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25 24 notas 1 A palavra esclarecer deve ser tomada em seu sentido lato, deixando de lado qualquer compreensão que remonte ao conceito da filosofia moderna como esclarecimento. 2 Um rogar que rogasse por algo o faria por meio da palavra. Esta, por sua vez, tem lugar no âmbito da criatura, que é finito, limitado. Não é necessário nem possível, porém descabido, que a criatura finita venha a despertar o espírito infinito do Criador pela palavra. bibliografia AGOSTINHO, Santo. Do Mestre / Do Mestre / Do Mestre / Do Mestre / Do Mestre / De Magistro De Magistro De Magistro De Magistro De Magistro, 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1980; coleção Os Pensadores. __________________. Confissões Confissões Confissões Confissões Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 2000; coleção Os Pensadores. __________________. Diálogos sobre a felicidade / De beata uiua Diálogos sobre a felicidade / De beata uiua Diálogos sobre a felicidade / De beata uiua Diálogos sobre a felicidade / De beata uiua Diálogos sobre a felicidade / De beata uiua. Lisboa: Edições 70, 2000. artigo Andrea Cachel* Mestranda em Filosofia – UFPR [email protected] Idéias gerais e linguagem em Berkeley e Hume R R R esumo: esumo: esumo: esumo: esumo: A crítica das idéias abstratas é um dos elementos funda- mentais da filosofia berkeleyana, estando relacionada à maioria dos temas discutidos em seus textos. Suas considerações vão no sentido de mostrar que a mente só pode conceber idéias particulares, negan- do, portanto, que seja possível concebermos idéias abstratas. Mas, ainda que entenda que todas as idéias que aparecem à mente são par- ticulares, argumento aliás fundamental para o fenomenismo, Berkeley afirma na Introdução dos Princípios que possuímos idéias gerais. Pre- tendemos nesse artigo verificar como é possível compreender essa afir- mação berkeleyana e mostrar como Hume se propõe a desenvolver a explicação apresentada nos Princípios. Nesse sentido, procuramos evi- denciar como uma concepção diferenciada da linguagem permite a Berkeley entender que possuímos idéias gerais e mostrar como Hume alia a essa leitura a explicitação da relação entre natureza humana e linguagem. Para tanto, partiremos das colocações expostas na Intro- dução dos Princípios para, na seqüência, examinarmos as afirma- ções de Hume, na Seção VII, da Parte I, do primeiro livro do Tratado. P P P alavras-chave: alavras-chave: alavras-chave: alavras-chave: alavras-chave: Idéias abstratas, linguagem, imaginação 1. Idéias gerais e linguagem em Berkeley Berkeley, na Introdução dos Princípios, afirma pretender mostrar o equívoco de vários filósofos, dos quais Locke seria o representante mais próximo, consistente na opinião de que é possível para o espírito for- mar idéias abstratas 1 . No entanto, conforme entende, suas considera- ções não terão como conseqüência a afirmação da impossibilidade da * Este trabalho conta com o apoio da CAPES e do Grupo de Estudos de Filosofia Moderna – CNPQ. 05 PET.p65 11/04/04, 15:51 24-25

Idéias gerais e linguagem

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notas

1 A palavra esclarecer deve ser tomada em seu sentido lato, deixandode lado qualquer compreensão que remonte ao conceito da filosofiamoderna como esclarecimento.

2 Um rogar que rogasse por algo o faria por meio da palavra. Esta, porsua vez, tem lugar no âmbito da criatura, que é finito, limitado. Não énecessário nem possível, porém descabido, que a criatura finita venhaa despertar o espírito infinito do Criador pela palavra.

bibliografia

AGOSTINHO, Santo. Do Mestre / Do Mestre / Do Mestre / Do Mestre / Do Mestre / De MagistroDe MagistroDe MagistroDe MagistroDe Magistro, 2ª ed. São Paulo: AbrilCultural, 1980; coleção Os Pensadores.

__________________. ConfissõesConfissõesConfissõesConfissõesConfissões. São Paulo: Nova Cultural, 2000;coleção Os Pensadores.

