lucro, em troca de produtos coloniais que eramtransportados metrpole. Quando o volume do comrcio cresceu, a trocatriangular foi suplementada, mas no suplantada, pelo intercmbio direto entre ametrpole e as ndias Ocidentais, comerciando-se manufaturados da metrpolediretamente com produo colnia (14)

    Hill: Entre 1700 e 1780 o comrcio exterior ingls quase dobrou; e triplicou nosvinte anos seguintes. A frota tambm dobrou. Nos mesmos anos 1700-1780 ocorreuuma mudana no mapa econmico, no qual a Europa era ainda o mais importantemercado da Inglaterra, para um mapa no qual esse lugar passou a ser ocupado pelasclon ias (l 5).

    A spectos da formao social escravistaNote-se, pois, que o funcionamento e a expanso do capital

    mercantil cria, mantm e desenvolve o paradoxo representado pelacoexistncia e interdependncia do trabalho escravo e trabalholivre, no mbito do mercantilismo. No limite, o escravo estavaajudando a formar-se o operrio. Isto , a escravatura, nasAmricas e Antilhas, estava dinamicamente relacionada com oprocesso de gestao do capitalismo na Europa, e principalmentena Inglaterra. Esse "paradoxo" comea a tornar-se cada vez maisexplcito medida que o mercantilismo passa a ser suplantado pelocapitalismo.

    Esse paradoxo, ou melhor, essa contradio, no seria sustentvelse se apoiasse apenas na acumulao primitiva, no comrcio demercadorias, ou no monoplio colonial. Por mais decisivas quetenham sido as relaes comerciais externas, no mbito do mercanti-lismo, a referida contradio somente pode manter-se porquehaviam-se constitudo, nas colnias, formaes sociais amplamente

    (14) Eric Williams, Capitalism & slavery, citado, p. 51-52. Consultar tambm: KarIPolanyi, Dahomey and the slave trade, University of Washington Press, Seattle, 1966;Jos Ribeiro Jnior, Colonizao e monoplio no Nordeste brasileiro, Hucitec," SoPaulo, 1976, esp. cap. IV.

    (15) Christopher Hill, Reformalionto industrial revolution, citado, p. 184.

    12

    articuladas internamente. Isto , as formaes sociais escravistastornaram-se organizaes poltico-econmicas altamente articula-das, com os seus centros de poder, princpios e procedimentos demando e execuo, tcnicas de controle e represso. Independente-mente dos graus e maneiras de vinculao e dependncia dascolnias, em face da metrpole, inegvel que em cada colniaorganizou-se e desenvolveu-se um sistema internamente articulado emovimentado de poder poltico-econmico. Nesse sentido que emcada colnia constituiu-se uma formao social mais ou menosdelineada, homognea ou diversificada. Uma formao social escra-vista era uma sociedade organizada com base no trabalho escravo(do negro, ndio, mestio etc.) na qual o escravo e o senhorpertenciam a duas castas distintas; sociedade essa cujas estruturas dedominao poltica e apropriao econmica estavam determinadaspelas exigncias da produo de mais-valia absoluta. Nessas forma-es sociais, as unidades produtivas - como os engenhos de acar noNordeste do Brasil e as plantations do Sul dos Estados Unidos, porexemplo-estavam organizadas de maneira a produzir e reproduzir,ou criar e recriar, o escravo e o senhor, a mais-valia absoluta, acultura do senhor (da casa-grande), a cultura do escravo (dasenzala), as tcnicas de controle, represso e tortura, as doutrinasjurdicas, religiosas ou de cunho "darwinista" sobre as desigualdadesraciais e outros elementos. A alienao do trabalhador (escravo)caracterstica dessas formaes sociais implicava que ele era fsica emoralmente subordinado ao senhor (branco) em sua atividadeprodutiva, no produto do seu trabalho e em suas atividadesreligiosas, ldicas e outras. Nessas condies, as estruturas dedominao eram, ao mesmo tempo e necessariamente, altamenterepressivas e universais, estando presente em todas as esferasprticas e ideolgicas da vida do escravo (negro, mulato, ndio emestio). Assim, a formao social escravista era uma sociedadebastante articulada internamente, motivo porque ela pde resistiralgum tempo s contradies "externas"; ou s contradies internaspouco desenvolvidas.

    Desde fins do sculo XVIII comeou a desenvolver-se algum tipode antagonismo, entre as exigncias do capitalismo e as da formaosocial escravista. Para compreender a durao desse antagonismo, indispensvel compreender a fisionomia da formao social escravis-ta como uma estrutura poltico-econmica singular; nos primeirostempos, no era apenas um apndice do sistema mercantilista, edepois, a partir do sculo XVIII, no se manteve apenas umapndice do capitalismo em expanso.

    Nos tempos modernos, a plantation em geral surgiu sob os auspcios burgueses.

    13

  • para- suprir a indstria com matrias-primas baratas: mas as consequncias noforam sempre harmnicas com a sociedade burguesa (16).

    A sociedade da plantalion, que havia comeado como apndice do capitalismoingls, terminou por ser uma poderosa civilizao, amplamente autnoma, comambies e possibilidades aristocrticas, embora permanecendo vinculada ao mundocapitalista pelos laos da produo mercantil. O elemento essencial desta singularcivilizao era o domnio do senhor de escravos, possibilitado pelo controle dotrabalho. A escravatura foi a base do tipo de vida econmica e social do Sul, dos seusproblemas e tenses especiais, das suas peculiares leis de desenvolvimento (17).

    A verdade que toda pesquisa sobre a escravatura no NovoMundo enfrenta-se, de alguma maneira, com as implicaes histri-cas e tericas da problemtica expressa nas categorias modo deproduo e formao social. Os ensaios, as monografias e os estudoscomparativos de David Brion Davis, Eugene D. Genovese, HerbertAptheker, E. Franklin Frazier, Gunnar Myrdal, Robert W. Fogel,Stanley L. Engerman, Everett C. Hughes, Herbert Blumer, Cari N.Degler, Magnus Morner, C. R. Boxer, Herbert S. Klein, Srgio Bagu,Demetrio Ramos Perez, Enrique Semo, Verena Martinez-Alier,Juan Martinez Alier, Ciro F. S. Cardoso, Caio Prado Jnior,Florestan Fernandes, Celso Furtado, Andr Gunder Frank, ErcWilliams, Emilia Viotti da Costa, Fernando H. Cardoso, Stanley J.Stein, Fernando A. Novais e outros orientam-se no sentido decompreender a escravatura em suas articulares e contradies com osistema econmico mundial. Mesmo quando alguns desses autoresno trabalham explicitamente com as noes de modo de produo eformao social, inegvel que as suas anlises, sugestes ehipteses representam contribuies de maior ou menor valor para adiscusso e a pesquisa das articulaes entre a escravatura do NovoMundo e o sistema econmico mundial. Inicialmente,.ao longo dossculos XVI e XVII, tratava-se do relacionamento entre o mercanti-lismo e as distintas formas de trabalho compulsrio; depois, ao longodos sculos XVIII e XIX, tratava-se do encadeamento e antagonismoentre escravido e capitalismo. Em todos os casos, no entanto, importante assinalar que" os autores mencionados apresentam subs-dios histricos e tericos para a interpretao dos encadeamentosentre as formaes sociais prevalecentes nas diversas|colnias ameri-

    (16) Eugene D. Genovese, The poltica! economy ofslavery (Studies in the economyand society of the slave south), Pantheon Books, New York, 1966, p. 15.

    (17) Ibidem, p. 15-16. A propsito dos movimentos e perfis de diferentes formaessociais escravistas: Eugene D. Genovese (organizador), The slave economies, 2 vols.,John Wiley & Sons. New York. 1973; Florestan Fernandes, Circuito FechadoHucitec So Paulo, 1976, cap. l, intitulado "A sociedade escravista no Brasil".

    14

    canas e antilhanas e o modo de produo prevalecente em mbitomundial, com ncleo dinmico na Europa.

