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Idade Média e Cinema

Idade Média e Cinema (Caderno) (1)

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Idade Média e Cinema

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Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS

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Vice-reitor

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Instituto Humanitas Unisinos – IHU

Diretor

Inácio Neutzling, SJ

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Cadernos IHU em formação

Ano 2 – Nº 11 – 2006

ISSN 1807-7862

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Prof. Dr. Inácio Neutzling – Unisinos

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www.unisinos.br/ihu

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Sumário

Apresentação ................................................................................................................ 5

A necessidade de Idade MédiaPor Nilton Mullet Pereira ...................................................................................................... 6

Como se vê a Idade Média?Entrevista com José D’Assunção Barros................................................................................ 10

Cinema e históriaEntrevista com José Rivair Macedo....................................................................................... 15

A Idade Média através do cinemaEntrevista com José Rivair de Macedo e José Alberto Baldissera .......................................... 22

O cinema e a reconstituição do passadoEntrevista com Miriam Rossini .............................................................................................. 26

A desmistificação do símbolo patriótico francêsEntrevista com Cybele Crossetti de Almeida ......................................................................... 28

Rei Arthur: o homem detrás da lendaEntrevista com José Rivair Macedo....................................................................................... 32

O filme El Cid e uma realidade unificada falsaEntrevista com Rejane Barreto Jardim .................................................................................. 35

Em nome de Deus: um retrato de épocaEntrevista com Nilton Mullet Pereira e Alfredo Culetton........................................................ 38

A cidade, o filósofo e a mulher: Em nome de DeusPor Nilton Mullet Pereira ...................................................................................................... 43

Em nome de Deus e o amor cortêsEntrevista com Nilton Mullet Pereira..................................................................................... 49

Os monges, Aristóteles e o riso na Idade MédiaEntrevista com José Alberto Baldissera ................................................................................. 51

Uma sátira à realidade italiana dos anos 1960Entrevista com Ricardo Fitz .................................................................................................. 56

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O Incrível Exército de Brancaleone: uma leitura do filmePor Ricardo Fitz.................................................................................................................... 61

Henrique V - Encenações shakespearianasEntrevista com Cybele Crossetti de Almeida ......................................................................... 64

Guerra e sociedade: uma discussão sobre o filme Henrique VPor Cybele Crossetti de Almeida .......................................................................................... 66

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Apresentação

Esta publicação foi organizada para ofereceraos interessados em Estudos Medievais, diversasentrevistas e alguns artigos que tratam de temáti-cas diversas, abordando, sobretudo, as represen-tações construídas pelo cinema acerca da IdadeMédia. Nosso objetivo foi sistematizar as produ-ções da revista IHU On-Line, editadas periodica-mente, principalmente na época da realização daprimeira edição do evento Idade Média e Cine-

ma. Tais produções consistem em entrevistas comprofessores que comentaram os filmes exibidosnos encontros dos sábados pela manhã, no Insti-tuto Humanitas Unisinos, e em artigos que, paraalém das entrevistas, mostram os argumentos dealguns professores com relação à leitura que o ci-nema realizou sobre determinado acontecimentoda época medieval.

O evento Idade Média e Cinema, hoje nasua segunda edição, foi realizado com o objetivo

de disponibilizar à comunidade acadêmica em ge-ral, aos estudantes e professores de História, o de-bate sobre o papel do cinema na constituição domodo como a nossa sociedade tem olhado para acivilização medieval e sobre os estereótipos comque os filmes têm contribuído para construir e re-produzir sobre esse período da nossa história.

Nossos agradecimentos a todos os que, dealgum modo, colaboraram para a realização doevento Idade Média e Cinema e para a publi-cação do presente caderno IHU em formação

que, a propósito, intitulamos de Idade Média e

Cinema.

Nilton Mullet PereiraJosé Alberto Baldissera

Organizadores

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A necessidade de Idade Média

Por Nilton Mullet Pereira

Nilton Mullet Pereira é graduado em Histó-ria e mestre e doutor em Educação pela UFRGS.Sua tese leva o título História de amor na educa-ção freiriana: pedagogia do oprimido. Atual-mente é professor de Prática de Ensino em His-tória da UFRGS, onde desenvolve projeto depesquisa sobre o Ensino de História, medievalis-mo e etnocentrismo.

Vivemos tempos nos quais se verifica umdesgaste das nossas visões de mundo herdadasdo Iluminismo e em que a crítica da moral libe-ral e burguesa elaborada por pensadores comoNietzsche1, toma fôlego e importância nos camposda história e da filosofia, sobretudo por meio dapesquisa e da obra de pensadores como Foucaulte Deleuze. É possível observar tal movimento por-que há um evidente questionamento da pesquisae do pensamento com relação ao eurocentrismodo Esclarecimento, prova disso é o aprofunda-mento da crítica ao modelo eurocêntrico, tanto naárea da pesquisa acadêmica, com o avanço dosestudos sobre multiculturalismo, quanto nas ma-nifestações de grupos étnicos, culturais ou de gê-nero, antes silenciados pela hegemonia dos dis-cursos eurocêntricos. Assim sendo, abre-se umimenso espaço para a afirmação de identidadesétnicas e de gênero, que foram, por muito tempo,negligenciadas pelo estudo acadêmico, pelas es-colas e pelo Estado.

Ao mesmo tempo, ocorreu, no âmbito dahistoriografia, o avanço das pesquisas acadêmicasque têm como referência à história cultural, incor-

porando à análise histórica fontes até então poucoconsideradas, como a literatura, a crônica e a arte.Do mesmo modo que essa revolução das fontespor que passou a história, sobretudo desde o apa-recimento da nova história francesa, nos anos1980, desenvolveu-se a crítica à história econômi-ca, e emergiu também um profundo questiona-mento à idéia de um relato histórico capaz de de-cifrar as entranhas do real. Esse questionamentodistanciou os historiadores do sonho positivista deuma identificação pura e simples entre o relatohistórico e uma realidade que lhe seria exterior. Apropósito disso, Rago afirma que

a incorporação da subjetividade como dimensão a serhistoricizada e incorporada pelo historiador resulta deuma profunda desconfiança na existência de uma reali-dade organizada, exterior, pronta para ser definitiva-mente decifrada2.

À crítica ao modelo eurocêntrico e à incorpo-ração da subjetividade como dimensão a ser con-siderada pelo historiador segue-se, em primeiro, orompimento com uma história linear e evolucio-nista, acostumada a abordar o passado com basenos conceitos do presente e, em segundo, uma re-volução documental, que fez inserirem-se notrabalho de pesquisa novas fontes de estudo.

Na esteira desse movimento, ocorre, noBrasil, um aumento do interesse da pesquisapela Idade Média, tanto em função do reconhe-cimento do papel da civilização medieval para aconstrução da Europa Moderna, quanto devidoà natureza e à diversidade de fontes de pesquisa(biografias, crônicas, romances, poesia, icono-

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1 NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. Traduzido por Paulo César de Souza. São Paulo: Companhiadas Letras, 1998.

2 RAGO, Margareth. A nova historiografia brasileira. In: CUADERNOS DEL CLAEH n. 83-4. Montevideo, 2ª serie, año 24,1999/1-2. ISBN 0797-6062, p. 257.

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grafia....) utilizadas para a reconstrução do pas-sado medieval.

Franco Jr., no prefácio de uma das obrasmais importantes dos estudos de Idade Média noBrasil, lembra que, em 1986, data da primeira edi-ção de A Idade Média, o nascimento do Oci-

dente, o interesse pelos estudos medievais noBrasil crescia bastante. É bem verdade, com umlongo período de atraso em relação tanto à Euro-pa e aos EUA, quanto à Argentina e ao Japão. Naótica do autor, tal interesse decorria “da crescentecompreensão da importância que teve o períodomedieval na formação da Civilização Ocidental”3.

Em 2001, Franco Jr. relança sua obra, revistae ampliada, sob o argumento de que a “onda” deinteresse pela Idade Média, nas décadas anterio-res, não se constituiu em “mero modismo”. Nosúltimos anos, esse interesse consolidou-se,

atraiu um público fiel aos cursos e palestras sobre otema, permitiu a tradução de diversas obras importan-tes sobre o assunto, gerou mesmo uma certa produçãonacional no setor4.

A partir de então, os estudos medievais avan-çam de modo significativo em diversas áreas de co-nhecimento – filosofia, história, literatura, educa-ção – tendo como resultado um aumento da pro-dução intelectual sobre Idade Média no Brasil, nosúltimos anos. Os encontros da Associação Brasilei-ra de Estudos Medievais (ABREM), entidade que reú-ne os medievalistas brasileiros, pesquisadores e es-tudantes, que ocorrem bienalmente, demonstram ariqueza, a variedade e a vitalidade dos estudos me-dievais no Brasil. A entidade foi constituída em 22de março de 1996 e tem por finalidade o incentivoà pesquisa e ao ensino dos estudos medievais,além da divulgação e do “intercâmbio de produçãocientífica sobre o medievo”5.

É notável, portanto, que a pesquisa sobre acivilização medieval cresceu muito no Brasil. Estu-dantes e pesquisadores vêm elaborando disserta-ções e teses, preenchendo lacunas e, às vezes, in-vertendo noções cristalizadas pela história tradi-

cional, acerca do medievo. Trata-se de levar a efeitoo mesmo movimento dos pesquisadores e medie-valistas europeus, os quais promoveram uma ver-dadeira revolução no modo como a história olhapara a Idade Média. no Brasil, por exemplo, des-taca-se, entre outros, o trabalho de José Rivairde Macedo acerca da cruzada Albigense, tese dedoutorado do referido medievalista, a qual per-mitiu lançar novos olhares acerca do fenômenodo catarismo e da cruzada contra os “puros”.

Apesar do avanço incontestável dos estudossobre a Idade Média, os bancos escolares ainda es-tão longe de romper com a velha noção de “idadedas trevas”. O senso comum da nossa sociedadeainda preserva a idéia dessa Idade Média obscura,conseqüência de um longo período de educaçãoque privilegia a sociedade contemporânea como oápice do desenvolvimento humano, noção máxi-ma de uma história linear e evolucionista.

Le Goff argumenta que desde o século XIX,apesar de uma relativa reabilitação do períodomedieval, seja como fonte de inspiração, sejacomo fonte de estudo científico, a Idade Média seconverteu em uma espécie de folclore: época decaos e trevas, na qual ainda não se haviam forma-do nações e os homens europeus ainda viviamnum estado de sono profundo, desde a decadên-cia do Império Romano e a derrocada do mundoclássico. Esse modo de olhar para a Idade Médiainiciou a ser construído no Renascimento, épocana qual supunham os pensadores novecentistas,tivesse ocorrido o início do amadurecimento dasnações. Menciona Le Goff que “La Edad Media seconvierte en un folclore, en una especie de infan-cia de la nación, que por suerte ha entrado en laedad adulta con el Renacimiento”6.

Essa perspectiva, protagonizada pelo pensa-mento iluminista é, via de regra, reproduzida pe-los professores de história nas escolas, no Brasil,para quem a Idade Média é apenas um intervalode tempo mórbido e escuro, a partir do qual as na-ções emergem e iniciam uma escalada de distan-

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

3 FRANCO JR, Hilário. A Idade Média: O Nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2001, p.07.4 Ibidem, 2001, p.07.5 Apresentação do site da ABREM, pesquisado em 07 de agosto de 2006.6 “a Idade Média se converteu em um folclore, em uma espécie de infância das nações, que por sorte entraram na idade adulta

com o Renascimento”. (LE GOFF, Jacques. En busca de la Edad Media. Buenos Aires: Paidós, 2004. p. 49).

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ciamento de um estado infantil e selvagem à ma-turidade e à idade adulta, e o homem medieval éum estranho/criança que funciona como um espe-lho para a constituição do homem racional, adultoe senhor de si mesmo – o sujeito moderno.

O ensino escolar utiliza-se de uma linguagemmoderna fundada inteiramente na palavra escrita,como se essa fosse o meio de comunicação uni-versal para qualquer época ou civilização. Mace-do estranha o fato de os instrumentos didáticosacessarem o modo de vida medieval apenas pormeio da palavra escrita, pois, nessa época, a maio-ria das pessoas era analfabeta, o que torna possí-vel afirmar que a sociedade medieval era uma ci-vilização dos gestos, da palavra e da voz. O autorsustenta que seria preciso explorar outras possibi-lidades de comunicação na relação pedagógica,“como a imagem e a oralidade”7.

Essa constatação de Macedo mostra que aimportância do modelo de olhar para a história,tributário da filosofia iluminista, no ensino deHistória, permite, ainda hoje, colocar a Europado Esclarecimento e sua suposta “missão civili-zadora”, como a referência com base na qual seconstrói conhecimento da civilização medieval ede outros povos, estranhos ao modo de vidaeuropeu.

Então, o trabalho de muitos pesquisadores é,hoje, o de reconstruir a idéia de Idade Média, so-bretudo dessa Idade Média misteriosa e exóticaque transita no imaginário da nossa sociedade eque, de algum modo, mantém o quadro de umperíodo de trevas, no qual havia um flagelo da cul-tura e do logos. Sua tarefa é construir novas repre-sentações acerca da época medieval, liberando oque de rebeldia, de transgressão e de intensidadefora, por longos séculos, apagados da nossa tristememória, em favor do plano estático da guerra,da Igreja e da imobilidade social. Assim, o que sequer é fazer emergir o medievo, não como estrutu-ra imóvel e harmônica ou como modo de produ-ção que tudo gera e que todo o singular apaga emnome da totalidade, mas fazer aparecer o medie-vo como espaço plural: lá onde pensamos pormuito tempo havia apenas subsistência, estabili-

dade, religiosidade, ruralidade, poderíamos, en-tão, ver rebeldias, heresias, amores, atores surpre-endentes e criativos. Tudo isso é possível graças,em primeiro lugar, ao império do documento/mo-numento. O estudo do medievo se volta ao docu-mento para conjurar o segredo imposto pelos mo-dernos arautos da razão, aos passos afirmativosdados pelos homens medievais; em segundolugar, a crítica ao ensino de História Medieval,base principal pela qual as novas geraçõesconstituem suas concepções acerca da história edão continuidade ao discurso que sustenta anoção de “idade das trevas”.

Devido a esses questionamentos, o olhar lan-çado sobre a Idade Média está bastante preocupa-do em romper com o caráter evolucionista da nar-rativa histórico-linear, que fez, por longo tempo,nos bancos escolares e acadêmicos, o mundo me-dieval ser sinônimo de obscuridade e de apatiacultural.

A inversão da lógica da narrativa histórica quecostuma partir do modelo da Europa Esclarecidapara olhar para a Idade Média, possibilita o desen-volvimento dos estudos sobre o período, com basenas fontes primárias descritas no interior da singu-laridade daquela época, preservando, o mais pos-sível, a visão de mundo dos medievais sobre elesmesmos, e não a visão de mundo do presente, quecostumeiramente fora lançada sobre o medievo.Para isso, contribuíram, sobremaneira, o trabalhode historiadores da cepa de Marc Bloch, JacquesLe Goff e Georges Duby, entre outros.

O estudo da Idade Média pode nos levar aconhecer e a aprender com a experiência da vidade homens e de mulheres situados para além daEuropa do Esclarecimento, de maneira a permitira compreensão de muitas das perguntas que fize-mos a nós mesmos no nosso presente. Conheceras respostas que os medievais produziram para osproblemas do seu tempo, como fez Michel Fou-cault ao estudar os gregos, pode levar os homense as mulheres de hoje a aprender com tais expe-riências e a propor a construção de novos concei-tos para dar conta das questões que se colocam aopresente.

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7 MACEDO, José Rivair de. Repensando a Idade Média no ensino de História. In. KARNAL, Leandro (org.) História na sala de

aula: conceitos, práticas e propostas. São Paulo: Contexto, 2005. p. 118.

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A sociedade contemporânea é bem verdade,tem modificado substancialmente seu olhar sobrea Idade Média e distanciado-se, ao menos umpouco, da posição notadamente preconceituosa,herdada dos iluministas. A conseqüência disso é ointeresse que a Idade Média desperta, nos dias dehoje, na população em geral.

A civilização medieval exerce, sobretudo nocinema, um fascínio singular. Inúmeras produçõesprocuram mostrar o modo de vida e os eventosmais significativos da história dos homens medie-vais. Entretanto, Macedo, em entrevista publicadanesta edição, pergunta-se se efetivamente o olharque os contemporâneos lançam sobre a IdadeMédia se modificou. Para ele, “tal qual no passa-do, a Idade Média continua a ser vista não peloque ela foi, mas pelo que poderia ter sido”8. Dessemodo, em contraposição à Idade Média como ob-jeto de estudo da pesquisa, que, como dissemos,cresceu e se desenvolveu significativamente nasúltimas décadas no Brasil, existe o que Macedochama de “Idade Média Fantasiada”, justamenteaquela partilhada pela literatura, pela arte e, so-bretudo, pelo cinema. Numa sociedade de consu-mo como a nossa, a Idade Média tem funcionado“como um repositório de temas míticos, românti-cos, bélicos e propriamente imaginários”, concluio medievalista.

Foi com a preocupação de utilizar os avançosdos estudos acadêmicos sobre Idade Média paraprocurar desconstruir a velha idéia, marca do sen-so comum da nossa sociedade, do flagelo culturalda civilização medieval, que propusemos o cursoIdade Média e Cinema. Ele colocou sob os olhosatentos da crítica dos historiadores toda uma pro-dução cinematográfica e seu caráter pedagógico.Medievalistas e professores, ligados às instituiçõesde ensino superior do Estado, realizaram a leitura

da história, baseados na realização de produtorese diretores cinematográficos. Eles perguntaram-secomo o cinema tem olhado para a Idade Média?Quais os limites e as possibilidades da reconstitui-ção histórica do período, mediante as películasexibidas nos quatro cantos da Sociedade Ociden-tal? O que de fantasia e de verdade histórica sepode buscar nas telas de cinema em filmes comoJoana D’arc, O Incrível Exército de Brancaleo-ne, Em nome de Deus e tantos outros? Até queponto os dilemas e as preocupações que povo-am a nossa sociedade são projetados sobre a ci-vilização medieval, criando situações e históriastalvez apenas compreensíveis aos homens dopresente, e sem qualquer sentido para os homensmedievais?

Esse evento tentou desmascarar esse quadrofantasioso que, principalmente o cinema, tem criadoe recriado sobre a Idade Média, construindo a ma-neira como o senso comum na nossa sociedadeolha para o medievo. O evento colocou frente afrente a obra cinematográfica, respeitando-acomo obra de arte, e tentou decifrar aquilo que osolhos desatentos não enxergam: a história do con-texto da produção do filme e a história que, pre-tensamente ou não, a película projeta e introduzna ação dramática. A lição que todos tiramos foi ade que, quem sabe, hoje, estejamos muito maisinclinados em um fazer- história menos voltado aojulgamento do passado, e mais empenhado emdeixar falar os rastros deixados pela civilizaçãomedieval, ao tentar olhar para ela com os “olhosdela própria”. L‘homme medieval est notre prédé-cesseur et, en même temps, c’est un Autre (pas unétranger: três exactement, un autre) e til doit êtrecompris dans as spécificité inimitable9.

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8 Entrevista concedida à IHU On-Line em 29 de agosto de 2005, pelos professores José Rivair de Macedo e José AlbertoBaldissera.

9 “O homem medieval é nosso predecessor e, ao mesmo tempo, é um Outro (não um estrangeiro; exatamente um outro) e comotal deve ser compreendido na sua especificidade inimitável”. GOUREVITCH, Aaron. Indivíduo. La naissance de l’individu dansl’europe médiévale. Paris: Seuil, 1997. p. 308.

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Como se vê a Idade Média?

Entrevista com José D’Assunção Barros

José D’Assunção Barros é historiador e pro-fessor de História com Doutorado pela Universi-dade Federal Fluminense. Entre as obras mais re-centes de Barros, destacam-se os livros O Campo

da História. Petrópolis: Vozes, 2004 e O Proje-

to de Pesquisa em História. Petrópolis: Vozes,2005. O professor também possui formação emMúsica e leciona História da Arte e História daMúsica nos cursos de Graduação em Música doConservatório Brasileiro de Música. Coordena,em sua instituição de ensino, Universidade Severi-no Sombra (USS), o Laboratório da Imagem doSom, que se dedica ao estudo e promoção de ati-vidades relacionadas à integração entre história,imagem e som e, neste mesmo laboratório, desen-volve, conjuntamente com outros professores, umprojeto de pesquisa sobre História e Cinema. Bar-ros deu entrevista à IHU On-Line em 21 de agos-to de 2006.

IHU On-Line – Quais são as principais ca-

racterísticas nas representações da Idade

Média no cinema?

José D’Assunção Barros – A Idade Média, se-gundo penso, encontrou no cinema diversos tiposde “representações”. Para entendê-las, em toda asua riqueza e diversidade, devemos colocar duasordens principais de questões: uma se refere ao ci-nema como representação, de modo geral; outrase refere às representações mais específicas que aspessoas tendem a fazer da Idade Média, e que,embora não se refiram apenas ao cinema, tendema contaminar também o cinema quando a este seimpõe a tarefa de representar a Idade Média.

Ainda sem abordar o problema mais específi-co da Idade Média no Cinema, eu me perguntaria:

o que as pessoas, de modo mais geral, esperam deum filme quando este se propõe a interagir comum fundo histórico qualquer, não importa de qualperíodo? Respondo que as pessoas vão ao cine-ma, neste caso, para uma destas três coisas: parafugir da realidade com a qual convivem no seudia-a-dia; para ir ao encontro de uma realidadehistoricamente localizada, a qual desejam conhe-cer; e, por fim, para atingir uma outra realidade demodo indireto, por vezes a de sua própria época,de maneira cifrada. Para o caso da Idade Média,isso significa que o cinema poderá tratá-la oucomo uma “fantasia”, ou como uma “realidade” aser conhecida; ou como forma de se referir a umaoutra realidade para a qual a Idade Média seráapenas uma “metáfora”. Iremos encontrar nosdiversos filmes que se ambientaram na IdadeMédia não apenas estas três pretensões, comocombinações delas.

Representações mais específicas

Já com relação à Idade Média propriamentedita, e conseqüentemente às suas representaçõesno cinema, eu proporia exatamente esta pergun-ta: Como os historiadores e as pessoas mais co-muns vêem a Idade Média? Como elas a represen-tam para si mesmas? Esta segunda ordem dequestões é muito importante, porque o cinematambém é uma arte para as massas, para pessoascomuns, embora não seja apenas isso. Quero di-zer com isso que o cinema procura expressar pormeio dos seus filmes históricos diversas represen-tações da Idade Média (ou de qualquer outro pe-ríodo) que já estão disponíveis para as pessoas co-

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muns nos livros de história e nos livros de estórias.Além disso, o cinema procura dar a este públicoalgo que se refere aos seus desejos e temores maisíntimos e mais intensos, algo que tenha um signifi-cado verdadeiro para as suas vidas. Eu identifico –entre outras – algumas “Idades Médias” que seacham perfeitamente representadas no cinemapor meio dos filmes já produzidos até hoje, e queatendem a este objetivo de ir ao encontro do pú-blico por meio de seus desejos, de suas esperan-ças, de seus temores. Apenas para citar algumas,lembrarei aqui a “Idade Média da fé”, A “IdadeMédia obscura”, a “Idade Média de luz”, a “IdadeMédia encantada”, a “Idade Média heróica”, a“Idade Media passional”. Estas dimensões, e mui-tas outras, pertencem à Idade Média como perío-do histórico extremamente rico e complexo, mas,muitas vezes, o cinema trabalha sobre uma delas(ou sobre uma combinação delas) exatamentecomo há historiadores que tendem a representar aIdade Média, ora enfatizando um ou outro destesaspectos, ora combinando-os a fim de realizaruma representação mais complexa.

IHU On-Line – Qual seria o filme precursor

dessas representações? Que filmes o senhor

citaria como mais significativos dessa

época?

José D’Assunção Barros – Uma vez que lhedisse na resposta anterior que não há apenas umaúnica representação da Idade Média contempladapelo cinema, acho-me na obrigação de mencionaralguns exemplos sobre os vários casos. Não pode-rei esgotar todos os exemplos, pois, caso contrá-rio, a resposta se alongaria demais. Mas vão aquialguns. Para a primeira ordem de questões – a docinema que se aproxima da Idade Média como“fantasia”, “realidade” ou “metáfora” – eu come-çaria com um exemplo bem conhecido. O Feitiçode Áquila, um filme produzido em 1985 e queconstitui um dos mais belos roteiros ambientadosna Idade Média, faz-nos aproximar, por um lado,da Idade Média como “fantasia” e, por outro lado,coloca-nos em contacto com uma combinação deduas representações da Idade Média: a “IdadeMédia encantada” – isto é, aquela a que nos acos-tumamos desde crianças pelos contos de fadas – e

a “Idade Média passional”, esta Idade Média emque os sentimentos são vividos de maneira radi-calmente intensa, como é o caso do amor trova-doresco, o amor que deve enfrentar grandes desa-fios e obstáculos para que finalmente se concretize(ou mesmo para nunca se concretizar). Essa repre-sentação da Idade Média como um período quetem como uma de suas principais características aentrega a sentimentos vividos no seu limite de in-tensidade também tem o seu lugar na historiogra-fia. Huizinga, por exemplo, desenvolveu em seucélebre livro O Declínio da Idade Média preci-samente esta idéia de que uma das principais ca-racterísticas da Idade Média é a tendência a explo-rar os sentimentos na maior intensidade possível.

IHU On-Line – E com relação aos filmes a

que o senhor se referiu como um tratamento

da Idade Média como “realidade” a ser

conhecida?

José D’Assunção Barros – Relativamente aesta modalidade, alguns dos mais célebres filmessobre personagens históricos – como, por exem-plo Joana D’Arc ou São Francisco de Assis – colo-cam-nos precisamente diante da intenção de tra-zer ao espectador algo do que realmente teriaacontecido em determinado período histórico.Nesses casos, o primeiro plano passa a ser ocupa-do pela intenção de permitir que o público entreem contato com uma realidade que realmenteaconteceu nesta época que classificamos histori-camente como Idade Média. Cada cineasta buscarealizar esta aproximação “realista”, obviamente,à sua maneira. Há a possibilidade de romantizar eestetizar estes episódios históricos, mas conser-vando a preocupação, por exemplo, de assegurarum cuidadoso figurino, um cenário fidedigno parao período, uma estrutura que traga a estes filmesum efeito de realidade. A Joana D’Arc de VictorFleming, um filme de 1948, ou de Otto Preminger,este datado de 1957, procuram assegurar a sua at-mosfera de realismo por meio dos figurinos e ce-nários, tal como nos mostra Gerda Lerner em umensaio incluído no livro Passado Imperfeito;mas também o filme A paixão de Joana D’ Arc deCarl Dreyer, um filme de 1928 e que ainda era empreto e branco, busca atingir um intenso realismo

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por meio da recriação do ambiente psicológicaque envolvia a tortura, e esta cena ocupa de fatoum lugar privilegiado no filme. Assim, enquantoos dois primeiros filmes tendem à “Idade Médiaheróica”, o terceiro tende a enfatizar a “Idade Mé-dia obscurantista”, dando especial ênfase a umdos temas que movimentam alguns dos mais pro-fundos temores do homem moderno: a Inquisição(que não deixa de ser associada às terríveis formasde totalitarismo que o homem moderno conheceutão bem por meio de processos como o desenvol-vimento do Nazismo, que, por sinal, estava emgestação na Alemanha daquele mesmo período).

IHU On-Line – Poderia dar-nos mais algum

exemplo sobre a maneira como os cineastas

têm procurado retratar a realidade medie-

val, terminando por produzir representa-

ções distintas?

José D’Assunção Barros – Também podería-mos contrastar filmes sobre São Francisco. Fran-cisco, o Arauto de Deus, de Roberto Rossellini –um cineasta profundamente cristão – remete-nos,com seu realismo árido e despojado, muito mais à“Idade Média da fé” do que à “Idade Média daluz”. Já Irmão Sol, Irmã Lua, de Franco Zeffirelli, éum filme que parece colocar-nos diante de umapreocupação muito maior com o espetáculo, coma exuberância das cores. A Idade Média, aqui,afasta-se das sombras, embora tenhamos o mes-mo tema histórico como objeto de representação.Podemos afirmar que cada uma destas represen-tações traz uma faceta importante da Idade Mé-dia. Se este período ficou conhecido como “A Ida-de da fé”, por oposição à centralidade que o racio-nalismo e o pensamento científico ocuparam naIdade Moderna, a Idade Média também apresentaeste lado do espetáculo, da exuberância de corese das luzes encontraram a sua expressão maisbem acabada nas catedrais góticas.