__________________. Diálogos sobre a felicidade / De beata uiuaDiálogos sobre a felicidade / De beata uiuaDiálogos sobre a felicidade / De beata uiuaDiálogos sobre a felicidade / De beata uiuaDiálogos sobre a felicidade / De beata uiua. Lisboa:Edições 70, 2000.

artigoAndrea Cachel*Mestranda em Filosofia – [email protected]

Idéias gerais e linguagemem Berkeley e Hume

RRRRResumo:esumo:esumo:esumo:esumo: A crítica das idéias abstratas é um dos elementos funda-mentais da filosofia berkeleyana, estando relacionada à maioria dostemas discutidos em seus textos. Suas considerações vão no sentidode mostrar que a mente só pode conceber idéias particulares, negan-do, portanto, que seja possível concebermos idéias abstratas. Mas,ainda que entenda que todas as idéias que aparecem à mente são par-ticulares, argumento aliás fundamental para o fenomenismo, Berkeleyafirma na Introdução dos Princípios que possuímos idéias gerais. Pre-tendemos nesse artigo verificar como é possível compreender essa afir-mação berkeleyana e mostrar como Hume se propõe a desenvolver aexplicação apresentada nos Princípios. Nesse sentido, procuramos evi-denciar como uma concepção diferenciada da linguagem permite aBerkeley entender que possuímos idéias gerais e mostrar como Humealia a essa leitura a explicitação da relação entre natureza humana elinguagem. Para tanto, partiremos das colocações expostas na Intro-dução dos Princípios para, na seqüência, examinarmos as afirma-ções de Hume, na Seção VII, da Parte I, do primeiro livro do Tratado.PPPPPalavras-chave:alavras-chave:alavras-chave:alavras-chave:alavras-chave: Idéias abstratas, linguagem, imaginação

1. Idéias gerais e linguagem em Berkeley

Berkeley, na Introdução dos Princípios, afirma pretender mostrar oequívoco de vários filósofos, dos quais Locke seria o representante maispróximo, consistente na opinião de que é possível para o espírito for-mar idéias abstratas1 . No entanto, conforme entende, suas considera-ções não terão como conseqüência a afirmação da impossibilidade da

* Este trabalho conta com o apoio da CAPES e do Grupo de Estudos deFilosofia Moderna – CNPQ.

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generalização, que seria, em sua opinião, fundamental ao conhecimentoe à demonstração. Não se tratará de negar, portanto, a existência deidéias gerais2 , mas tão somente das abstratas (cf.BERKELEY, 1973, §12). É preciso, nesse sentido, nos perguntarmos qual a diferença entreambas e entendermos o que permite, em Berkeley, que as idéias geraispossam não envolver abstração.

As idéias abstratas são definidas, por Berkeley, de duas maneiras: comonoções gerais abstraídas das particularidades ou como concepções se-paradas de qualidades que não podem ser encontradas separadamente(BERKELEY, 1973, § 10). A segunda definição seria, ao que parece, ade distinção de razão, que não se confundiria com a distinção real.Uma idéia abstrata, de acordo com essa definição, seria a concepçãoseparada de partes que não podem existir distintamente, como corpo eforma, movimento e corpo ou extensão e cor, ao contrário da divisão ecomposição daquilo em que cada parte imaginada possa existir sepa-radamente, como uma mão, olhos ou nariz concebidos como separa-dos de um corpo. Num outro sentido, idéias abstratas seriam a forma-ção de noções gerais a partir da abstração de particularidades, sendocom relação a elas que as idéias gerais devem ser diferenciadas.

As idéias gerais teriam uma natureza diferente do modo como Berkeleydefine a idéia abstrata geral. Idéias gerais, no modo como são compre-endidas por Berkeley, não envolvem abstração das particularidades.Na verdade, de acordo com o que é afirmado nos Princípios, há umasignificação geral da idéia particular e não propriamente uma idéiageral positiva:

“Uma idéia particular, quando considerada em si mes-ma, se torna geral quando representa todas as idéias par-ticulares da mesma espécie. Suponhamos, paraexemplificar, um geômetra que ensina a dividir uma li-nha em duas partes iguais. Traça, por exemplo, uma li-nha preta de uma polegada de comprimento; é uma linhaparticular; no entanto, pelo significado geral, representatodas as linhas possíveis; de modo que o demonstradoquanto a ela fica demonstrado para todas as linhas, ou,por outras palavras, para a linha em geral. E assim comoa linha particular fica geral por um símbolo, o nome ‘li-nha’, que em absoluto é particular, como símbolo fica sen-do geral.” (BERKELEY, 1973, § 12)

