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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS FACULDADE DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO MESTRADO IDENTIDADE CRISTÃ NO SÉCULO II D.C.: UMA ANÁLISE DA I APOLOGIA DE JUSTINO MÁRTIR SAMUEL NUNES DOS SANTOS GOIÂNIA 2012

IDENTIDADE CRISTÃ NO SÉCULO II D.C.: UMA … · Justino Mártir no Diálogo com Trifão), produzida em 2009, pela UFES; e a de Daniel Marques Giandoso4 (O Diálogo com Trifão de

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIS

    FACULDADE DE HISTRIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO

    MESTRADO

    IDENTIDADE CRIST NO SCULO II D.C.: UMA ANLISE DA I

    APOLOGIA DE JUSTINO MRTIR

    SAMUEL NUNES DOS SANTOS

    GOINIA

    2012

  • SAMUEL NUNES DOS SANTOS

    IDENTIDADE CRIST NO SCULO II D.C.: UMA ANLISE DA I

    APOLOGIA DE JUSTINO MRTIR

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em

    Histria como requisito para obteno do grau de Mestre em

    Histria.

    rea de Concentrao: Culturas, Fronteiras e Identidades.

    Linha de Pesquisa: Histria, Memria e Imaginrios Sociais.

    Orientadora: Professora Doutora Ana Teresa Marques

    Gonalves

    GOINIA

    2012

  • SAMUEL NUNES DOS SANTOS

    IDENTIDADE CRIST NO SCULO II D.C. UMA ANLISE DA I

    APOLOGIA DE JUSTINO MRTIR

    Dissertao defendida no Programa de Ps-Graduao em Histria da Faculdade de

    Histria da Universidade Federal de Gois, para obteno do grau de Mestre, aprovada

    em ___de ___ de 2012 pela Banca Examinadora constituda pelos seguintes Professores

    Doutores:

    __________________________________________________

    Professora Doutora Ana Teresa Marques Gonalves / UFG

    Presidente

    __________________________________________________

    Professor Doutor Andr Leonardo Chevitarese / UFRJ

    Membro

    __________________________________________________

    Professor Doutor Jos Antnio de Camargo Rodrigues de Souza / UFG

    Membro

    __________________________________________________

    Professora Doutora Armnia Maria de Souza / UFG

    Suplente

  • minha amada esposa Maria do Rosrio e

    meus queridos filhos: Jssica, Lucas e Marcos.

    Suas existncias so um revigorante flego

    minha vida.

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo primeiramente minha orientadora a Professora Doutora Ana Teresa

    Marques Gonalves, sabendo que qualquer agradecimento a ela nunca ser satisfatrio.

    Pois todo apoio, pacincia, orientao a mim dispensados e a forma amvel e sempre

    pronta como ela me tratou, no possvel descrever aqui. O que posso dizer que ela

    uma excelente orientadora e, como costumo dizer a ela, uma mezona.

    Quero agradecer tambm ao Professor Doutor Andr Leonardo Chevitarese por aceitar

    participar de minha banca. deveras uma honra. Tenho lido e adquirido muitas de suas

    obras. Elas tm sido muito importantes para minha vida acadmica.

    Agradeo tambm, de forma muito especial, ao Professor Doutor Jos Antnio de

    Camargo Rodrigues de Souza. Alm de se dispor a participar desta banca de mestrado,

    esteve presente juntamente com a Professora Doutora Armnia Maria de Souza, na

    minha banca de qualificao. Agradeo a ambos pelas pontuaes, conselhos e

    orientaes feitas ao meu trabalho. Os desafios propostos pelo Professor Doutor Jos

    Antnio foram instigadores. Espero ter tido xito neles, ainda que superficial. Sempre

    h o que aprofundar.

    Aos professores Drs. Eugnio Rezende de Carvalho e Carlos Oiti Berbert Jnior. A

    disciplina que eles ministraram sobre Histria das Idias foi norteadora. Pude me

    deparar com concepes novas que me direcionaram na produo desta dissertao.

    Quero agradecer a Oxford University por ter gentilmente me cedido o e-mail do

    Professor Geza Vermes, por quem tenho uma profunda admirao e respeito. Agradeo

    a ele pelas dicas, ainda que muito poucas e vagas, mas foram importantes para que eu

    refinasse as minhas pesquisas pela internet. Alis, s de ele ter respondido ao meu e-

    mail j foi uma surpresa muito agradvel. Devo concordar com ele: Your questions are

    too broad for an e-mail answer. Quem sabe num futuro prximo as distncias se

    estreitem.