Ainda falando na intenção de um filme asse-gurar um certo realismo histórico, vale lembrarque também pode ser desenvolvida uma históriafictícia, criada pelo autor, mas contra o pano defundo de um ambiente que se busca reconstituircom o máximo de precisão, valendo-se da erudi-ção histórica – e aqui será possível lembrar o fil-

me O Nome da Rosa, dirigido em 1986 porJean-Jacques Annaud, e que foi baseado no ro-mance de mesmo nome de autoria de UmbertoEco.

IHU On-Line – E com relação ao que o se-

nhor mencionou inicialmente, a respeito da

possibilidade de se utilizar a Idade Média

como “metáfora”, poderia dar algum exem-

plo mais específico?

José D’Assunção Barros – Para este caso, seráimportante lembrar os filmes que, por meio de umenredo medieval, fazem-nos aproximar na verda-de de uma crítica social ou de um protesto relacio-nado com a nossa própria época. A Idade Média,então, é utilizada como “metáfora”. Este é o casode Os Visitantes da Noite, um filme de Marcel Car-né datado de 1942, que é, na verdade, uma pará-bola dirigida contra o totalitarismo nazista, produ-zida em uma França ocupada pelos alemães. Estefilme, além de utilizar-se da Idade Média como pa-rábola, também evoca uma combinação da “Ida-de Média obscura”, associável às sombrias forçasnazistas com a metáfora da “Idade Média encan-tada”, que tem como um de seus personagens opróprio Diabo. Ao final da história, saíram vence-dores o amor e a liberdade, o que se encaixa per-feitamente na metáfora antinazista, e o filme seencerra com a magistral cena em que dois aman-tes, transformados em estátuas de pedra, fazemressoar alto as batidas de seus corações.

IHU On-Line – Quais as estéticas e os recur-

sos mais característicos nos filmes sobre a

Idade Média?

José D’Assunção Barros – As estéticas e recur-sos, naturalmente, vieram se transformando como tempo, ao mesmo tempo em sintonia com asnovas possibilidades tecnológicas que vieram sur-gindo e com as várias correntes cinematográficasque se desenvolveram. O filme Cruzada, de Rid-ley Scott (2005) – que acompanha a narrativa deuma cruzada medieval ocorrida em 1185 – pôdecontar, por exemplo, com alta tecnologia e comum enorme investimento financeiro, em uma es-cala que não teria sido possível há algumas déca-das atrás.

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

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IHU On-Line – O que vem sendo discutido

nos meios acadêmicos sobre Idade Média

na ficção? Quais os principais debates e

críticas?

José D’Assunção Barros – São muitas as ques-tões acadêmicas que se abrem diante do tema darepresentação fílmica da Idade Média, mas talveza principal se refira ao fato de que um filme, mes-mo que retrate um período anterior com recursosque busquem assegurar um efeito máximo de rea-lidade, e mesmo que seja amparado por uma rigo-rosa pesquisa documental e bibliográfica, fala-nosmuito mais de nossa própria época do que do pe-ríodo retratado. Devemos nos perguntar, comohistoriadores, o que nos revela o filme Cruzadaacerca do impacto produzido em nossa própriaépoca pela Guerra do Iraque e por outros con-frontos contemporâneos, envolvendo nações oci-dentais e o mundo islâmico. A escolha da temáticade um filme não é obviamente gratuita: ela emer-ge de um fundo histórico específico. A maneiracomo um filme é contado, da mesma forma, tam-bém nos revela muito da época em que o filme foiproduzido. Desse modo, discute-se muito nosmeios acadêmicos essa relação dialética entreuma “representação”, que é produzida em umadeterminada época (o século XX ou este princípiode século XXI que estamos vivendo) e aquilo quese pretende representar – no caso que presente-mente discutimos, a Idade Média. Mais especifica-mente com relação a enredos fictícios ambienta-dos na Idade Media, devo acrescentar que elestambém são bastante úteis para o ensino da Histó-ria – tanto quanto os filmes que se propõem a de-senvolver questões históricas que se referem a fa-tos e pessoas que estão documentadas. Basta lem-brar o já mencionado exemplo de O Nome daRosa – um filme que permite aprender muito doque foi a Idade Média. Esta, aliás, é também umaquestão que tem sido bem discutida nos meiosacadêmicos: a possibilidade de utilizar didatica-mente os filmes sobre a Idade Média, inclusive osde enredo fictício.

IHU On-Line – Quais são as principais ri-

quezas culturais da Idade Média?

José D’Assunção Barros – A Idade Média é, naverdade, um período complexo, multifacetado.Produziu inúmeras realizações culturais – que vãodas canções trovadorescas às catedrais góticas.Se, por um lado, a Idade Média foi a “Idade dafé”, sob o rigoroso controle da Igreja, por outro, osséculos XII e XIII foram os séculos das heresias. Asnovas possibilidades religiosas e a própria frag-mentação da Igreja já se anunciam na Idade Mé-dia, da mesma forma como ali se gestam as mo-narquias centralizadas que logo se afirmaram nomundo moderno. Da mesma maneira, a escolásti-ca não deixa de trazer uma contribuição funda-mental para o pensamento filosófico que se se-guiu, e a alquimia, hoje se sabe, estendeu-se atéNewton, que era um pensador extremamentecomplexo. Contudo, muitas vezes, a imensa con-tribuição cultural da Idade Média é esquecida.Como se discute muito hoje, os períodos que seseguiram historicamente à Idade Média produzi-ram leituras diversificadas da Idade Média, e algu-mas delas não foram nada positivas, terminandopor reduzir o período medieval a aspectos que, seexistiram, são na verdade apenas uma pequenaparte do que realmente foi a Idade Média. Assim,no início do chamado período moderno, sob ocontexto do Renascimento, produziu-se natural-mente uma visão negativa da Idade Média: a vi-são da Idade Média como uma “idade de trevas”,que foi mais tarde reeditada pelo Iluminismo. Porsua vez, os artistas românticos tenderam a enfati-zar em suas representações da Idade Média aquiloque melhor ia ao encontro de seus desejos, como,por exemplo, a intensidade dos sentimentos ex-pressos pelo amor cortês, uma realização originale importante do período medieval.

O momento em que vivemos, e o cinema de-sempenha aqui um papel fundamental, permiteque reconsideremos estas diversas facetas da Ida-de Média, que lidemos com as suas várias repre-sentações possíveis, que as coloquemos em con-

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traste com a nossa própria época para melhorcompreendê-la. O interesse expressivo do cinemapela Idade Média, segundo penso, refere-se aofato de que as várias temáticas relacionadas a esteperíodo têm conseguido canalizar de maneira par-ticularmente intensa alguns dos principais desejose temores modernos. A peste Negra prefigura aAids; a Inquisição canaliza os receios diante dosregimes totalitários; a alquimia, o encantamento e

o Trovadorismo canalizam os desejos contempo-râneos de ultrapassar o excessivo racionalismo euma forma de vida exageradamente utilitarista,regida exclusivamente pelos mais frios interesseseconômicos. O homem moderno, às vezes, vaibuscar nos filmes ambientados na Idade Média aintensidade de sentimentos que ele nem sempreencontra na sua vida cotidiana, apesar de todos osperigos que a envolvem.

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Cinema e história

Entrevista com José Rivair Macedo10

José Rivair Macedo é professor no Institutode Filosofia e Ciências Humanas da UFRGS. Gra-duado em História, é doutor em História Socialpela USP. Obteve também pós-doutorado pela Uni-versidade Nova de Lisboa, Portugal. É autor de di-versos livros, entre os quais citamos A Mulher Na

Idade Media. 5. ed. São Paulo: Contexto, 2002 eBelo Monte: uma história da Guerra de Canu-

dos. São Paulo: Expressão Popular, 2004.José Alberto Baldissera é professor no curso

de História da Unisinos. Graduado em Filosofia eem Letras, é mestre e doutor em Educação pelaPUCRS. O professor é autor de, entre outros, His-

tória do Pensamento Humano. São Leopoldo:Unisinos, 1995.

Baldissera

Centenas de filmes, documentários e telejor-nais exibem informações que penetram em nossasmentes sem que tenhamos tempo para proces-sá-las, fazendo-nos viver, atualmente, o que échamado por historiadores de a era das imagens(essa situação da sensação de que as pessoas es-tão de fato bem-informadas neste mundo globali-zado). As coisas, porém, não são tão simples as-sim, pois os excessos de luzes e de cores eliminamas ambigüidades e complexidades daquilo que sevê e acabam transmitindo uma falsa segurança eum conhecimento superficial.

O uso de imagens, tanto para a pesquisacomo para o ensino, vem despertando o interessepor certos temas do passado. Alguns pesquisado-

res já estão usando imagens e alguns educadoresacham que é possível ensinar História tambématravés do cinema.

Para muitos, a única história que existe é ahistória vista através das luzes de Hollywood, prin-cipalmente. O cinema, muitas vezes, mostra ver-dades interessantes sobre a condição humana,mas é claro, não substitui a história que é escritacom base em análises e evidências. Por que, en-tão, fazer filmes fundamentados na história?Afinal, qual o limite entre ficção e história?

Para tentar desatar e desvendar alguns des-ses nós, está aqui conosco o professor da Universi-dade Federal do Rio Grande do Sul José RivairMacedo, doutor em História Social, especifica-mente medieval.

Baldissera

Nessa nossa época de imagens, nós não vol-tamos de uma certa forma à Idade Média? Nósnão estamos voltando a uma civilização imagéticapor excelência?

Rivair

Eu penso que hoje, muito mais do que na Ida-de Média, devido ao alcance das imagens. Atual-mente nós somos bombardeados por imagens emtodos os lugares possíveis e imagináveis. Dentrode casa por nossos aparelhos de televisão, nasruas por outdoors, propagandas em papel, inter-net, enfim. Enquanto na Idade Média havia nasigrejas e em alguns manuscritos.

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10 Entrevista-conversa com o professor José Rivair Macedo (UFRGS) para o programa Desatando Nós da TV Unisinos (SãoLeopoldo/RS), apresentado pelo professor José Alberto Baldissera (Unisinos), em março de 2004.Transcrição de Daniel Cunha e José Baldissera

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Baldissera

Hoje podemos nos dar ao luxo de assistir-mos, por exemplo, a guerras ao vivo.

Rivair

Isso acaba sendo uma maneira de dissimularuma forma de realidade cruel, uma realidade san-grenta e violenta. Eu acho muito mais complicadaa questão da imagem hoje do que na Idade Média.

Baldissera

Historicamente, nós falamos sempre que, naIdade Média, as pessoas, que tinham uma cargaenorme de analfabetismo, se compararmos a umapessoa alfabetizada em nossos tempos, eram prin-cipalmente alfabetizadas por meio das imagens.Estas imagens eram ligadas principalmente à reli-gião nas catedrais, nos vitrais, nos portais dascatedrais...

Rivair

Há uma frase famosa atribuída, parece-me, aHonório de Otan, no século XI, que diz: “a pinturaera a literatura dos leigos”. É uma forma de os lei-gos e, portanto, dos iletrados, dos ignóbeis, apren-derem algo das verdades celestes.

Baldissera

Evitando anacronismos, mas até certo ponto,se a pintura era a literatura dos leigos na IdadeMédia, hoje em dia, a televisão e as outras formasde imagens não são a literatura dos leigos? Não selê pouco hoje?

Rivair

São impressões pessoais evidentemente, nãosão proposições de um pesquisador, porque eunão pesquiso esse tipo de questão. E há campos,na verdade, de pesquisa destinados a refletir sobreisso. Mas eu penso que a televisão, o cinema, osmeios de comunicação e sobretudo os meios pro-dutores de imagem, como esse em que nós esta-mos nesse momento (TV), fornecem um canal decomunicação inusitado na sociedade contempo-

rânea cujo alcance é extremamente amplo e queprecisa ser decodificado e compreendido. Real-mente não dá mais para pensar que a cultura pos-sa ser aquela transmitida somente pelo escrito.

Baldissera

Achas que o cinema e a história são compatí-veis? A história pode trabalhar com o cinema e ocinema pode ajudar a história? Vamos começarpor aí. Eu sei que tu organizas muitos ciclos de ci-nema e história, principalmente abordando a Ida-de Média, tua especialidade maior. Como é que sepode complementar os dois?

Rivair

Bem, se adoto essa posição é justamente por-que, embora eu não conceba o filme como umtestemunho direto ou único da história, ele é umtestemunho importante. E eu tenho a consciênciade que para muitas pessoas a imagem da IdadeMédia ou a imagem da história não é aquela doslivros que nós conhecemos, não é aquela dos do-cumentos oficiais ou dos documentos impressos, esim aquela das imagens que elas viram um dia oudas informações que elas tiveram um dia por meiode um filme, de uma música de um filme. E euacho que é importante levar em conta esse aspec-to. Considerando que nós estamos em uma era demúltiplas linguagens e numa era onde a escrita,embora seja importante, não pode ser considera-da a única forma de comunicação aceitável. Te-mos que compreender os códigos de comunica-ção que estão por trás da imagem e temos que dis-cutir esses códigos e as informações, as técnicas detransmissão de conhecimento que estão presentesno cinema e que estão presentes no filme. Até por-que se nós não discutirmos isso, muitas vezes,ocorrerá, de o filme ser tomado como um dado derealidade, o que não é.

Baldissera

Mark Carnes (1997, p.10), na sua obra Pas-

sado Imperfeito: a História no Cinema11, nos dizo seguinte, lá pelas tantas:

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11 CARNES; Mark C. (org.). Passado Imperfeito: a História no Cinema. Rio de Janeiro: Record, 1997.

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Os cineastas têm dito o que vêm, em relação ao passa-do. Ora falam com eloqüência ora dizem tolices. Algu-mas vezes, suas criações passam despercebidas; ou-tras, suas verdades são pouco reconhecidas. Mas elesfalam, quase sempre, de uma maneira que achamosfascinante. (...).

É esse o grande poder do cinema, é o fascínioque ele tem?

Rivair

É verdade, porque, na realidade, o que o es-pectador vê na tela é um produto acabado. Resul-tado de um processo muito complexo e de umalinguagem extremamente elaborada. De um tra-balho coletivo extremamente amplo que envolvedesde contra-regras e câmeras até diretores e rotei-ristas e que elaboraram e desenvolveram uma cer-ta idéia, que é uma idéia ficcional em geral a nãoser que se trate de um documentário. De qualquermaneira, na medida em que o espectador temacesso a essa obra, a esse produto acabado, aidéia que chega, vem muito elegante e em geralexerce um grande fascínio.

Baldissera

Falas “a não ser que seja um documentário”.Outro dia, falando com cineastas e diretores, elesdiziam que o documentário também é ficção.Mesmo no documentário tem o teu modo de olhar(se tu és o diretor), tem o teu ângulo, enfim temtoda a tua carga, emocional, subjetiva etc. Mesmoque nós chamemos de documentário, ele tem queser olhado como se fosse uma ficção. Pergunto: Ahistória consegue não ser ficção? Ou não tem umtanto de ficcional?

Rivair

Esse é um ponto para o qual eu iria chamar aatenção. Por que nós, historiadores, temos a ten-dência de pensar do nosso local e a pensar do nos-so referencial. E no nosso local e no nosso referen-cial nós buscamos a verdade e chegamos o maispróximo possível dela. Só que, na verdade, issoacaba sendo um ponto de vista, porque, toda adiscussão que se tem feito ultimamente dentro dahistória vai no sentido de ver a profunda carga de

subjetividade que existe no discurso do historia-dor. Mas, antes do discurso do historiador, tam-bém nos documentos que ele manipula, nos tiposde documentos que ele manipula, no ângulo queele lê estes documentos. Orientado por que ques-tões ele discute essa realidade do passado ao qualele estuda? Evidente, eu não estou comparandoum historiador com um diretor de cinema nemcom um diretor de documentários. São profissio-nais diferentes com objetivos diferentes, mas amarca da subjetividade está presente, também.Nós não estamos isentos disso.

Baldissera

Marc Ferro12 (1992, p.86), em sua obra, queconheces bem, Cinema e História afirma o se-guinte num certo trecho:

Partir da imagem, partir das imagens, não buscar nelassomente a ilustração, confirmação ou desmentido dooutro saber que é o da tradição escrita. Considerar asimagens como tais, com o risco de apelar para outrossaberes para melhor compreendê-las. Os historiadoresjá colocaram em seu lugar legítimo as fontes de origempopular, primeiro as escritas depois as não escritas, ofolclore, as artes e as tradições populares. Resta agoraestudar o filme, associá-lo com o mundo que o produz.Qual é a hipótese? Que o filme imagem ou não da reali-dade, documento ou ficção, intriga autêntica ou purainvenção, é História. E qual é o postulado? Que aquiloque não aconteceu (e porque não aquilo que aconte-ceu?). As crenças, as intenções, o imaginário do ho-mem são tão História quanto a História.

Rivair

Eu acho essa questão maravilhosa. Marc Fer-ro, antes de me colocar nessa questão, tem umacerta concepção do filme. Ele é um historiador doséculo XX, da Revolução Russa, dos Estados Con-temporâneos. O cinema tem um lugar especialíssi-mo na produção de Marc Ferro. Entretanto, eupenso que, do que posso depreender, ele admirae valoriza o cinema produzido no século XX sobreo século XX. A posição dele é diferente para o ci-nema de reconstituição histórica. Tem uma pas-sagem dele de que eu me lembro e acho fantásti-ca. Diz assim: O Encouraçado Potemkine, deSergei Eisenstein é um filme de teor absoluta-mente diferente de Alexander Nevsky feito pelo

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

12 FERRO; Marc. Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

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próprio Eisenstein. Então vamos por parte, OEncouraçado Potemkine refere-se à revolta dosmarinheiros 1905, pré-Rússia, pré-Revolução So-viética (1917). Sergei Eisenstein, sabemos, foi umdiretor engajado com o cinema social. Era, por-tanto, um intelectual a serviço da revolução. JáAlexander Nevsky dele também, feito em 1938,retratava a Idade Média. Para Marc Ferro, o valordo filme Alexander Nevsky é menor do que o va-lor do filme Encouraçado Potemkine. Eu tenhodúvidas também em relação a isso.

Baldissera

Porque, mesmo quando ele reconstitui o fatohistórico em O Encouraçado Potemkine, ele o fazdepois de o fato ter acontecido. E se é muito dis-tante ou pouco distante...

Rivair

Na verdade, a questão não está nem no temado Encouraçado Potemkine, nem no tema do Ale-xander Nevsky, está na proposição do diretor. Naposição de Marc Ferro, a qualidade do AlexanderNevsky seria diferente da qualidade do Encoura-çado Potemkine, devido à proximidade da reali-dade que é maior no Encouraçado Potemkine emenor no Alexander Nevsky. Entretanto, pare-ce-me, que a leitura importante a ser feita é a dasrazões que levam o diretor a fazer o filme naquelemomento. Alexander Nevsky narra a história daBatalha do Gelo, ocorrida em 1242 na Rússia.

Baldissera

Por que a Batalha do Gelo é um dos aconte-cimentos importantes na história da construção daRússia?

Rivair

É uma batalha que se trava em 1242. Naépoca, não havia a Rússia evidentemente, haviaprincipados liderados pelo príncipe AlexanderNevsky contra a ordem dos Cavaleiros Teutôni-cos. Portanto, contra a expansão alemã que se fazna região do Báltico, que está chegando a territó-rios que depois vêm a ser considerados russos. ABatalha do Gelo resultou em uma vitória russa, e ofilme é, na verdade, uma grande rememoração

que Alexander Nevsky faz de uma vitória de rus-sos contra alemães às vésperas da Segunda Guer-ra Mundial.

Baldissera

Por que ela é chamada Batalha do Gelo? E oque tem a ver o gelo com eles terem ganhado aguerra?

Rivair

O gelo foi o elemento que desequilibrou ocombate e que favoreceu os russos. Na verdade, ogelo colaborou, e muito, para a vitória dos russoscontra a ordem dos Cavaleiros Teutônicos, queacabaram afundando no gelo. O gelo tem a vercom a história do “General Inverno” na Rússiaque derrotou Napoleão, depois os nazistas na Se-gunda Guerra. E o filme é elaborado em 1938,portanto, às vésperas da Segunda Guerra Mundial(1939 – 1945) com um claro caráter antinazista,anti-alemão. Há uma cena do filme, que é talvez amais falada, que é aquela da apresentação da or-dem dos Cavaleiros Teutônicos, que já são vistosali como demônios. O aspecto do mestre da or-dem dos cavaleiros é tenebroso, e o bispo a servi-ço da Igreja aparece sob a forma de uma raposa,alguém soturno, terrível. E a cena em que os Ca-valeiros Teutônicos lançam as criancinhas alemãsno fogo é uma cena profundamente vinculada aoperíodo que Eisenstein produziu o filme.

Baldissera

Então, isso que estás nos dizendo, descreven-do e narrando ao mesmo tempo, como funcionana história? Por exemplo, Eisenstein apresenta osCavaleiros Teutônicos (alemães) no filme Alexan-der Nevsky de uma maneira lúgubre, tenebrosa eAlexander Nevsky como um herói. Como se podetrabalhar isso na história?

Rivair

Parece-me que a grande questão na análisedo filme pelo historiador não está necessariamen-te no período ao qual o filme faz referência, masno momento em que ele foi elaborado. O interes-se na análise está em como, no momento em queo filme foi produzido, se estabeleceu um diálogo

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com o passado e por quê. Chama-me muito aatenção, por exemplo, a existência de certos ciclosdentro do cinema histórico, que aborda a história.Existe claramente o ciclo de Joana D’Arc. Vocêsabe muito bem, melhor do que eu, que existemdezenas de filmes sobre Joana D’Arc desde osprimeiros filmes do cinema mudo.

Baldissera

Aliás, foi a primeira grande personagem docinema chamado histórico.

Rivair

É a primeira grande personagem do cinemae que permanece até hoje. Assim como existe umciclo de Robin Hood, que vem desde os anos1920/1930 até os Robin Hood contemporâneos,satirizados por Mel Brooks.

Baldissera

Para nós analisarmos um filme, estás cha-mando a atenção, que temos de contextualizá-lo:quando ele foi feito, quem é o diretor, que tipo decondução ele dá ao seu filme. O diretor fala atra-vés do seu filme e da época em que ele faz o filme.Ele não retrata apenas o episódio histórico. Vaialém...

Rivair

Eu diria que ele retrata fundamentalmente oseu presente. O historiador Michael de Certeau di-zia que a “História é um diálogo entre os vivos”,os “mortos” estão nesse diálogo. Os “mortos” sãoo passado e, portanto, estão no diálogo, mas, sãoos vivos que falam. No cinema, isso é muito nítidopara mim. Um outro filme, de que eu particular-mente gosto, é Erik, o Viking, de Terry Jones, umdos diretores do grupo Monty Python. Erik, o Vi-king retrata uma viagem fantástica na era da bar-bárie viking, a Asgard, à Terra dos Deuses, embusca da solução da guerra, o fim da era de Rag-narok. O filme faz alusões à mitologia escandina-va, à mitologia nórdica. Parece-me que o diretorTerry Jones elabora um filme sobre essa temática,sobre o fim da era de Ragnarok, levado pelo fimda era das guerras, o fim dos conflitos. O filme foi

feito em 1989, às vésperas da queda do Muro deBerlim, é uma grande metáfora ao fim da GuerraFria. Eu costumo brincar com isto: GuerraFria/Ragnarok, a era da guerra. Enfim, o que nósvemos ali são os vikings e tudo mais, mas, na ver-dade, o discurso do filme vai todo no sentido con-temporâneo. E o fantástico nesse filme é que no fi-nal os vikings descobrem que os deuses, que elesimaginavam sendo velhos, são crianças, que estãobrincando. O Odin, no momento em que éperguntado “O que fazer para que as guerrasacabem?”, diz: “Isso depende totalmente devocês, isso está fora do nosso alcance”. Eu achoextraordinário isso.

Baldissera

E o que vês no filme O Nome da Rosa, quefoi baseado no célebre romance homônimo deUmberto Eco?

Rivair

O Nome da Rosa! Aí nós temos um caso dife-rente, mas também extremamente interessante.Nós temos um filme que foi produzido com baseem um romance de ficção. Embora um romanceelaborado por um grande conhecedor de IdadeMédia, que é o Umberto Eco. Um romance extre-mamente rico do ponto de vista da atmosfera edos conteúdos que apresenta, mas é um romancede ficção.

Baldissera

A especialista em Cinema, Miriam Rossini,costuma chamar a atenção de que existem, a ri-gor, os filmes de época e os filmes históricos. ONome da Rosa, estava me dizendo ela um dia, éum filme de época, porque os personagens que aliestão, a grande maioria, eles não são históricos.Agora, um filme, por exemplo, EL Cid, ele seriaum filme histórico porque, mesmo com algumaslicenças históricas que eles tomam, EL Cid existiue tratam de restabelecer a sua história e de contaressa história. Já O Gladiador, exibido mais recen-temente, é um filme, afirma Miriam, meio a meio,porque o personagem, o gladiador, ele próprionão existiu. Existiram alguns outros personagens

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que estão no filme como o Imperador Marco Au-rélio. No entanto, há situações que não são histó-ricas, como, por exemplo, o filho dele, Cômodo,matando-o, assassinando o próprio pai, isso não éhistórico.

Rivair

Aí está a liberdade do diretor. No caso do fil-me O Nome da Rosa, por exemplo, tem persona-gens que são históricos como o Ubertino di Casale.

Baldissera

E a abadia foi copiada de uma outra. Ela nãoé como aparece ali. Na realidade nunca existiu.

Rivair

Exatamente. Aparece o inquisidor BernardoGui, que existiu, é um personagem histórico. Nofilme, Bernardo Gui morre ao final e é claro queele morreu, mas não nas circunstâncias como o fil-me apresenta. Então temos o dado da liberdadedo diretor. Eu tenderia a pensar como a Miriam,que o filme O Nome da Rosa seria um filme deépoca e não um filme de reconstituição histórica,até porque ele é baseado num romance de ficção,e o enredo dele não tem preocupação com a re-constituição. Embora, o Alexander Nevsky sejaum filme de reconstituição histórica, mas tem tudode ficção nele também.

Baldissera

E aquela incrível sátira, uma das melhores doCinema, O Incrível Exército de Brancaleone, tam-bém é um filme de reconstituição histórica? O queé do nosso imaginário sobre a Idade Média ecomo ela teria sido na época das Cruzadas? Ascinco pessoas que compõem, quase a maior partedo tempo, o exército de Brancaleone não são his-tóricas. Elas foram criadas com base no nossoimaginário medieval.

Rivair

Eu tendo a pensar esse filme como uma re-constituição da atmosfera medieval, mas as gran-des questões estão ali.

Baldissera

Temos então os filmes de época e estes quetentam reconstituir a história.

Rivair

Eu tendo a pensar certos filmes... Um filmerecente, por exemplo, Coração de Cavaleiro. Éum filme de passatempo, eu diria que nele a IdadeMédia é apenas um pretexto, no sentido mais es-trito da palavra. E o diretor deixa isso bem clarodesde o princípio. No início do filme, acompa-nhamos um torneio. Ele começa com a músicado Queen, e as pessoas todas fazendo “olá”. E,no momento em que aparecem as pessoas na Ida-de Média, fazendo “olá” com a música do Queennum torneio, já sabemos o diretor está dizendo:“Olha, esse filme é para diversão, para evasão,não tenho a pretensão de reconstituir nada”.

Baldissera

O que dirias para quem quer usar um filme“histórico” ou de época para o ensino e/ou pes-quisa? O que recomendarias para analisar o filme?

Rivair

Em primeiro lugar, que saiba o momento emque o filme foi feito, as condições em que ele foielaborado, e que o professor ou a pessoa, enfim,que estivesse diante desse testemunho, o tomassepor meio dos códigos de leituras próprios do filmee não pelos códigos de leitura que nós temos paraum documento mais convencional de história.Quer dizer, que a pessoa prestasse atenção na se-qüência das imagens, no enredo do filme, masnão confundisse essa seqüência, não confundisseessa discursividade toda com a realidade; procu-rasse estabelecer confrontos com essa realidade,porque não é papel de nenhum diretor de filme re-constituir a história. Esse é papel realmente depesquisadores, historiadores. Às vezes, isso preju-dica o andamento do filme. Devemos ter informa-ções de que Jacques Le Goff, o maior medievalis-ta da atualidade, foi consultor do filme O Nome daRosa e abandonou o projeto, porque ele não esta-va de acordo com a forma como o filme estava

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sendo conduzido. A pesquisadora norte-america-na Natalie Davis foi também consultora para o fil-me Retorno de Martin Guerre e dessa experiênciae das discordâncias que ela teve com o diretor elaescreveu o livro Retorno de Martin Guerre,mostrando a posição dela de historiadora. Entãoquem for utilizar o filme como recurso, e deve serusado, pois é um recurso importante, deve levarem conta que é uma produção contemporânea. Etem que ler sobre cinema.