Uma diferença importante entre a idéia abstrata geral e a idéia geralparece ser, portanto, o fato de que, na primeira, conforme Berkeleyindica, inicialmente há uma abstração das qualidades das idéias parti-culares (cf. BERKELEY, 1973,introdução §7-10). Abstraindo-se as qua-

lidades particulares é possível constatar o que é comum em todas asidéias da espécie considerada e formar uma idéia abstrata que abrangetoda essa espécie. Nesse sentido, a idéia abstrata geral formada é, nacaracterização de Berkeley, uma idéia que, após a abstração de quali-dades e quantidades determinadas, acaba por não possuir qualquergrau de qualidade e quantidade. Na idéia geral, não haveria esse pro-cesso. A idéia não deixaria de ser particular e determinada, atuandoapenas como geral por representar todas as idéias possíveis de umamesma espécie, idéias essas que, por sua vez, também não teriam abs-traído aquilo que não lhes é separável3 .

De acordo com o texto, uma idéia particular é geral, enquanto repre-senta todas as idéias, porque ela atua como um sinal de todas as idéiasparticulares pertencentes a uma espécie, não porque ela é sinal de umaidéia abstrata, indeterminada. Enquanto sinal, a sua referência seriaos elementos do conjunto e não uma idéia resultante da abstração dadeterminação das idéias envolvidas. Tratar-se-ia de um processo designificação paralelo ao que ocorre na linguagem - o nome “linha” éparticular, mas atuando como símbolo é geral, nos diz Berkeley. Ade-mais, o nome “linha” denota não uma idéia abstrata, mas todas as idéi-as particulares envolvidas na noção. Da mesma forma, no caso da idéiageral, há uma idéia particular atuando como símbolo ou sinal da gene-ralidade, a qual decorreria de todas as linhas particulares possíveis enão de uma idéia abstrata.

Nesse sentido, a dificuldade que se apresentaria a essa explicação seriacompreender como é possível que a idéia particular possa representartodo o campo de idéias possíveis da espécie, a que Berkeley parece res-ponder partindo de uma compreensão do que signifique dizer “todasas idéias possíveis”. Segundo esse autor, é preciso entender a naturezada universalidade. Certamente, conforme afirma, o conhecimento e ademonstração envolvem noções universais. Mas, não se poderia con-fundir universalidade e abstração: “Universalidade, tanto quanto com-preendo, não consiste na absoluta, positiva natureza ou concepção dealguma coisa, mas na relação que significa entre particulares; por issocoisas, nomes e noções, por natureza particulares, tornam-se univer-sais” (BERKELEY, 1973, § 15).Ou seja, se dizemos que uma demons-tração deve valer para todos os elementos, não estamos dizendo quehá uma idéia positiva que exprime todos esses elementos por abstra-ção, mas sim exprimimos uma relação existente entre todos os elemen-tos de uma espécie.

Mais do que isso, se a idéia particular pode representar todas as idéiaspossíveis, nessa relação, é porque, segundo Berkeley, as particularida-

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des da idéia envolvida não entrariam na demonstração. De certa for-ma, a demonstração envolve o campo dessa relação universal entre oselementos, relação essa que qualquer idéia particular da espécie podeexprimir:

“Embora a minha idéia ao fazer a demonstração seja a deisósceles retângulo, com determinada extensão de lados,eu posso generalizá-la a outros ângulos retilíneos quais-quer porque nem o ângulo reto nem a igualdade ou o com-primento dos lados entram na demonstração. É verdadeque meu diagrama inclui esses particulares mas não sealudem na prova da proposição. Não se diz que os trêsângulos são iguais a dois retos por haver um ângulo retoou por ele ser formado por lados iguais.” (BERKELEY,1973, § 16).