    Agradeo de forma tambm muito especial aos colegas Marcelo e Thiago. As

    proveitosas conversas nos corredores, na sala da Professora Ana Teresa ou mesmo no

    Campus 3, foram muito importantes para reforar conceitos j existentes ou mesmo

    v-los sob novas perspectivas e para adquirir novos.

    Ao meu colega de trabalho, professor na PUC-GO, Joo Batista Cascalho, por lembrar-

    me de uma informao importante: o nome do prefeito de Roma que conduziu o

  • julgamento de Justino. S um lapso de minha parte poderia explicar eu no t-lo

    inserido no meu texto.

    Agradeo ao meu irmo Andr Ricardo, tambm formado em Histria pela UFG, no s

    por ter me presenteado e emprestado obras fundamentais para o meu trabalho, mas pelas

    conversas bastante construtivas que tivemos.

    s minhas quatro tias: Ilda, Elza, Geralda e Alda por terem me criado e me educado

    para o bem.

    Agradeo tambm quela que tem sido um baluarte na minha vida: minha sempre por

    mim amada esposa. Se no fosse por ela no saberia o que seria desta dissertao, nem

    de mim mesmo. Sua pacincia, incentivo, leituras dos meus textos e dicas foram

    fundamentais para o xito deste trabalho.

    Aos meus filhos que por vrias vezes tiveram que ouvir (e souberam ouvir) um no

    quando me chamavam para brincar. Por vezes tive que ceder a seus apelos.

    Agradeo a todos que tornaram e tornam a minha vida mais agradvel: aos colegas da

    CAIXA (da GILIE e da Agncia Goinia), aos meus familiares, minha querida me e

    ao meu pai (in memorian).

    Por fim, agradeo a Deus que tm me proporcionado mais do que uma simples

    existncia, mas vida. No existem palavras no Universo que possam exprimir a gratido

    devida a Ele.

  • stat rosa pristina nomine,

    nomina nuda tenemus

    Umberto Eco, O Nome da Rosa (p. 562).

  • SUMRIO

    AGRADECIMENTOS................................................................................................. 05

    RESUMO....................................................................................................................... 10

    ABSTRACT.................................................................................................................. 11

    INTRODUO.............................................................................................................12

    CAPTULO 1 A RELAO DE INTERCULTURAO ENTRE OS

    CRISTOS E OS GENTIOS: ASPECTOS QUE POSSIBILITARAM A

    CONSTRUO DE IDENTIDADES CRISTS.......................................................27

    1.1. A utilizao do idioma grego tanto na escrita quanto na fala.......................28

    1.2. A apropriao do estilo grego nos escritos e pregaes...............................30

    1.3. A apropriao do conceito de Logos............................................................37

    1.3.1. O Logos no mundo grego.............................................................................37

    1.3.2. O Logos no pensamento de Flon de Alexandria..........................................39

    1.3.3. O Logos nos escritos cristos primitivos......................................................41

    1.3.3.1. Em Joo, o evangelista.................................................................................41

    1.3.3.2. Em Justino (100 d.C. 165 d.C.).................................................................43

    1.3.3.2.1. Na I Apologia................................................................................................43

    1.3.3.2.2. Na II Apologia..............................................................................................45

    1.3.3.2.3. No Dilogo com Trifo.................................................................................46

    1.3.3.3. Em outros autores cristos............................................................................48

    1.4. Cristos, gregos e as apropriaes culturais.................................................50

    1.5. As sinagogas e a proclamao sinagogal......................................................52

    1.6. O martrio dos cristos..................................................................................55

    1.7. A facultao em relao observncia das leis mosaicas............................57

    CAPTULO 2 REENCONTRANDO JUSTINO: SUA VIDA, SUAS

    OBRAS E SEU CONTEXTO HISTRICO...................................................61

    2.1. De Jesus a Justino: uma sinopse...................................................................62

    2.2. O autor..........................................................................................................64

    2.2.1. Justino, um pai apologista: seu contexto intelectual.....................................66

    2.2.2. Suas obras e aquelas que lhe so atribudas..................................................68

  • 2.3. A I Apologia: datao, gnero, manuscritos e as fontes de Justino..............70