Baldissera

E que uma produção contemporânea vaisempre sofrer a influência da época na qual o au-tor vive e por isso mesmo é cheia de idiossincra-sias, ou seja, de vontades, veleidades, subjetivida-des, valores do diretor. E como afirmaste “temque ler sobre cinema”. É importante para não ficarno “achismo”. Obrigado Rivair pela participaçãono programa Desatando Nós.

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A Idade Média através do cinema

Entrevista com José Rivair de Macedo e José Alberto Baldissera

A entrevista que segue foi concedida pelosprofessores José Rivair de Macedo e José AlbertoBaldissera à IHU On-Line em 29 de agosto de2005.

IHU On-Line – Como vocês vêem a mudança

de olhar da sociedade contemporânea so-

bre a Idade Média?

José Rivair – Não tenho certeza se o modo deolhar mudou. Para mim, tal qual no passado, aIdade Média continua a ser vista não pelo que elafoi, mas pelo que poderia ter sido. Quer dizer, aIdade Média lembrada hoje nas mídias, na litera-tura, e mesmo nas artes, é um tempo mitificado,interessando mais certas imagens esteticamenteem consonância com os anseios atuais do que umtempo efetivamente histórico, vivido, que um diapossuiu concretude. Por isso, estabeleço sempre adistinção entre uma Idade Média histórica e umaIdade Média imaginada, e, no caso atual, seriamesmo o caso de falar de uma “Idade Média fan-tasiada”. Isso quer dizer que, para a nossa socie-dade de consumo, ávida por imagens que lhe per-

mita evadir-se do cotidiano, a Idade Média funcio-na como um repositório de temas míticos, românti-cos, bélicos e propriamente imaginários. Fora destaperspectiva “midiática”, o período histórico conti-nua a interessar pelo que legou à história das atuaisnações européias e para a própria formação da Eu-ropa. No caso de países como o Brasil, tal períodocontinua a interessar pelo que significou na forma-ção dos povos que para cá trouxeram suas expe-riências e suas vivências, implantando-as em nossoterritório no período colonial.Baldissera – A Idade Média tem sido muito valo-rizada e muito mitificada, pois nela se organizamaspectos importantes dos fundamentos da Civili-zação Ocidental. Também é valorizada por causados novos olhares sobre a história, isto é, a históriado imaginário, do cotidiano, das mentalidades,onde se procuram abranger aspectos da histórianão só do ponto de vista econômico e político,mas também de toda sua abrangência cultural esocial. A Idade Média ofereceu esse grande filão,explorado por grandes medievalistas como Jac-ques Le Goff13, Georges Duby14, Johan Huizinga15,

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13 Jacques Le Goff: medievista considerado um dos principais expoentes da história das mentalidades. Nascido na França em1924, formou-se em História e logo se integrou à escola dita das Annales, revista da qual é atualmente co-diretor. Presidente,de 1972 a 1977, da VI Seção da École des Hautes Études en Sciences Sociales, é diretor de pesquisa no grupo de antropologiahistórica do Ocidente medieval dessa mesma instituição. Entre outras altas distinções, Le Goff recebeu a medalha de ouro doCentre National de la Recherche Scientifique (CNRS), pela primeira vez atribuída a um historiador. Boa parte de sua obra, estáao alcance do leitor brasileiro, traduzida para o português, como, por exemplo, Para um novo conceito de Idade Média:

tempo, trabalho e cultura no Ocidente. Lisboa: Estampa, 1980; Mercadores e banqueiros da Idade Média. Lisboa:Gradiva, 1982; A civilização no Ocidente Medieval. Lisboa: Estampa, 1984. (Nota da IHU On-Line)

14 Georges Duby (1919-1996): historiador francês, especializado em Idade Média. Entre seus livros publicados em português,citamos História da Vida Privada: da Europa Feudal à Renascença. São Paulo: Companhia das Letras, 1999 e Eva e os

padres. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. (Nota da IHU On-Line)15 Johan Huizinga (1872-1945): filósofo e historiador holandês, foi reitor da Universidade de Leyden. É conhecido por seu

trabalho na história da cultura da Idade Média. (Nota da IHU On-Line)

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e, no Brasil, Hilário Franco Júnior16, entre outros.Umberto Eco contribuiu bastante com seu roman-ce histórico O Nome da Rosa para essa nova vi-são da Idade Média, vertido inclusive para ocinema.

IHU On-Line – Como a Idade Média retrata-

da no cinema ajuda a compreender a histó-

ria desse período?

José Rivair – A Idade Média retratada no cinemaajuda mais a compreender a história contemporâ-nea do que a história medieval, propriamentedita. Alguns filmes de reconstituição histórica pri-mam pelam fidelidade no que diz respeito ao figu-rino e ao cenário, e, por vezes, na referência aacontecimentos efetivamente históricos. Algunsfilmes recentes que retratam a Idade Média conse-guem ultrapassar certos clichês cinematográficosde até pelo menos a metade do século XX, porexemplo, apresentando os vikings com elmos or-nados com chifres ou apresentando guerreiros detodas as épocas da Idade Média, portando arma-dura metálica (quando se sabe que este equipa-mento militar é utilizado com maior freqüência nofim da Idade Média). O recente filme Cruzada, di-rigido por Ridley Scott, apresenta-nos uma re-constituição muito bem-feita do cenário e dos per-sonagens “medievais”. Outro filme bem mais anti-go, O Senhor da guerra,, dirigido por FranklinSchaffner (1965), também já trazia, em seu cená-rio e em seu figurino, os cavaleiros normandos doséculo XI, sendo retratados de modo muito pare-cido com o que nos mostra a famosa Tapeçaria deBayeux, em que estão bordadas a conquista daInglaterra por Guilherme, o Conquistador, e a Ba-talha de Hastings. O próprio filme AlexandreNevski, de Sergei Eisenstein, dirigido em 1938, dealguma forma recuperou historicamente a visuali-dade da Rússia Medieval, embora o tratamentodo enredo seja permeado por um discurso e poruma ideologia próprios do século XX e da doutri-na do Partido Comunista Soviético na era de Stá-lin. Eis, aliás, talvez o maior limite da aproximação

da ficção cinematográfica com a realidade históri-ca: embora o aspecto visual, em geral, recupere,por vezes, com grande veracidade, os hábitos ecostumes, o modo de pensar dos personagens ésempre contemporâneo, sendo, em geral, trans-posto para a Idade Média. Isso se verifica nos pon-tos de vista a respeito de conceitos ou valores quesão eminentemente modernos (como liberdadeindividual, progresso, revolução) ou de sentimen-tos que não tinham o mesmo significado na IdadeMédia (amor, compaixão, fraternidade). O que setem, na maior parte das vezes, são pessoas de nos-so tempo, falando para gente de nosso tempo,num cenário estranho e bizarro. É preciso lem-brar, todavia, que o papel do cinema não é resga-tar objetivamente o passado tal qual ele era, a co-meçar porque se trata de ficção, mas também por-que sua função, em todo o caso, é entreter, e nãonecessariamente instruir.Baldissera – O cinema, como arte, interpreta ealtera, à sua maneira, episódios históricos. Não osinterpreta exatamente como os historiadores pen-sam que devem ser interpretados. É claro que issomuda de filme para filme, conforme os interessesda produção e também por parte do diretor e damontagem. Por exemplo, o último filme de RidleyScott, Cruzada, traz uma boa reconstituição do ce-nário onde se desenvolvem as ações principais edos personagens, apesar de misturá-los com bas-tante ficção quanto a episódios de suas vidas,como o personagem Bailian. Também resume,em poucas cenas, o que é conhecido como umagrande negociação para a retirada dos cristãos deJerusalém. Como sobre qualquer época histórica,também sobre a Idade Média há filmes que seaproximam mais do que a história diz e outros quese afastam mais. De qualquer forma, atraem aatenção para o tempo medieval, misturando a fic-ção com a história. Aliás, todos eles fazem estamistura, sem a qual o cinema perderia sua razãode ser. O problema está em quem não conhecesuficientemente história aceitar o que um filme dizcomo verdade histórica. Essa equivalência resulta

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16 Hilário Franco Júnior: historiador especialista em História da Idade Média, disciplina que ensina há vários anos naUniversidade de São Paulo. A maior parte de suas publicações também tem como tema a História Medieval, dentre elas duaspremiadas com o Jabuti da Câmara Brasileira do Livro: A Eva barbada: Ensaios de mitologia medieval. São Paulo: Editora daUSP, 1996 e Cocanha: A história de um país imaginário. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. (Nota da IHU On-Line)

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em que se confunda a arte (cinema) com a história(ciência), mesmo que também a história tenhaseus limites.

IHU On-Line – Qual o maior legado de me-

dievalistas como Le Goff e Duby?

José Rivair – Penso que o maior legado de am-bos tenha sido diversificar os rumos de pesquisada história, libertando-a do domínio exclusivo doseruditos e transformando-a numa disciplina aces-sível ao público médio de leitores. A abertura con-ceitual e a temática promovida pelas investigaçõesde Georges Duby, associado à sua inquestionávelqualidade de estilista, fez certas obras suas virem aser não apenas amplamente debatidas na acade-mia, mas conhecidas pelo grande público. Quantoa Jacques Le Goff, é bem sabido o papel funda-mental que teve ao propor nos anos 1970 umahistória das mentalidades (bastante criticada hoje,mas fundamental, pois recuperou temas como ahistória da morte e do medo, das crianças, dos ve-lhos e das mulheres) e ao promover na École desHautes Études em Sciences Sociales uma linha depesquisa das mais influentes na medievalísticafrancesa contemporânea: a antropologia históri-ca, que se dedica ao estudo das imagens e dosgestos, das tradições e dos costumes, enfim, daspráticas culturais no Ocidente cristão. Além disso,foi baseado em uma obra de Jacques Le Goff,Para um novo conceito de Idade Média:

tempo, trabalho e cultura no Ocidente. Lis-boa: Estampa, que a medievalística encontrouseus atuais caminhos e encontrou inspiração paraa renovação metodológica e temática ainda emcurso.Baldissera - O legado de Jacques Le Goff e Ge-orges Duby é considerado de importância subs-tancial por trazer à tona a Idade Média, aproxi-mando-a de uma visão mais acessível ao públicoem geral. Também contribuíram para rever a idéiade uma “idade das trevas” na sua totalidade, parase alicerçar numa Idade Média mais abrangente,mais criativa e com importância fundamental nasraízes da Civilização Ocidental. Georges Duby eJacques Le Goff têm obras fundamentais que,hoje, são essenciais para o conhecimento e essenovo olhar da Idade Média

IHU On-Line – Por que a civilização medie-

val exerce fascínio no cinema?

José Rivair – Tenho a impressão de que senti-mos pela Idade Média um fascínio das origens:origens da nação, origens religiosas. A Idade Mé-dia retratada no cinema nem sempre tem um em-basamento cronológico claro. É uma Idade Médiaque poderia ter ocorrido antes dos séculos IV-V edepois do século XV. A sedução está mais pelascores e pela grandiosidade aparente do que efeti-vamente por uma Idade Média vivida. No entan-to, nem todos os temas da Idade Média atraem.Há determinados ciclos de filmes que se renovamperiodicamente (as diversas Joana D’Arc, a Távo-la Redonda do Rei Artur, As Cruzadas, RobinHood, A Peste Negra), porque os temas que estãoem evidência neles constituem repositórios de mi-tos contemporâneos: o herói/heroína, a luta pelaliberdade, a luta contra a opressão, o fanatismoreligioso etc. Há, além disso, o fascínio que a Ida-de Média exerce sobre os jovens por meio de doiselementos de consumo midiático: a música e osjogos eletrônicos.Baldissera – A Civilização Medieval tem um fas-cínio extraordinário, pois é nela que se organizamlendas, mitos, epopéias que fazem parte da cultu-ra ocidental. Também acrescentemos aqui fatos eépocas históricas que são famosos como o tempodas Cruzadas, os vikings, episódios relacionadosao Rei Artur e à Távola Redonda, que envolvemcastelos, mosteiros e também o ideal da cavalaria,além de personagens que são importantes e sem-pre lembrados no imaginário ocidental. Um dosprimeiros episódios lembrados pelo cinema quan-do este surgiu, foi o de Joana D’Arc.

IHU On-Line – Como o cinema tem olhado

para a Idade Média?

Baldissera – O cinema tem olhado para a IdadeMédia como um grande filão principalmente defilmes de aventura, trazendo-nos épicos famosos,sempre com um olhar do presente sobre a IdadeMédia. Portanto, a recriação deste período se fazsempre por um filtro. Há grandes filmes que tra-zem assuntos da Idade Média. E a Idade Média, dealguma forma, sempre esteve no interesse docinema.

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IHU On-Line – Por que é importante debater

a Idade Média no cinema em um ambiente

acadêmico?

José Rivair – Na medida em que as obras produ-zidas e difundidas pelo cinema são objetos de con-sumo e de evasão pelo grande público, e na medi-da em que, na organização e preparação da ficçãocinematográfica, há interferências ideológicas, po-líticas, formais, culturais, penso que cabe ao meioacadêmico estudar tais obras com muita serieda-de e avaliar o que dizem, por que dizem, e de quemaneira dizem, algo que faz sentido em nossotempo. Distinguir a Idade Média histórica da Ida-de Média imaginada constitui uma tarefa não ape-

nas dos historiadores, mas dos especialistas em ci-nema e imagem, dos semiólogos e dos especialis-tas nos sistemas simbólicos contemporâneos.Baldissera – É importante debater a Idade Mé-dia no cinema, como também as outras épocashistóricas no ambiente acadêmico, porque, geral-mente, o uso que se faz dos filmes quase semprevêm acompanhado de um desconhecimento decomo analisá-los. Isso em função de que o cinematem a sua linguagem própria e precisamos conhe-cê-la para poder fazer uma análise mais apurada eusufruir mais do que pode oferecer-nos. Aliás, omeio acadêmico deveria estudar mais o cinema,além das outras artes.

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O cinema e a reconstituição do passado

Entrevista com Miriam Rossini

Miriam Rossini é graduada em História e Jor-nalismo, mestre em Artes Cinema pela Universi-dade de São Paulo (USP) e doutora em Históriapela Universidade Federal do Rio Grande do Sul(UFRGS). É autora do livro Teixeirinha e o cine-

ma gaúcho. Porto Alegre: Fumproarte/Autor,1996. Miriam concedeu entrevista à IHU On-Line

em 5 de setembro de 2005.

IHU On-Line – Como a sociedade contem-porânea olha para a Idade Média?Miriam Rossini – Com muita curiosidade e ro-mantismo. A Idade Média é uma espécie de outroexótico com o qual a sociedade contemporânease depara, e do qual ela sabe que provém, pois oslaços entre aquele passado e o nosso presente ain-da são muito fortes.

IHU On-Line – Como a Idade Média retrata-da no cinema ajuda a compreender a histó-ria desse período?Miriam Rossini – A seu modo, o cinema traz no-vamente à luz questões passadas, eventos, persona-gens que, como eu disse, geram curiosidade. As re-criações cinematográficas nos dão um vislumbre da-quela atmosfera, do cotidiano passado. Eu diria queo cinema nos auxilia a imaginar o passado, a daruma materialidade verossímil (imagem em movi-mento, cor, sons) para aquilo que não existe mais, anão ser como discurso. Ao mesmo tempo, os filmesnos permitem perceber o modo como a sociedadecontemporânea olha para aquele passado; o quenele busca; o que dele resgata.

IHU On-Line – Quais os maiores desafiospara que seja realizada a reconstituição dopassado do cinema?

Miriam Rossini – Cinema é imagem. Não adiantadescrever uma cena; é preciso mostrá-la. Para isso,são necessárias fontes, de preferência imagéticas(desenhos, pinturas etc.) que permitam aos reali-zadores recriarem aquele passado que, como coti-diano, não tem mais referência no presente. É im-possível dizer como as pessoas falavam, como an-davam, sentavam, comiam, pois centenas de anosmudaram nossos hábitos cotidianos. Desse modo,é preciso buscar fontes que tragam algumas indi-cações sobre esses dados. Por exemplo, uma peçade teatro pode trazer marcações de fala, ou de ele-mentos da linguagem coloquial. Também é preci-so buscar especialistas (em roupas, armas etc.).Portanto, quando se pensa em reconstituir umpassado, não estamos apenas falando dos even-tos em si (aquilo que se abstrai em palavras), masde toda a ambiência que cercava esses fatos e que,no cinema, são a matéria primeira.

IHU On-Line – Por que o cinema é vistocomo a arte de reinventar o passado ou re-inventar a realidade?Miriam Rossini – Há diferentes respostas paraessa pergunta. Vamos ver algumas. Quando setrabalha com aquilo que já foi, mesmo que se te-nha ido há poucas horas, é preciso um esforço dereinvenção: selecionar o que se considera impor-tante mostrar e o que não se considera (ou o quese quer e o que não se quer mostrar); decidir comomostrar. O próprio processo de escolha já implicaa impossibilidade de resgatar o acontecido na suaintegralidade, na sua totalidade. Levar isso paraépocas em que muitas referências já se perderam,mas que precisam ser mostradas. O que se faz?Cria-se, inventa-se e reinventa-se, apresentam-sepossibilidades com base no que é conhecido. Esse

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é um aspecto. Outro é o fato de que o cinema temcontingências que são próprias da sua natureza,por exemplo, um filme tem uma duração de maisou menos duas horas, ele não é infinito; ele preci-sa atrair público, o que significa que precisa agra-dar; precisa criar empatia, reconhecimento, e, porisso, também, não pode se afastar muito daquiloque é conhecido como senso comum. Portanto,temos, de novo, o processo de escolha, agindo naprodução de um filme. E isso se aplica a filmes quefalem tanto do presente quanto do passado.

IHU On-Line – Por que a civilização medie-val exerce um fascínio no cinema?Miriam Rossini – Talvez o que se observe seja ointeresse por alguns eventos, como as cruzadas, asinvasões bárbaras, a Inquisição, os romances quese imaginam muito românticos! Muitas vezes, fa-tos bastante separados no tempo são condensa-dos, pois eles fazem parte de um grande imaginá-rio sobre a sociedade medieval, como se pode ob-servar no filme O incrível exército de Brancaleone.Além do mais, por ser um outro exótico, cheio deeventos singulares e surpreendentes, torna-se fácilpreencher aquele tempo com fantasias de serescom poderes mágicos, florestas encantadas etc.Muitos filmes, mesmo quando não estão falando

da Idade Média, localizam, no espaço mítico me-dieval, muito da sua ambientação, como se vê nasaga O senhor dos anéis.

IHU On-Line – Por que é importante debatera Idade Média no cinema na universidade?Miriam Rossini – Porque ela é ainda uma im-portante fonte de conhecimento sobre os homense mulheres do presente; sobre suas escolhas; so-bre seus sonhos, medos, desejos.

IHU On-Line – Gostaria de acrescentar maisalgum comentário sobre o tema?Miriam Rossini – É a quarta vez que estou parti-cipando deste evento, que já foi levado a outrasinstituições de ensino, e é possível observar o inte-resse do público, sejam professores, alunos ou ou-tros que gostam de cinema e que se interessarampor história contada em filmes ambientados emalgum passado longínquo. Afinal, os filmes embo-ra se pretendam entretenimento, ajudam a recolo-car questões que ainda hoje produzem sentido eque, por isso, são resgatadas. E em eventos comoesse se tem a oportunidade de discutir tais ques-tões com pessoas que vêm se dedicando a deba-tê-las de um modo que é, ao mesmo tempo, aca-dêmico e informal.

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A desmistificação do símbolo patriótico francês

Entrevista com Cybele Crossetti de Almeida

Cybele Crossetti de Almeida é professora doDepartamento de História da UFRGS. Com bacha-relado e licenciatura em História pela UFRGS,Cybele Almeida é mestre em Educação pela mes-ma universidade e doutora em História pela Uni-versität Bielefeld, da Alemanha, tendo sua tese otítulo Relações de poder em Colônia na Idade Mé-dia tardia.

A professora comentou o filme Joana D’arc,de Luc Besson, no evento Idade Média e Cine-ma, por isso, concedeu entrevista à IHU On-Line

em 12 de setembro de 2005.

Filme: Joana D’arc, Luc Besson, 1999

Evento: Idade Média e CinemaComentário: Prof.ª MS Cybele Crossetti de Almei-da (UFRGS)Dia: 17 de setembro de 2005Horário: 8h30min às 12h30minLocal: Sala 1G119

Ficha Técnica

Título Original: The Messenger: The Story of Joanof ArcGênero: DramaTempo de Duração: 155 minutosAno de Lançamento (EUA): 1999Site Oficial: www.joan-of-arc.comEstúdio: Gaumont / Leeloo ProductionsDistribuição: Columbia Pictures / Sony PicturesEntertainmentDireção: Luc BessonRoteiro: Luc Besson e Andrew BirkinProdução: Patrice Ledoux

Música: Eric SerraDireção de Fotografia: Thierry ArbogastDesenho de Produção: Hugues TissandierDireção de Arte: Alain ParoutaudFigurino: Catherine LeterrierEdição: Sylvie LandraEfeitos Especiais: Duboi

Elenco

Milla Jovovich (Joana D’Arc)Dustin Hoffman (A Consciência)Faye Dunaway (Yoland D’Aragon)John Malkovich (Charles VII)Tchéky Karyo (Dunois)Pascal Greggory (Duque de Alençon)Vincent Cassel (Gilles de Rais)Desmond Harrington (Aulon)Timothy West (Cauchon)Rab Affleck (Comrade)Edwin Apps (Bispo)Richard Ridings

Sinopse

Em 1412, nasce em Domrémy, França, umamenina chamada Joana (Milla Jovovich). Aindajovem, ela desenvolve uma religiosidade tão in-tensa que a fazia se confessar algumas vezes pordia. Eram tempos árduos, pois a Guerra dos CemAnos com a Inglaterra se prolongava desde 1337.Em 1420, Henrique V e Carlos VI assinam o Tra-tado de Troyes, declarando que, após a morte deseu rei, a França pertenceria à Inglaterra. Ambosos reis morrem, e Henrique VI é o novo rei dos doispaíses, mas tem poucos meses de idade, e Carlos(John Malkovich), o delfim da França, não desejaentregar seu reino para uma criança. Assim, os in-

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gleses invadem o país e ocupam Compiègne,Reims e Paris, com o rio Loire detendo o avançodos invasores. Carlos foge para Chinon, mas eledeseja realmente ir para Reims, onde por tradiçãoos soberanos franceses são coroados, mas comoos ingleses dominam a região, isso se torna umproblema. Até que surge Joana que, além de seintitular a “Donzela de Lorraine”, tinha uma deter-minação inabalável e dizia que estava em umamissão divina, para libertar a França dos ingleses.Desesperado por uma solução, o delfim resolvedar-lhe um exército, com o qual ela recuperaReims, onde o delfim é coroado Carlos VII. Mas separa ele os problemas tinham acabado, para Joa-na seria o início do seu fim.

IHU On-Line – Quais as maiores dificulda-des na elaboração e aceitação pelo públicoe pela crítica de um filme baseado em umahistória real como Joana d’Arc?Cybele de Almeida – Joana d’Arc é uma das fi-guras mais interessantes e enigmáticas da IdadeMédia, em particular e da história ocidental emgeral. Essa jovem, que iniciou uma carreira militarsem precedentes com cerca de 17 anos e morreuqueimada como herege aos 19, contribuiu decisi-vamente para a vitória dos franceses sobre os in-gleses na última fase da Guerra dos Cem Anos.Ela é também uma das responsáveis pela afirma-ção de um nacionalismo francês, numa época emque o nacionalismo era ainda apenas embrioná-rio. O nacionalismo francês, e também o inglês,num processo complementar, vão ter um grandeimpulso exatamente durante a Guerra dos CemAnos (1337-1453).

Idade Média – período violento?

Uma das maiores dificuldades, não só paraabordar a história de Joana, mas também outrashistórias medievais, envolvendo a temática daguerra, é a crítica de que esses filmes são violentose, por conseguinte, a própria Idade Média é vio-lenta. Isso é algo que ouvimos também sobre Co-ração Valente, de Mel Gibson, ou Henrique V, deKenneth Branagh, que são filmes igualmente ba-

seados em episódios reais. Na realidade, a IdadeMédia, comparativamente a outros períodos, nãofoi nem mais nem menos violenta. A violência éalgo inerente ao ser humano e cada época – commétodos e meios diferentes – parece refinar a for-ma de fazer a guerra. As guerras do século XX ma-taram muito mais do que as guerras medievais.Outro problema é a nossa mente racionalista quetende a separar e catalogar as coisas de maneiraexcludente. Alguém é fanático religioso ou usa areligião para atingir os seus objetivos. Não hámeio termo. Na Idade Média, a religião, a políticae a economia não eram campos – de atuação oumentais – separados. As pessoas iam para as cru-zadas para combater os inimigos da fé e recon-quistar Jerusalém, mas também para ganhar ter-ras e outros bens. Salvar a alma e encher os bolsosnão eram vistos como comportamentos e desejoscontraditórios na Idade Média.

IHU On-Line – Como avalia o trabalho dodiretor Luc Besson?Cybele de Almeida – Luc Besson fez um filmemuito interessante. Pegou uma história clássicaque, dentre os temas medievais, mais vezes foi le-vada às telas e, sendo francês, teve coragem de fa-zer um filme que vai contra a corrente. No seu fil-me, ele desmistifica Joana d’Arc, símbolo do patri-otismo francês, ao fazer o que eu chamo de um“anti-épico”. As pessoas saem do filme, às vezes,revoltadas, pensando que uma má escolha daatriz principal “estragou o filme”. Poucos perce-bem que o que “incomoda” no filme não é a atua-ção de Milla Jovovich – que, de fato, deixa a dese-jar – mas sim o roteiro: Luc Besson questiona asmotivações de Joana e seu modo de agir. Sua Jo-ana é ingênua e, na sua ingenuidade, acredita es-tar trabalhando para uma causa, quando na reali-dade só está fazendo a guerra.

IHU On-Line – Qual a importância da religio-sidade no filme, já que Joana d’Arc dizia queestava em uma missão divina, para libertar aFrança dos ingleses?Cybele de Almeida – Este é outro tema impor-tante para a discussão do filme. Joana é, evidente-mente, religiosa. Vai à missa, reza, acredita real-

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mente nas suas vozes. Mas, comparada com a ver-são do diretor Christian Duguay, também de1999, vemos algumas diferenças interessantes. AJoana de Duguay, vivida pela atriz Leelee Sobies-ki, é piedosa, humana e próxima do modelo tra-dicional. Ela é otimista e confiante a maior partedo tempo, tem o apoio de suas vozes e enfrentacorajosamente os juízes e a morte na fogueira.Nesse filme – ao contrário do de Luc Besson – te-mos vozes, luzes e milagres. De um modo geral,esta versão poderia ser quase tomada como umaversão oficial da história de Joana d’Arc, numa li-nha semelhante àquela adotada pelo filme, bemmais conhecido apesar da sua anterioridade, deVictor Fleming.

A busca por sinais

A Joana de Luc Besson, interpretada por Mil-la Jovovich, tem uma tarefa bem mais difícil: nãoapenas seguir um modelo histórico, mas esquadri-nhar o seu interior, buscar suas motivações e, fi-nalmente, inverter o seu significado. A Joana deLuc Besson não tem o apoio das vozes que confir-mam a missão da Joana de Duguay, pelo contrá-rio, ela é questionada pelo personagem de DustinHoffmann (a sua consciência) na parte final do fil-me sobre suas ações e motivações. É ele que diz,por exemplo, que uma espada encontrada nocampo17 não é necessariamente um sinal de suamissão, como interpretado por Joana, mas que hávárias outras explicações possíveis para a sua pre-sença naquele local. Joana escolhe o que ela querver. Neste diálogo – que pode ser interpretadocomo um dos eixos centrais do filme – vemos oconflito entre duas épocas, duas maneiras de pen-sar. Para a heroína histórica e seus contemporâ-neos medievais, imbuídos de um forte sentimentoreligioso, era muito comum a busca por sinais, ainterpretação do cotidiano por meio de símbolos.No filme do Luc Besson, ao contrário do de Du-guay, não há milagres.