Que uma demonstração tenha validade universal é conseqüência deque a particularidade envolvida na idéia signo da universalidade não éconsiderada na demonstração e não de que haja existência positiva deuma idéia abstrata. “Três ângulos somados são equivalentes a dois re-tos” é uma proposição que não envolve a particularidade do ângulo-seja ele escaleno ou oblíquo. Se a proposição não envolve a particulari-dade do ângulo, qualquer espécie de triângulo pode atuar como sinalde todos os triângulos. Isso parece não envolver problemas paraBerkeley, fundamentalmente pela sua compreensão acerca da lingua-gem e, mais especificamente, da definição.

Pressupor que as noções gerais ou universais devam significar umaidéia abstrata, indeterminada com relação à qualidade e quantidade,teria sido um equívoco decorrente de uma má compreensão da lingua-gem. Para a teoria das idéias abstratas de Locke, na visão berkeleyana,as idéias gerais seriam necessárias à linguagem, na medida que se pres-suporia que a mesma teria como função a denotação. Uma concepçãodenotativa da linguagem traria o entendimento de que é necessárioque cada nome nomeie uma idéia específica e, em decorrência, que sepressuponha que os termos gerais devam nomear apenas uma idéiaabstrata, sem qualquer determinação, que a particularizasse e a tor-nasse supostamente incompatível com a generalidade do termo:

“Primeiro, pensa-se que cada nome tem ou deve ter umsó significado e preciso, que leva o homem a pensar quehá certas idéias abstratas determinadas constitutivas daverdadeira e única significação de cada nome geral; e sópor intermédio dessas idéias abstratas pode um nome ge-ral significar uma coisa particular. Pelo contrário, não hásignificação precisa e definida ligada ao nome geral, todos

eles próprios para significar indiferentemente grande nú-mero de idéias particulares” (BERKELEY, 1973, § 18).

O que Berkeley evidencia é que a função da linguagem não é meramen-te denotativa. Segundo ele, não é verdade que cada nome deve signifi-car uma única idéia. Principalmente no caso dos termos gerais, não énecessário que seu significado deva ser apenas uma única idéia. Aocontrário, em sua opinião o nome geral pode significar um grande nú-mero de idéias particulares, não sendo preciso que, para se referir aum grupo de idéias particulares (a universalidade de idéias particula-res de uma espécie), haja a intermediação de uma idéia abstrata à qualele se referiria diretamente.

Respondendo à pergunta, como é possível que uma idéia particularrepresente todas as idéias da mesma espécie ou como as propriedadesde um triângulo escaleno podem ser universalizadas para todos os tri-ângulos, Berkeley afirmava que a demonstração não envolve a particu-laridade. Essa questão fica mais clara, pensando-se o estatuto por eledado à linguagem e aos seus esclarecimentos sobre a desnecessidadedo nome geral representar apenas uma idéia. Ao que parece, a defini-ção limita o campo de relações entre os particulares e as especificidadesque poderão ser desconsideradas na demonstração:

“Pode-se objetar que cada nome definível está por issomesmo restrito a certa significação. Por exemplo, o triân-gulo define-se ‘uma superfície limitada por três linhasretas’ e por esse nome denota-se uma certa idéia e nãooutra. A isto respondo que na definição não se diz se asuperfície é grande ou pequena, preta ou branca (...). Umacoisa é manter constante a definição de um nome, outrafazer que ela represente sempre a mesma idéia; uma énecessária, outra inútil e impraticável”. (BERKELEY,1973, § 18)

Assim, o fato das idéias particulares poderem representar todas as idéi-as, ou, no limite, de se afirmar que há idéias gerais, é algo que emBerkeley depende da possibilidade das noções ou termos gerais teremcomo significado uma universalidade consistente na relação entre to-das as idéias individuais de uma espécie. Se a linguagem é compreen-dida sem que se lhe imponha uma concepção denotativa, na medidaque uma definição permite a significação geral de idéias individuais, éplenamente aceitável que não haja a necessidade de abstração das par-ticularidades. Em realidade, o que as análises berkeleyanas procuramevidenciar é como é a própria linguagem que tem caráter generalizanteou - nos termos de Hume, cujas considerações passaremos a analisar -extensivo.