    2.4. As perseguies do Sculo I d.C..................................................................81

    2.5. As perseguies do Sculo II d.C.................................................................88

    CAPTULO 3 A IDENTIDADE CRIST NA TICA DE

    JUSTINO...................................................................................................................104

    3.1. A estrutura da I Apologia............................................................................104

    3.2. As profecias do Antigo Testamento na viso de Justino.............................112

    3.3. Jesus Cristo, o Mestre dos cristos

    115

    3.4. Estoicismo e platonismo.............................................................................117

    3.5. Cristos: a terceira raa?.............................................................................124

    3.5.1. Um novo grupo identitrio..........................................................................133

    3.6. Os outros: os no cristos e os cristos heterodoxos..................................142

    3.7. A fora ilocucionria: os atos do discurso e as intenes de Justino..........153

    3.8. Ser cristo e a construo identitria..........................................................156

    Consideraes Finais.............................................................................................160

    BIBLIOGRAFIA....................................................................................................164

  • RESUMO

    IDENTIDADE CRIST NO SCULO II D.C. UMA ANLISE DA I

    APOLOGIA DE JUSTINO MRTIR

    A inteno do presente trabalho analisar a proposta de construo de uma

    identidade crist a partir da obra intitulada I Apologia, de Justino Mrtir. Acreditamos

    que na formao do cristianismo, alguns autores como Justino, promoveram o projeto

    de criao de uma identidade crist, a partir de preceitos e prticas que deveriam

    igualar/homogeneizar o fato de se ser cristo nos sculos I e II d.C. Justino indica na I

    Apologia o que se deveria fazer e o que se deveria evitar para se ser considerado cristo

    e tal discurso possibilita a produo de caractersticas identitrias.

    A partir dessa ideia, investigamos as relaes de interculturalidade nos

    sculos I e II d.C., pesquisamos e apresentamos o autor e aspectos especficos de sua

    produo, tais como: datao, manuscritos existentes, gnero, o contexto histrico, etc.

    Por fim, no ltimo captulo, apresentamos detidamente aspectos particulares da I

    Apologia: sua estrutura interna, sua ideia de Jesus, das profecias judaicas, dos cristos

    enquanto uma raa, que os diferenciavam dos que no eram cristos e dos grupos

    considerados herticos, a relao do autor com o estoicismo e o platonismo, a inteno

    do autor na elaborao do discurso e, por ltimo, a identidade crist por ele proposta a

    vista disto tudo.

    Palavras-chave: Identidade Crist, Justino Mrtir, Gentios, Contextualismo Lingustico,

    I Apologia

  • ABSTRACT

    CHRISTIAN IDENTITY IN THE SECOND CENTURY A.D. AN ANALYSIS

    OF THE FIRST APOLOGY OF JUSTIN MARTYR

    The intention of this study is to analyze the proposal of the making of

    Christian identity from the work entitled First Apology, by Justin Martyr. We believe

    that in the formation of Christianity, some authors such as Justin, promoted the project

    of creating a Christian identity, from the rules and practices that should equalize /

    standardize the fact of being a Christian in the first and second centuries A.D. Justin, in

    his First Apology, indicates what should be done and what should be avoided to be

    considered Christian, and such discourse allows the production of identity

    characteristics.

    To achieve this goal, we investigated the relationships of interculturality in

    the first and second centuries A.D, we researched and presented specific aspects of

    author and his work, such as: its dating, the extant manuscripts, the genre, the historical

    context, etc. Finally, in the last chapter, we presented closely at particular aspects of the

    First Apology: its internal structure, his idea about Jesus, the Jewish prophecies, the

    Christians as a race, those who were not Christians and the groups considered heretical,

    the relationship of the author with the stoicism and the Platonism, the authors intention

    in drawing up his speech and, finally, about the Christian identity proposed by him seen

    from the data above.