IHU On-Line – O que a obra de Luc Bessontraz de novo em relação às outras obras quecontam a história de Joana d’Arc?Cybele de Almeida – Poderíamos perguntar oque levou o diretor francês Luc Besson a fazer desua Joana d’Arc – a heroína nacional francesa –um anti-épico intencional. A resposta para essaquestão e para todo o aparente anacronismo queperpassa o filme provavelmente se encontra nãoapenas na interpretação da atriz principal, nem naaparente dificuldade dos franceses em produzirépicos18, mas sim numa postura assumidamentepacifista do diretor. Tangenciando uma preocupa-ção muito cara aos medievais, a da guerra justa, oobjetivo do diretor – usando este símbolo de esfor-ço e auto-abnegação que é Joana d’Arc – pareceser afirmar que nenhuma guerra pode ser conside-rada justa ou, no sentido moderno, legítima. Quemesmo os que agem com boa vontade e boas in-tenções acabam agindo de maneira cruel, egoístae destrutiva.

IHU On-Line – Como o cinema e a socie-dade contemporânea olham para a IdadeMédia?Cybele de Almeida – Penso que há vários níveisde interesse e compreensão da Idade Média. Nóstemos os adolescentes que se interessam pela Ida-de Média por causa dos jogos de RPG, mas quedepois vão cursar uma Faculdade de História e re-almente se apaixonam pela área. E também hápessoas que não ultrapassam nunca esse limiarmágico, para quem a Idade Média permanececomo um período obscuro e estranho, não comouma época histórica real, mas como algo meiomágico, com duendes, dragões etc. Mais ou me-nos como no filme O senhor dos anéis, que é,aliás, em grande parte, baseado nas mitologiascelta e germânica. E claro, o cinema é, hoje, prin-cipalmente, uma atividade comercial, então o queo cinema faz muitas vezes é vender o estereótipo.Mas mesmo assim o interessante é que há muitose bons filmes sobre a Idade Média, sem o que não

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17 O que é uma das liberdades que o diretor toma com a história. Na versão de Duguay, Joana encontra a espada numa igreja, oque ressalta a sua legitimidade religiosa. (Nota da entrevistada)

18 A entediada Joana d’Arc de Sandrine Bonnaire no filme de Jacques Rivette é um dos melhores exemplos disso, vide Jeanne laPucelle: les batailles (1) les prisons (2), de 1993. (Nota da entrevistada)

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seria possível fazer cursos como o A Idade Mé-dia no Cinema da Unisinos, que já foi antecedi-do por ciclos semelhantes na FAPA, na UFRGS ena PUC.

IHU On-Line – Gostaria de acrescentar maisalgum comentário sobre o tema?Cybele de Almeida – A Joana d’Arc histórica –como demonstram os documentos do seu proces-so – encontrava-se fortemente imbuída do queBonnassie19 chama providencialismo histórico,isto é, quando a vontade divina se manifesta naterra por meio de uma ação humana, um estilo depensamento muito comum na Idade Média. Para

Luc Besson, porém, o que a personagem de Joa-na entendia como sendo uma missão de Deus era,na realidade, algo auto-atribuído: ela acaba por re-conhecer que lutou por vingança (a cena do assas-sinato e estupro da sua irmã, colocada logo no iní-cio do filme e que não tem comprovação histórica)e do modo como as pessoas lutam, mesmo quandolutam por uma causa justa: sendo cruéis, egoístas eorgulhosas. O filme coloca em questão não a causaem si, mas os meios de levá-la adiante e, ao fazerisso, contém uma contestação da guerra que é bas-tante atual: mesmo aqueles que crêem estar lutan-do por uma causa justa – Deus, a terra, a liberdade– são, na realidade, orgulhosos e destrutivos.

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19 Pierre Bonnassie (1932-2005): historiador e medievalista francês. (Nota da IHU On-Line)

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Rei Arthur: o homem detrás da lenda

Entrevista com José Rivair Macedo20

Filme: Rei Arthur, Antoine Fuqua, 2004

Evento: Idade Média e CinemaComentário: Prof Dr José Rivair de Macedo –UFGRSDia: 24 de setembro de 2005Horário: 8h30min às 12h30minLocal: Sala 1G119

Ficha Técnica

Título Original: King ArthurGênero: AventuraTempo de Duração: 130 minutosAno de Lançamento (EUA): 2004Site Oficial: www.uol.com.br/reiarthurEstúdio: Touchstone Pictures / Jerry BruckheimerFilmsDistribuição: Buena Vista PicturesDireção: Antoine FuquaRoteiro: David FranzoniProdução: Jerry BruckheimerMúsica: Hans Zimmer, Moya Brennan, Nick Glen-nie-Smith e Rupert Gregson-WilliamsFotografia: Slawomir IdziakDesenho de Produção: Dan WeilDireção de Arte: Yann Biquand, Conor Dennisone Bettina von den SteinenFigurino: Penny RoseEdição: Conrad Buff IV e Jamie PearsonEfeitos Especiais: Cinesite Ltd. / Neil CorbouldSpecial Effects Ltd.

Elenco

Clive Owen (Arthur)Ioan Gruffudd (Lancelot)

Keira Knightley (Guinevere)Mads Mikkelsen (Tristan)Joel Edgerton (Gawain)Hugh Dancy (Galahad)Ray Winstone (Bors)Ray Stevenson (Dagonet)Stephen Dillane (Merlin)Stellan Skarsgard (Cerdic)Til Schweiger (Cynric)Sean Gilder (Jols)Pat Kinevane (Horton)Ivano Marescotti (Bispo Germanius)Ken Stott (Marcus Honorius)Clive Russell (Pai de Lancelot)Stephanie Putson (Mãe de Lancelot)

Sinopse

Arthur (Clive Owen) é um líder relutante, quedeseja deixar a Bretanha e retornar a Roma paraviver em paz. Porém, antes que possa realizar estaviagem, ele parte em missão ao lado dos Cavalei-ros da Távola Redonda, formado por Lancelot(Ioan Gruffudd), Galahad (Hugh Dancy), Bors(Ray Winstone), Tristan (Mads Mikkelsen) e Gawa-in (Joel Edgerton). Nesta missão, Arthur tomaconsciência de que, quando Roma cair, a Bretanhaprecisará de alguém que guie a ilha aos novos tem-pos e a defenda das ameaças externas. Com a ori-entação de Merlin (Stephen Dillane) e o apoio dacorajosa Guinevere (Keira Knightley) ao seu lado,Arthur decide permanecer no país para liderá-lo.

IHU On-Line – Como o filme Rei Arthur con-tribui para contar a história da IdadeMédia?

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20 A entrevista a seguir foi concedida pelo professor José Rivair de Macedo à revista IHU On-Line em 19 de setembro de 2005.

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José Rivair – A equipe técnica que elaborou ofilme, reconstituiu minuciosamente o cenário, asvestimentas, os adereços e os utensílios e, sobre-tudo, o equipamento militar dos povos bárbarosno momento de passagem da Antigüidade para aIdade Média. A obra foi montada, seguindo pa-drões bastante realistas, com o ensejo de recupe-rar o cenário de um tempo mal retratado na his-tória. Para ser executada, a obra contou comuma acurada pesquisa nos raros documentos es-critos na Grã-Bretanha relativos ao século V(como a crônica de Guildas) e, muito possivel-mente, a equipe valeu-se dos resultados de pes-quisas arqueológicas dedicadas aos elementosda cultura material dos povos bárbaros (equipa-mento militar, vestimenta, objetos de adornoetc). Por tudo isso, ele contribui para a constitui-ção visual do cenário histórico relativo ao mo-mento de passagem da Antigüidade para a IdadeMédia.

IHU On-Line – Em que essa versão do filmeinova diante das outras que contam a histó-ria do Rei Arthur?José Rivair – O filme em questão traz consigo aproposta de recuperar “o homem por detrás dalenda”, isto é, pretende apresentar uma imagemdesmistificadora de uma figura lendária que re-monta ao medievo, aquilo que diversos pesquisa-dores tentaram, em vão, fazer. Sua proposta éinovadora, pois, em geral, todas as obras cinema-tográficas que abordaram o tema arturiano dedi-caram-se a reproduzir o mito tal como se encontranos romances de cavalaria da Idade Média, com oRei Artur, os cavaleiros da Távola Redonda, asaventuras romanescas e o triângulo amoroso ge-rado pela relação adúltera entre Guinevere (a rai-nha) e Lancelot (o cavaleiro mais importante dorei). Aqui, ao contrário deste ideário cavaleirescoconstruído nos séculos XII-XIII, o que temos é umatentativa, relativamente bem sucedida, de retratodas guerras entre bretões e anglo-saxões no séculoV da era cristã.

IHU On-Line – Quais os maiores méritos daobra, quanto à produção, à fotografia, aoenredo?

José Rivair – Penso que o maior mérito tenhasido a recuperação detalhada do cenário provávelda Grã-Bretanha no século V. Isso se deveu aogrande investimento feito no cenário, na qualida-de da fotografia (em tom escuro e permeado porbrumas, muito apropriado para um período que,até o presente, continua a ser designado comoDark Ages, isto é, “idade das trevas”). Entretanto,é no desenvolvimento do enredo que se encontrao maior obstáculo ao que o diretor se propõe, istoé, a apresentação da personalidade histórica deArtur, e não sua projeção mitificada. Na realidade,o enredo continua a mesclar realidade histórica emito, só que nunca perspectiva invertida.

IHU On-Line – Como o senhor avalia a des-crição das personagens no filme? Elas refle-tem a sociedade da época com fidelidade?José Rivair – Vejamos um pouco melhor a rela-ção dos personagens principais com o enredo. OArtur que encontramos aqui não é o rei de um rei-no imaginário, Camelot, nem o protetor de umatávola redonda em que se sentam os melhores ca-valeiros do mundo. Este Artur não é casado comuma Rainha Guinevere, nem preside a realizaçãode façanhas cavaleirescas. No filme, Artur é um lí-der bretão, fiel aos ideais do mundo romano que,para defender sua terra contra a invasão dos an-glo-saxões, conta com o apoio de um grupo dedestemidos guerreiros, um dos quais, Lancelot,provindo de uma tribo Sármata, que tradicional-mente oferecia seus guerreiros ao exército roma-no. No desenvolvimento da trama, Artur vem aconhecer uma guerreira, com quem se casará nofim do filme, e estabelecerá contatos com Merlim,um obstinado líder de uma tribo celta que resistepor longo tempo aos romanos, mas que sucumbi-rá diante dos implicáveis invasores. Quase tudoaqui tem algo que se aproxima da história. Defato, é provável que o personagem que, no decur-so do tempo, será transformado no lendário ReiArtur tenha sido um líder bretão de meados do sé-culo V em guerra contra os anglo-saxões (chama-do, talvez, Ambrósio Aurélio). Entretanto, a dife-rença fundamental entre o filme e a realidade his-tórica é que o diretor, valendo-se da liberdade decriação cinematográfica, retrocedeu anacronica-

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mente para o século V personagens nascidos natradição romanesca arturiana, tanto Lancelotquanto Guinevere e outros. Assim, o filme acabapor sugerir ao espectador que, já no século V, osprincipais personagens do universo arturiano te-riam existido, o que não está de acordo com a his-tória. Assim, embora a idéia inicial seja a de reve-lar a realidade por trás da lenda, esta é que acabasendo fortalecida.

IHU On-Line – Qual a importância que o pú-blico do cinema dá às cenas de guerra? Elasainda atraem muito? Se sim, por que essefascínio?

José Rivair – As cenas de batalha, nos filmes,desempenham um papel importante, pois confe-rem o tom de realismo ao enredo, permitem o de-senvolvimento de efeitos especiais e recursos cine-matográficos, representam o elemento da açãoque sempre chama a atenção do público e contri-buem para dar continuidade a uma tendência re-corrente nos romances desde a Idade Média, queé a articulação de três elementos aparentementeantagônicos, mas verdadeiramente complemen-tares no desenvolvimento da trajetória do herói: otema amoroso, a destreza física e militar (na guer-ra e na aventura) e a morte.

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O filme El Cid e uma realidade unificada falsa

Entrevista com Rejane Barreto Jardim

Rejane Barreto Jardim, professora da Uni-versidade de Caxias do Sul (UCS), é graduada emHistória pela Faculdade Portoalegrense de Educa-ção Ciências e Letras, e mestre em História pelaPUCRS. Rejane concedeu entrevista à IHU

On-Line em 29 de setembro de 2005.

Filme: El Cid, Anthony Mann, 1961

Evento: Idade Média e CinemaComentário: Prof ª Dr ª Rejane Barreto Jardim –UCSDia: 1º de outubro de 2005Horário: 8h30min às 12h30minLocal: Sala 1G119

Ficha Técnica

Título Original: El CidGênero: ÉpicoTempo de Duração: 184 minutosAno de Lançamento (EUA): 1961Estúdio: Allied Artists Pictures Corporation / DearFilm Produzione / Samuel Bronston ProductionsDistribuição: Rank OrganisationDireção: Anthony MannRoteiro: Philip Yordan, Fredric M. Frank e BenBarzmanProdução: Samuel BronstonMúsica: Miklós RózcaDireção de Fotografia: Robert KraskerDesenho de Produção: Veniero Colasanti e JohnMooreFigurino: Veniero Colasanti e John MooreEdição: Robert Lawrence

Elenco

Charlton Heston (El Cid)Sophia Loren (Jimena)Raf Vallone (Conde Ordóñez)Geneviève Page (Princesa Urraca)John Fraser (Príncipe Alfonso)Gary Raymond (Príncipe Sancho)Hurd Hatfield (Arias)Massimo Serato (Fanez)Frank Thring (Al Kadir)Michael Hordern (Don Diego)Andrew Cruickshank (Conde Gormaz)Douglas Wilmer (Moutamin)Tullio Carminatti (Padre)Ralph Truman (Rei Ferdinand)Christopher Rhodes (Don Martín)Carlo Giustini (Bermúdez)Gérard Tichy (Rei Ramírez)Herbert Lom (Emir Ben Yussuf)

Sinopse

O filme relata a trajetória de Rodrigo Diaz deBivar, mais conhecido como El Cid (CharltonHeston), herói espanhol do século XI que uniu oscatólicos e os mouros do seu país para lutar contraum inimigo comum: o emir Ben Yussuf (HerbertLom). Esta longa jornada começou quando Ro-drigo, um súdito do rei Ferdinand de Castella,Leão e Astúrias (Ralph Truman), liberta cinco emi-res que eram prisioneiros dele, e por causa desteato é acusado de traição. Don Ordóñez (Raf Vallo-ne) o acusa inicialmente, mas na corte é o CondeGormaz de Oviedo (Andrew Cruickshank) quemacusa duramente Rodrigo e humilha Don Diego(Michael Hordern), o pai de Rodrigo. Esses acon-

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tecimentos acabam provocando um duelo de Ro-drigo com o Conde Gormaz, o campeão do rei.Rodrigo o mata, mas acontece que Gormaz tam-bém era pai de Jimena (Sophia Loren), a mulherque Rodrigo amava e com quem ele pensava emse casar. Em virtude do acontecido, ela passa en-tão a odiar (ou pensa, que odeia) Rodrigo, seu an-tigo amor. Aproveitando este momento conturba-do Ramiro, rei de Aragão, exige a posse da cidadede Calahorra e sugere que ela seja disputada entreos paladinos de cada reino em uma luta até a mor-te. Rodrigo apresenta-se para duelar pelo seu rei,pois ele tinha matado Gormaz, o antigo paladino,e se Rodrigo vencesse o combate contra DonMartin (Christopher Rhodes), que já tinha matadovinte e sete homens em combates corporais, seriaperdoado pelo rei.

IHU On-Line – Como o filme El Cid contri-bui para contar a história da Idade Média?Rejane Jardim – É sempre bom lembrar que setrata de um filme, e como tal, não tem compromis-so com a história. Uma obra cinematográfica temos seus limites de tempo, de forma, e mesmo deconteúdo. O diretor e o produtor podem estarpreocupados com uma série de fatores, e entreeles a história. Mas o filme traz alguns aspectos his-tóricos importantes e serve como elemento defla-grador do debate. Ele não traz uma história crítica,porém contribui para iniciar a reflexão sobre a Pe-nínsula Ibérica medieval, apesar de não contaressa história.

IHU On-Line – Quais os maiores méritos daobra, quanto à produção, à fotografia, aoenredo, considerando que ela foi produzidaem 1961?Rejane Jardim – É preciso levar em conta quese trata de uma superprodução, bem ao estiloamericano, embora se trate de uma produçãoque conta com a colaboração da Itália e da pró-

pria Espanha. Então, tendo isso em mente, pode-mos dizer que tem lá os seus méritos, bem comopossui uma fotografia, para a época, tambéminteressante.

IHU On-Line – Como a senhora avalia a des-crição das personagens no filme e que rela-ção elas possuem com a sociedade daépoca?Rejane Jardim – O filme é muito pouco fiel como tempo histórico que pretende narrar, e os perso-nagens, sobretudo o Cid, são bastante distorcidos.Isso tem muito a ver com o século XX, mais do quecom a Idade Média. Na época em que o filme foirodado, a Espanha era governada com mão deferro pelo general Franco21, o que interferiu muitonas decisões que a direção e a produção precisa-ram tomar. Na década de 1960, uma época muitotumultuada, sobretudo na Europa, o herói de umaEspanha unificada é um pouco demais para a rea-lidade da Península na época do Cid.

IHU On-Line – O que mais marca no resgateda Idade Média espanhola?Rejane Jardim – Em primeiro lugar, não pode-mos falar de uma Idade Média espanhola, pois aEspanha, como nós a conhecemos hoje, simples-mente não existia. O que podemos tirar do filmecomo proposta de discussão seria justamente isto:lembrar que a realidade unificada que o filme querapresentar, é falsa. Naquele tempo, temos umaPenínsula Ibérica ocupada pelos muçulmanos, e aaventura de Cid ocorreu em uma das primeirastentativas da cristandade ocidental de combater oinfiel dentro das fronteiras ocidentais. O filme seinspira muito na tradição de Menéndez Pidal22,conhecido medievalista espanhol, que influenciougerações de historiadores e também contribuiubastante com a montagem desse roteiro. Sua vi-são de Cid e da Espanha se faz bastante presentenesta produção.

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21 Francisco Franco Bahamonde (1892-1975): general que organizou uma batalha armada contra o legítimo governo darepública espanhola, que levou a Espanha a uma guerra de três anos, proibindo e perseguindo as outras línguas e culturas doestado espanhol. Chegou mais tarde ao poder como ditador até a sua morte. (Nota da IHU On-Line)

22 Ramón Menéndez Pidal (1869-1968): professor, historiador e filólogo espanhol. Foi uma autoridade notável na literatura épicaespanhola e na língua espanhola. Dirigiu a Revista espanhola de Filologia e escreveu Orígenes del español (1926). É autortambém de vários estudos sobre a literatura medieval, entre eles, trabalhos sobre El Cid. (Nota da IHU On-Line)

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IHU On-Line – Qual a importância que o pú-blico do cinema dá às cenas de violência?Elas ainda atraem tanto e prevalecem sobreo amor, como no caso de El Cid?Rejane Jardim – Creio que cenas de violência eamor se alternam de forma mais ou menos organi-zada, de forma a dar ao público um pouco deemoção, permitindo momentos de evasão. Eva-dir-se do real é a grande proposta do cinema detipo superprodução americano. Em geral, o públi-co gosta e vai ao cinema justamente para isso.

IHU On-Line – Qual a fidelidade que o filmedá à trajetória do herói espanhol RodrigoDiaz de Bivar?Rejane Jardim – Fidelidade é uma palavra quenão devemos ter em conta aqui. O filme articulaseu próprio discurso sobre a história. É uma for-ma de o grande público acessar informações que,

de outra forma, não obteria. Contudo, não deve-mos procurar aí a fidelidade histórica, pois umapergunta que se pode fazer é: o que seria fiel àhistória?

IHU On-Line – Gostaria de acrescentar maisalgum comentário sobre o tema?Rejane Jardim – Em se tratando de história, épreciso ter cuidado como a manejamos, como li-damos com nossas fontes. Eu diria que é de bomtom sempre duvidar das nossas fontes. Elas sãomuito pouco confiáveis. É preciso duvidar sem-pre, sobretudo quando se lida com uma fontecomo o cinema. Nesse tipo de material, precisa-mos ter claro que, entre nós e nos acontecimen-tos que nos são apresentados, há inúmeros filtroscom os quais é preciso lidar. Saber que eles estãoali já é um bom caminho para se fazer uma boahistória.

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Em nome de Deus: um retrato da época

Entrevista com Nilton Mullet Pereira e Alfredo Culetton

Nilton Mullet Pereira é graduado em Históriae mestre e doutor em Educação pela UFRGS. Suatese intitula-se História de amor na educação frei-riana: pedagogia do oprimido. Atualmente desen-volve pesquisa sobre o ensino de História, medie-valismo e etnocentrismo, na UFRGS.

Alfredo Culetton é graduado em Filosofiapela Unijuí, mestre em Filosofia pela UFRGS edoutor em Filosofia pela PUCRS, com a tese Fun-damentação Ockhamiana do Direito Natural.Atualmente leciona nos cursos de graduação emestrado em Filosofia, na Unisinos. Nilton e Alfre-do concederam entrevista à IHU On-Line em 17de outubro de 2005.

Filme: Em nome de Deus,Clive Donner, 1988

Evento: Idade Média e CinemaComentário: Prof Dr Nilton Mullet Pereira e ProfDr Alfredo Culleton – UnisinosDia: 22 de outubro de 2005Horário: 8h30min às 12h30minLocal: Sala 1G119

Ficha Técnica

Titulo Original: Stealing HeavenGênero: Drama, RomanceDuração: 108 minAno: 1988Direção: Clive DonnerPaís: EUADistritribuição: Grupo Paris Filmes

Elenco

Derek de Lint ... AbelardKim Thomson ... Heloise

Denholm Elliott ... FulbertKenneth Cranham ... SugerPatsy Byrne ... AgnesMark Jax ... JourdainTim Watson¹ ... FrançoisRachel Kempson ... PrioressAngela Pleasence ... Sister CeciliaCassie Stuart ... Petronilla

Sinopse

O filme Em nome de Deus, dirigido por CliveDonner, tem como tema a história de amor vividapor Abelardo (1079-1142) e Heloísa (1101-1164),cujos corpos repousam hoje, lado a lado, no cemi-tério Père Lachaise, em Paris. Abelardo tinha 39anos e Heloísa, sua aluna, 17, quando se apaixo-naram perdidamente, tendo vivido uma trágicahistória de amor. Naquele tempo, as escolas aindaeram anexas às sacristias e era exigida a castidadedos docentes. Culto e inteligente, Abelardo co-nhecera Heloísa por intermédio do tio dela, o cô-nego Fulbert. Tendo a moça engravidado, Abelar-do resolveu abandonar a ordem religiosa e despo-sá-la. Não havia impedimento nenhum, já que elenão recebera ainda as ordens maiores, mas a fa-mília da moça não aprovou a solução. Indignado,o cônego contratou bandidos para prender e cas-trar Abelardo. Depois de recluso num convento,Abelardo escreveu várias obras de teologia. De-nunciado como herético, foi levado a um tribunalpresidido por São Bernardo (1090-1153), conse-lheiro de reis e papas e pregador da Segunda Cru-zada. O resultado foi sua condenação. Abelardorecorreu a Roma e morreu durante o julgamentode sua apelação. Quanto a Heloísa, também en-trou para um convento, do qual foi madre supe-

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riora, tendo vivido ainda 22 anos depois da mortedo amado. Nunca mais teve outro amor.

Abelardo narrou seus infortúnios no livroHistórias de minhas desgraças. François Vil-lon e Eugene Scribe, entre outros, escreveram so-bre o tema. Há também diversas biografias dessesamantes que protagonizaram uma das mais céle-bres histórias de amor.

IHU On-Line – De que modo os personagensdo filme retratam a Idade Média?Nilton Mullet Pereira – Um filme não é um re-trato de uma época. Nem mesmo o relato históri-co, elaborado com um longo trabalho que implicamétodo, teoria e fontes, é um retrato da realidade.Tanto um quanto outro são discursos produzidossobre o passado e que assumem, numa determi-nada época, por diferentes circunstâncias, estatu-to de verdade. O filme Em nome de Deus procuramostrar personagens reais, ou seja, que tiveram,segundo a documentação disponível, existênciahistórica. Abelardo, Heloísa, Fulberto, fazem partede uma trama que nos informa sobre o ambienteda cidade de Paris, do século XII: época do surgi-mento de novos grupos sociais, de revitalizaçãodas cidades e do comércio, da multiplicação dasescolas e do ensino, da peregrinação dos mestrese seus discípulos, da intensidade dos conflitos aca-dêmicos. Isso o filme mostra de modo bastantesignificativo.

IHU On-Line – A trama faz uma livre adapta-ção entre a história de amor de Abelardo eHeloísa. Quais são os pontos de convergên-cia entre a ficção e a realidade?Alfredo Culetton – Ficção e realidade são cate-gorias bem difíceis de distinguir, sobretudo em setratando do passado. De qualquer maneira, pode-mos dizer que há referências históricas para esseamor, que essa relação foi muito instigante e inte-lectualmente fecunda, que se expressam nas cor-respondências entre Abelardo e Heloísa, texto queconta com inúmeras edições e línguas. Na biblio-teca da Unisinos, encontramos esta belíssima ver-são Lettres complètes d’abelard et d’héloþi-

se /Peter Abelard, Héloise. Paris: GarnierFrères, 1925. Também podemos visitar o túmuloque partilham ambos no Cemitério Père-Lachaiseem Paris, que recebe flores constantemente nosúltimos 850 anos.Nilton Mullet Pereira – São muitos. Nós sabe-mos da história de Abelardo e Heloísa pela auto-biografia de Abelardo e pelas cartas23 trocadas en-tre os dois. O filme narra os acontecimentos prin-cipais que se relacionam à vida do filósofo e doseu amor. O filme é biográfico. Há convergênciaquanto às informações básicas sobre a vida do fi-lósofo: ele foi um dos filósofos mais importantesda Idade Média; casou-se secretamente com He-loisa e com ela teve um filho, Astrolábio, e tor-nou-se monge, apesar de com estes ter tido pesa-das escaramuças, as quais o filme não chega amostrar.

O século XII foi pródigo quanto à produção li-terária e constitui-se num momento de significati-va efervescência cultural. É ai que encontramos,na literatura, a emergência da forma amorosa ro-mântica, o amor cortês. O fin d’ amour, como échamado, apresenta-se de modos diversos, nosdiferentes textos da literatura medieval. Destaco,particularmente, a poesia trovadoresca do sul daFrança, o romance de Tristão e Isolda e o impor-tante Tratado do Amor Cortês, de André, o Cape-lão. O amor cortês caracteriza-se, de modo geral,por ser antimatrimonial e adúltero, e, em certoscasos, pela negação do ato sexual. No amor cor-tês, os amantes amam o amor, não o ato carnal oumesmo um sujeito empírico. Assim, nem os obstá-culos, nem mesmo a morte são empecilhos aoamor. Ao contrário, o maior dos obstáculos, que éa morte, prolonga e mantém o amor na eternidade.

O filme mostra a relação amorosa entre Abe-lardo e Heloísa e permite ao espectador perceberque, mesmo depois da castração de Abelardo, oamor se mantém e parece fortalecer-se, ultrapas-sando os limites e as barreiras que a sociedade feu-dal lhe impõe. Le Goff resume dizendo que “entreo mestre e a aluna é o amor à primeira vista: co-mércio intelectual, sem demora comércio carnal.Abelardo deixa de ensinar, abandonando seus

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23 ABELARDO, Pedro. Héloþisa. Lettres complètes d’abelard et d’héloþise. Paris: Garnier Frères, 1925. (Nota do autor)

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trabalhos, está com o diabo no corpo. A aventuraé duradoura, aprofunda-se. O amor nasceu, nãovai acabar mais. Vai resistir aos infortúnios, depoisao drama24”.

IHU On-Line – Quais os aspectos do filmeque destacariam a respeito de produção, fo-tografia e enredo?Alfredo Culetton – Destacaria a adequação damúsica ao desenvolvimento do enredo. Eu o con-sidero verdadeiramente maravilhoso.