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2. Idéias gerais, costume e linguagem em Hume

As análises de Hume sobre as idéias abstratas, realizadas no Tratado,têm em grande medida o mesmo teor das de Berkeley, embora não se-jam meramente idênticas a estas. Suas considerações seriam, confor-me afirma no texto, modos de confirmar as conclusões deste autor, asquais teriam mostrado que “idéias gerais são apenas idéias particula-res que vinculamos a um certo termo, termo esse que lhes dá um signi-ficado mais extenso” (Tratado, pg. 41). Tal confirmação se daria mos-trando como é possível que uma idéia particular represente todos osgraus de qualidade e quantidade, ou seja, de certa forma procurandoencontrar uma base para uma questão que se impunha à leitura deBerkeley, conforme veremos.

Hume também assumirá a posição de que não é possível conceber idéiasabstratas. Segundo ele, a abstração envolveria a concepção ou bem detodos os graus possíveis de quantidade e qualidade ou bem de nenhumdos graus, a fim de que uma idéia possa representar toda uma univer-salidade. Como a possibilidade de se formar todos os graus de quanti-dade e qualidade teria sido considerada absurda porque supostamenteimplicaria a infinitude da mente, pressupusera-se que a idéia abstrataseria uma idéia sem determinação dos graus de quantidade e qualida-de. É contra essa conclusão que Hume se opõe, considerando que umaidéia nunca pode ser indeterminada quanto aos seus graus de qualida-de e quantidade4 . O que se pretenderá demonstrar, no Tratado, emcontrapartida, é como é possível que se represente todos os graus dequalidade e quantidade sem que isso implique uma capacidade infini-ta da mente.

Nesse sentido, na medida que visa justificar essa possibilidade, tam-bém Hume não nega que haja o que Berkeley chamara de idéias gerais,refutando sim que isso envolva abstração – como neste último autor, aseparação das particularidades de todas as idéias envolvidas numauniversalização. Acompanhando as idéias expostas nos Princípios, odesenvolvimento das idéias humeanas também parte da opinião de quea generalização envolve uma idéia particular com significação geral, decerta forma, portanto, assumindo um aspecto que já aparecia na filo-sofia berkeleyana, qual seja, o fato de que a idéia particular é chamadade geral quando funciona como sinal da generalidade: “As idéias abs-tratas são, portanto, individuais em si mesmas, embora possam se tor-nar gerais pelo que representam. A imagem na mente é apenas a de umobjeto particular, ainda que a apliquemos em nosso raciocínio exata-mente como se ela fosse universal” (HUME, 2001, pg. 44).

O que, no Tratado, é diferenciado, ou complementar, à exposição deBerkeley é o modo de explicação pelo qual se torna possível que umaidéia particular possa representar a universalidade e a base que permi-te à linguagem estender a significação desta idéia. Para Hume pode-mos reunir todos os graus de qualidade e quantidade possíveis de umaidéia, de um modo imperfeito, mas suficiente, pela constatação de umarelação e pela intermediação do costume:

“Quando encontramos uma semelhança entre diversosobjetos que se apresentam a nós com freqüência, aplica-mos a todos eles o mesmo nome, não obstante as diferen-ças que possamos observar em seus graus de quantidadee qualidade, e não obstante quaisquer outras diferençasque possam surgir entre eles. Após termos adquirido talcostume, a mera menção desse nome desperta a idéia deum desses objetos, fazendo a imaginação o conceba comtodas as suas circunstância e proporções particulares. Mascomo, por hipótese, a mesma palavra foi com freqüênciaaplicada a outros indivíduos, que diferem em muitos as-pectos da idéia imediatamente presente à mente, e comoessa palavra não é capaz de despertar a idéia de todosesses indivíduos, ela apenas toca a alma (se posso me ex-primir assim) e desperta o costume que adquirimos aoobservá-los. Esses indivíduos não estão de fato presentesna mente, mas apenas potencialmente;” (HUME, 2001,pg. 45)

As idéias guardariam uma relação de semelhança entre si5 e a idéiageral se fundaria nessa relação dada nas próprias idéias observadas,sendo com base nesta constatação que o nome geral é empregado esendo este o pressuposto da significação extensiva da idéia particu-lar6 . O nome seria empregado para designar os objetos compreendi-dos no campo dessa semelhança. Também nele já se constitui um certorecorte- o desconsiderar as diferenças de graus de qualidade e quanti-dade, além de outras. Um nome como “triângulo”, para emprestarmosum exemplo de Berkeley, definido como “uma superfície limitada portrês linhas retas”, nos termos de Hume denotaria a relação de seme-lhança constatada entre uma espécie de objetos (superfície delimitadapor três linhas retas), separadas as particularidades (por exemplo, su-perfície ser grande ou pequena).