    O que parece no vhaver ainda, entre esses e outros cientistassociais, um consenso suficientemente consistente sobre essas eoutras categorias envolvidas na histria poltico-econmica dassociedades do N ovo Mundo. Ciro F. S. Cardoso, Juan Martinez Aliere Verena Martinez-Alier, por exemplo, utilizam o conceito de "modode produo escravista". Fernando A. Novais sugere a noo de"modo de produo colonial". Celso Furtado emprega os conceitosde "semifeudal" e "feudalismo". Srgio Bagu tambm consideraaplicveis as noes de "formas feudais" e "feudalismo". Andr G.Frank rejeita essas e outras noes, preferindo considerar o NovoMundo sempre nos termos do conceito de "capitalismo". EnriqueSemo afirma que no se pode falar em modo de produo escravistanas colnias da Espanha, e sugere as noes de "semifeudal" e"feudalismo", como Bagu, Furtado e outros. Vejamos, a ttulo deexemplo, os termos de algumas formulaes de Semo. Sob vriosaspectos, elas contm os principais elementos da controvrsia sobreas caractersticas e os movimentos das formaes sociais baseadas notrabalho compulsrio.

    Apesar da extenso da escravatura de um ou outro tipo (manifesta e latente), asociedade novo-hispnica nunca passou por um modo de produo escravista. No sedeve esquecer que a escravido generalizada do ndio serviu para inundar de pratabarata a uma Europa em plena revoluo scio-econmica. e lanar as bases deunidades econmicas semifeudais no Mxico.

    A escravido generalizada no fez da sociedade novo-hispnica um sistemaescravista, assim como o capital comercial e usurrio da antiga Roma no converteuesta num emprio capitalista. A escravido negra nos Estados Unidos lanou as basesdo desenvolvimento do capitalismo pr-industrial; a escravido indgena serviu, naNova Espanha, para impulsionar o surgimento de um sistema no qual o feudalismoaparece estreitamente entrelaado com o capitalismo embrionrio e dependente (18).

    Assim como splanlations escravistas dos EstadosUnidosno foram a base de ummodo de produo escravista, mas sim do desenvolvimento do capitalismo, aencomienda - apesar da sua forma tributria de explorao - serviu para a gestao deuma estrutura baseada na propriedade privada, na qual feudalismo e capitalismoembrionrios se entrelaam (19).

    Devido a uma srie de fatores j apontados, a economia da Nova Espanhacontava, desde o princpio, com um desenvolvimento importante da produo

    (18) Enrique Semo, Op. cit., p. 209-210(19) Ibidem, p. 219.

    15

  • mercantil. Isto tem induzido a erro a mais de um historiador, que, confundindoproduo mercantil com capitalismo, fala-nos em encomienda "capitalista", hacienda"capitalista" e obrajes "capitalistas", em pleno sculo XVI, porque estas unidadesachavam-se ligadas a um mercado e produziam em parte para ele (20).

    No me parece oportuno fazer-, neste ensaio, uma discussocrtica dessas e outras interpretaes e hipteses, relativamente aosencadeamentos entre formao social e modo de produo; ou sobreo carter colonial, escravista, semifeudal, feudal etc. das relaes deproduo na poca colonial e no sculo XIX, aps as crises e lutas deindependncia. Essa matria para ser examinada, de maneirasistemtica e especial, em outra ocasio. Ela implica a prpriacompreenso das categorias: capitalismo, feudalismo, mercantilis-mo, escravismo, modo de produo, formao social, relaes deproduo, foras produtivas e algumas outras. P&rece-me oportuno,no entanto, fazer algumas sugestes, na medida em que envolvemdiretamente a compreenso da histria politico-econmica daescravi-do.

    Convm repetir aqui: as formaes sociais baseadas no trabalhocompulsrio, criadas no Novo Mundo, nascem e desenvolvem-se nointerior do mercantilismo! ou seja, na poca e sob a influncia docapital mercantil, ento predominante e ascendente na Europa. Aomesmo tempo que se organizam e expandem as formaes sociaisbaseadas na plantation, engenho, fazenda, encomienda, hacienda etc.,o Novo Mundo entra ativa e intensamente no processo de acumula-o primitiva, que se realiza de maneira particularmente acentuadana Inglaterra. Em seguida, a progressiva subordinao do capitalmercantil ao capital produtivo, isto , industrial, as formaes sociaisbaseadas no trabalho compulsrio rearticulam-se interna e externa-mente. Sofrem o impacto do tipo de comercializao (dosprodutos coloniais, produzidos pela mo-de-obra escrava) comanda-da pelasiexigncias da reproduo do capital industrial.jContempora-neamente, em especial desde o comeo do sculo XIX, as relaesescravistas de produo e as prprias formaes sociais escravocra-tas (coloniais) entram em crise e declnio. Tanto assim que a

    (20) Ibidem, p. 240. Consultar tambm: Srgio Bagu, Op. dl., p. 101-113; C.S.Assadourian, C.F.S. Cardoso, H. Ciafardini, L C.Garavagliae E. Laclau, Modos de'produccin en Amrica Latina, Ediciones Passado y Presente, Crdoba, 1973; Juan yVerena Martinez-Alier, Cuba: economia y sociedad, Ruedo Ibrico, Paris, 1972, p.13; Andr G. Frank, Capitalism and underdevelopment in Latin America, MonthlyReview Press, New York, 1967, p. 221-242; Celso Furtado, Formao econmica daAmrica Latina, Lia Editor, Rio de Janeiro, 1969, p. 35-39; Fernando A. Novais,.Estrutura e dinmica do antigo sitema co/om'a/'(sculos XVI-XVIII), Cadernos Cebrap,So Paulo, 1974, p. 27 e 33.

    16

    independncia poltica das colnias do Novo Mundo e a emancipa-rco dos escravos so processos mais ou menos contemporneos -econjugados. De qualquer maneira, desde o princpio as sociedadesjlp,,Noy0 Mundo esto atadas economia mundial: primeiro mercantilista e depois capitalista. Nesse sentido que as socieda-des das Amricas e Antilhas so formadas em estado de dependn-cia, enquanto colnias e pases. So como que geradas nos quadros^do mercantilismo, da acumulao primitiva e do nascente capitalis- |mo europeu. Por isso, no primeiro instante as formaes sociais \s do Novo Mundo so essencialmente determinadas pela jreproduo do capital mercantil. E, no segundo momento, a partir ;do sculo XVIII, as formaes sociais escravistas passam a ser \e determinadas pelas exigncias do capital industrial, fem expanso na Europa e, principalmente, na Inglaterra. Ou seja, idesde o sculo XVI ao XIX os movimentos, as articulaes e asrearticulaes, internos e externos, das formaes sociais escravistasnas Amricas e Antilhas so influenciados e mesmo determinados l(em graus variveis, certo) pelas exigncias da reproduo do 'capital europeu; primeiramente mercantil e em seguida industrial^

    Essa determinao "externa" aparece em vrias interpretaes. Ela importante para compreendermos as caractersticas e os movimen-tos das formaes sociais baseadas no trabalho compulsrio. Aoreferir-se a essa questo, Caio Prado Jnior aponta o que lhe pareceser o prprio sentido bsico e geral da colonizao no Novo Mundo.Ciro F. S. Cardoso chama a ateno para as inestabilidades inerentesa essa dependncia histrico-estrutural. Alis, em meados do sculoXIX Marx j havia assinalado o carter "anmalo" e "formalmenteburgus" da formao social escravista nas Amricas e Antilhas.

    Prado Jr.: Se vamos essncia da nossa formao, veremos que na realidade nosconstitumos para fornecer acar, tabaco, alguns outros gneros; mais tarde ouro ediamantes; depois, algodo, e em seguida caf, para o comercio europeu(21).