IHU On-Line – O castigo infligido a Abelar-do foi aplicado “em nome de Deus”. Comopodemos situar a posição da Igreja na socie-dade daquela época?Alfredo Culetton – O castigo infligido a Abelar-do foi uma estúpida vingança do tio da Heloísapor ter “roubado” a sobrinha que ele estava reser-vando para um “bom” casamento, e coincidente-mente é um clérigo. Em nenhum momento, sãoevocados motivos de tipo teológicos ou doutrinaispara tal castigo. Naquele tempo, como hoje, nãohá igreja e sociedade, mas igrejas e sociedades,modos de ser e atuar. Se entendermos Igrejacomo “povo de Deus”, a Igreja é sociedade nasociedade; um povo que produz sugers e hierar-quias, Franciscos de Assis, Aquinos, ordens men-dicantes, mosteiros, bibliotecas, Cruzadas, LuísIX, traduções de Aristóteles, enfim, uma enormi-dade de posições e intervenções nas sociedades.Nilton Mullet Pereira – Não há dúvida de que,desde a decadência do mundo romano, a Igrejatem assumido um papel hegemônico no planocultural, no Ocidente Medieval, entretanto,deve-se enfatizar que sempre existiram muitospontos de fissura nessa hegemonia católica. É pre-ciso considerar que, por exemplo, a própria con-versão dos germânicos se deu primeiro mediantea heresia do arianismo, movimento consideradoherético na história da Igreja, condenado peloConcílio de Nicéia (325).

Os séculos XI e XIII constituem uma época emque se multiplicaram heresias na Europa Ociden-tal. Nesse momento, a Igreja organiza Cruzadas e,

pouco depois, no século XIII, essas cruzadas nãoapenas se dirigem à Jerusalém para lutar contra osinfiéis, mas também se voltam ao sul da Françapara combater a heresia cátara, a famosa CruzadaAlbigense. A oficialização da Inquisição demons-tra um refluxo na hegemonia cultural da Igreja eno papel que ela exercia, desde a época Carolín-gia, junto ao poder secular. A Cruzada Albigensefoi levada a efeito em nome de Deus, como tam-bém as Cruzadas para Jerusalém, pois, tratava-se,de uma Guerra Justa contra os hereges e infiéis.Esse evento mostra as dificuldades que a IgrejaCatólica tinha para impor o seu predomínio. Dequalquer modo, construiu-se na Idade Média todauma moral que passou a regular a vida dos ho-mens ocidentais, que podemos chamar de moralcristã. Então, o castigo aplicado a Abelardo estavajustificado tanto pelo desrespeito à moral cristã – afornicação com Heloísa; quanto pelo desrespeitoà honra da Casa de Fulberto.

Entretanto, é preciso lembrar que há uma crí-tica preconceituosa contra a Igreja, produto dopróprio preconceito que se construiu sobre a Ida-de Média. Essa crítica aparece no filme, por exem-plo, por meio de Fulberto. Trata-se de uma críticaum tanto vulgar, pois é justamente mediante a crí-tica à Igreja que os iluministas elaboraram a idéiade uma época obscura, mergulhada no misticismoe na religiosidade, fatores que impediam o livrepensamento e a racionalidade. Atacar a Igreja tor-nou-se o mesmo que atacar a cultura medieval e,ao mesmo tempo, enaltecer os valores da Antigüi-dade Clássica e da Europa Esclarecida. O modocomo Fulberto comercializava as relíquias mostraapenas os traços negativos da Igreja e reduz tantoa atividade religiosa, quanto a própria Igreja,como instituição, a um plano maligno, conspirató-rio e negativo, na época medieval.

IHU On-Line – O modo como é tratado o gê-nero no filme corresponde à forma como erafeita na Idade Média?Alfredo Culetton – Entendo que correspondem,mas chama a atenção que as ordens religiosas fe-mininas recebessem alfabetização e rudimentos

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24 LE GOFF, Jacques. Os intelectuais na Idade Média. Traduzido por Marcos de Castro. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003.

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da língua grega. As mulheres eram mais discrimi-nadas nas famílias que nas ordens.Nilton Mullet Pereira – Os historiadores não es-tabelecem comparações entre o papel da mulherna sociedade medieval e o papel da mulher na so-ciedade contemporânea. Realizar esse intento te-ria como conseqüência escrever uma história/jul-gamento e, ao mesmo tempo, uma história evolu-tiva. Julgaríamos a Idade Média com base no esta-do das relações de gênero do presente e sugeriría-mos que houve uma incrível evolução no modocomo as mulheres eram tratadas naquela época,impingindo aos medievais a pecha de machistas –o que seria completamente inadequado.

A Idade Média era uma sociedade de ho-mens. E no interior dessa sociedade pouco espaçohavia para a mulher e para o amor pelas mulhe-res. O amor se constituía em uma amizade entrehomens. O amor de Abelardo e Heloísa pode servisto, então, num contexto de enfraquecimento,como já disse, do predomínio da Igreja, do surgi-mento de novos grupos sociais desvinculados dosistema de relações feudais, do renascimento davida urbana e comercial e, finalmente, numa épo-ca de enaltecimento da figura feminina, exemplifi-cada pela poesia trovadoresca, pelo culto à Mariaetc... Então, o amor à Dama contado pelos trova-dores, o culto à virgem Maria e o destaque de mu-lheres como Hildegarda de Bingen25 e a própriaHeloísa, sugerem um papel muito mais significati-vo para a mulher naquela sociedade de homens:guerreiros ou padres. Ao mesmo tempo, é possí-vel sugerir que um acontecimento como o amorde Abelardo e Heloísa, tenha sido a irrupção dointempestivo, um evento herético em relação aoseu tempo, tal como foi, no meu entendimento, oamor cortês.

IHU On-Line – Como estão representadas,na obra, as universidades, surgidas naqueleperíodo?Alfredo Culetton – Fica difícil dizer com exati-dão quando surgiram as universidades; certamen-te a escola onde Abelardo lecionava foi o embriãodo que posteriormente conheceremos por univer-sidade. Encontramos, desde aquele tempo, asbandeiras da liberdade de ensino, a autonomiacom relação aos poderes instituídos, o deboche,os ritos de iniciação, o teatro, o lugar da dúvida,do questionamento e do debate. A universidade,desde aquela época, é o lugar da busca crítica dascondições de possibilidade do real, das verdadesdadas, ou reveladas, da crítica da moral, e issoestá muito bem apresentado no filme.

IHU On-Line – Como está retratada a filoso-fia no filme Em nome de Deus?Alfredo Culetton – Aparecem poucos elemen-tos estritamente filosóficos, mas um que se destacaé a exigência de vida celibatária para Abelardopor ser mestre em Filosofia. Esta exigência celiba-tária não é uma exigência da parte da Igreja, quesó exige isso dos clérigos e consagrados. Esta exi-gência é própria da tradição platônica atribuída aofato de o filósofo estar lidando com um saber sa-grado e superior que seria profanado pelas urgên-cias do mundo e do cotidiano.

IHU On-Line – Chamar a Idade Média de“idade das trevas” é um preconceito? A queo atribuem?Alfredo Culetton – A história é contada pelo de-tentor do discurso hegemônico, no caso, o Ilumi-nismo; quanto mais obscura a Idade Média, maisclaro o Iluminismo; luz e trevas, maniqueísmo

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25 Hildegarda de Bingen ou Hildegard von Bingen (1098-1179): mística, filósofa, compositora e escritora alemã, abadessa deRupertsberg em Bingen. Hildegarda foi autora de várias obras musicais de temática religiosa, incluindo Ordo Virtutis, umaespécie de ópera que relata o diálogo de um grupo de freiras com o Diabo. É autora dos dois dos únicos livros de medicinaescritos na Europa no século XII, em que demonstrou um conhecimento notável de plantas medicinais. Hildegarda alegava tervisões inspiradas por Deus. Segundo ela, foi Ele que a incentivou a contá-las em livros. A primeira colectânea destas visõesScivias foi completada em 1151. A esta obra seguiram-se Liber vitae meritorum e De operatione Dei. Atualmente,pensa-se que estas visões possam representar sintomas de enxaqueca. A sua fama de mística e santidade ultrapassou asfronteiras do seu convento e do seu país, chegando a Roma. O Papa Eugénio III estabeleceu uma comissão para investigar asanidade de Hildegarda e a validez das suas obras. A comissão visitou Bingen e após diversas entrevistas com Hildegarda, aabadessa foi considerada sã. Após quatro tentativas de canonização, Hildegarda permanece apenas beatificada. (Nota da IHU

On-Line)

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puro. A Idade Média parece ser, no imaginário po-pular, aquele espaço carente de razão e civilidadeentre Atenas e o Renascimento. O ouvido huma-no gosta tanto de explicações como de antagonis-mos simplistas. A crise do projeto moderno chamaà revisão esses conceitosNilton Mullet Pereira – A noção de “idade dastrevas” está ligada a um certo modo de olhar paraa história, legado à nossa sociedade pelos filósofosiluministas e seus sucessores. Tal olhar é moral,pois supõe o julgamento de diferentes momentosda história tendo como referencia a Europa escla-recida, ou seja, aquela época na qual o homemcriou como o fundamento de toda a história e detodo o conhecimento – o “homem medida”. AIdade Média é considerada uma época de misticis-mo e obscuridade entre o classicismo greco-roma-no e o classicismo renascentista. O ponto é que oideal clássico grego, revivido no Renascimentomoderno, passa a ser considerado o máximo darealização humana e todas as sociedades são ava-liadas com base nesse ideal: eis a fonte de todo oetnocentrismo que justificou os processos coloni-zatórios e a destruição de diversas manifestaçõesculturais e étnicas pelo mundo afora. Uma históriamoral é justamente aquela que avalia a situaçãosingular de uma época ou de uma cultura com osolhos e os conceitos do presente. A noção de “ida-de das trevas” é, sim, preconceituosa, na medidaem que ela é produto de um modo de contar a his-

tória, tendo como ponto de referência uma certasociedade e uma certa cultura que servem de mo-delo à sociedade liberal.

Por um lado, o interesse pela Idade Médiatalvez esteja ligado ao arrefecimento do discursoda chamada história moral e evolutiva e, comoconseqüência, a diminuição do preconceito comrelação à Idade Média. Ao mesmo tempo, tem-seenfatizado a importância da Idade Média no pro-cesso de formação da Europa Moderna. Por outrolado, o interesse pela Idade Média pode estar vin-culado ao fascínio pelo místico, pelo fantástico,pelo miraculoso, muito comuns na sociedade con-temporânea. O imaginário do homem esclarecidoeuropeu sempre necessitou da construção de es-pelhos que servissem de modelo para formar a simesmo como um homem racional, crítico, repre-sentante pleno da fase adulta das nações.

IHU On-Line – Gostariam de acrescentar al-gum aspecto que não foi perguntado?Alfredo Culetton – Como em qualquer outrotempo da humanidade, na Idade Media encontra-mos trevas, mas também esforços de compreen-são com a recepção dos clássicos gregos sobretu-do de Platão e Aristóteles, de diálogo interculturalcom árabes e judeus, de dignificação e de constru-ção dessa realidade, conceitual e possível, qualseja a de humanidade. Qualquer esforço nessesentido nos enobrece.

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A cidade, o filósofo e a mulher: Em nome de Deus

Por Nilton Mullet Pereira

“...trocávamos mais beijos do que proposiçõessábias. Minhas mãos voltavam com mais fre-qüência a seus seios do que a nossos livros”

Abelardo

A história de amor entre Abelardo e Heloísafoi um acontecimento intempestivo do século XII.A “bella Paris”, palco da edificação da imponenteCatedral, cidade dos paradoxos, dos encontros edesencontros, da ignorância e do conhecimento, éo palco da atração entre a inquieta Heloísa e o im-paciente Abelardo.

Essa história de amor se dá em três olhares: Oprimeiro, o olhar invisível da cidade de Paris: a Babi-lônia, segundo São Bernardo; a Jerusalém na pers-pectiva do abade Philippe de Hervengt. Cidade queirrompe a estabilidade feudal, permitindo a dinâmi-ca urbana, o desenvolvimento do pensamento e osurgimento de uma série de novos grupos sociaisdesvinculados do sistema de alianças feudais.

O segundo, a perspectiva do filósofo Abelar-do, para quem as disputas intelectuais eram supe-riores à disputa das armas. Pela filosofia abando-nou seu direito de primogenitura e recusou rece-ber as armas. A filosofia medieval renova-se pelaredescoberta de Aristóteles e pelo advento da es-colástica e é nos espaços das escolas da cidade,no espaço particular da escola da Catedral deNotre Dame onde se abriga o debate teológico efilosófico.

O terceiro, o olhar da mulher. Enaltecida pe-los trovadores provençais, espelhada na imagem

imaculada de Maria, mas, sobretudo, mulher ur-bana, culta e sedenta por conhecimento, mulhersingular, empiria, univocidade, interioridade, indi-víduo de escolha, a figura de Heloísa. Mulher pa-radoxal no filme Em nome de Deus26: Eva, cená-rio orgânico da tentação; Maria, preservada àeternidade com o seu amor. De discípula/aluna àmulher; do gosto pelo conhecimento ao gostopela carne. No curto e tênue espaço entre a amiza-de intelectual e o amor carnal, construído entreAbelardo e Heloísa, esta se situa à margem dequalquer classificação – Heloísa incapturável efugidia.

Mas o amor de Abelardo e Heloísa foi muitoalém da mera tentação. Ele ultrapassou os limitesmorais, as linhas da aliança, os prazeres carnais einstalou-se no espaço inatingível e imperceptívelda paixão cortês, onde a morte é a eternidade doamor. Foi um amor puro27. A pena da pomba – re-líquia da realidade do amor entre ela e o filósofo –a acompanha para além da vida.

O mito cortês do amor não-carnal e antima-trimonial se consolida na relação da mulher e dofilósofo, mesmo que isso tenha ocorrido ao sabordas circunstâncias: a castração de Abelardo.

A Cidade

O século XII: a aurora das cidades. Elas pare-cem se proliferar independentemente dos limitesfeudais e das circunstâncias históricas; constroemnovos contextos e escrevem, numa palavra, uma

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26 O filme, de 1988, dirigido por Clive Donner, procura fazer uma livre versão da história de amor entre Abelardo e Heloísa.27 No Tratado do amor cortês, André Capelão define amor puro em oposição a amor misto. O que caracteriza o primeiro é o

fato de não consolidar a relação carnal. Ver CAPELÃO, André. Tratado do amor cortês. Traduzido por Ivone CastilhoBenedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

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nova história, criando um novo cenário que emer-ge dos escombros da história e contra ela se volta:é a sina da corrente exuberante e avassaladora doEterno Retorno.

Elas aparecem muito mais fulgurantes, dinâ-micas e sedentas por independência, como o fo-ram dois séculos antes. Paris, “paraíso da terra, arosa do mundo, o bálsamo da terra”28, bradavamos goliardos, filósofos errantes, desligados da ter-ra, homens nobres/pobres da cidade.

Paris acolhe a todos: de Dionísio a Apolo, to-dos nela têm lugar. A Igreja e o Estado; o estudiosoe o vagabundo; o mestre filósofo e o cavaleiro.Acolhe também o rei. Este que antes transitava decastelo em castelo, hospedado por seus homens, amostrar-lhes sua existência e sua suserania. Agora,com a explosão monumental da cidade, está o reimais postado no centro da terra, na cabeça do “im-pério”. É na cidade que, aos poucos, a nobreza vaise apinhando em torno da realeza a constituir o es-paço das festas, da cortesania, das intrigas.

Mas não esqueçamos que Paris é a cidade daIgreja. “Paris era também uma cidade episcopal,um trono de riqueza, cultura e poder religiosos,que equilibrava a força da monarquia”29. Todauma série de controles e jurisdições se impunhamsobre o espaço da cidade por parte da Igreja, atentar manter a ordem e combater as fornicações,os jogos, os taverneiros, os agitadores e, quemsabe o filósofo Abelardo.

Ora, mas os religiosos, viajantes, negociantese estudantes que afluíam à cidade davam a ela ri-queza e prosperidade. Dinamismo e movimento:eis a avalanche que a cidade trouxe para a históriado feudalismo europeu. Abelardo é coniventecom tal avalanche, como os goliardos, ele vai de-fender a nobreza da cidade contra a pobreza dosnobres.

Há uma independência intelectual no espaçoda cidade, preenchido por mestres e alunos que,com o método da disputa argumentativa, preen-chem a escola da Catedral de debate e discussõesteológicas e filosóficas. A cidade das diferenças,

eis o que ela é, eis o que faz dela Abelardo. À inde-pendência intelectual se junta a jogatina, a bebe-ragem, a fornicação. Abelardo é detestado pelosaltos postos da Igreja, mas tolerado pela impor-tância e pelo renome que traz à cidade e à inteli-gência de Paris. O maior inimigo de Abelardo,São Bernardo, famoso criador da ordem de Cis-ter, grita aos estudantes e mestres que se deleitamda vida no espaço da cidade:

Fugi do ambiente de Babilônia, fugi e salvai vossas al-mas. Ide todos juntos para a cidade do refúgio, ondepodereis vos arrepender do passado, viver na graçapara o presente, e esperar com confiança o futuro [querdizer, nos mosteiros]. Encontrareis bem mais nas flores-tas do que nos livros. Os bosques e as pedras ensi-nar-vos-ão mais do que qualquer mestre30.

O mosteiro é a alternativa à cidade de pedra.Os monges são os maiores inimigos de Abelardo eda profusão do conhecimento. A multiplicaçãodos mosteiros e das ordens o comprova. Lado alado, cidade e mosteiro, o filósofo e o monge dis-putam as almas. Eles mantêm a chama ardente domisticismo, da vida retirante na floresta e no mos-teiro, em oposição ao espaço conflituado e dinâ-mico da cidade.

Entretanto, essa Paris dionisíaca não se cons-titui numa ameaça mortal para todo o clero. Phi-lippe de Harvengt a chama, como já mencionei,de Jerusalém:

Levado pelo amor da ciência, eis que estás em Paris eencontraste essa Jerusalém que tanto desejam. É a mo-rada de Davi... do sábio Salomão. Um tal aglomerado,uma tal multidão de clérigos aí se comprime que elesestão prestes a ultrapassar a numerosa população deleigos. Cidade feliz onde os santos livres são lidos comtanto zelo, onde seus mistérios complicados são resolvi-dos graças aos dons do Espírito Santo,onde há tantosprofessores eminentes, onde existe a ciência teológica aum ponto tal que se poderia chamá-la a cidade das bri-lhantes disciplinas31.

Eis que a ciência é chamada a explicar omistério da fé. Razão e fé não mais se opõem, ea filosofia pode andar lado a lado com a teolo-gia. As razões da dialética servem, agora, à pala-vra de Deus.

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28 LE GOFF, Jacques. Os intelectuais na Idade Média. Traduzido por Marcos de Castro. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003. p, 47.29 SENNETT, Richard. Carne e pedra. Rio de Janeiro: Record, 1997. p. 150.30 Le Goff, 2003, p. 45.31 Le Goff, 2003, p. 47.

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Paris é uma cidade de indivíduos? É bem ver-dade que é prematuro afirmar ser Paris é uma ci-dade de indivíduos, mas não é nada, nada, difícilverificar que eles ai já se alojam, timidamente, acavar um espaço de sentimento, destaque e proje-ção para além das formas gregárias e coletivas domundo feudal. Pensar, confessar, amar e mos-trar-se singular é o que faz o indivíduo, e a cidadepermite-lhe uma paradoxal aparição anônima.

É nesse espaço de singularização abertopela cidade que emerge Abelardo e foi por essafissura que ele nos brindou com uma das maisimportantes obras que formulam a noção de umindivíduo, a história das suas calamidades, suaautobiografia. Antecipação da moderna descri-ção de si, de um ver-se singular no interior da so-ciedade aliança.

Eis o filósofo.

O filósofo

Pedro Abelardo (1079-1142) nasceu em LePallet, na Bretanha e viveu sua paixão pelo sabere pela mulher em Paris. Sua discussão acerca daunidade e da trindade divinas, que rendeu um li-vro, foi considerada herética e condenada noConcílio de Soissons, em 1121. Essa e outrasquestões atraem o ódio de diversos elementos doclero, sobretudo aquele considerado seu maiorinimigo, Bernardo de Clairvaux, o São Bernardo.

O método de ensino de Abelardo incluía odebate intelectual, no sentido de uma disputa deargumentos, absolutamente inaceitável por ele-mentos do clero, mas de significativo apelo entreos alunos:

Esse processo de competição intelectual (disputátio)contraditava o modo mais antigo de ensino (lectio), peloqual o professor explicava em voz alta as Escrituras, sen-tença por sentença, enquanto os discípulos anotavam alição. Como se buscasse variações melódicas de umtema musical, Abelardo partia de uma proposição queaos poucos ia sendo alterada, na troca de idéias”32.

Tendo sido ou não um goliardo, Abelardo,indubitavelmente, respirou do ar da cidade. Elefoi produto desse ambiente novo: do comércio, damobilidade urbana, do nascimento de uma socie-dade de estados a substituir a sociedade tripartidado período anterior, das catedrais góticas erguidasàs alturas, da moeda, do dinheiro e, por fim, dojogo dos sentimentos – do amor cortês. A cidadeparece tirar o lugar da floresta; o mestre e sua hor-da de alunos perecem disputar espaço com omonge; o eremita imortaliza-se no romance e avida coletiva e gregária do feudalismo, aos pou-cos, desmancha-se. O que se impõe é um calei-doscópio de proto-indivíduos a habitar um espaçocomum. Abelardo é um deles, tanto se interiorizouno espaço da cidade que legou ao mundo umamoderna autobiografia – ousou contar sua pró-pria história, dos seus sentimentos, das suas rela-ções, das suas hesitações e, enfim, das suas cala-midades. Abelardo unívoco.

Os goliardos eram uma massa de rebeldes,corpos sem ordem a desfilar pelas tavernas. Re-beldes sem causa? Produtos das circunstâncias?Não importa. “O jogo, o vinho, o amor: eis a trilo-gia que basicamente cantam” os goliardos”33, dizLe Goff.

(...)Quero morrer na tavernaOnde os vinhos estejam próximos da boca do moribundo,Depois os coros dos Anjos descerão cantando:Deus seja clemente com esse bom bebedor34.

Não se veja aí revolução, quem sabe apenasum zumbido forte de liberdade; uma oração pelosespíritos livres; um culto à cidade e, até, uma recu-sa da sua própria situação de errância: melhor se-ria desposar uma Dama de alta linhagem ou rece-ber de herança um castelo, ou pelo menos, ummecenas que lhe garantisse a vida.

As baterias desses errantes intelectuais e can-tores estavam voltadas à crítica, que se torna co-mum nos séculos seguintes, ao alto clero católico eseu envolvimento com as coisas mundanas, parti-cularmente com o dinheiro.

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32 Le Goff, 2003, p. 47.33 Le Goff, 2003, p. 50.34 Le Goff, 2003, p. 50.

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O filme Em nome de Deus, baseado na bio-grafia do amor de Abelardo e Heloísa, mostra, demaneira até jocosa, a prática da simonia, que segeneraliza nos séculos XII e XIII. O cônego Fulber-to, tutor de Heloísa, era um ávido e hábil vende-dor de relíquias falsas. O filme propõe que a boavida de Fulberto está ligada ao dinheiro acumula-do por esse fabuloso comércio divino.

Então, a crítica goliárdica se volta contra oque dois séculos mais tarde é um dos alvos princi-pais da crítica dos reformadores. Isso significa aextensão no tempo das heresias que nunca cessa-ram de se multiplicar.

Goliardos e monges nunca se aproximam:uns se voltavam para a vida da cidade, prontossempre a beber a vida e levar a efeito a atividadeincessante do pensamento na forma da crítica dia-lética; os outros se voltam à vida contemplativa.Goliardos e monges; filósofos e monges são duasfaces desencontradas de uma mesma realidadehistórica. É por isso que não apenas Abelardo en-contra a oposição ferrenha dos monges no mos-teiro para o qual se destina depois das suas cala-midades, mas também faz seu maior inimigo, oabade de Cister, Bernardo de Clavaral: “homemrural, que se tornou um feudal e antes de tudo ummilitar, não tem formação propícia para compre-ender a inteliigentsia urbana”35.

Mas, Abelardo é um filósofo. Surpreendentee moderno. Amante do conhecimento, mas tam-bém, surpreendente amante do corpo de Heloísa.Abelardo um filósofo entre a mulher e o pensa-mento. Entre o casamento e o amor paixão, amorfora da natureza, da história, da aliança e da lei.O amor simbolizado na relíquia que, com graça ebeleza Em nome de Deus cria para mostrar atranscendência do amor com relação à mortali-dade da carne, a empiria dos corpos do filósofo eda mulher.

O filósofo castrado, homem menor, impure-za impingida à força, incapaz de produzir o “líqui-do criador da vida”. A solução do filósofo foi parti-lhar da vida mais execrável a um, quem sabe, goli-ardo, o mosteiro. Ele foi da cidade ao mosteiro,assim como Heloísa foi de amante citadina à mon-

ja – de Eva a Maria. Mas, o amor a tudo suportoue enobreceu-se, cortesmente, ao abandonar o atocarnal, a pureza garantida do amor sem o toquemolhado dos corpos – o amor puro pregado porAndré, o Capelão.

Um amor que foi da carne à palavra e comesta se elevou à eternidade: à correspondência. Acorrespondência eterna.

A mulher

A “Babilônia moderna” é o espaço mais ade-quado à inquietude, à intensidade e aos movi-mentos provocativos de Heloísa de Paráclito(1101-1164). Conhecemo-la pela correspondên-cia com Abelardo, pela história das calamidadesdo filósofo, das quais Heloísa foi a maior respon-sável e pela passagem da mulher pelo conventode Paráclito, onde foi abadessa, ao final de suavida.

Heloísa irradia inconveniência pelos contor-nos do seu corpo: mulher que ousara inserir-se naatividade própria dos homens, o saber; mulherque ousara amar um homem e exigir deste o ca-minho desconhecido da paixão. Ela é uma mulherquente de saber, de sexo e de amor, numa socie-dade de homens, padres e do tabu, o tabu dosexo.

Dos traços que dão uma forma geral de reco-nhecimento ao fin amour, Heloísa tributa-lhe apaixão eterna, o segredo, a devoção e o culto reli-gioso a uma relação que se estende além da vida ealém da morte. O amor cortês ganha com ela ecom Abelardo, realidade histórica, se acreditar-mos nas cartas dos amantes e na biografia domestre, Heloísa é o sujeito histórico do amor queama o amor, tal como diz Denis de Rougemond36;Heloísa é a empiricidade de uma forma amorosaque estamos acostumados a ver na literatura, naidealidade cavalheiresca e cortesã da poesia tro-vadoresca e do romance bretão.

Heloísa ousa ser mulher. Origem de todo opecado, suscetibilidade às tentações do demônio,impaciente, fofoqueira e perigosa. Envolvida com

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35 Idem, p. 51.36 Le Goff, 2003, p.69

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a atividade do pensamento e amante por escolha,suserana de um homem, Heloísa somente temsentido no espaço babilônico de Paris do séculoXII. Heloísa nega, quando Abelardo lhe propõecasamento, como forma de apaziguar a situaçãocriada com seu anfitrião, Fulberto. Heloísa nega omatrimônio e claramente mostra a incompatibili-dade entre o trabalho do filósofo e o casamento:

Provei-te assim que reinas como o único senhor tantosobre a minha alma como sobre meu corpo. Deus osabe, jamais procurei em ti senão a ti mesmo... Não es-perava nem casamento, nem vantagens materiais, nãopensava em prazer nem nas minhas vontades; buscavaapenas, bem o sabes, satisfazer teus desejos. O nomede esposa parece mais sagrado e mais forte, entretantoo de amiga sempre me pareceu mais doce37.

O matrimônio é o paradoxo das mulheres dacidade: por um lado ele representa a possibilidadeda escolha e, portanto, do amor, pois eis que nes-se momento a Igreja transfere para o seu interior,diante do altar, a cerimônia do casamento, dandoà mulher o direito de dizer não. Por outro lado, eleé a prisão definitiva, locus do desamor, cárcere dodemônio, última morada daquela responsável di-reta e primeira pelo primeiro pecado; barulhocontínuo que impede a oração e a filosofia. A casado marido é o último espaço de controle e discipli-namento, produto da desconfiança dos homenscom relação a esse ser perigoso e traiçoeiro.Antes, fora a casa do pai, depois o convento.Ora, Heloísa não poderia casar-se, Abelardo nãoseria seu dono, pois, ao que parece, o amor dosdois era bem diferente do que o cotidiano dasmulheres medievais experienciava. Abelardo so-licita amor e entrega-se a Heloísa como seu ho-mem em fidelidade e honra. Heloísa não queriacasamento, achava que saber não se coadunavacom o casamento, mas, sobretudo, porque seramante seria o modo adequado à forma amorosada paixão.