Mais do que isso, em Hume, o nomear objetos semelhantes por ummesmo nome é um costume, algo próprio da natureza humana7 . E éporque nomear é considerado um hábito da mente humana, que decerta forma, justifica-se o fato de ser possível conceber todos os grausde qualidade e quantidade e de que, em contrapartida, na generaliza-

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ção não precise estar implícita uma abstração. Ou seja, é em virtude dofato de que temos o costume de nomear objetos semelhantes com omesmo nome que uma idéia particular pode representar toda a gene-ralidade. A fixação do costume é o que permite que a menção da pala-vra faça com que um dos objetos seja concebido e que todos os outrosobjetos ou idéias da espécie estejam potencialmente envolvidos.

A mente, nesse sentido, não só conservaria a referência de uma idéiaparticular a esse nome. Ela preservaria, para Hume, o próprio costu-me de nomear esses objetos semelhantes. Quando o nome é mencio-nado, uma idéia particular é “acionada”. O nome não pode evocar to-das as idéias pertencentes àquela espécie, mas pode despertar o hábitode termos nomeado identicamente os objetos nos quais constatamossemelhanças. É porque esse costume é despertado que, de certa forma,todos os indivíduos reunidos sob o conceito estão potencialmente namente. Como essas idéias estão potencialmente na mente e como onome foi aplicado a vários objetos semelhantes, se for necessário, ou-tras idéias são evocadas.

É isso que acontece, segundo Hume, se quando formamos um raciocí-nio a idéia despertada pelo termo não é plenamente adequada, imedi-atamente outra idéia particular, que estaria potencialmente na mes-ma, é invocada:

“Assim, se mencionamos a palavra triângulo e formamosa idéia de um triângulo equilátero particular que lhecorresponda, e se depois afirmamos que os três ângulosde um triângulo são iguais entre si, os outros casos indi-viduais de triângulos escalenos e isósceles, que a princí-pio negligenciamos, imediatamente se amontoam à nos-sa frente, fazendo-nos perceber a falsidade dessa propo-sição, que, entretanto, é verdadeira em relação à idéia quehavíamos formado” (HUME, 2001, pg. 45).

Nesse caso, percebemos que a palavra triângulo, quando relacionada àproposição de que seus três ângulos são iguais, só vale para oseqüiláteros, sendo falsa para as outras idéias particulares que estãopotencialmente na mente, vinculadas a um costume e despertadas porum termo.

Da mesma forma, é esse mesmo costume que possibilita que, por ve-zes, uma mesma idéia seja utilizada para se referir a noções diferentes:“a idéia de triângulo eqüilátero de uma polegada de altura pode servirpara falarmos de uma figura, de uma figura retilínea, de uma figuraregular, de um triângulo e de um triângulo eqüilátero.” (HUME, 2001,pg. 46). Ou ainda, em outros casos, quando esse costume não está in-

teiramente formado, pela menção do nome, percorre-se várias idéiasparticulares, para se compreender melhor o nome e o conjunto desig-nado por esse nome.

Portanto, como já dissemos, para Hume, é o costume que pode permi-tir que toda a universalidade das idéias envolvidas no grupo de objetossemelhantes esteja potencialmente no espírito. O nome ou termo geralde alguma maneira permite um tipo de atualização dessa potencialida-de, atualização dada no fato de que ele se relaciona com todas essasidéias compreendidas na universalidade considerada. O termo geral é“um termo que se relaciona com muitas idéias particulares, através deuma conjunção habitual” (HUME, 2001, pg. 46), sendo o que possibi-lita às idéias particulares possuir um significado mais extenso. Emcontrapartida, o termo geral pode se referir a toda essa universalidade,porque essa relação se dá por meio de uma conjunção habitual, qualseja, tanto da constatação da relação de semelhança como do costumede nomear com esse termo os objetos em que se dá essa constatação.