    Cardoso: A dependncia e a deformao fazem que as estruturas coloniais soframpesadamente as consequncias:das mudanas de conjuntura e das imposies do mercado -internacional, sem ter a flexibilidade e autonomia que permitam uma adaptao rpidae eficaz ai condies novas (11).

    Marx: A escravido dos negros uma escravido puramente industrial - quedesaparece de um momento para outro e incompatvel com o desenvolvimento da

    (21) Caio Prado Jnior, Formao do Brasil contemporneo (Colnia), citado, p.26. Tambm: Enrique Semo, Op. cit., p. 251-252.

    (22) Ciro Flamarin Santana Cardoso, "El modo de produccin esclavista colonialen Amrica", publicado por C.S. Assadourian e outros. Modos de produccin enAmrica Latina, citado, p. 193-230; citada p. 214. Tambm E. Semo, Op. cit., p. 249.

    17

  • sociedade burguesa, pressupe a existncia de tal sociedade: se junto a essa escravidono existissem outros estados livres, com trabalho assalariado, todas as condiessociais nos estados escravistas assumiriam formas pr-civilizadas(23).

    O fato de que os donos das plantaiions na Amrica no somente os chamemosagora capitalistas, mas que o sejam, funda-se no fato de que eles existem como umaanomalia dentro de um mercado mundial baseado no trabalho livre(24)

    Na segunda classe de colnias- as plantations, que so, desde o prprio momentode sua criao, especulaes comerciais, centros de produo para o mercadomundial - existe um regime de produo capitalista, ainda que somente de um modoformal, posto que a escravido dos negros exclui o trabalho livre assalariado, que abase sobre a qual descansa a produo capitalista. No obstante, so capitalistas osque manejam o negcio do trfico de negros. O sistema de produo introduzido poreles no provm da escravatura, mas sim enxerta-se nela. Neste caso, o capitalista e odono aplantalion so uma s pessoa (25).

    Nessas condies, quando o capitalismo alcana certo grau dedesenvolvimento, em mbito mundial, ele. torna difcil a continuida-de das relaes escravistas de produo-yDepois de alcanar certodinamismo, em escala mundial, o capital i ndustriai comea ainfluenciar, matizar, alterar ou mesmo destruir as formas deorganizao social e tcnica das relaes de produo que no seadequam, de alguma maneira, ao seu ritmo e sentido. f *H" o ^ c cT c-f o"| ~

    ' O o* O O O OO r* -H * (N

    O O O O o q O N O O 3

    ' o S ''' 5

    1 SS< o w' Sb " 5a s-D CJ

  • Territrio

    Barbado

    sG

    uiana inglesa

    Honduras

    britnicaJam

    aicaIlhas

    Caimo

    Ilhas Turcas

    e Calco

    sA

    ntigua

    Monserrat

    SanCristofe-Nevis

    Ilhas V

    irgens .

    Trindade e

    Tobago

    Dom

    inique

    Granad

    aSanta

    LciaSo

    Vicente

    Baamas

    (1943)Berm

    uda

    Total

    TABELA

    IV

    POPU

    LAO

    DA

    S NDIA

    S OCIDENTAIS

    BRITNICAS, BA

    AM

    AS

    E BERM

    UD

    A1946

    Africano

    Europeu*

    148.923143.38522.693

    9655601.0514.432

    35.43713.319595625.670

    261.48511.86253.26540.61645.04257.346

    9.83911.0232.329

    13.8092.074

    1056957192535

    15.283142635343

    1.9067.923

    14.724

    Origem n

    acional ou

    racialAsiticos

    Amerndios

    e caribenhos

    16.32214.1422640

    11313242

    136167.237

    1.54429.1068017

    165

    202.277393.5282.6511.824

    178

    Mistos

    33.82837.68518.360

    227.1483.5181.5845.349

    9175.091

    79978.77535.52414.76926.32612.6313.214

    22.638

    Noespecificados

    7449152

    1.04027171969100l1241777164*?18541

    Total

    192.800375.70159.220

    1.237.0636.6706.138

    41.75714.33346.2436.505

    557.97047.62472.38770.11361.64768.84637.403

    2.902.420

    Fonte:Digest

    of colonial

    statstics. N

    9 10

    , Colonial

    Office

    , Londres

    , setem

    bro-outubro, 1953

    , tabelas

    H, M

    e N

    . Cf

    . A

    nthony H

    Richmond

    ,

    Op.cit.,p.21S.

    capitalismo

    . O

    corre qu

    e

    a formao

    so

    cial escra

    vista

    se fund

    a

    emprincpio

    s e

    struturais e

    organizatrio

    s distinto

    s do

    s qu

    e fundam

    en-

    tam" a

    formao so

    cial capitalista.

    Em

    poucas palavras

    , n

    a form

    aoso

    cial escravista

    o trabalhado

    r

    escravo

    , isto

    , alienad

    o n

    o produto

    do seu

    trabalho

    e n

    a su

    a pessoa

    .

    propriedade d

    o o

    utro, d

    o se

    nhor,

    juridicamente e

    de fato

    . E

    est destinad

    o a

    trabalhar d

    e m

    odo a

    produzir principalm

    ente m

    ais-valia absoluta

    , qu

    e re

    sulta d

    a exten

    -

    so d

    a jornad

    a d

    e trabalho

    . Sob

    a

    esc

    rav

    atura, o

    poder poltico

    nesses

    casos a

    cultura d

    a

    escravido

    "dissolve-se."

    na

    cultura

    do

    asiticos,

    modificad

    o s

    su

    as

    estruturas poltico-econm

    icas

    etc..

    exjglicjjisfOTmasjde_gensar

    agir 90

    negrp.n

    o scuo

    XX

    . A

    penas"

    na4_locip.dades

    que' pouco

    se

    m

    odificaram,

    aps

    abolio

    ~a

    escravatura

    , so

    mente

    nesses

    casos Jjqu

    e o

    peso d

    a c

    ultura escrav

    apod

    e c

    ontinua

    r a

    ser. im

    portante, o

    u m

    esm

    o preponderar

    . N

    os,outros

    casos,

    no

    s

    casos

    em

    que

    a

    sociedad

    e

    tem-se

    u

    rbanizado

    rna,is

    am

    plamente

    , o

    u industrializado

    , re

    cebidairnigrante

    s e

    uropeu

    s o

    u

    gais,

    marco

    u decisivam

    ente

    o perfil

    e

    o m

    odo d

    e

    ser d

    o

    negfo

    .

    Marco

    u decisivam

    ente

    perfil e

    o m

    odo d

    e ser

    do

    negro

    e d

    o branco

    nas

    Am

    ricas e

    no

    Caribe. M

    as tam

    bm

    inegvel

    que.a co

    ndipdjL-ejs-escrayo^no

    pod

    e

    ser

    nem

    suficiente

    ,

    nem

    decisiva para

    condigcTiaF

    escravo, po

    r cerca

    de trs

    a quatro

    sculos, cohTrrne~O

    passa pela

    metam

    orfose d

    o african

    o em

    escrava

    .

    inepAvel

    qu ?

    joraliss, professores

    , atores

    , poetas

    , ro

    man

    cistas, polticos

    , em

    pre-

    srios.

    Nesses

    termo

    s

    que a.rn

    etamorfose

    do

    africano

    em npro

    e m

    ulatn

    sociais

    . E

    m algun

    s pases

    os descendentes

    dos africano

    s tornarata-se

    mem

    trfs das

    foras policiais

    , das

    foras arm

    adas e

    outras

    categoriasru

    rais,

    camponeses

    ,

    assalariados

    de

    classe

    mdia

    , funcionrios

    .

    dos aricano

    s transform

    aram-se

    1 em

    operrio

    s industriais

    , operrio

    sca

    , so

    cial e

    cultural d

    e n

    egros e

    mulatos

    . A

    s populaes

    descendentes

    por

    cento d

    a populao

    ,

    ao lad

    o d

    e brancos

    , italianos

    ,

    alemes

    ,

    poloneses, japoneses

    e o

    utros; ao

    passo qu

    e

    em o

    utros estado

    s o

    sn

    egros

    e

    mulato

    s podem

    chega

    r

    a

    cerca

    de 70

    por

    cento d

    apopulao

    .