Então, na base da condenação ao casamen-to está o amor-paixão. Um amor que se mostracomo alternativa política ao modo de vida feudal

e à ideologia do casamento cristão. O caráter anti-matrimonial do amor-paixão se revela um quaseculto ao adultério. Este, ao invés de representar opecado e a falta, assume o tom de sociabilidadealternativa, de ascetismo, não por si mesmo, nãopelo outro, mas em função do servir ao outro epelo amor.

O adultério torna-se de repente um personagem inte-ressante (...) O que era ‘falta’, e só podia suscitar co-mentários edificantes sobre o perigo de pecado e re-morso, torna-se de repente virtude mística (no símbolo)e depois se degrada (na literatura) numa aventura per-turbadora e atraente38.

Não era apenas Heloísa a abominar o casa-mento, também muitos padres da Igreja o viamcom desconfiança, pois a ascese cristã não incluíao casamento, exceto se esse fosse com Deus. Inú-meras epístolas de religiosos39, como o próprioSão Bernardo, mostram que o valor atribuído aocasamento não era maior do que a vida de renún-cia no convento. Tais cartas mostram notadamen-te o valor que a Igreja atribuía a ascese pela renún-cia, de forma que para acessar o paraíso, o cami-nho mais rápido e mais desejável não era o casa-mento, mas a renúncia a todos os prazeres euniões carnais. Isso significa que, mesmo sem oprazer – como eram recomendadas as uniões car-nais entre marido e esposa – a união carnal nãopode ser boa aos olhos de Cristo.

De qualquer modo, o convento era um espa-ço entre a rua e a casa do Senhor. Ali, a meninaesperava o casamento, esperava até que o se-nhor viesse buscá-la. Era no convento o lugaronde podiam estar fora de perigo, das tentaçõesmundanas e de uma “defloração acidental”. Ora,com aquelas que ficam esquecidos no convento,o que fazer? É preciso casá-las, casá-las comDeus, pois isso as livra definitivamente das tenta-ções da carne.

O convento tinha esta função importante:uma espécie de espaço de purificação e de garan-tia de pureza, garantia de manutenção da virgin-

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37 CORRESPONDÊNCIA DE ABELARDO E HELOÍSA. Apresentação por Paul Zumthor. Traduzido por Lúcia Santana Martins.São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 95.

38 ROUGEMONT, 2003, p. 371.39 Pesquisa realizada por DUBY, Georges. Eva e os padres: damas do século XII. Traduzida Maria Lúcia Machado. São Paulo:

Companhia das Letras, 2001.

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dade, que tinha um valor significativo tanto paraas famílias quanto para a Igreja. A família preser-vava a menina para entregá-la ao noivo, que aspreferia e as exigia virgens. A Igreja, o bispo, oabade, também exigia a virgindade e pelo menosa castidade. Se for verdadeiro que as aceitava jádefloradas, é verdade também que “Cristo as pre-fere intactas”.

Claro, muitas das mulheres não se consola-vam com a distância com relação à corrupção dacarne e procuravam um esposo “tangível” quelhes pudesse fazer aquecer o corpo. A estas diziaSanto Anselmo: “se renunciar ao mundo, se des-prezar esse homem que a fez cair e que ou já adespreza ou, sem nenhuma dúvida, logo a despre-zará e abandonará”40. É preciso, por isso, mantera extrema vigilância.

Apesar de tudo o que representa o casamen-to como consentimento da conjunção carnal, eleera um novo convento, ao invés da vigilância doabade, a vigilância do marido. O casamento, comtodo o perigo41 que representava, era ainda umadefesa daquela sociedade de homens em relaçãoàs mulheres de entranhas insaciáveis.

Os muros do mosteiro são construídos paraisso, para que os que amam o mundo não sejam

acolhidos no campo entrincheirado dos que fugi-ram dele, para que

não vos mostreis em público, para que não exponhaisvosso corpo à infecção. Se deixásseis introduzir-se aí oreflexo vergonhoso do que teríeis visto no mundo, po-ríeis em perigo vossa virgindade. Evitai a conversaçãodos homens. Desconfiai dos leigos, desconfiai tambémdos clérigos. Se a pena capital pune a dama considera-da adúltera porque se voltou para um outro homem,que pena sofrerá aquela que, desprezando as castasbodas do esposo imortal, dirigiu carnalmente seu amora alguém?42

Por razões diferentes a essas dos padres daIgreja, Heloísa tentou fugir do fantasma da do-mesticação da sua paixão e quando o casamentose apresentou como a solução necessária, foi o se-gredo que assumiu o lugar da rebeldia. Eles casa-ram-se em segredo e amaram-se em segredo, an-tes da castração de Abelardo. Nunca houve umcasamento segundo as regras da lei, mas a paixãoestendeu-se até nós e ultrapassa-nos por seu cará-ter intempestivo e porque a lei do amor cortês éfazer do amor e não dos amantes, o produtoeterno da relação amorosa.

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40 Santo Anselmo citado por DUBY, 2001, p. 80.41 O perigo estava no fato de que o casamento era um modo de consentir na conjunção carnal, e isso, de certo modo, era a

reprodução do pecado original. Além disso, para os homens, estar ao lado de uma mulher não consistia em nenhum ganhoespiritual ou intelectual. “a mulher é simplesmente útil na procriação (adiutorium generationis) e para cuidar da casa. Para avida intelectual do homem, não tem significado. Assim Agostinho foi o brilhante inventor do que os alemães chamam de trêsKas (Kinder, Küche, Kirche) – filhos, cozinha, Igreja), uma idéia ainda viva, que, com efeito, continua a ser a oposição teológicaprimária das mulheres na hierarquia da Igreja (RANKE-HEINEMANN, Uta. Eunucos pelo reino de Deus: mulheres,sexualidade e a Igreja Católica. Rio de Janeiro: Record; Rosa dos Tempos, 1999. p. 101”.

42 DUBY, p. 80-1.

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Em nome de Deus e o amor cortês

Entrevista com Nilton Mullet Pereira

A entrevista a seguir foi concedida à IHU

On-Line, em 15 de maio de 2006, por ocasião do

evento Quarta com Cultura Unisinos, quando

os professores Nilton Mullet Pereira e José Alberto

Baldissera conduziram a discussão sobre o filme

Em nome de Deus. A atividade aconteceu na Li-

vraria Cultura, no Bourbon Shopping Country,

em Porto Alegre.

IHU On-Line – Como o filme retrata as rela-

ções de gênero na Idade Média?

Nilton Mullet Pereira – Ao mostrar Heloísacomo uma mulher que tem acesso à erudição, co-nhece grego e latim, e apresenta-se como alguémque rompe com padrões estabelecidos, o filme pa-rece querer afirmar o caráter misógino da socieda-de medieval, na medida em que trata Heloísacomo um desvio com relação à norma. Trata-se,do meu ponto de vista, de uma leitura interessante,pois não cria a ilusão de que uma mulher bem-edu-cada e capaz de acessar o conhecimento é uma re-gra no mundo medieval, mesmo no século XII. Aomesmo tempo, o filme mostra que aquela socieda-de masculina e guerreira conviveu com desvios efissuras, mostrando que nem o domínio dos senho-res nem da Igreja era incontestável e homogêneo.

IHU On-Line – Como o amor cortês é repre-

sentado no filme?

Nilton Mullet Pereira – Sobretudo por meio dedois elementos característicos do amor cortês quesão o segredo e o obstáculo. O obstáculo é ima-nente ao amor. É ele que mantém acesa a chamado prazer; a manutenção do desejo consiste exa-

tamente na irrealização do ato carnal. Mas a nega-ção do sexo não era característica definitiva da re-tórica cortês, nem no que se refere à poesia trova-doresca, nem no que concerne a outras formas li-terárias. Tristão e Isolda, por exemplo, copularam.Entretanto, em qualquer dos casos que a literaturacortês apresenta, o que importa é manter o obstá-culo ao prazer corporal e o segredo da relaçãoamorosa, de maneira a prolongar o amor à eterni-dade. Desse modo, é menos significativa a conde-nação da cortesia ao ato carnal do que a condena-ção ao casamento. Este sim é o inimigo númeroum do amor. Ele – o casamento – impedia a “au-tonomia dos sentimentos”, pretendida pelos poe-tas corteses. Ele descobre o amor e o tira do segre-do, fator que mantém o caráter místico e pagão darelação amorosa cortês. E um amor revelado é oamor morto.

Heloísa abomina o casamento tanto porqueo matrimônio não se coaduna com a atividade fi-losófica de Abelardo, quanto porque ele poderádestruir a pureza do amor entre os dois. As regrasdo amor exigem um jogo entre os amantes quenão tem espaço na relação política que é o casa-mento. No tratado de Capelão, por exemplo, ajusta amorosa, e a promessa do amor de umadama a um cavaleiro é fator de revelação da virtu-de masculina. Então, no limiar da virtude do jo-vem cavaleiro está a promessa do amor de umadama, feita no interior do jogo do amor.

IHU On-Line – Quais seriam as ligações a

serem estabelecidas entre a filosofia, o

amor pelo conhecimento e o amor físico?

49

Page 50: Idade Média e Cinema (Caderno) (1)

Nilton Mullet Pereira – O exemplo do filóso-fo que se desliga das exigências do corpo foiSócrates43, para ele o corpo era um intrujão, comoafirma Platão44 no Fedon. O dia da morte do filó-sofo era o momento da sua libertação, quando aalma poderia, novamente, voltar a contemplar asverdades eternas. De modo bastante evidente, ofilme mostra o dilema de Abelardo: estar entre otrabalho filosófico e o amor por Heloísa; entre opapel de professor e o prazer carnal. Ainda na Ida-de Média, a tradição dizia que o filósofo não po-deria envolver-se com as coisas materiais – o pró-prio Abelardo abdicou do seu investimento comocavaleiro para poder seguir o caminho da filoso-fia. O amor que sente por Heloísa é, ao mesmotempo, “misto” e “puro”. Misto porque ele se con-solidou no ato carnal; puro, porque apesar da for-nicação dos dois amantes, o amor se estendeu àeternidade, para além do corpo e da existênciados próprios amantes. É o amor que ama o amor.De qualquer modo, a sublimação do desejo pare-ce ter ajudado Abelardo a continuar filosofando eamando Heloísa, ao mesmo tempo.

IHU On-Line – O amor entre Abelardo e He-

loísa prenuncia um período em que come-

çava a valorizar-se mais a mulher na Idade

Média?

Nilton Mullet Pereira – Há quem anuncie umavalorização da mulher na Idade Média, por contade uma série de fatores, como, por exemplo, a im-portância que a dama – mulher inacessível e idea-lizada – assume na poesia dos trovadores; ou apossibilidade de escolha dada à mulher em fun-ção do sacramento do casamento. De qualquermodo, o enaltecimento da mulher a partir do sé-

culo XII, não é matéria unânime entre os medieva-listas. O fato é que, nessa época, a Europa Oci-dental assistiu ao despertar de uma soma significa-tiva de mulheres que, fosse na literatura ou na rea-lidade vivida, rompiam com os padrões sociais vi-gentes, como vemos pelo exemplo de Heloísa oude Hildegarda de Bingen. Entretanto, longe esta-vam os medievais de suspender o caráter misógi-no da sua cultura.

IHU On-Line – Até que ponto Em nome de

Deus solidifica a imagem que a pós-moder-

nidade possui da Idade Média, como sendo

a época do obscurantismo par excellence?

Quais são os principais aspectos que a obra

destaca com relação à crítica da religião?

Nilton Mullet Pereira – A idéia de uma IdadeMédia como época das trevas vem sendo constru-ída desde o Renascimento dos séculos XV e XVI,não é, portanto, algo criado em uma suposta echamada pós-modernidade. Em nome de Deus,sendo uma produção cinematográfica destinada àdiversão e, logo, sem compromisso com a verda-de histórica, permite reafirmar, sim, o preconceitocom relação à Idade Média, mediante a crítica fá-cil à Igreja Católica. Fato que pode ser observadoem diversos personagens que, no filme, represen-tam a Igreja: exemplo claro é o próprio Fulberto,tutor de Heloísa, que descaradamente vende relí-quias falsas. Além do mais, o filme não tem comomostrar as injunções históricas que permitiram oaparecimento do amor de Abelardo e Heloísa oumesmo de uma mulher como Heloísa. O queocorre, então, é uma depreciação da Idade Médiaem favor dos dois personagens que mais parecemmodernos que medievais.

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

43 Sócrates (470 – 399 a. C.): filósofo ateniense e um dos mais importantes ícones da tradição filosófica ocidental. (Nota da IHU

On-Line)44 Platão (427 - 347 a. C.): filósofo ateniense. Criador de sistemas filosóficos influentes até hoje, como a Teoria das Idéias e a

Dialética. Discípulo de Sócrates, Platão foi mestre de Aristóteles. Entre suas obras, destacam-se A República e o Fédon.

(Nota da IHU On-Line)

Page 51: Idade Média e Cinema (Caderno) (1)

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Os monges, Aristóteles e o riso na Idade Média

Entrevista com José Alberto Baldissera45

Filme: O Nome da Rosa,de Jean-Jacques Annaud, 1986

Evento: Idade Média e CinemaComentário: Prof Dr José Alberto Baldissera –UnisinosDia: 29 de outubro de 2005.Horário: 8h30min às 12h30minLocal: Sala 1G119

Ficha Técnica

Título Original: Der Name Der RoseGênero: SuspenseTempo de Duração: 130 minutosAno de Lançamento (Alemanha): 1986Estúdio: Cristaldifilm / France 3 Cinéma / LesFilms Ariane / Neue Constantin Film / ZweitesDeutsches FernsehenDistribuição: 20th Century Fox Film CorporationDireção: Jean-Jacques AnnaudRoteiro: Andrew Birkin, Gérard Brach, HowardFranklin e Alain Godard, baseado em livro deHumberto EcoProdução: Bernd EichingerMúsica: James HornerFotografia: Ronino Delli ColliDesenho de Produção: Dante FerrettiFigurino: Gabriella PescucciEdição: Jane Seitz

Elenco

Sean Connery (William de Baskerville)Christian Slater (Adso von Melk)Helmut Qualtinger (Remigio da Varagine)

Elya Baskin (Severinus)Michael Lonsdale (Abade)Volker Prechtel (Malachia)Feodor Chaliapin Jr. (Jorge de Burgos)William Hickey (Ubertino da Casale)Michael Habeck (Berengar)Urs Althaus (Venantius)Valentina Vargas (Garota)Ron Perlman (Salvatore)Leopoldo Trieste (Michele de Cesena)Franco Valobra (Jerome de Kaffa)Vernon Dobtcheff (Hugh de Newcastle)Donald O’Brien (Pietro d’Assisi)Andrew Birkin (Cuthbert de Winchester)F. Murray Abraham (Bernardo Gui)

Sinopse

Em 1327, William de Baskerville (Sean Con-nery), um monge franciscano, e Adso von Melk(Christian Slater), um noviço que o acompanha,chegam a um remoto mosteiro no norte da Itália.William de Baskerville pretende participar de umconclave para decidir se a Igreja deve doar partede suas riquezas, mas a atenção é desviada porvários assassinatos que acontecem no mosteiro.William de Baskerville começa a investigar o caso,que se mostra bastante intrincando, além do mais,os religiosos acreditarem que é obra do Demônio.William de Baskerville não partilha desta opinião,mas antes que ele conclua as investigações Ber-nardo Gui (F. Murray Abraham), o Grão-Inquisi-dor, chega ao local e está pronto para torturarqualquer suspeito de heresia que tenha cometidoassassinatos em nome do Diabo. Considerando

45 A entrevista a seguir foi concedida à IHU On-Line pelo professor Baldissera em 24 de outubro de 2005.

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que ele não gosta de Baskerville, ele é inclinado acolocá-lo no topo da lista dos que são diabolica-mente influenciados. Esta batalha, junto com umaguerra ideológica entre franciscanos e dominica-nos, é travada enquanto o motivo dos assassina-tos é lentamente solucionado.

IHU On-Line – Quais são os principais pon-

tos de convergência entre o filme O Nome

da Rosa e o livro que lhe deu origem?

José Alberto Baldissera – Os principais pontosconvergentes entre o filme O Nome da Rosa e o li-vro de Umberto Eco, com o mesmo título, são vá-rios, tais como a ação se passa numa abadia me-dieval; há o aspecto policial dos assassinatos dosmonges, que ninguém sabe o porquê e quem oscometeu, que se desvenda aos poucos pelo perso-nagem principal William de Baskerville. Pratica-mente, a parte principal que o livro narra está nofilme, inclusive o roteiro contou com a participa-ção de Umberto Eco. É claro, contudo, que entreo cinema e a literatura, há várias adaptações, poisos dois têm linguagens diferentes. Nem tudo queestá em uma obra literária vai para a tela e, muitasvezes, se fazem acréscimos quanto a personagense situações. O roteiro cinematográfico é mais con-ciso. Ele também se desenvolve durante um certotempo, que não pode ser muito extenso, devido avários fatores que não cabem aqui declinar. O “es-queleto” principal do livro está assegurado, mastambém há alterações que o roteiro cinematográ-fico traçou, como com relação a alguns persona-gens. É óbvio, como sabemos, que a literatura émais “suculenta” do que o roteiro cinematográfi-co, mesmo que, como roteiro, seja excepcional. Eas duas obras podem ser excelentes, mas cadauma no seu gênero.

IHU On-Line – A busca por bodes expiatóri-

os demonstrada em O Nome da Rosa condiz

com o que ocorria na Idade Média? E qual é

a importância da Inquisição?

José Alberto Baldissera – Claro que a buscapor bodes expiatórios condiz com o que ocorriana Idade Média, como em todos os tempos, inclu-sive atualmente. Bodes expiatórios sempre foramprocurados e apontados, principalmente, por es-

tados e instituições que necessitam manter umaverdade que seja indiscutível e que não permitadivergências. A importância da Inquisição, que foicriada nos inícios do século XIII, é que permitiu re-gular melhor a atuação da Igreja na sociedade daépoca e perseguir os hereges, bem como imporseus dogmas de maneira indiscutível. A Inquisi-ção, todavia, atua muito além da Idade Média,praticamente até os inícios do século XIX em vá-rias partes da Europa. Mesmo na época do racio-nalismo, do cientificismo, que tanto caracteriza-ram o Renascimento posterior à Idade Média, etambém na época do Iluminismo do século XVIII,a Inquisição atuou como nunca. As razões históri-cas são várias.

IHU On-Line – Como interpreta a afirmação

do filme de que a ironia e o riso contidos no

segundo livro da Poética, de Aristóteles, se-

ria uma espécie de degrau para dúvida e

perda de fé?

José Alberto Baldissera – A ironia é uma armapoderosíssima, inclusive eu vivenciei isso durantea Ditadura Militar no Brasil (1964-1985). A ironiaé uma arma da qual o poder tem pavor, pelo me-nos um poder autoritário, pois pode ameaçá-lomuito mais do que as armas tradicionais. A ironiadesmonta, atinge o âmago da questão, tornaaquilo que ironiza frágil. Não é um deboche, éuma arma muito mais contundente. O riso mata otemor, como mais ou menos transmite isso o bi-bliotecário do filme, e sem o temor não pode ha-ver fé. E aquele “debate teológico”, referindo-seao fato de que Cristo não teria rido, pois isso nãoestá no Evangelho, é completamente surrealista. Etambém não há no Evangelho referência a queCristo não havia rido. Isso é simplesmente insa-no!!! “Parole, parole, parole...”

IHU On-Line – Como avalia a produção e re-

tenção de conhecimento pelos monges no

filme?

José Alberto Baldissera – Aqui não se trata deuma questão de avaliação, mas a produção e a re-tenção de conhecimentos pelos monges, durantemuito tempo na Idade Média. O trabalho que nes-se setor foi feito pela Igreja foi uma parte positiva

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Page 53: Idade Média e Cinema (Caderno) (1)

da manutenção da cultura no tempo medieval, sebem que com certas restrições à maneira defazê-lo. Sem dúvida, a Igreja foi a principal res-ponsável, no ocidente da Europa, pela guarda doconhecimento e pelo estudo, mesmo que apon-tasse e veiculasse, principalmente, pelo menos aIgreja oficial, aquilo que lhe interessava e servia desuporte e argumentação para suas verdades.

IHU On-Line – Poderiam ser estabelecidas

algumas relações entre o personagem Willi-

am de Baskerville e o filósofo medieval Wil-

liam de Ockham?

José Alberto Baldissera – Primeiramente, a re-lação que se pode estabelecer entre os dois é queo trabalho deles era solitário, de investigação. Umtrabalho em que se quer ir até as últimas conse-qüências. Este método, proveniente da Lógicaaristotélica, e mais toda parte da Poética46, nãointeressava à Igreja oficial, mas o que mais interes-sava era o Aristóteles47 da Ética e da Política. Umponto de contato seria a interferência da Igreja, oupelo menos de seus representantes oficiais, de for-ma a atrapalhar as investigações realizadas pelosdois, pois o que acontecia, o que era mais caro aela não era a “verdade”, mas preservar a “doutri-na”. E, nem sempre, as duas necessariamente an-dam juntas. O professor Alfredo Culleton48 lembra

que “Ockham49 não foi fazer este trabalho de in-vestigação em um mosteiro, como Baskerville. Elefoi perseguido e morreu excomungado.

São palavras do próprio Eco, no seu pós-es-crito50 ao O Nome da Rosa, no qual ele discuteas origens e o processo de criação do livro, “(...)que, a princípio, eu tinha decidido que o investi-gador devia ser o próprio Ockham, depois aban-donei a idéia (...)”. Portanto, William de Baskervillenão representa o filósofo Guilherme de Ockahm,apesar de alguns pontos de contato tanto no livro,quanto no roteiro cinematográfico.

IHU On-Line – Como o nominalismo é dis-

cutido no filme? E de que forma o título O

Nome da Rosa demonstra essa problemáti-

ca entre os universais e os particulares?

José Alberto Baldissera – Devemos lembrarque o nominalismo é uma postura filosófica críticaperante as idéias do platonismo, que é um dospontos principais da filosofia escolástica na IdadeMédia. Do platonismo se deriva a filosofia dos“universais”, que defende a idéia de que, em ummundo ideal perfeito, existe a realidade das coisascom todos os atributos e perfeição de seu gênero ede cuja perfeição participam, em maior ou menorgrau, as coisas particulares. Por exemplo, homem,bondade e beleza existiriam de forma que todos

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

46 Poética: Dessa obra de Aristóteles, conservaram-se apenas os tratados sobre a tragédia e a poesia épica. (Nota da IHU

On-Line)47 Aristóteles de Estagira (384 a C. – 322 a. C.): filósofo grego, um dos maiores pensadores de todos os tempos. Suas reflexões

filosóficas — por um lado originais e por outro reformuladoras da tradição grega – acabaram por configurar um modo depensar que se estenderia por séculos. Prestou inigualáveis contribuições para o pensamento humano, destacando-se: ética,política, física, metafísica, lógica, psicologia, poesia, retórica, zoologia, biologia, história natural e outras áreas deconhecimento. É considerado, por muitos, o filósofo que mais influenciou o pensamento ocidental. (Nota da IHU On-Line)

48 Alfredo Culetton: graduado, mestre e doutor em Filosofia, a primeira pela Unijuí, a segunda pela UFRGS e a terceira pelaPUCRS. Sua tese intitula-se Fundamentação Ockhamiana do Direito Natural. Atualmente, leciona nos cursos de graduação emestrado em Filosofia, na Unisinos. O filósofo concedeu à IHU On-Line nº 160, de 17 de outubro de 2005, uma entrevistasobre o filme Em Nome de Deus, comentado por ele junto com o Prof Dr Nilton Mullet Pereira, e exibido em 15 de outubro de2005. (Nota da IHU On-Line)

49 William de Ockham (1285-1350): filósofo lógico, teólogo escolástico inglês, frade franciscano e criador da teoria conhecidacomo Navalha de Ockham (em inglês, Ockham’s Razor), que dizia que as “pluralidades não devem ser postas semnecessidade”. Considerado um dos fundadores do nominalismo, teoria que afirmava a inexistência dos universais, que seriamapenas nomes dados às coisas, e portanto produto de nossa mente sem uma existência prática assegurada. Por causa de suasidéias foi excomungado pela Igreja. O conceito, bastante revolucionário para a época, defende a intuição como ponto departida para o conhecimento do universo. Ockham foi discípulo do filósofo Duns Scotus e precursor do empirismo inglês, docartesianismo, do criticismo kantiano e da ciência moderna. Sobre Ockham, algumas boas fontes de pesquisa são A

compendium of ockham‘s teachings. New York: The Franciscan Institute, 1998; Ockham‘s theory of terms. SouthBend: St. Augustine’s, 1998; DUNS SCOTUS, John. Scotus vs. Ockham: a medieval dispute over universals. Lewiston:Edwin Mellen, 1999. (Nota da IHU On-Line)

50 ECO, Umberto. Pós-escrito a O Nome da Rosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. (Nota do entrevistado)

Page 54: Idade Média e Cinema (Caderno) (1)

os conceitos que temos sobre eles participassemdessas idéias puras; porém, para os nominalistas,essas palavras são somente nomes sem substân-cia, não são seres concretos, mas meras abstra-ções, que se podem atribuir para vários indivíduosindistintamente. E, portanto, existem intelectual-mente e não na realidade. Os nominalistas defen-dem que existe uma realidade lógica, e não umarealidade ontológica (ser, existir), como preten-diam os universalistas. Conforme os nominalistas,supor a existência desses “universais” significavalimitar o pensamento. É claro que a posição nomi-nalista propõe discussões, investigações e a ten-dência de não aceitar verdades já impostas e con-ceituadas genericamente. Aliás, este é o caminhoque, a partir de então (séculos finais da Idade Mé-dia), tenta seguir a ciência moderna. Esse posicio-namento dos universalistas e nominalistas geratambém dilemas teológicos, portanto, a ortodoxiada Igreja se opôs de maneira praticamente radicalao nominalismo. Os universalistas defendem que,com base nos conceitos universais, era possívelimpor leis gerais a todos, assim como a lei divina.Logo, todo caráter investigativo que punha emdúvida essas verdades pré-estabelecidas das quaisse derivariam as outras colocavam em perigoaqueles que defendiam idéias universais indiscutí-veis e já pré-estabelecidas. Tanto no livro quantono filme, em dimensões menores, este posiciona-mento de defender a investigação do particularpara chegar-se a uma “verdade” (Guilherme deBaskerville) se opõe ao raciocínio do inquisidor(Bernardo Gui, que chega à Abadia), que defende“verdades” indiscutíveis e universais, o que al-guém pensasse ou fizesse seria contra essas “ver-dades”, ou estaria de acordo com elas. Nada ha-via a investigar. Sobre o título O Nome da Rosa,diz o próprio Eco, no seu já citado pós-escrito aoO Nome da Rosa, que “a idéia de O Nome da

Rosa veio-me quase por acaso e agradou-meporque a rosa é uma figura simbólica tão densa designificados que quase não tem mais nenhum(...)”. Ainda vislumbra “as possíveis leituras nomi-nalistas”, tendo como referência o próprio título. Ediz também que “um título deve confundir as idéi-as, nunca discipliná-las”.

IHU On-Line – Qual o significado dos emba-

tes entre os franciscanos e os dominicanos

para o contexto do filme?

José Alberto Baldissera – No filme, o mongefranciscano William de Baskerville representa oideal renascentista que, nessa época (início do sé-culo XIV), já delineava características importantesque se cristalizaram de uma maneira mais impor-tante nos séculos XV e XVI. Essa postura do mongefranciscano é mais humanista e racional, portanto.Na história de Eco, consegue desvendar a verda-de por trás dos crimes cometidos no mosteiro e re-lacionados com a proibição para os monges dechegar até a Poética de Aristóteles. Sobre a Poé-

tica de Aristóteles, alguns lembram que ela já es-taria perdida nessa época. Lembramos que os do-minicanos foram, em princípio, encarregados daInquisição. Portanto, aqui a questão se reduz maisa guardar a doutrina e a defendê-la.

IHU On-Line – De que modo as minorias são

encenadas nessa obra? Qual é a relação que

essas minorias têm com o que acontecia na

época?

José Alberto Baldissera – As minorias aqui sãominorias com relação ao mosteiro, mas são a maio-ria da sociedade da época, isto é, o povo comum.E, dessas “minorias”, quem mais aparece no filmesão os aldeões que moram na aldeia vizinha aomosteiro, que dependem, inclusive, para subsistirde uma troca que fazem com ele. Como todas as“minorias”, eles também são alijados da igualda-de social e da própria liberdade. Aliás, como emqualquer época, inclusive no século XXI, resguar-dando as peculiaridades de cada época e o seuimaginário. É claro que não temos este alijamentosocial exatamente da mesma forma, mas ele sem-pre existiu. É um dos “pecados” que a sociedadenão resolve e do qual não se livra. Por quê? Bem,aqui a resposta é bem clara (interesses), mas tam-bém bastante complexa.