Desse modo, aliando a relação com o costume, complementados pelalinguagem, explica-se como pode uma idéia particular representar to-das as idéias da espécie. Se a linguagem tem caráter generalizante ouextensivo é porque é um hábito da natureza humana fazer com que umnome se relacione com um campo de idéias possíveis, campo que decerta forma resume a semelhança interna que há entre algumas idéias.

3. Idéias gerais em Berkeley e Hume

Tanto Berkeley como Hume entendem que não concebemos idéias ge-rais, na medida que toda idéia deve ser particular e determinada comrelação aos seus graus de qualidade e quantidade. No entanto, ambosnão negam o processo de generalização através do qual uma idéia aca-ba por representar todas as idéias de uma mesma espécie, rejeitandoapenas que tal processo envolva abstração. O que se rejeita nestes filó-sofos é que a significação se dê entre uma idéia abstrata e o termo ge-ral, sustentando-se, em contrapartida da filosofia lockeana, que na ge-neralização é uma idéia particular, com graus de qualidade e quanti-dade específicos, que acaba por atuar como signo de todas as idéias deuma espécie.

Ademais, ambos mostram como uma idéia particular se torna geralquando vinculada a um termo geral e como é esse termo que podeampliar o seu significado, indicando, portanto, que, geral é a significa-ção e não propriamente a idéia. Sobretudo, Berkeley e Hume vinculamo seu entendimento acerca das idéias gerais a uma mudança na com-

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preensão da natureza da linguagem. Isso porque sustentam que a ge-neralização é possível, ou no seu modo de compreender, que a idéiaparticular pode ser geral quando funciona como sinal ou signo, por-que é possível que as noções ou termos gerais tenham como significa-do uma universalidade, pensada como a relação entre todas as idéiasindividuais de uma espécie. Ou seja, parte-se de uma noção da lingua-gem que se contrapõe ao que Berkeley qualifica como uma concepçãodenotativa da mesma.

Mas Hume pretendeu ir além. Se Berkeley teria mostrado que “idéiasgerais são apenas idéias particulares que vinculamos a um certo ter-mo, termo esse que lhes dá um significado mais extenso”, o Tratadoevidenciaria que essa generalização é explicada primeiramente pelaobservação das semelhanças dadas nas próprias idéias e fundamental-mente pelo fato de que é um hábito da mente humana nomear com omesmo termo esses objetos. Também nos Princípios a universalidadedeve ser compreendida como uma relação entre todas as idéias possí-veis da mesma espécie, mas não se explica o processo habitual ou irre-fletido que liga todas essas idéias, em que se anexa uma relação uni-versal a um mesmo nome. A concepção berkeleyana sobre a naturezada linguagem explica que não é necessário que cada nome nomeie umasó idéia, ou especificamente, que o nome geral nomeie apenas umaidéia abstrata sintetizante do que há de comum em várias idéias parti-culares, como, segundo ele, pressupusera Locke. Hume demonstra,complementarmente, como utilizar um mesmo nome para essas idéiasé antes um hábito da mente humana.

notas

1 Não discutiremos nesse artigo a questão das idéias abstratas emLocke ou a correção ou não da exposição que Berkeley faz da mesma.Tomaremos apenas as considerações expostas na Introdução dosPrincípios. Para uma crítica da leitura berkeleyana da teoria de Lockeacerca das idéias abstratas: Bennett. (1171, pg. 52-58).

2 Numa versão anterior, não publicada, dessa Introdução, Berkeleyindicava não haver idéias gerais, mas tão somente termos gerais (cf.A.A Luce and T.E Jessop (eds). The Works of George Berkeley, vol.2. inBennett. Locke, Berkeley, Hume. Central Themes. 49). Pensamos queesse fato é bastante significativo, na medida que, a Introduçãopublicada parece argumentar que não há propriamente idéias gerais(como concepção positiva) e sim significação geral. No entanto, emvirtude de não termos acesso direto a essa versão preliminar, nosconcentraremos na versão publicada.