    Pode-se

    supor qu

    e a

    com

    plexidade

    dos m

    apas

    raciais,

    por pas

    e

    regio, bem

    co

    mo as

    densidades absolutas

    e

    relativasdiversas

    , afeta

    m o

    perfil e

    as tendncias

    das relaes

    de alienao

    eantagonism

    o e

    ntre n

    egros, m

    ulatos e

    brancos.

    evidente

    que as

    sociedades

    do C

    aribe, d

    a G

    uiana inglesa

    , d

    aH

    onduras inglesa

    , d

    o B

    rasil, d

    a G

    uiana holandesa

    e algun

    s o

    utros

    pases

    esto fortem

    ente

    marcadas

    pela

    presena fsica

    ,

    social

    e

    cultural d

    e

    negro

    s

    e

    mulatos

    . N

    ote-se

    que

    em

    vrios

    casos

    apopulao

    mulata

    be

    m m

    aior d

    o qu

    e a

    populao n

    egra, co

    mo n

    oB

    rasil,

    Venezuela

    e U

    ruguai.

    No

    co

    njunto,

    as

    sociedades

    ..das

    Am

    ricas dependem

    de m

    odo

    significativo d

    a CQptribuio

    econm

    i-

  • exercido pela casta dos senhores no contestado politicamente pelacasta dos escravos. Esta principalmente uma categoria econmica.No so as revoltas de escravos (quilombos, cimarrons, marrons,maroons c outros) que destroem nem abalam as relaes eestruturas escravistas. Em geral, a formao social escravista rompe--se a partir dos antagonismos que se desenvolvem na esfera da castados senhores, ou nas lutas entre a casta dos senhores e a emergenteclasse burguesa. Ao passo que na formao social capitalista otrabalhador (negro, mulato, ndio, mestio branco etc.) alienadoapenas no produto do seu trabalho. Ao menos formalmente, ele no alienado em sua pessoa. O trabalhador livre produz principalmen-te mais-valia relativa, que resulta da potenciao tcnica eorganizatria da fora de trabalho. Ele trabalha sob o regime docontrato, que pode discutir ou refazer. Nesse caso, o poder polticoda classe burguesa pode ser contestado pela classe operria, que uma categoria econmica e poltica. E na classe operria que seencontra boa parte da populao negra e mulata das Amricas eCaribe.

    Reproduo jsocial das raas

    No sculo XX, o negjroj: o mulato so continuamente recriados ereproduzidos sociaTfnerU^^eTs^lmesrns'relaes sociais que re-criam e reproduzem os membros das outras^ "raas", tais como osbrancos, ndicos, mestios"' japoneses, chineses, espanhis, portu-gueses, judeus, italianos, alemes, ingleses, franceses, holandeses,norte-americanos e outros. Em cada uma das sociedades nacionaisque compem a Amrica Latina e o Caribe, algumas, ou s vezestodas essas categorias, sq_socialmente recriadas e reproduzidaspelas relaes sociais que orgajzam_e^movimentam cada socieda-de^ Nas relaes de trabalho7~polticas, religiosas, sexuais, ldicas ecntras uns e outros recriam-se e reproduzem-se socialmente. Daporque o antroplogo, o socilogo, o linguista ou outro cientistasocial encontra diferentes arranjos de elementos culturais "euro-peus", "africanos", "asiticos" e "indgenas", na organizao social,nas atividades econmicas, religiosas e outras (9).

    c l a ro que a r e c r i a o c o n t n u a das ca tegor ias

    (9) MelvilleJ. Herskovitz, The New World negro, Minerva Press. 1969; do mesmoautor: The myh of the negrc ps!. Beacon Press. Boston, 1958; Roger Bastide. LsAmriques naires. Payot, Paris, 1967; Magnas Morner (Editor). Race and ciass inLaiirt America. Columbia Universty Press, New York. 1970.

    64

    raciais implicam a recriao e reproduo inclusive das culturasafricana e escravocrata. Na plantao, fazenda, engenho, usina,fbrica, oficina; casa, escola, quartel, igreja, templo, terreiro oselementos culturais africanos e da escravatura aparecem de forma svezes ntida s vezes apagada. Em todos os casos, no entanto, esseselementos somente aparecem ou reaparecem porque so recriados e,reproduzidos socialmente por brancos, negros, mulatos, ndios,mestios e outras categorias raciais em suas atividades e relaespoltico-econmicas e culturais. Em geral, a trama das relaessociais concretas, na produo material e espiritual (fazenda, fbrica,escola, igreja etc.) que comanda a inveno e a reinveno, ou arecriao e reproduo de valores culturais, padres de comporta-mento, ideias, categorias de pensamento, caractersticos raciais,traos fenotpicos, traos culturais que fazem com que o negro,mulato, branco, ndio, mestio e outros sejam tomados prtica eideologicamente como distintas e desiguais categorias raciais.

    Numa Viso de Conjunto, e tomando alguns r arartPn'QtW,c Harelaaojentrg cultura africana, cultura escrava cultura negra eorganizao socialj^j\mcj^Ljm^^

    Em primeiro lugar, a sociedade neflra nunca urrm sociedade desagregada.Mesmo onde a escravido - e depois, as novas condies urbanas de vida - destruramos modelos africanos, o negro reagiu, reestruturando sua comunidade. Ele no vivecomo homem de natureza, mas cria novas instituies, d-se novas normas de vida.cna-se_uma organizao prpria, separada da Em particular, asexualidade do negro permanece sempre controlada pelas leis do grupo, submissa aostabus do incesto e s regras da troca de servios entre os dois sexos. S podemosadmirar esta plasticidade e a originalidade das solues inventadas, mesmo se elasparecem chocar nosso prprio gnero de vida ocidental.

    Em segundo lu^ar, fomos levados a distinguir, segundo as regies, dois tipos decomunidades: aquelas onde os modelos africanos levam vantagem sobre a presso domeio ambiente; por certo, esses mo delos_ so obrigados a modificar-se pam_pfliricidaptar-se, deixar-se aceitar; risas chamaremos d comunidades africanas. Aquelas,pelo contrrio, nas quais a presso do meio ambiente foi mais forte que osjresqucios3 memria coletiva, usada por sculos de servido, mas nas quais tambnTrsegregao racial no permitiu a aceitao pelo descendente de escravo dos modelosculturais de seus antigos senhores; nesse caso.oneero teve que inventar novas formasd vida em sociedade, em resppsta a seu isolamento^a serj regime de trabalho, a suasnecessidades novas; nos as chamaremos comunidades negras; negrasjporquepbranco permanece, fora dfflas. masjiao africanas, uma vez que essas comunidadesperderam a lembrana de suas antigas ptrias.

    Esses dois tipos de comunidades nada mais so que imagens ideais. De fato,encontramos, na realidade, amcojijfOMm- entre-esse_s...dois tipos. Assim, _ujn_setor dasociedade pode haver permanecido francamenle_a.fricano ( religio) epqiianjn~vimQVJtf '~u"ma^ resposta ao novo meio vilaJ.ta.t'amiJ.ia..Qm economia). Bem entendido,as"coffluficfdes de negros marro s so as~que mais se aproximam do primeiro tipo,

    65

  • pelo menos aquelas que foram criadas pelos negros "boais"; e as comunidades quese formaram aps a supreso do trabalho servil, ento j entre crioulos que viviamisolados no campo, so as que mais se aproximam do segundo tipo. Nas cidadesnegras das Carabas ou da frica do Sul, encontraremos um tipo intermedirio, poisas "naes" podiam, na poca escravista, reformar-se mais facilmente fora docontcole dos brancos, para assim manterem em segredo suas tradies: mas,alhures, esses negros deviam submeter-se s leis matrimoniais, econmicas, polticasdo Estado, e deviam pois adaptar-se aos modelos que o exlio lhes impunha(lO)!