IHU On-Line – O que destacaria no filme da

produção, da fotografia e do enredo,?

José Alberto Baldissera – É um filme que con-sidero bem realizado, se bem que não consiga

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Page 55: Idade Média e Cinema (Caderno) (1)

abranger todo universo proposto por UmbertoEco em sua obra. Contudo seria impossível,como já apontei, transferir todo o universo da li-teratura para o cinema. A fotografia é belíssima.A produção é bem cuidada na pesquisa históricafeita para a época. É claro que sempre há algu-mas adaptações, mas que, nesse caso, não che-gam a embaçar a “reconstituição histórica” pre-

tendida. E o enredo, como já apontei também,consegue extrair muitos pontos importantes dahistória que o livro traz e também das idéias queexpõe. É um filme que merece ser visto comobom cinema baseado em uma grande obra da li-teratura. É uma síntese bem construída de umaépoca histórica, se bem que as sínteses, como sa-bemos, têm suas limitações.

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

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Uma sátira à realidade italiana dos anos 1960

Entrevista com Ricardo Fitz

Ricardo Fitz é graduado em História pelas

Faculdades Porto Alegrenses de Ciências e Letras

(FAPA) e mestre em História pela Unisinos. Atual-

mente, leciona na FAPA. Ricardo concedeu entre-

vista à IHU On-Line em 31 de outubro de 2005.

Filme: O Incrível Exército de Brancaleo-ne, Mario Monicelli, 1965

Evento: Idade Média e CinemaComentário: Prof MS Ricardo Fitz – FAPADia: 5 de novembroHorário: 8h30min às 12h30minLocal: Sala 1G119

Ficha Técnica

Título Original: L’Armata BrancaleoneItália: 1965Direção: Mário MonicelliDuração: 116 min.

Elenco

Vittorio GassmanEnrico Maria SalermoCatherine Spasak

Sinopse

Este clássico do cinema italiano retrata os cos-tumes da cavalaria medieval através de uma de-molidora e bem humorada sátira. A figura central éBrancaleone, um cavaleiro atrapalhado que lidera

um pequeno e esfarrapado exército, perambulan-do pela Europa em busca de um feudo. Trata-se deuma paródia de D. Quixote de Cervantes. O filmeconsegue ser hilário, mesmo na reconstituição dosaspectos mais avassaladores da crise do séculoXIV, representados pela trilogia “guerra, peste efome”. Utilizando-se sempre da sátira, o filme deMonicelli focaliza a decadência das relações socia-is no mundo feudal, o poder da Igreja Católica, ocisma do Oriente e a presença dos sarracenos.

IHU On-Line – Quais são os elementos mais

satirizados sobre a Idade Média e o que eles

querem demonstrar realmente?

Ricardo Fitz – Quando Mario Monicelli51 criou ofilme Brancaleone, fê-lo intencionalmente satírico.Normalmente, os filmes ditos históricos, ou coisaparecida, têm uma espécie de leitura subliminar.No caso do Monicelli, todo esse lado subliminarfoi explicitamente explicitado. A sátira que Moni-celli faz não é, exatamente, uma sátira à Idade Mé-dia, ele deixou isso claro. Ele procurava fazer umasátira à realidade contemporânea, mais especifi-camente do fascismo italiano, por incrível que issopossa parecer. Ele faz uma sátira da idéia do Con-

dotiere, do Duce52, que aparece na figura do pró-prio Brancaleone. Não é uma sátira sobre a IdadeMédia, mas que se utiliza de elementos desse pe-ríodo para fazer a sátira da sua realidade. Em vistadisso, ele utiliza-se de um arsenal muito grande deelementos da Baixa Idade Média, que vai do sécu-

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51 Mário Monicelli (1915): cineasta italiano, consagrado como o rei da comédia. Dirigiu filmes, como Um outro mundo é possível

(2001) e Cartas da Palestina (2002). (Nota da IHU On-Line).52 Aqui o entrevistado refere-se ao diminutivo de Condociere, do italiano, aquele que conduz. Trata-se, neste caso, de Benito

Mussolini (1883-1945), conhecido como Duce, político e jornalista que governou a Itália com poderes ditatoriais de 1922 a1943. (Nota da IHU On-Line)

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lo XI ao século XIV, em que ele mistura, num mes-mo plano, coisas que, às vezes, são um tanto quan-to anacrônicas, que se situam em momentos dife-rentes. Ele lida, porém, com a crise feudal, com aprópria questão da terra, da pobreza, da miséria.De alguma forma, coloca no filme as Cruzadas, fazuma sátira da cavalaria, nitidamente inspirada emDom Quixote53, uma sátira ao amor cortês e, den-tro disso, os próprios ideais de castidade. A peste éenfocada, assim como a questão comercial e aquestão judaica, na figura do mercador. Há itensque serão utilizados e que, pelas imagens quaseiconográficas, estereotipadas da Idade Média, fa-zem uma sátira da sua própria realidade.

IHU On-Line – O senhor poderia dar mais

detalhes sobre a tentativa de Monicelli em

aproximar o cavaleiro Brancaleone e Dom

Quixote, anti-herói de Cervantes?

Ricardo Fitz – Cervantes54, na imagem de DomQuixote, cria um anti-herói, que evidentemente éuma sátira à realidade da Idade Média que, na-quele momento em que Cervantes escreve, estápraticamente desabado, ou restam apenas algunsresquícios. A idéia do Monicelli parece muito maisa de pegar, digamos assim, a essência da idéia doDom Quixote. Monicelli deu uma entrevista parao professor João Alberto Brito Garboggini55, quefez sua dissertação de mestrado sobre Brancaleo-ne. E no depoimento que Monicelli dá a Garbog-gini, ele diz que, na verdade, seus filmes (aí eleestá se referindo à produção Os companheiros de

63 e ao próprio Brancaleone) refletem sua desilu-são com a esquerda, ou seja, Monicelli resolve criarum personagem que persegue determinados ideais,

mas nunca consegue encontrá-los. Nenhum outropersonagem da Literatura se encaixaria melhornesse cenário do que o próprio Dom Quixote, daíessa aproximação, que tem outras característicasbastante peculiares. Dom Quixote é um sujeito dapequena nobreza arruinada e, de certa forma,Brancaleone é a mesma coisa. Dom Quixote éacompanhado por Sancho Pança, um lavradorque vive no interior da Espanha, e Brancaleoneserá seguido por um grupo de indivíduos absolu-tamente proletarizados nessa sociedade, que nãotem nada a ganhar e nada a perder. Essa idéia émuito semelhante ao Dom Quixote. Sancho Pan-ça, por exemplo, só acompanha Dom Quixote,mesmo sabendo que ele é meio louco, porqueDom Quixote havia lhe prometido que seria go-vernador de uma ilha. Os indivíduos que partici-pam da Armatta Brancaleone vão numa esperan-ça semelhante, a de conquistar o feudo de Auro-castro e assim conseguir algum tipo de ascensãosocial naquele período. Então, há uma série deelementos com os quais podemos fazer essa ana-logia: a busca de ideais jamais alcançados, essecaráter de substituir o Sancho Pança por um pe-queno grupo de pessoas, a comicidade da narrati-va e a figura patética de Brancaleone.

IHU On-Line – O exército é alvo de sátira no

filme. Qual é a importância dessa institui-

ção naquela época?

Ricardo Fitz – Essa questão é muito importante.Temos que lembrar que, na Idade Média, até aGuerra dos Cem Anos56, os exércitos eram, funda-mentalmente, exércitos da nobreza. Não há a ins-tituição de exércitos nacionais. Isso fica evidente

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

53 Don Quixote de La Mancha: personagem criado por Miguel de Cervantes no livro de mesmo nome. No Brasil, o título do livro égrafado como Dom Quixote de La Mancha. O título original completo era El ingenioso hidalgo Don Quixote de La Mancha,com sua primeira edição publicada em Madri, no ano de 1605. O livro é um dos primeiros das línguas européias modernas e éconsiderado por muitos o expoente máximo da literatura espanhola. (Nota da IHU On-Line)

54 Miguel de Cervantes e Saavedra (1547-1616): escritor espanhol, autor de Don Quixote de La Mancha. (Nota da IHU On-Line)55 João André Brito Garboggini: professor de estética e publicidade, além de disciplinas audiovisuais, na PUC-Campinas. Em sua

dissertação de mestrado, cursado na Unicamp, intitulada Uma viagem brancaleônica pela Idade Média, sua proposta foirealizar uma análise da estrutura da narrativa fílmica, com base no longa-metragem O Incrível Exército de Brancaleone, deMario Monicelli. Em seu estudo, Garboggini debruçou-se sobre a natureza da comédia italiana durante a década de 1960 e ascaracterísticas da reconstituição histórica que o filme realiza. (Nota da IHU On-Line)

56 Guerra dos Cem Anos: série de conflitos armados, registrados de forma intermitente, durante os séculos XIV e XV, envolvendo aFrança e a Inglaterra. A longa duração desse conflito explica-se pelo grande poderio dos ingleses de um lado e a obstinadaresistência francesa do outro. Hostoriograficamente, é recortado de 1337 a 1453. As suas causas remotas prendem-se ao fato deque, desde Guilherme, o Conquistador, os monarcas ingleses controlavam extensos domínios senhoriais em território francês,ameaçando o processo de centralização monárquica da França que se esboçava desde o séxulo XII. (Nota da IHU On-Line)

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em Dom Quixote. Quando Monicelli ridiculariza opróprio exército na imagem daquele grupo depessoas, ele, na verdade, faz uma crítica a toda equalquer forma de elemento político mais centrali-zador. Não é apenas o exército, mas as própriasestruturas de poder. E mais: ele coloca isso visto,de certa forma, de baixo para cima. É interessanteporque o filme todo se situa num substrato inferior.Por exemplo, como a Igreja vai aparecer? A Igrejanão aparece representada no alto clero, e sim nafigura daquele monge com seus seguidores fanáti-cos. Ele lida com a religiosidade medieval, popu-lar. A nobreza e as instituições de poder, propria-mente ditas, quando aparecem, são retratadasnuma relação de hostilidade com o grupo, com opróprio Brancaleone. Por exemplo, o nobre queteve aquele documento roubado, quando reapa-rece, o faz de forma hostil, intimidatória, pelo me-nos. Outro aspecto interessante: o companheirode Brancaleone, filho de um nobre bizantino,quando se apresenta, nós temos a representaçãoda corte bizantina, o que é uma das imagens maisdeliciosas do filme. Aquele pessoal parado, imó-vel, como um mosaico bizantino, imóvel e autori-tário e ainda decadente. Há um traço da decadên-cia que está sendo refletido.

IHU On-Line – Como o filme retrata as mi-

norias na Idade Média?

Ricardo Fitz – Acredito que, na verdade, não háuma representação específica das minorias naIdade Média. Acho que estão representadas as mi-norias da própria época de Monicelli. O filme foifeito em 1965, e acho que, de certa forma, ele jácoloca as ansiedades daquela época. Estou lem-brando, por exemplo, do líder dos piratas sarrace-nos, apresentado de forma caricatural, estereoti-pada de um homossexual, o que é uma coisacompletamente fora do contexto do medievo. Ocomportamento dele, afetado, lembra-nos muitomais os costureiros, estilistas italianos da décadade 1960, do que propriamente algum persona-gem medieval, muito menos um muçulmano, atéporque a homossexualidade no mundo islâmico épunida severamente. Então, mesmo que ela ve-

nha a aparecer, dificilmente haveria um homemnessa condição de liderança e, sobretudo, numgrupo de piratas. Aquilo é de uma profunda ironiae tem vários significados. Com relação às mulhe-res, tenho a impressão de que Monicelli soubecaptar um momento que é aquele primeiro perío-do da emancipação feminina dos anos 1960, emque a mulher busca seu espaço. É a época em quea pílula vem à tona, e a mulher começa a rompercertos conceitos, ela toma a iniciativa da sexuali-dade, e isso vai aparecer nos dois momentos emque Brancaleone se envolve – a iniciativa é femini-na, o que reflete muito menos a Idade Média doque a própria realidade do diretor.

IHU On-Line – Qual foi a recepção de Bran-

caleone na Itália?

Ricardo Fitz – Ela teve uma aceitação imediata,tanto dentro quanto fora da Itália. Há um dadobastante curioso: em maio de 1968, nas barrica-das de Paris, alguns grupos de estudantes de ten-dência anarquista, passaram a utilizar como gritode guerra “Branca, Branca, Branca, Leon, Leon,Leon57”, que servia para satirizar o Partido Comu-nista Francês e outras instituições. O filme é umareferência por vários aspectos. A comédia italianaque vinha sendo trabalhada até então, via de re-gra, na Itália, era vista pela crítica em geral, e atémesmo por setores da intelectualidade, como umacoisa mais secundária por seu caráter pastelão.Monicelli se propõe a fazer uma comédia diferen-te, que não seja evasiva, mas onde o drama estejapresente, e a comédia vá representar exatamentea amenização do próprio drama. Quando elepega, logo no início do filme, as pessoas lutando,na verdade ele pega uma situação muito tensa evai minimizá-la pela comicidade do fato. Da mes-ma forma, a pobreza é minimizada dessa maneira.A figura do herói será completamente descaracte-rizada. Quando assistimos a um filme, percebe-mos que há representações ideológicas e estereó-tipos. Nesse caso, os modelos heróicos serão com-pletamente invertidos: o herói é transformadonum anti-herói completo, desde sua figura desca-belada, desorganizada, desestruturada, coisa que

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57 Grito de guerra que o Exército de Brancaleone bradava ao longo de suas incursões. (Nota da IHU On-Line)

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Cervantes havia feito com Quixote, que coloca nacabeça uma bacia de barbeiro à guisa de elmo. Decerta forma, isso se reproduz no Brancaleone.Esse anti-herói não é um estereótipo de nada, eleé simplesmente a negação da imagem que tradi-cionalmente se fazia. Para mim, isso é o genial emCervantes e Monicelli. O diretor afirma que seuobjetivo era satirizar a figura do Duce e, mais doque isso, os filmes italianos da época do fascismo,que lidavam, fundamentalmente, com a figura doherói. Sua idéia é ironizar as lideranças que ten-tam encontrar soluções para suas próprias causase que têm sempre suas tentativas, via de regra,frustradas.

IHU On-Line – Quais teriam sido as influên-

cias que Monicelli despertou para as gera-

ções futuras com esse tipo de fazer cinema?

Ricardo Fitz – Essa é outra questão bem interes-sante. Tenho a impressão de que a comédia nun-ca mais foi a mesma. Não sei se chegaria a ser umdivisor de águas, mas efetivamente Brancaleonemarcou um momento. Grande parte das comé-dias posteriores, de uma maneira ou de outra, en-contram um espelho nesse filme. É o caso do wes-

tern spaghetti, ou seja, os filmes de bang-bang,com estereótipos levados a determinado limite te-rão uma proximidade com Brancaleone, porque owestern clássico norte-americano vai criar a figurado herói. Os western spaghetti usam essa mesmaquestão sobre mocinho-bandido, só que o moci-nho não é perfeito. Na maior parte dos casos, elese safa mais pela sorte, ou por circunstâncias ex-ternas à sua bravura, do que por ele mesmo.

IHU On-Line – O senhor poderia dar mais

detalhes sobre as metáforas políticas que

existem por trás da trama?

Ricardo Fitz – Em primeiro lugar, há uma cenaexplícita, logo depois que Brancaleone é derrota-do naquele torneio e resolve ir atrás do castelo deAurocastro, convocando um grupo para formarseu exército particular. Nessa oportunidade, ele seauto-intitula o Duce e diz que os outros deverãoobedecer a ele. Aí temos um momento explícitodessa ironia que Monicelli faz. O grupo aceita o tí-tulo que Brancaleone se dá, porque, afinal de con-

tas, mesmo como um nobre falido, decadente, eleteria uma condição de nascimento que lhe outor-gava isso. No caso do fascismo, propriamente,não há uma condição de nascimento, mas ela atri-buía às virtudes do Duce a sua própria condiçãopessoal, o que é característico dos fascismos,quando se projeta no personagem, no sujeito, avirtude de toda uma nação ou povo. Os seguido-res do Brancaleone, num primeiro momento, fi-cam indecisos, mas resolvem ceder, ou seja, elesse dão conta de que, sozinhos, não poderiam con-quistar, apesar de serem eles os detentores do do-cumento. Eles precisariam de alguém que os con-duzisse, e esse alguém é a própria lógica do fascis-mo. Evidentemente, esse mesmo Duce será, fre-qüentemente, contraditado. E por quem? Por umoutro sujeito, que também diz ser nobre, e que de-pois demonstra ser um filho bastardo. O reveladoré o caráter de classe que cada um dos persona-gens assume dentro da trama do Monicelli.

IHU On-Line – Gostaria de acrescentar al-

gum aspecto que não abordamos?

Ricardo Fitz – Acho que uma das coisas mais in-teressantes desse filme é aquilo que o teórico daHistória e Cinema, Marco Ferro, dizia: “Existeuma leitura histórica do filme e existe uma leituracinematográfica da história”. Quando vamos exa-minar um filme, temos que vê-lo do ponto de vistada leitura histórica, a época em que o filme é pro-duzido. A leitura cinematográfica do filme vai fa-zer mais um discurso sobre o passado. Essas duascoisas andam juntas, porque a leitura que vou fa-zer do passado é, em grande parte, condicionadaa uma leitura que tenho do próprio presente. Elapode me servir para justificar o presente, para fa-zer a crítica dele. Nesse caso, acho que é interes-sante verificar que a leitura histórica que se podefazer do filme nos mostra alguns pontos especiais.Há modelos de representações ideológicas, comoeu disse antes. Existe um filme clássico de ficçãocientífica dos anos 1950 chamado Os Invasores

de Corpos, em que alienígenas invadem corposhumanos. À primeira vista, é um filme que nãotem grande significado, só que ele é produzido naera do macarthismo, quando a tônica política dosEUA era o perigo da infiltração comunista, capaz

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de provocar desagregação dos lares americanos.No fundo, o filme é uma maneira de expor sim-bolicamente aquela preocupação. Há ainda osfilmes que lidam com os modelos patrióticos,como O resgate do soldado Ryan. Existe um ter-ceiro elemento na filmografia que são os estereó-tipos, basta lembrar como se retratava a África

até os anos 1960, com Tarzan, perigos, safárisetc. O que Brancaleone faz? Na minha opinião,ele procura demolir com tudo isso. Monicelli criaoutros estereótipos, é verdade, mas procura exa-tamente demolir com esses modelos de represen-tação intencional.

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O Incrível Exército de Brancaleone: uma leitura do filme

Por Ricardo Fitz

Mais do que nunca, vive-se hoje em umaépoca de imagens e, portanto, a interpretação dasimagens tornou-se condição sine qua non para ainterpretação da própria realidade contemporâ-nea. Os semiólogos interpretam a imagem comosendo um ícone que substitui a realidade, um ob-jeto que reproduz ou imita algo, mesmo que estealgo se situe no campo do fantástico. É neste cam-po que os modernos meios de comunicação atuamcom muita intensidade.

Dentre as preocupações contemporâneasdos historiadores, algumas se situam no âmbitodo exame do diálogo entre a história e as moder-nas tecnologias, a mídia e as comunicações, asnovas formas de representação da realidade.Abrangendo todas essas possibilidades e, ao mes-mo tempo, sendo por elas abrangido, se situa o ci-nema no qual, evidentemente, a questão relativaà imagem assume uma dimensão fundamental.

As relações entre história e cinema passarama ser explicitadas nos estudos de Marc Ferro, paraquem este diálogo já transparecia desde o surgi-mento do cinema. De fato, as primeiras exibiçõespúblicas feitas pelos irmãos Lumière em 1895mostravam (documentavam) a chegada de umtrem na estação ou a saída de operários da fábricaLumière, isto é, registravam eventos reais, rein-ventando a realidade. De lá para cá, o cinemapassou a inserir-se com força crescente no cotidia-no das pessoas. Num primeiro momento, isso sematerializava nas salas de projeção e, mais tarde,além dessas, na televisão e hoje em filmes devideocassete e DVD.

Um dos grandes problemas suscitados pelafilmografia “histórica” está no fato de que existeum “desejo” de que o filme seja fiel aos fatos. Ten-

dencialmente, o espectador lê o filme como se opassado estivesse se desvelando diante de si. Ora,o diretor do filme não é, necessariamente, um his-toriador e a produção cinematográfica exige ele-mentos que sejam atrativos ao público, o que nemsempre ocorre com a narrativa histórica. MarcFerro, citando Ignácio Ramonet, diz que

a aparição das imagens, como por ocasião de um jogo,é o princípio da ordem - com a ubiqüidade – mas umjogo obedece a regras que conhecemos e que domina-mos, o que não é o caso de uma guerra ou da históriadas sociedades.

Na arte e, portanto, na ficção histórica,

o princípio da organização é dramático e estético. A his-tória, neste caso, tanto se apresenta pela beleza dos pla-nos quanto pelas guinadas da narrativa e do suspense.Mas a história tal como ela foi vivida ou tal como ela sefinaliza, não obedece a uma regra estética – tampoucoàs leis do melodrama ou da tragédia.

Tendo em vista nosso objeto de análise (o fil-me de Monicelli), acrescentaríamos que tampou-co obedece às leis da comédia.

A esse propósito, Marc Ferro considera a ne-cessidade de se conduzir os estudos sobre cinemaconsiderando-se que o filme, antes de tudo, é umtestemunho do presente (e nesse sentido é docu-mento primário) e um discurso sobre o passado

(documento secundário). Ferro propõe duas viasde leitura do cinema ao historiador: a leitura his-

tórica do filme e a leitura cinematográfica

da história. A primeira corresponde à leitura dofilme à luz da época em que foi produzido, e a se-gunda, à leitura do filme como um discurso sobreo passado.

Poderíamos ainda acrescentar uma terceiraabordagem a ser feita na leitura do cinema: o cine-

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ma como agente da história. Nesse caso, eleatua com o propósito mais ou menos explícito deinterferir na realidade. Há uma extensa filmografiaque aborda questões da realidade, seja com o in-tuito de fazer denúncias, seja com o intuito de pro-paganda ou contrapropaganda. Explícita ou im-plicitamente, consciente ou inconscientemente, osrealizadores de um filme transpõem para a telasuas próprias leituras da realidade. Essas, freqüen-temente ainda, condicionadas à dinâmica de mer-cado. São por demais conhecidas as modificaçõesintroduzidas no filme Blade Runner, de RidleyScott, pelos executivos da indústria cinematográfi-ca para que o filme fosse “mais compreensível”para o público. Fato semelhante ocorre com O

Nome da Rosa de Jean-Jaccques Annaud, (Ber-nardo GUI)

O Incrível Exército de Brancaleone (L’Armat-

ta Brancaleone) é uma produção italiana de 1965,com direção de Mario Monicelli, tendo nos papéisprincipais Vittorio Gassman, Gian Maria Volonté eCatherine Spaak. O filme segue a tradição dacommedia all’italiana, gênero que o diretor co-nheceu na década de 1930 e muito desprestigiadopela crítica por sua ingenuidade. Brancaleone sur-giu em um contexto em que este tipo de filme al-cançou seu apogeu, não sendo mais visto comomeramente uma forma de “escape”. Monicelli,em certa medida, é um dos responsáveis por essamudança de posicionamento da crítica e seu filmeé, sem dúvida, um dos que mais contribuiu nessesentido.

O filme inicia quando um grupo de saquea-dores se apodera de um pergaminho que concedea um nobre a posse de um feudo (Aurocastro).Este pergaminho é oferecido a um esfarrapado ca-valeiro (Brancaleone da Norcia) que é patetica-mente derrotado em um torneio. Os saqueadoresmais um velho mercador judeu e um cavaleiro bi-zantino desprezado e deserdado pela família par-tem em direção a Aurocastro para tomar posse dofeudo, conduzidos por Brancaleone que se intitulao “Duce” do bando. Ao longo do caminho, evi-dentemente, sucedendo-se uma série de desven-turas e trapalhadas.

Existe uma evidente analogia com o Dom

Quixote, não apenas na figura caricata de Branca-leone, mas também na trajetória da personagemque, ao longo do caminho, se depara com eventostragicomicamente mostrados. Aqui, porém, essasucessão de eventos se transforma em sketches

que revelam o patético da personagem. De ma-neira análoga a Dom Quixote, Brancaleone é umanti-herói, a negação dos personagens idealizadosnos romances de cavalaria medieval. Ocorre uma“carnavalização”, ou seja, uma inversão de situa-ções: o nobre cavaleiro é um maltrapilho, umanti-Ivanhoé, a negação do príncipe valente. O fil-me serviu ao longo do tempo de base para outrascomédias do gênero. Certamente, o grupo inglêsMonty Python teve em Brancaleone um de seusmais importantes referenciais.

O filme sofreu influências de um gênero deteatro de bonecos (teatro dei Pupi), muito comumno sul da Itália. Isso é bem visível no desenho ani-mado que enseja os créditos no início, remontan-do a própria seqüência narrativa (em particular ascenas de batalhas) a isso. Um hibridismo lingüísti-co que mistura italiano com latim, alto alemão epalavras inventadas, mas que são perfeitamentecompreensíveis, acentua o toque cômico do filme.

O que se propõe Monicelli a apresentar? Emuma entrevista a João André Brito Garboggini58, odiretor confessa que sua finalidade era a sátira po-lítica. A idéia, surgida quinze anos antes, em 1950,era ironizar Benito Mussolini, bem como qualquerlíder totalitário, ou generais. A ironia estendeu-sea todos os líderes que buscam seus objetivos semalcançá-los jamais. No filme isso é visível: nenhu-ma das empreitadas em que o grupo se mete re-sulta em sucesso.

O filme de Monicelli não tem qualquer pre-tensão histórica. Pretende, com metáforas situa-das na Idade Média, tendo como mote a Armatta,fazer referências políticas à Itália contemporânea,bem como à mistificação histórica. A sátira e a iro-nia aplicadas a metáforas da realidade conduzemà estereotipia de personagens: além do próprioBrancaleone, Habacuc, o velho mercador ambu-lante judeu, Zenone, monge maltrapilho que con-

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

58 Jornal da Unicamp: 3 a 9 de maio de 2004.

Page 63: Idade Média e Cinema (Caderno) (1)

duz um pequeno grupo de seguidores peregrinosà Terra Santa, entre outros tantos. Da mesma for-ma, situações são alvo das ironias: a rígida e im-passível postura dos personagens no palácio bi-zantino, que se assemelha a um mosaico, caricatu-riza, de forma hilária a estética, a sociedade e oscomportamentos palacianos orientais. Apesar deser uma comédia que, às vezes, se aproxima deuma forma de humor debochado, o filme é de umlirismo admirável. É digna de nota a cena quemostra o momento da morte do velho judeu. Estaconsegue, sem ser piegas, ser comovente e, aomesmo tempo, um momento de reflexão sobre oabsurdo da existência.

Já comentamos o fato de que o filme acaboupor se tornar em um dos que melhor retrata a Bai-xa Idade Média. Seu uso, por parte de professoresem sala de aula, pode ser bem útil, desde que, to-madas as devidas precauções. O professor deve se

dar conta de que o filme homogeiniza a Baixa Ida-de Média. O panorama apresentado permite quese tenha uma idéia da peste, das Cruzadas, dafome que se segue à crise da Baixa Idade Média,às investiduras dos cavaleiros, ao código da cava-laria, às atividades comerciais, ao papel da Igreja eassim por diante. Quanto à última, é bem interes-sante observar-se que, em uma das cenas finais dofilme, o maltrapilho monge Zenone ordena queum nobre e todos os seus cavaleiros se ponham dejoelhos. É o poder simbólico da Igreja que podeser explorado na cena.

O Incrível Exército de Brancaleone tornou-seum cult. De certa forma, foi o responsável poruma nova estética no gênero da comédia. Não éum filme histórico, é um filme situado em algum

lugar da história. Este lugar é a Baixa Idade Média,imageticamente reconstruída pela licença poéticado diretor. E Monicelli é um poeta da tela.