3 Para uma crítica a essa concepção da generalização, que seriarepresentacionista: Husserl (1961, pg. 212-215).

4 Para demonstrar que as idéias podem aparecer à mente apenas comoindividuais, Hume parte de três princípios: princípio da separabilidade(tudo que não é separável não pode ser distinguido e tudo que não édistinguível não pode ser separado), princípio da cópia (as idéias sãocópias e representações exatas das impressões, que são sempreindividuais) e princípio de que não há diferença entre ser uma idéia eser uma idéia de objeto (formar a idéia de um objeto é a mesma coisaque formar uma idéia, de modo que se o objeto deve ser determinadoquanto aos seus graus o mesmo deve ocorrer no caso da idéia).(HUME, 2001, pg. 43-44).

5 Como Hume explica no Apêndice, há semelhanças dadas até mesmoentre as idéias simples: “É evidente que idéias simples diferentespodem apresentar uma semelhança ou similaridade entre si, nãosendo necessário que o ponto ou a circunstância de semelhança sejadistinto ou separável daquela em que elas diferem. Azul e verde sãoidéias simples diferentes, no entanto mais semelhantes que azul eescarlate- embora sua simplicidade perfeita exclua toda possibilidadede separação ou distinção”. (HUME, 2001, Apêndice, pg. 675).

6 Nesse sentido, parece acertada a opinião de Klaudat, que mostracomo a “constatação” de semelhanças é o pressuposto dapossibilidade de generalização das idéias individuais. Da mesmaforma, sua crítica a uma suposta passividade diante dessa“constatação” parece bastante pertinente. Segundo ele, o processo deseleção de determinadas semelhanças não poderia ser explicado peloassociacionismo mental proposto por Hume, ele pressuporia umaatividade, consistente na formação de relações filosóficas, no caso asemelhança. (KLAUDAT, 1997, pg. 113-115).

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7 Definir especificamente o que represente a palavra “costume” paraHume é bastante complicado, na medida que ela aparece em váriosmomentos do Tratado com sentidos um pouco diverso. Para umsentido bastante geral e ao que parece pertinente ao caso desseartigo, podemos tomar a seguinte definição: “chamamos deCOSTUME a tudo aquilo que procede de uma repetição passada, semnovo raciocínio ou conclusão”. (HUME, 2001, pg. 133).

referências

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artigoFernando AntunesGraduando em Filosofia – UFPR e bolsista do [email protected]

Uma reflexão bergsonianasobre a linguagem

Resumo: O presente trabalho não é fruto de um estudo de filosofia dalinguagem, mas procura abordar a questão da linguagem de umaperspectiva bergsoniana. Para Bergson ela acaba, ontologicamente,cristalizando a duração do eu interior que flui pelo tempo, bem comotornando os diferentes estados da consciência em estados homogêne-os. Desta forma ela falsifica o seu objeto quando tenta expressá-locomo palavra. Uma vez que este problema é posto, tentaremos mos-trar como a metafísica bergsoniana procura resolver o problema, pro-pondo uma forma alternativa expressão dos estados moventes do euem seu fluir pela sua duração própria.Palavras-chave: intuição, duração, linguagem.

1.

Levados a um ensaio publicado em 1903 na Revue de Métaphysique etde Morale intitulado Introduction à la Métaphysique fomos convida-dos a reconhecer aí alguma coisa do pensamento de Henri Bergson noque se refere à linguagem. Seguindo a sugestão do próprio autor, inici-aremos distinguindo entre duas formas de conhecimento, uma que sepretende voltada diretamente a resolver problemas relativos à prática,outra que se dissipa deste âmbito para falar do absoluto. Seguindo estadivisão, procuraremos mostrar que a Metafísica opta pela segunda. Ese ela pretende ter como objeto de investigação o absoluto, então devecolocar-se num esforço de desconstrução dos objetos prévios do en-tendimento, e fazer com que o pensamento se desenvolva em confor-midade com o objeto em questão e não o contrário. Desta forma, ela secoloca num processo de desconstrução também da linguagem comumprocurando dispensar-se dos signos. E neste meio buscaremos com-preender porque os signos não nos ajudam a compreender o objeto daMetafísica.

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