    A recriao eji reproduo sociais do negro e mulato, entre outrascategorias raciais, no ocorre seno na trama das relaes poltico-econmicas que fundamentam a recriao e a reproduo continua-das das relaes e estruturas da sociedade. Nessa perspectiva, agrande complexidade das composies raciais que organizam emovimentam as relaes entre negros, mulatos e brancos comea aesclarecer-se. primeira vista, o mapa racial dos pases da AmricaLatina e Caribe bastante complexo, heterogneo ou mesmocontraditrio. Mas quando visto no contexto das condiespoltico-econmicas nas quais se reproduzem relaes e estruturassociais, esse mapa adquire alguns contornos e movimentos maisntidos. Em artigo sobre as sociedades do Caribe, Sidney W. Mintzdescreve de maneira bastante clara alguns aspectos da relao entreraa e organizao social. Inclusive ressalta a relao entre oprocesso de diferenciao estrutural e o processo de recriao,rearranjo e reproduo das relaes e categorias raciais.

    A composio "racial" do Caribe bastante diversificada. Primeiro, a diversidadefenotpica das populaes caribenhas incomum, devido s circunstncias daimigrao e o longo perodo colonial dqs suas sociedades. Segundo, os cdigos derelaes sociais caractersticas dessas sociedades levam em conta a diversidadefenotpica, mas cada sociedade emprega o seu cdigo de forma particular. Assim,enquanto "raa" importante em tudo, a sua significao e os seus usosparticulares na classificao social variam de uma para outra sociedade do Canbe(11).

    Mas os "mapas" dessas sociedades em termos de "raa", percepo de raa eetnicidade elide o que muitos tericos consideram como a muito mais bvia efundamental base de classificao: a estrutura de classes. As sociedades do Caribeso, naturalmente, entidades estratificadas e diferenciadas em classes. Cor eetnicidade no so nitidamente correlatas condio de classe, mesmo que tivessesido geralmente verdadeiro - e em boa medida ainda que branqueamento oubrancura e status superior tendem a acompanhar um ao outro, da mesma maneira

    (10) Roger Bastide, As Amricas negras, citado, p. 44-45 .(11) Sidney W. Mintz, "The Caribbean region", Daedalus, Harvard University,

    Cambridge, Mass., Spring 1974, p. 45-71; citao da p. 52.

    66

    que negritude e status inferior. Alm do mais, a introduo de grandes contingentespopulacionais que no so localizveis em uma nica escala de negritude a brancura,tais como os indgenas em Trindade e os chineses em Cuba, tornou muito maiscomplicada qualquer anlise das relaes entre status econmico, tipo fsico eidentidade tnica.

    Enquanto muitos aspectos do sistema tradicional de estratificao da regio soainda vigentes, as mudanas na estrutura de classes tm ocorrido em distintasdirees, tais como o declnio da classe dos fazendeiros locais, a emergncia dafazenda empresarial, de organizao estrangeira, o crescimento do tercirio, do setorde prestao de servios, o desenvolvimento do consumo orientado para o exterior, aemigrao de grandes grupos populacionais etc. Essas mudanas afetaram adistribuio de pessoas com identidades fsicas e tnicas particulares em sistemassociais locais; e o vnculo entre essas identidades e a condio de membro de classetambm se tornou mais nuanado. As mudanas havidas nos arranjos polticostambm alteraram a configurao tradicional. Registremos apenas dois casosdiferentes: nas dcadas recentes, tanto em Cuba como no Haiti as mudanas polticasforam marcadas por um ntido movimento de ascenso de algumas pessoas nobrancas, em termos de posio ou oportunidades de vida. Muitos negariamfenmenos paralelos em outras partes da regio. Dessa fnrma^ a complexidade,sociolgica dessas sociedades parece ter aumentado significativamente^ de acordocom processosjiolticos, econmicos e demogrficos qu.e se estendem no tempo( 12).

    1 O mesmo processo bsico de diferenciao da estrutura social temocorrido tambm nas sociedades da Amrica Latina, alm doCaribe. No sculo XX, a diviso social do trabalho e a expanso dasforas produtivas, em certos casos implicaram a imigrao mais oumenos macia de europeus e asiticos em pases da rea. bvio queessa imigrao modificou os caractersticos da populao branca deorigem espanhola, portuguesa, inglesa, francesa e outras. Issosignifica que essa imigrao modificou o conjunto do contextodemogrfico, racial, social e cultural no qual se movimentouo negroe o mulato.

    Contemporaneamente ocorrem novas expanses d-urbanizao edas foras produtivas no setor industrial. Ao lado das atividadesagropecurias, de minerao ou outras, dinami/a -se o setor deservios, transportes e comrcio. Em alguns casos, a industrializao um processo bsico, que passa a influir decisivamente, ou mesmocomandar as relaes sociais(13). A urbanizao e a industrializaoocorrem simultaneamente com a migrao do meio rural e depequenas cidades para os ncleos urbanos maiores. Algumas

    (12) Sidney W. Mintz, "The Caribbean region", citado, p. 53.(13) Philip M. Hauser (Editor), Vrbanization in Latin America, Unesco, Paris, 1961;

    Boletn Econmico de Amrica Latina, vol. VI, n 2, Santiago de Chile, 1961, p. 13-53.

    67

  • vezes, os maiores centros urbanos so tambm centros industriaisimportantes! Numa perspectiva histrico-estrutural, a diviso socialdo trabalho, a expanso das foras produtivas, a urbanizao, aindustrializao e o crescimento do setor de comrcio, transportes eservios modificam de forma mais ou menos profunda a estrutura

    das relaes sociais e, tambm, das relaes de raas .A culturaafricana e a cultura da escravido "perdem-se" na cuITufa dbcajMtalismo. Isto , na sociedade organizada em termos do trabalhoassalariado, das exignciasda produo do lucro e da supremaciado capital mongolista, Tvalores e pTcIroes culturais "herdados''

    ,da~ATnc~~da escravatura perdem os seus significados originais e1inW~Wrm7CT^Tprarnina, medida que avana osculoX, a organizao capitalista das relaes de produo. Pouco a

    pouco, todas as esferas da vida social so determinadas ourecriadas e reproduzidas segundo as exigncias das relaespoltico-econmicas do capitalismo. Nesse contexto, o que parecerser. sobrevivncia de trao cultural africano ou escravista s temsentido enquanto elemento cultural inserido nas relaes capitalis-tas presentes. O que parece ser anterior s tem aparncia deanterior. Da mesma forma que as relaes sociais, ou as estruturaspoltico-econmicas, tambm os elementos culturais so recriados ereproduzidos segundo as condies e exigncias das foras quedominam a sociedade. Nesses termos que a anlise de Bastideadquire significao nova.

    A segregao no desejada pelos governos: pelo contrrio, esses fazem amidegrandes esforos com vistas a acelerar a integrao nacional mas, nas regies degrande povoamento de cor, os negros, porque se sentem "diferentes", preferem viver parte e fora do controle dos brancos. Uma instituio, de origem catlica, queregula as relaes inter-raciais de maneira a evitar todo cho.que traumatizante entre osindivduos, o "apadrinhamento"; o negro(da classe baixa escome,,para seus filhos,padrinhos ou madrinhas pertencentes classe dos brancos, mais elevadas, e como oparentesco espiritual considerado ainda mais importante do que o parentescocarnal, os brancos e os negros tm entre si relaes afetivas e se ajudam mutuamente;mas por outroUado, como o apadrinhamento se faz segundo a linha hierrquica, estaafetividade no impede a subordinao de uma cor outra, o que faz com que onegro no espere do branco seno favores, no lhe copie os modelos de vida; notenta integrar-se no seu grupo, preferindo ficar "entre os seus", onde no sofrer, naverdade, qualquer frustrao, j que evita a luta. A festa, por outro lado, misturabem, numa mesma alegria, as etnias e as cores, mas cada uma fica separada; nasprocisses religiosas, as confrarias dos negros vm na frente e a confraria dos brancosvm em seguida, com as autoridades municipais; os brancos danam nos sales, osnegros na rua; as cores se acotovelam mais do que se fundem verdadeiramente.Assim, se o grupo negro tem, em toda a Amrica Latina, ao contrrio da Amricaanglo-saxnia, relaes amigveis com os outros grupos raciais, permanece separado

    _na vida privada, familiar e cotidiana.( 14).(14) Roger Bastide,^s Amhcas negras, citado, p. 182-183.