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

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Henrique V – Encenações shakespearianas

Entrevista com Cybele Crossetti de Almeida

O filme Henrique V, realizado em 1989 pelo

ator, diretor e roteirista irlandês Kenneth Charles

Branagh, recebeu duas indicações ao Oscar, de

melhor ator e de melhor diretor. O filme é uma

adaptação da peça homônima de Shakespeare

para o cinema. O rei Henrique V da Inglaterra é in-

sultado pelo rei da França. Por conseqüência, ele

lidera seu exército contra os franceses, fazendo-o

ficar em constante atenção para deixar suas tropas

motivadas e unidas. O filme fez parte do evento

Idade Média e Cinema II, exibido e debatido

pela professora Cybele Crossetti de Almeida, do

Departamento de História da UFRGS. Cybele con-

cedeu entrevista à edição 155, de 12 de setembro

de 2005, da IHU On-Line sobre o filme Joana

d’Arc, exibido e debatido na primeira edição do

evento Idade Média e Cinema. A entrevista

abaixo foi concedida por e-mail à IHU On-Line

em 28 de agosto de 2006.

IHU On-Line – Como avalia o trabalho do

diretor o Kenneth Branagh?

Cybele Crossetti de Almeida – O filme deKenneth Branagh é uma bela reconstituição dapeça homônima de William Shakespeare, inserin-do-se, portanto, numa tradição de encenaçõesshakespearianas desse diretor, que já lhe rende-ram em 2001 um prêmio honorífico do Shakes-peare Institute, da Universidade de Birmingham,pela difusão das obras de Shakespeare. Cabe des-tacar não apenas a fidelidade ao texto shakespea-riano, mas também o cuidado com o cenário e fi-gurino, além da trilha sonora de Patrik Doyle quedestaca o caráter ao mesmo tempo épico e inti-mista deste filme.

IHU On-Line – Qual a importância da reli-

giosidade no filme?

Cybele Crossetti de Almeida – Há dois enfo-ques sobre o tema no filme, um positivo e outronegativo. É apresentada positivamente a religiosi-dade do rei Henrique que, ou na véspera da bata-lha decisiva de Azincourt, ou na sua declaraçãoapós a vitória ao atribuí-la a Deus, ou ainda aoparticipar dos rituais de enterro dos mortos aosom do Te Deum, insere-se em uma das represen-tações tradicionais dos reis medievais como rex

christianus. Vemos também uma imagem bastan-te negativa da Igreja, por meio de dois dos seus re-presentantes (o arcebispo da Cantuária e o bispode Ely), que aparecem como fomentadores doconflito entre França e Inglaterra por motivos tor-pes, para desviar a atenção do monarca de umprojeto de lei que pretendia taxar com impostos osbens da Igreja. Seria o caso de se questionar seessa visão extremamente materialista da IgrejaCatólica não foi inserida no texto por Shakespearepara agradar Elisabeth I, filha de Henrique VIII, eque havia subido ao trono com a forte oposiçãodos católicos.

IHU On-Line - Qual o maior mérito de

Henrique V como obra cinematográfica e

histórica?

Cybele Crossetti de Almeida – Penso que omaior mérito de Henrique V, como obra cinema-tográfica, é trazer ao público o belíssimo texto deShakespeare - com muito poucas alterações - epermitir a discussão de problemas centrais para acompreensão da Idade Média e para a reflexãosobre a nossa sociedade, que aperfeiçoou a forma

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Page 65: Idade Média e Cinema (Caderno) (1)

de fazer a guerra, que continua sendo uma ques-tão da maior importância a ser discutida, analisa-da e controlada.

IHU On-Line – O que a obra de Kenneth Bra-

nagh traz de novo com relação às outras

obras que contam a história de Henrique V?

Cybele Crossetti de Almeida – A primeira ver-são, de 1944, foi levada ao cinema por LaurenceOlivier, e a segunda, de 1989, tem Kenneth Bra-nagh na direção e no papel principal. Embora am-bas as versões sejam consideravelmente fiéis aotexto de Shakespeare, elas diferem bastante entresi. A versão de Laurence Olivier inicia como sefosse a encenação da própria peça de Shakespea-re no ano de 1600, no teatro Globe, uma encena-ção em que não apenas o palco, mas também opúblico da época é mostrado e interage com apeça, como era costume então. A versão de Ken-neth Branagh parte de um palco moderno com lu-minárias e todos os recursos da nova tecnologia e– literalmente – abre uma porta para um outromundo, no qual a peça aparece não mais comoencenação, mas como reconstrução histórica deum passado realmente vivido. Enquanto, no filmede Laurence Olivier, predomina o estilo teatral ar-tificial, propositalmente não-naturalista59, com ex-ceção da batalha de Azincourt, no filme de Ken-neth Branagh ocorre o inverso, com o predomíniodo naturalismo, quebrado apenas no início e no fi-nal do filme, além de algumas breves aparições donarrador, que faz o papel do coro. Ao contrário deLaurence Olivier, que “omitiu uma série de cenasou parte delas, talvez com intenção de amenizarou esconder tudo o que pudesse lançar dúvidasno caráter do rei ou em seus motivos”60, KennethBranagh foi mais fiel ao texto original de Shakes-

peare. Entre as omissões da versão mais antiga,destacam-se parte da ameaça à cidade sitiadade Harfleur e o enforcamento de Bardolfo, am-bos presentes na versão mais recente de Bra-nagh que, desse modo, deixa transparecer gran-de parte da ambigüidade do jovem rei, o que ofaz parecer mais humano e menos como uma fi-gura idealizada.

IHU On-Line – Como a Idade Média retrata-

da no cinema ajuda a compreender a histó-

ria desse período?

Cybele Crossetti de Almeida – O cinema e aLiteratura nos permitem reconstruir, se não os fa-tos, o ambiente, a atmosfera de outras épocas. Fil-mes como Henrique V oferecem a oportunidadede se discutirem temas centrais para a história e acivilização da Idade Média, como a forma de pen-sar e travar a guerra. Temas que, sob vários pon-tos de vista, ainda permanecem atuais e relevan-tes para nós no século XXI. No entanto, é precisoter em mente que são representadas versões que,graças à liberdade ficcional, lidam com a imagina-ção do espectador e não têm a obrigação do histo-riador de reproduzir os fatos o mais fielmente pos-sível. Tanto o cinema quanto a literatura freqüen-temente sintetizam em alguns personagens e situa-ções processos muito mais amplos e complexos.O próprio filme Henrique V – novamente basea-do na peça de Shakespeare – chama a atençãopara este fato na fala de abertura do narrador,substituto moderno para o coro, que afirma queo teatro representa um reino, e os atores, prínci-pes. Daí a importância de eventos como o Ciclo

Idade Média e Cinema, no qual filmes contex-tualizados na Idade Média são apresentados e dis-cutidos com o público.

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

59 T. F. N. DINIZ, Representação e identidade: Shakespeare nos Anos 40, em R. ANTELO, (org.) Identidade e representação.Florianópolis: UFSC, 1994. p. 237-56, aqui p. 240. (Nota da Entrevistada)

60 T. F. N. DINIZ. Representação e identidade, op. cit., p. 240. (Nota da Entrevistada)

Page 66: Idade Média e Cinema (Caderno) (1)

Guerra e sociedade: uma discussão sobre o filme Henrique V

Por Cybele Crossetti de Almeida

Esta apresentação tem como objetivo, dentroda temática do XXIII Simpósio Nacional de Histó-ria, discutir o filme Henrique V de Kenneth Bra-nagh – adaptação da obra homônima de WilliamShakespeare – inserindo-o no contexto da Guerrados Cem Anos (1337-1453) entre França e Ingla-terra. A ação se passa nas primeiras décadas doséculo XV e baseia-se em episódios reais. O textooriginal é, na maior parte do tempo, fielmente re-produzido61 e dá o tom épico do filme, no qual aguerra é o fio condutor. Interessante é a concep-ção de guerra que é apresentada. Ao invés da vi-são tradicional que vê apenas violência e irracio-nalidade, a guerra é apresentada como a “conti-nuação da política por outros meios”62, como noenunciado de Clausewitz.

Neste conflito em particular, cabe destacaros dois tipos de exército que se confrontam: oexército francês que, embora mais numeroso, eraorganizado num modelo feudal, em declínio, e oexército inglês, que, além de inovações técnicas(como o arco longo galês63), prenunciava o mo-

derno exército de conscritos. No confronto, ficamevidenciados não apenas dois modelos de exér-cito (feudal X moderno64), mas também dois ti-pos de sociedade e de governante. Algumas dasdiferenças nos modelos de feudalismo dos doispaíses – mais centralizado na Inglaterra, menoscentralizado na França – já foram apontadas porvários autores, como Alan Macfarlane65 e MarcBloch66. Essas diferenças na forma da organiza-ção social, por sua vez, refletiam-se na organiza-ção militar. Disso decorre que “há um exército al-ternativo para o rei [inglês], que ajuda a prote-gê-lo contra uma superdependência de seus pro-prietários feudais”67, ao contrário do que ocorriana França.

Como o próprio título indica, o personagemcentral do filme é o rei inglês Henrique V, filho deHenrique IV, a quem sucedeu no trono, em 1413,governando até 1422. Seu reinado, apesar de bre-ve, foi bastante significativo para a Inglaterra. Otema central é o envolvimento deste rei e seusexércitos no conflito entre França e Inglaterra, “os

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61 Com algumas omissões que se devem, em parte, à adaptação da obra literária e teatral para o cinema. (Nota da Entrevistada)62 CLAUSEWITZ, Carl von, Da guerra. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 27. (Nota da Entrevistada)63 SILVA, Victor Deodato da. Cavalaria e nobreza no fim da idade média. Vol. 1. São Paulo: EDUSP, 1990, p. 112. Também

chamado “longo arco à inglesa’”, CARDINI, Franco. Guerra e Cruzada. In: LE GOFF, J.; SCHMITT, J.-C. Dicionário temático

do ocidente medieval. São Paulo: EDUSC, 2002, p. 483. (Nota da Entrevistada)64 Segundo Rezende: “Quando da eclosão da Guerra dos Cem Anos (...) os exércitos que os ingleses enviam ao continente eram

formados exclusivamente por soldados servindo sob contrato, até mesmo seus cavaleiros couraçados e demais nobres”, videREZENDE Filho, Cyro. Guerra e guerreiros na Idade Média. São Paulo: Contexto, 1989, p. 91. Comentando sobre os doismodelos de exército, afirma Silva: “se tratava de uma superioridade estrutural, por se tratar [do lado inglês] de um exército devoluntários, regularmente pago e, por isso, bem mais disciplinado e flexível no cumprimento das ordens. Enquanto isso, asforças francesas eram reunidas às pressas, de acordo com mecanismos tradicionais (...) do arrière-ban e das sémonce, amboscompulsórios (...) Assim, a vantagem numérica assegurada por esses processos era amplamente anulada pela indisciplinareinante”, SILVA, Cavalaria, p. 134. (Nota da Entrevistada)

65 MACFARLANE, Alan. O berço do capitalismo: o caso da Inglaterra. In: BAECHLER, J.; HALL, J. A. e MANN, M. (ed.). Europa e

ascensão do capitalismo. Rio de Janeiro: Imago, 1989. p. 197-215. (Nota da Entrevistada)66 BLOCH, Marc. A sociedade feudal. Lisboa: Edições 70, 1987. (Nota da Entrevistada)67 MACFARLANE, O berço do capitalismo, p. 212. (Nota da Entrevistada)

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dois Estados mais poderosos do Ocidente cris-tão”68, na terceira fase da Guerra dos Cem Anos.

Procupação com o entendimentoe a elucidação da guerra

Na obra em questão, tanto no original deShakespeare como no filme de Kenneth Branagh,é visível uma preocupação com o entendimento ea elucidação da guerra. Embora se trate de umépico, as razões do Estado – e suas diferentes fac-ções – e os objetivos políticos estão presentes etêm tanto destaque quanto os valores tradicionais,como honra, valentia etc. A ação se inicia comdois membros do alto clero, o arcebispo da Can-tuária e o bispo de Ely, discutindo os rumores so-bre o retorno à discussão de uma lei que faria aIgreja da Inglaterra perder “a metade melhor de(...) [suas] posses”69. Especulam sobre qual atitu-de o novo rei tomaria a respeito da matéria e –após este ser declarado como amigo da Igreja e terseu amadurecimento louvado70 – é colocada cla-ramente a barganha proposta: o apoio da Igrejacom vultuosas doações para uma campanha naFrança, a respeito do “direito sobre o trono daFrança, que lhe toca por Eduardo, seu bisavô”71.É a Igreja que volta a atiçar a atenção do monarcasobre a França, com o objetivo de ganhar as gra-ças do rei e desviar sua atenção do projeto quecontrariava os interesses do clero. Não temos in-formações concretas sobre este papel da Igrejacomo incitadora do conflito72, mas esta não é umahipótese absurda. A questão da taxação ou confis-

co de bens da Igreja era uma matéria freqüente ede alta tensão em vários reinos medievais, nãoapenas na Inglaterra. Alguns séculos antes, aosentir seus bens, camponeses e clérigos ameaça-dos pelas guerras constantes entre os exércitos pri-vados dos nobres medievais, a Igreja desencadea-ra os movimentos da Paz e Trégua de Deus, tenta-tivas de limitar a ação guerreira tanto temporal-mente quanto com relação aos envolvidos73. Ofato de estes movimentos não terem atingido ple-namente seus objetivos está relacionado à convo-cação das Cruzadas no século XI, visando a expor-tar os conflitos internos à cristandade, oferecendoaos que participassem desta ação não apenasbens espirituais, mas também materiais: as rique-zas do Oriente.

A atuação da Igreja, no entanto, não deve serconsiderada uniformemente, pois, naquele con-texto, ela, muitas vezes, teve uma atuação positi-va. Na falta de organismos multilaterais de resolu-ção de conflitos, coube à Igreja regulamentar, in-termediar e minimizar conflitos74. Seu poder, noentanto, era limitado. No caso da Guerra dos CemAnos, há ainda o problema do declínio da autori-dade da Igreja desde o fracasso das Cruzadas emfins do século XIII e a divisão interna a partir dodeslocamento do papado de Roma para Avignon,no sul da França, que deu origem ao Grande Cis-ma do Ocidente – de 1378 a 1429. Neste período,em que várias sedes “papais” competiam umascom as outras, e a cristandade achava-se dividida,é compreensível que a atuação centralizadora, an-tes exercida por Roma, fosse enfraquecida pelofortalecimento das concepções “nacionais”, tal

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68 CONTAMINE, Philippe. La guerre de cent ans. Paris: PUF, 1992, p. 7. (Nota da Entrevistada)69 SHAKESPEARE, William A vida do rei Henrique V. In: SHAKESPEARE, W. Teatro completo, dramas históricos. Rio de

Janeiro: Ediouro, s/d.. p. 231. (Nota da Entrevistada)70 Em clara alusão à obra anterior do autor, Henrique IV, na qual o jovem príncipe, o futuro Henrique V, é apresentado como

afoito e leviano. (Nota da Entrevistada)71 SHAKESPEARE, Henrique V, op. cit., p. 233. (Nota da Entrevistada)72 Mas a preocupação com o confisco de seus bens não era fruto de paranóia, como o demonstraria o reinado de Henrique VIII.

Seria ainda o caso de se questionar se esta visão materialista da Igreja Católica não foi inserida no texto por Shakespeare paraagradar Elisabeth I, que havia subido ao trono com a forte oposição deste grupo. (Nota da Entrevistada)

73 Sobre o papel da Igreja como elemento regulador e humanizador dos conflitos, vide REZENDE, op. cit. p. 71-2. (Nota daEntrevistada)

74 Assim, em 1431 um legado do papa Eugênio IV intermediou uma trégua entre Carlos VII e o duque de Borgonha, videCONTAMINE, op. cit., p. 98. (Nota da Entrevistada)

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como seria o galicismo e depois, de modo maisextremo, o anglicanismo75.

Neste conflito em particular, coube à Igreja,no seu clássico papel de guardiã da erudição, in-formar ao rei sobre seus direitos, que vinham sen-do negados com base na alegação por parte dosfranceses da lei sálica que pretensamente negariao direito de sucessão às mulheres, o que, segundoo arcebispo de Cantuária, no filme, não procedia.Um historiador moderno, como Rouche, lhe dariarazão, afirmando que:

Este artigo da Lei Sálica, mal compreendido pelos juris-tas reais, foi interpretado, quando da sucessão dos Ca-petos diretos, em 1316, como uma proibição às mulhe-res para herdarem e, portanto, sucederem no trono. Naverdade elas tinham a capacidade sucessória, a não serquanto a esta terra ancestral, sem a qual o sistema fran-co de proteção privada desmorona76.

O arcebispo da Cantuária enumera uma sé-rie de exemplos históricos nos quais o trono – ou asua legitimidade – era assegurado pelo “título e dodireito das mulheres”77. Poderíamos ainda ques-tionar em que medida a inclusão deste tema – odireito das mulheres à Coroa – não foi inseridopor Shakespeare na trama como uma forma deagradar à rainha Elisabeth I depois de tê-la desa-gradado com a peça Ricardo II (escrita nos anos1595 e 1596)78, pois o texto de Henrique V é pos-terior àquele, datando dos anos de 1598 e 159979.Shakespeare – por meio do seu personagem – es-tava bem informado sobre a história da França,pois, em vários momentos da história francesa, alei sálica não foi evocada; “ela só se tornou um ar-gumento bem mais tarde, sob Felipe VI”80, ou seja,no momento da disputa entre este, de um ramosecundário dos capetíngios, e seu rival inglês,Eduardo III.

A Igreja, por sua vez, conclui sua barganha,dizendo que a ação não apenas é legítima, masfactível, pois “Para isso, nós, do espiritual, dare-mos a Vossa Alteza soma tão vultuosa como ja-mais foi dada pelo clero a qualquer rei de vossaalta linhagem”81. A resposta do jovem rei aos ho-mens do clero deixa entrever seu problema deconsciência, que aparece no filme em diversosmomentos. Sobre a “questão da França”, que oarcebispo de Cantuária lhe apresenta, adverte orei:

Mas, meu caro e fiel lorde, Deus não queira que ve-nhais a forçar vosso discurso, torcendo-o com sofis-mas, e a consciência carregueis com valores ilegítimos,de cor não condizente com a verdade. Deus sabequanta gente, ora com vida, vai derramar o sangue nadefesa do que formos por Vossa Reverência concilia-do a fazer. Tende cuidado, portanto, na maneira porque me ides penhorar, como o gládio adormecido daguerra despertareis. Recomendamo-vos, pois, em nomede Deus: tende cuidado, porque duas nações tão po-derosas nunca brigaram sem que derramassem muitosangue, de que cada inocente é uma maldição e quei-xa amarga lançada contra quem tivesse sido causa in-justa de afiarem-se as espadas para a devastação dacurta vida82.

No filme, vê-se um rápido temor do dignitá-rio eclesiástico – pois ele sabe dos motivos que olevam a fazer tal oferta – antes de fazer uma longae erudita preleção sobre a lei sálica, suas origens eas muitas vezes em que os fatos contrariaram esteargumento que a dinastia de Valois levantavapara se legitimar ante as pretensões inglesas à co-roa. Após a exposição, o rei indaga: “Posso, en-tão, com direito e sã consciência, fazer valer as mi-nhas pretensões?”83. Essa questão remete aotema, caro aos medievais, da guerra justa, quedeveria ter uma causa justa, e também – como

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75 LOYN, Henry (org.). Dicionário da Idade Média. Rio de Janeiro, Zahar, 1990. p. 171. (Nota da Entrevistada)76 ROUCHE, M. Alta idade média ocidental. In: ARIÈS, Ph.; DUBY, G. (org.). História da vida privada: do império romano ao

ano mil. São Paulo: Cia das Letras, 1990. p. 448-9. (Nota da Entrevistada)77 SHAKESPEARE, op. cit., p. 235. (Nota da Entrevistada)78 O texto de Ricardo II mostra um rei fraco que no final é deposto. Este tema, extremamente sensível na época de Elisabeth, foi

considerado uma provocação à rainha, que teria afirmado: “Eu sou Ricardo II”. vide HONAN, Park, Shakespeare: uma vida.São Paulo: Cia. das Letras, 2001. p. 273. (Nota da Entrevistada)

79 Vide Quadro cronológico das peças teatrais de Shakespeare. In: SHAKESPEARE, op. cit., p. 12. (Nota da Entrevistada)80 CONTAMINE, op. cit., p. 11. (Nota da Entrevistada)81 SHAKESPEARE, op. cit., p. 236. (Nota da Entrevistada)82 SHAKESPEARE, op. cit., p. 233-4. (Nota da Entrevistada)83 SHAKESPEARE, op. cit., p. 235. (Nota da Entrevistada)

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afirma o Decretum de Graciano de 1140 – “repelirou vingar injúrias e recuperar bens”84. A versão deBranagh mostra ainda o rei atormentado por pro-blemas de consciência, dos crimes do seu pai asua responsabilidade para com seus soldados. So-bre este último aspecto, a obra de Shakespeare,bem como as versões posteriores, refletem fiel-mente a doutrina medieval que afirma: “Pois, se aguerra é injusta e as ordens não são dadas confor-me a lei divina, a iniqüidade caberia ao príncipeapenas [e não aos seus soldados]”85. Ora, é exata-mente esta a preocupação que vemos refletida nomonólogo do rei após ouvir e confortar os seushomens na noite que antecede Azincourt: “Só so-bre o rei! Ponhamos nossas vidas, nossas almas,as dívidas, os filhos, as esposas ansiosas, os peca-dos, tudo em cima do rei! Forçoso é tudo supor-tarmos”86. Esta preocupação, que Bárbara Helio-dora identifica como típica do período Tudor87,tem, na realidade, origens medievais.

Na véspera da batalha decisiva de Azincourt,Henrique faz alusão à usurpação cometida porseu pai contra Ricardo e suas tentativas de expiareste crime por meio de obras pias. Ricardo II era fi-lho de Eduardo, o Príncipe Negro de Gales, filhomais velho de Eduardo III – rei de 1327 a 1377.Com a morte do avô, Ricardo assumiu o trono emandou aprisionar seu tio, João de Gaunt, duquede Lancaster (1340-1399), que morreu na pri-são88. Este João de Gaunt era também filho deEduardo III e pai do futuro Henrique IV, que usur-pou a Coroa de Ricardo II e assumiu o trono em1399 (até 1413), no que viria a ser um prólogo daGuerra das Duas Rosas entre as casas dinásticasde York e Lancaster, nos anos de 1455 a 1485. Ofilme encerra, fazendo alusão a essa outra guerra,que se inicia quando, após a morte Henrique V,

seu herdeiro, “em cueiros ainda envolto, subiu aotrono da Inglaterra e França; mas tocou-lhe reina-do tão revolto que da pátria esgotou toda a pujan-ça”89. O filme de Branagh completa a fala do coro,acrescentando: e perderam a França e fizeram aInglaterra sangrar.

Formas de simplificar a história

Uma das críticas mais comuns aos filmes dereconstrução histórica é a acusação de que elessimplificam a história. De fato, diretores de cine-ma não têm – nem seria lógico exigir deles – amesma preocupação com o rigor histórico dosprofissionais deste ramo. No entanto, há muitasformas de simplificar a história, e nós, historiado-res, não estamos imunes a elas. Uma das manei-ras de simplificar a história é restringi-la à ação dosgrandes homens, outra é bani-los da história.Como em tantos outros casos, é necessário que ohistoriador ache o meio termo entre estas duastendências. Outra maneira é suprimir aspectos in-compreensíveis ou indesejáveis. Mas a investiga-ção do objeto suprimido – e a análise de suas mo-tivações - também pode dar lugar a uma discussãointeressante. No filme de Branagh90, por exemplo,é suprimida a questão da relação da Inglaterracom os seus vizinhos. O exército parece uma ir-mandade de diferentes grupos – ingleses, galeses,escoceses e irlandeses91 –, o que reflete o períodoem que essa versão foi produzida (isto é, a políticade anexação consumada destes países – ou partedeles, no caso da Irlanda – à Grã-Bretanha). Naépoca de Shakespeare, o expansionismo inglêsainda não havia sido plenamente assimilado porestes povos, gerando revoltas e alianças dos paí-

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84 DOWSON, Doyne. Origens da guerra no ocidente: militarismo e moralidade no mundo antigo, Rio de Janeiro: Bibliotecado Exército Editora, 1999. p. 292. (Nota da Entrevistada)

85 CONTAMINE, op. cit., p. 282. (Nota da Entrevistada)86 SHAKESPEARE, op. cit., p. 265. (Nota da Entrevistada)87 HELIODORA, Barbara. Falando de Shakespeare. São Paulo: Perspectiva, 2001, p. 67. (Nota da Entrevistada)88 LOYN, op. cit., p. 221. (Nota da Entrevistada89 SHAKESPEARE, op. cit., p. 285. (Nota da Entrevistada)90 E também da versão homônima anterior de Laurence Olivier. (Nota da Entrevistada)91 Este é um dos poucos momentos em que o filme se afasta do texto original, embora haja uma preocupação em manter algo

da discussão original, como transparece na disputa entre o capitão Fuellen e o capitão MacMorris. SHAKESPEARE, op. cit.,p. 252. Interessante é o destaque a este trecho no filme de Branagh, ele mesmo um irlandês de Belfast. (Nota daEntrevistada)

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ses vizinhos com seus inimigos92. Nesse momento,as preocupações do rei – refletidas no texto deShakespeare – se voltam para a sua retaguarda, aEscócia, definida como um “mau vizinho”. Umdos conselheiros do rei complementa afirmandoque

há um velho provérbio muito certo: ‘Se queres ganhara França, então pela Escócia avança’; pois se a águiada Inglaterra sai à caça, a doninha escocesa sobe ao ni-nho desguarnecido e chupa os ovos reais93.

Sabemos que a Inglaterra adquiriu muitasdas habilidades decisivas para a guerra contra aFrança na sua luta contra os revoltados do País deGales, conquistado nos anos de 1280 por Eduar-do I94. A Escócia seria pacificada ainda bem maistarde e, após a tentativa de Eduardo I de conquis-tá-la em 1295, os escoceses firmaram um acordocom a França, a “auld [old] Alliance” que durariaaté o século XVI. Segundo este acordo, cada vezque um dos dois países fosse atacado pela Ingla-terra, o outro a atacaria pela retaguarda95. E, defato: “Já antigos, esses atritos ingleses e escocesesse mantiveram por todo o curso da Guerra dosCem Anos e prolongaram-se para além dela”96.

A omissão destes aspectos reflete a releituraque o diretor fez da história e faz parte do processode simplificação da história que a ficção – cinemaou literatura – traz inevitavelmente consigo, já quenão tem a preocupação com os detalhes, fontes e

fundamentação teórica que são uma obrigaçãopara o historiador. Este processo de simplificaçãoda história, de seus personagens complexos e con-traditórios, pode ser vista como inerente ao cine-ma e à literatura, já que sintetizam, em alguns per-sonagens e situações, processos muito mais am-plos e complexos. Ter em mente este mecanismo,as limitações e incoerências presentes nos filmesde reconstrução histórica, é necessário para a suacompreensão, sua discussão e sua análise. No en-tanto, essas características tornam a discussãomais interessante e necessária. Longe de banir osfilmes de reconstrução histórica, deveríamosanalisá-los criticamente para poder apreciá-los eincorporá-los definitivamente aos currículos es-colares e acadêmicos. Afinal, a história “real”,mesmo quando reconstruída por documentos“sérios” e abundantes, é sempre mais complexae interessante do que a captada pelo mais bri-lhante historiador. Já o cinema e a literatura, gra-ças à liberdade ficcional, lidam com a imagina-ção e permitem-nos reconstruir, se não os fatos, oambiente, a atmosfera de outras épocas. Filmescomo Henrique V oferecem a oportunidade dediscutir temas centrais para a história e a civiliza-ção da Idade Média, como a forma de pensar etravar a guerra, temas que, sob vários pontos devista, ainda permanecem atuais e relevantes paranós no século XXI.

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92 Um filme que aborda esta temática é Coração Valente. Situado no final do reinado de Eduardo I, além da revolta dos escocesescontra o domínio inglês, mostra também a questão da origem da disputa com a França, através do casamento de seu filho,Eduardo II, com a princesa francesa Isabel, mãe do futuro rei Eduardo III. (Nota da Entrevistada)

93 SHAKESPEARE, op. cit., p. 236. (Nota da Entrevistada)94 McDOWALL, David. An illustred history of Britain. Essex: Longman, 1989. p. 52 (Nota da Entrevistada)95 McDOWALL, op. cit., p. 43-4. (Nota da Entrevistada)96 SILVA, op. cit., p. 112-3. (Nota da Entrevistada)

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Publicações do Instituto Humanitas Unisinos

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