    68

    Ocorre que__na formao sociaj_aitalista a^organizao socialflistrinill f rr>l et ct^ FIr> r^^ il^ r^^ T."^^

  • deixam contaminar por \outras religies populares, como o Calimh dos ndios ou oespiritismo dos brancos, os verdadeiros candombls formaram uma Federao(apesar das rivalidades que existem entre as seitas) para controlar a fidelidade snormas do passado(l6). O Brasil nunca esteve totalmente cortado da frica e, mesmodepois de uma pausa relativa, as Comunicaes recomeam atualmente, o que fazcom que as seitas afro-brasileiras permaneam em contato com as religies mes(17).

    Religies vivas: O mesmo no se d com relao a outras religies afro--americanas,e'm,particular|com o Vodu do Haiti. Primeiro, porque a independnciada ilha remonta ao comeo do sculo XIX e levou ruptura com a frica, enquantopara o Brasil a ligao continuava. Em segundo lugar, porque esta independnciaconduziu eliminao da populao branca. Os negros no tinham mais que lutarcontra a vontade assimilatria desta ltima, nem que erigir institucionalmente;seuprotesto duplo, como nas outras Antilhas ou no continente, de um lado contra ospreconceitos raciais, e de outro contra a imposio de valores acidentais(lS). Oresultado foi a falta de centralizao para uma religio que, uma vez cortada asamarras da frica, rompeu-se em mltiplas seitas , a partir de um ponfp inicialcomum, evoluam cada uma sua maneira(19). Na verdade, existem tantos Vodusquanto so as regies da ilha e, para uma mesma regio, vari. coes sensveis de umlugar de culto a outro(20). Enfim: tendo-se tornado o Vodu, como dissemos, emvistas da falta de luta contra a cultura europeia, a expresso de organizao, dosbens e das aspiraes da sociedade camponesa nacional, mudar por conseguinte, medida em que se modificarem as estruturas agrrias(21).

    As religies que se estabilizaram, ou se acham "conservadas" e asreligies "vivas", portanto";' pdrrTsr tomadas como duas modali-dades distintas de organizao da conscincia social das populaesnegras e. jaulatas. -Ocorre q ue na religio.Tcnsciiiciacrticasempraparece de^Jorma_^inocente", estilizada, sublimada, invertfd. Nareligio negra, o negro tambm se jefugia, preserva, organiza, emface do branco, da religio do branco, do poder estatal ou outrasexpresses das relaes de alienao que fundamentam asrelaessociais. No Brasil, os centros e terreiros afro-brasileiros so obrigadosa registrar-se na polcia, o que no ocorre com outras igrejas e seitas.

    A maioria dos pesquisadores reconhece que nas religies negrasda Amrica Latina e Caribe ^ sto presentes traos culturais africa-noS-,_AQ lado da msica, do folclore e da magia, a religio umaesjera da vida social na qual parecem estar retidos muitos traosculturais de origem africana. Mesmo quando a reiigio negra, em

    fartem e nt~*impregnada de elementos provenientesdo espintisjnOjjDU do catolicisnip, mesmo nesse caso os pesquisado-

    (16) Roger Bastfde, Op. cit., p, 121.(17) Roger Bastide, Op. cit., p. 121.(18) Roger Bastide, As Amricas negras, citado, p. 122.(19) Roger Bastide, Op. dl., p. 123.(20) Roger Basti de, Op. cit., p. 123.(21) Reger Baslide, Op. cit., p. 123.-124

    70

    rs tendem a_ ^

    religm dFBsejfjricna- Alguns autores sugerem que o emprstimodeeTmhtos culturais noafricanos-catolicismo.espiritismo.religtoindgena - no altera o espiVifn afhVanr. Ha r^lipin ngffrfl Mpnn

    fni bastante profunda edemorada, ainda nesse caso q religio (a.ojado do folclore, msica,magia) considerada uma ^g^j^^jaTlia q"* "prevalecem ou^persistem elementos culturais africanosjssa a interpretao queHerskovits ora explicita ora sugere.

    A msica, o folclore, a magia e a religio, em conjunto, retiveram os seuscaractersticos africanos mais do que a vida econmica, a tecnologia ou a arte; aopasso que a lngua e as estruturas sociais baseadas no parentesco e na associaolivre tendem avariaro longo de todas as gradaes observadas.

    Estas diferenas so provavelmente devidas s circunstncias da vida escrava econfirmam as observaes de senso comum feitas durante a vigncia da escravatura.Os senhores de escravos estavam basicamente interessados nos aspectos tecnolgicose econmicos da vida dos escravos, pois que as condies de vida destes, comoescravos, pervertia qualquer padro de estrutura social que os negros quisessempreservar. Ao mesmo tempo, fossem quais fossem as estrias contadas ou canescantadas, isso fazia pouca diferena para os senhores, e poucos eram os obstculosopostos ao seu modo de reteno. No caso da religio, os controles externos eram devrios tipos e eram respondidos em diferentes formas, conforme se reflete na posiointermdia deste elemento cultural. A magia, que tende a tornar-se clandestina sobpresso e pode mais facilmente ser praticada sem direo (neste caso de particularsignificao a fora especfica das compulses psicolgicas) persistiu numa formareconhecvel em toda a parte, particularmente porque a similaridade entre a magiaafricana e a europeia to grande que uma refora a outra. A incapacidade da arteafricana para sobreviver, exceto na Guiana e, em menor grau, no Brasil, compreensvel, desde que lembremos que a vida do escravo permitia pouco lazer eoferecia escasso estmulo para a produo artstica, seja no estilo aborgene africano,seja em outro (22).

    Diante dessa problemtica/Bastide sugere que as religies negrasno so africanas, mas principalmente sincrticas~Para ele o trficod& africanos e a escravizao destes destruram amplameri!~a~cultura afrcaqa. ' ~

    Aqui fcil discernir tendncias gerais, ou mesmo leis, que se verificam em todosos pases da Amrica Latina, das Antilhas (com exceo, naturalmente, das Antilhasinglesas, protestantes) at Argentina:

    l) Etnicamente, o sincretismo tanto mais pronunciado se passamos dosdaomeanos (Casa das Minas) aos yoruba e. destes ltimos, aos bantos. os maispermeveis de todos s influncias exteriores:

    (22) Melville J. Herskovits, The New World negro, citado, p. 55.

    71

  • 2) Ecologicamente, o sincretismo tanto mais pronunciado se passamos daszonas rurais, onde a mestiagem cultural intensa, s cidades, onde os escravos, osnegros "livres" e seus descendentes puderam agrupar-se em corporaes e "naes";

    3) Institucionalmente, o sincretismo tanto mais acentuado, se passamos dasreligies "em conserva" s religies vivas, j que a vida de um organismo, tanto socialcomo biolgica, consiste em assimilar o que vem de fora;

    4) Sociologicamente, e seguindo o que G. Gurvitch chamou de "a sociologia emprofundidade", as formas de sincretismo variam de natureza quando passamos donvel morfolgico (sincretismo em mosaico) ao nvel institucional (com, entre outros,o sistema das correspondncias, deuses africanos-santos catlicos) e do nvelinstitucional ao nvel dos fatos de conscincia coletiva (fenmenos de.reinterpretao);

    5) Enfim, preciso considerar a natureza dos fatos estudados. A regra para areligio continua sendo o estabelecimentodecorrespondncias,e a regra para a magiaa da acumulao(23).

    O sincretismo por correspondncia Deuses-Santos o processo mais fundamental,alm de ser o mais estudado. Pode ser explicado historicamente, pela necessidade quetinham os escravos, na poca colonial, de dissumilar aos olhos dos brancos suascerimnias pags; danavam ento diante de um altar catlico, o que fazia com queseus senhores, mesmo achando as coisas esquisitas, no imaginassem que as danasdos negros se dirigiam, muito alm das litografias ou das esttuas dos santos, s-divindades africanas. Ainda hoje, os sacerdotes ou sacerdotisas do Brasil reconhecemque o sincretismo no mais do que uma mscara dos brancos posta nos deusesnegros(24). ^,

    Ao longo dos sculos de escravido, as relaes de dominaopoltica e apropriao econmica permitiram casta dos senhoresdestruir e recriar, ou reestruturar, os elementos culturais da casta dos

    escravos. Note-se que a escravatura fni a forma assumida pela- \ culturao dos africanos; e que essa aculturao foi forada,

    . subalterna e organizada segundo os interesses e o predomnio da\casta dos brancos. ASSim. tambm para hastirip n i e era_a'frjr.gmn SP_transforrna em negro, pela intermediaco da' escravatura. Nesseprocesso, a religio negra formada como uma totalidade sincrticamais ou menos autnoma. Nessa perspectiva de interpretao queBastide busca as mesclas e as correspondncias entre divindadesnegras e brancas, ou catlicas e afro-americanas. o que ele registranos dados da tabela V.

    J est sugerido que a religio negra uma religio de vencidos;de vencidos que guardam na prtica religiosa um dado fundamentalda resistncia ao domnio do vencedor. Religio de vencidos,subcultura ou contracultura, estas so hipteses ou interpretaesque surgem em algumas anlises. Por sob os africanismos, ou sob as

    (23) Roger Baslide, As Amricas negras, citado, p. 142-143.(24) Roger Bastide, Op. cit.. p. 144.

    72

    mesclas e correspondncias do sincretismo religioso, haveria umasubcultura ou contracultura, de uma categoria social subordinada,subalterna.

    Tem-se frequentemente observado que, quando um povo invasor impunha a suareligio ao povo vencido, produzia-se um desnivelamento dos valores, consecutivo passagem da sociedade mais ou menos igualitria para a sociedade mais ou menosestratificada. A religio do vencedor se tornava a nica religio pblica vlida para amassa total da populao, enquanto a religio vencida (e aqui tornamos a encontraras alternativas do comportamento coletivo) se degrada em magia ou se metamorfo-seia em religio de mistrios, fundada na iniciao e no segredo. Ambos osfenmenos so encontrados no Brasil, bem como no resto das duas Amricas negras.O candombl se refugia no segredo, celebra-se nos bairros das cidades, em casasisoladas ou em esconderijos das florestas tropicais; tende a se tornar um culto t demistrio; nele no se entra obrigatoriamente por pertencer-se a uma linhagem, maspor uma iniciao voluntria. Mas esse segredo inquieta o branco: ele sente que, norecinto das seitas fechadas, manipulam-se foras temveis, e como nem sempre eletem a conscincia tranquila em suas relaes com o negro, receia que tais forassejam manipuladas contra ele. Receio absolutamente sem fundamento. Com efeito,os escravos se servirem de Exu, de Ogum ou das ervas de Ocem para lutar contra aopresso econmica e racial da classe dominante(25).

    Essa interpretao bastante atraente. Ela apresenta elementosconvincentes. Mostra que o negro da ^m/r'''a T at'"a_**^rvny nnsculo XX. retm ou recria elementos culturais de origem africanapara defender-se ou opor-se ao domnio exercido pelo branco. Nessesentid~ a ^religio negra, sincrtica ou no, uma espcie decatacumba espiritual, na qual o negro evade-se, esconde-se, resisteou articula alguma luta contra a supremacia do branco.

    Mas ainterpretao da religiQ negra, corno urna forma de contra-, cultura no esclarece duas questes bsicas. Em primeiro lugar, elaimplica a oposio negro-branco, apenas ou fundamentalmenteenquanto raas. Sim, no h dvida que as relaes de interdepen-dncia e alienao de branco e negro geram um antagonismoinsuportvel para o negro. ideologia da supremacia do branco(nos pases em que o branco domina as estruturas poltico--econmicas de poder) o negro tende a opor uma contra-ideologia.Na viso do mundo do negro, enquanto categoria racial criada nasrelaes sociais de produo em que se acha tambm o branco, claro que a religio pode ganhar o carter de uma contracultura, ouinscrever-se nos quadros de uma contra-ideologia. Para isso, e em

    (25) Roger Bastide, As religies africanas no Brasil, 2 vols., traduo de MariaEloisa Captellato, e Olvia Krahenbuhl, Livraria Pioneira Editora, So Paulo, 1971,segundb volume, p. 544.

    73

  • I l Ti componente crtico na religio negra. O candomblbrasileiro, o vodu haitiano e a santeria cubana contm elementossociais que expressam vises do mundo que no so compartilhadaspelo branco; ou somente so compartilhadas por brancos que aderem negritude. E so muitos os indcios de que os africanismos esincretismos 'escondem alguma resistncia viso do mundo expressana ideologia racial do branco, ou em segmentos da sua .culturadominante.

    Mas sugiro que os africanismos persistentes na religio negra, ouas formas sincrticas assumidas por ela, no lhe conferem, sem mais,o carter de uma frente de resistncia em defesa do negro, e emoposio ao branco. claro_gue_as._relaes de interdependncia .

    ^aliejiaa vigentes nas relaes entre o negro e o brancojjeram. antagOQsrnQS.0quenoclaro que esses antagonismos expressam eesgotam a condio do negro, em face do branco. O negro de quefalo, na Amrica Latina e no Caribe, tambm operrio industrial,operrio agrcola, empregado, funcionrio, soldado, estudante, co-merciante, intelectual, pequeno-burgus etc. Inclusive o branco.Uma questo central, portanto, esclarecer como^raa e classe sesubsumem reciprocamente; ou como e quando a poltica dosantagonismos de raa implica a poltica dos antagonismos de classe,ou se desdcbra nela.

    III

    e a'2 aa Q

    P

    Is s l "l-si 35 (3 { W W3 W W CO W

    ov*s

    Conscincia poltica

    A metajnjjrji^e_doescravo em negro e mulato tambm ametamorfose desama forrnlTde alienao a outra. Na escravatura, oescravo alienado no produto do seu trabalho e em sua pessoa. E nessa condio que ele reelabora ou recria elementos da culturaafricana, em combinao com a cultura da sua prpria condioescrava. Nesse contexto^ ai^religio, maj,ia, msica,jrolcloree^ lnguatornam-se a expresso de um empenho em garantir um^universoscio-cultural restrito, no qual o escravo se refugia, expressa., jjirma

    75

  • resiste cultura da escravido, A casta dos senhores concede_esserefgicu Inclusive toma esse universo scio-cultural como prova deque. .a casta dos escravos de fato outra raa. A despeito dissojisrelaes, os valores e as estralaras articulados em torno da religio,magia, msica, folclore e lngua acabam por tornar-se o universoScio-cultural em que o escravo se refugia e guarda a sua rebeldia, oseu protesto, a sua negao da condio escrava. Aqui, o negro e omulato esto subsumidos na condio escrava, da casta escrava. Aopasso que na sociedade de .classes o negro..__um. trabalhador livre.Apesar das condies adversas nas quais ele circula no mercado defora de trabalho (quando obrigado a competir com o branco^ndio, mestio ou outra categoria racial) na sociedade de classes onegro pode negociar a sua fora de trabalho. Como pessoa, formalmente livre,_ um cidado, ainda que de segunda classe, ousubalterno. Mas_._alienado no produto do seu trabalho (quandoassalariado) e na sua condio de cidado: negro ou mulato,ademais de assalariado. Alm de operrio industrial ou agrcola,funcionrio ou empregado, ele negro ou mulato. Nessa condio,novamente recria e reelabora os elementos culturais da sua condiosocial e racial. Como negro, ou mulato, e assalariado, ele recria ereelabora os elementos culturais da sua condio de classe e do seupassado escravo. A experincia coletiva e histrica de escravo, pordois, trs ou quatro sculos, recriada e reelaborada juntamentecom a experincia presente de negro ou mulato membro da classeoperria (urbana e rural), da classe mdia, pequena-burguesia ououtra categoria social.

    Na sociedade de classes^ no sculo XX, portanto, as formas, deconscincia de alienao po^nTse7Tira"rsTiferencTdas. verdadeque a religio, a magia, a msica, o folclore, a lngua continuam a seresferas de um universo scio-cultural importante. Mas as significa-es scio-culturais e polticas desse universo so dadas pelasrelaes de interdependncia, alienao e antagonismo das classessociais. A condio de raa e classe subsumem-se reciprocamente.

    Os contedos polticos da condio social (poltico-econmica) donegro, entretanto, no se desenvolvem a no ser de forma irregular,contraditria mesmo. A condio duplamente subalterna da maioriada populao negra e mulata, em quase todos os pases da AmricaLatina e Caribe, dificulta bastante a transio de uma conscincia"ingnua" (ou mesmo alienada) da alienao, para uma conscinciaadequada, politicamente organizada, crtica. O negro e o mulatocom frequncia so-jduplamente alienados, porque so alienadoscomo membros de uma raa diTernfeTinferior, em face do branco ecomo membros de uma classe social tambm subordinada a outra,na" q uaTTrina. p ode ser branca. H casos em que a situao se

    76

    complica, pois que a maioria negra subordinada a grupos brancose mulatos.

    Nessas condies, da mesma forma que entre outras raas e classessubalternas, entre os negros e mulatos ^conscinciade alienaono se apresenta imediatamente como uma conscincia poltica. Emtda^ategria social subalterna, a conscincia poltica da situaotende a aparecer mesclada com elementos religiosos, morais, ldicos~trosL Os prprios valores polticos das raas ou classes dominan-tes invadem e permeiam a conscincia dos subalternos, mesclandoou confundindo a sua compreenso das prprias condies de vida.

    A dupla alienao em que se acha o negro, em quase todos ospases da Amrica Latina e Caribe, tem dado origem a vriasmodalidades de reaes. Alm da religio e arte em geral, tambmnas organizaes polticas (associaes, sindicatos, partidos) o negroest organizando a sua conscincia e prtica poltica. No Brasil, porexemplo, ele organizou na dcada dos anos trinta a Frente NegraBrasileira, que foi extinta pela ditadura instaurada em 1937, porGetulio Vargas. Entre a abolio da escravatura e a criao de ummovimento mais explicitamente poltico, surgem vrias manifestaesbastante significativas.

    A formao de clubes e associaes no "meio negro" data de 1915, tendo-seintensificado por volta do perodo de 1918-1924. As organizaes aparecidas novisavam, porm, "arregimentao da raa", propondo-se somente fins "culturais ebeneficientes". A evoluo naquele sentido se operou naturalmente, depois de 1927,em algumas dessas associaes, sob a presso da prpria situao econmica e socialdo negro em So Paulo. Tomemos por exemplo o Centro Cvico Palmares: "Afinalidade nitidamente cultural com que surgiu - organizao de uma biblioteca - foisuperada por fora das condies em que vivamos, passando essa sociedade a terpapel na defesa dos negros e dos seus direitos". Outras organizaes^, nascidas noambiente criado pela incipiente afirmao coletiva do elemento negro, aparecem compropsitos mais definidos e combativos. A Frente Negra Brasileira, por exemplo, quese constituiu em 1931, propunha-se a "congregar, educar e orientar" os negros doEstado de So Paulo(26).

    Evoluo paralela se verificou com a imprensa negra da cidade. Os primeirosjornais negros, publicados entre 1915 e 1922, assumem uma orientao literria. Mas,logo, se tornam "um rgo de educao" e um "rgo de protesto", por causa dosproblemas sociais que afligiam as pessoas de cor, que formavam o seu pblico (27).

    (26) Florestan Fernandes, "A luta contra o preconceito de cor", em Roger Bastidee Florestan Fernandes, Brancos e negros em So Paulo, 29 edio, Companhia EditoraNacional, So Paulo, 1959, p. 269-318; citao das p. 281-282.

    (27) Florestan Fernandes, "A luta contra o preconceito de cor", citado, p. 283.Consultar tambm, do mesmo autor: A integrao do negro na sociedade de classes, 2vols., Dominus Editora. So Paulo, 1965.

    77

  • Ao mesmo tempo, o negro brasileiro realiza congressos, debates ediscusses, para retomar, desenvolver ou aprofundar a anlise dosseus problemas, em face do branco e de si mesmo. Tambm organizamovimentos artsticos, como teatro, dana e outros, para recriar edesenvolver a sua criatividade e marcar a individualidade e origina-lidade da sua maneira de viver, sentir, pensar, fazer. Em anosrecentes, entre 1945 e 1975, o negro brasileiro tem votado naseleies polticas em candidatos negros. No possuem um partido, oque proibido pela constituio adotada pelo governo em 1969. Masos grupos negros, em vrios dos estados em que se organizaadministrativamente o pas, tm eleito vereadores, deputados esta-duais e deputados federais. H uma evidente politizao dos gruposnegros, tanto os proletrios como os que ingressaram ou comeama ingressar nas classes mdias. -No conjunto, e em perspectivahistrica, o negro brasileiro evolui de uma situao de nomia,

    .havida logo aps a abolio da escravatura, para uma situao declasse. Depois da abolio, ocorrida em 1888, em vrias partes do paso negro tornou-se um desempregado, e mesmo lumpenizou-se devidos condies adversas que precisou enfrentar, na competio coni obranco, o imigrante, o italiano, o alemo e outras categorias doambiente racial brasileiro. Nessa poca ele talvez o principalelemento do exrcito de trabalhadores de reserva. Depois, poucoa pouco,, vai sendo absorvido nas ocupaes assalariadas que semultiplicam e diferenciam, com a urbanizao e a industrializao.Assmf,p~uco~a ^xnico, ele se transforma em negro operrio, naindstria ou na agricultura. Note-se, negro e operrio, o que tem sido adupla condio de vida da maioria dentre os negros e mulatos.

    bvio que as mudanas das condies de conscincia social noso homogneas nem semelhantes nos vrios pases da AmricaLatina e do Caribe. Em cada um, a formao social capitalistaassume uma feio singular. Alm disso, so diversas as estruturassociais em cada sociedade; distinguem-se os graus de urbanizao,industrializao, desenvolvimento agrrio, as composies demogr-ficas (negros, mulatos, brancos, ndios, mestios, imigrantes, descen-dentes de europeus, asiticos etc.) e as distribuies das raas pelasclasses sociais. No conjunto, no entanto, parece evidente a progressi-va transio de uma conscincia religiosa da condio do negro parauma conscincia poltica. Note-se que a transio da conscinciareligiosa para a conscincia poltica no significa, em nenhumahiptese, a substituio de uma por outra. Elas no so nemexclusivas nem nicas. H, por exemplo, manifestaes artsticas quepodem expressar outra ou outras modalidades de conscincia dacondio alienada em que se sente o negro. A poesia, o teatro, a

    ,a pintura, o cinema podem tanto exprimir formas de

    78

    conscincia religiosa e poltica como outras maneiras de compreen-der, aceitar ou rejeitar a condio de raa subalterna na qual o negrooi posto pelo branco (2 8)._So vrias as modalidads.d.cojiscina

    que o negro tem sido levado a formular e desenvolver. Comotendncia, h uma conscincia poltica que