    Key words: Christian Identity, Justin Martyr, Gentiles, Linguistic Contextualism, First

    Apology

  • INTRODUO

    Muitos tm dedicado-se a estudar sobre o Cristianismo Primitivo a partir das

    mais diferentes abordagens, com recortes temporais e espaciais muito variados. Alguns

    deram nfase s perseguies1; outros desenvolveram algo como uma histria da

    filosofia e/ou da teologia crist2; ainda outros, preocuparam-se com a anlise da

    essncia do cristianismo3. Abunda o nmero de monografias, artigos, ensaios e outras

    produes acadmicas sobre o tema. O primeiro a se debruar sobre o tema foi

    certamente Lucas, autor de um evangelho que leva o seu nome e do livro intitulado Atos

    dos Apstolos. As contribuies no se restringem ao campo da teologia, mas alcanam

    historiadores, arquelogos, socilogos, cientistas da religio, psiclogos, antroplogos,

    entre outros, com as mais distintas intenes.

    Especificamente sobre Justino, existe no Brasil, enquanto produo

    nacional, pouca elaborao erudita sobre as obras de Justino. No obstante, tem havido

    um recente interesse principalmente por seu Dilogo com Trifo. Constatado, por

    exemplo, pela Dissertao de Mestrado de Juan Pablo Sena Pera (O Antijudasmo de

    Justino Mrtir no Dilogo com Trifo), produzida em 2009, pela UFES; e a de Daniel

    Marques Giandoso4 (O Dilogo com Trifo de So Justino Mrtir e a relao entre

    judeus e cristos (Sculo II)), produzida em 2011, pela USP. Ambas de programas de

    Ps-Graduao em Histria.

    1 P. ex.: KNIGHT, A.; ANGLIN, W. Histria do Cristianismo: dos Apstolos do Senhor Jesus ao sculo

    XX. Rio de Janeiro: CPAD, 1983. 2 P. ex.: BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. Histria da Filosofia Crist: Desde as Origens at

    Nicolau de Cusa. Rio de Janeiro: Vozes, 2000. 3 P. ex.: FEUERBACH, Ludwig. The Essence of Christianity. London: John Chapman, 1854.

    4 Curiosamente uma das dissertaes mais baixadas e visitadas da USP

    (http://www.teses.usp.br/index.php?option=com_jumi&fileid=33&Itemid=168&lang=pt-br&filtro=di%C

    3%A1logo%20com%20trif%C3%A3o. Acessada em 12/03/2011; http://www.teses.br/index.php?option=

    com_jumi&fileid=24&Itemid=171&lang=pt-br&filtro=di%C3%A1logo%20com%20trif%C3%A3o.

    Acessada em 12/03/2011).

  • A Tese de Doutorado de Maria Bernadete Frolini de Aguiar Marczyk (A

    interpretao tipolgica da Bblia e seus reflexos na representao do povo judeu), de

  • P g i n a | 14

    2010, defendida no programa de ps Graduao da Faculdade de Letras Orientais/USP,

    reserva um item especfico para o Dilogo com Trifo. Ainda no cenrio de fala

    portuguesa, temos a Dissertao de Mestrado em teologia de Teresa Maria da Cruz

    Costa Pereira (A Cristologia de S. Justino no "Dilogo com Trifo"), de 1996,

    defendida na Universidade Catlica Portuguesa.

    No encontramos nenhuma obra especificamente sobre Justino e suas obras

    traduzidas para o portugus, exceto pela traduo feita de suas obras a I e II Apologias e

    o Dilogo com Trifo, da coleo Patrstica, da editora Paulus. Em lngua estrangeira a

    obra mais exaustiva sobre Justino certamente The proof from prophecy: a study in

    Justin Martyr's proof-text tradition: Text-Type, Provenance, Theological Profile (A

    Prova da Profecia: Um Estudo na tradio da Prova Textual de Justino Mrtir: Tipo de

    Texto, Provenincia e Perfil Teolgico), de Oskar Skarsaune. Mas tem-se ainda Justin

    Martyr, his life e thought (Justino Mrtir, sua vida e pensamento), de L. Barnard; Justin

    Martyr and Jews (Justino Mrtir e os Judeus), de David Rokah, entre outros.

    Podemos dizer que o cristianismo comeara os seus primeiros dias com as

    pregaes de Jesus, num estado, por assim dizer, germinal. Nasceu na regio da

    Palestina graas a um Galileu com ideias inovadoras, criando, a princpio, apenas uma

    nova seita dentre as vrias j existentes dentro do judasmo5, ou seja, mais um judasmo

    dentre os vrios j existentes. Com a morte de Jesus, a incumbncia da mensagem

    passou efetivamente aos seus apstolos e discpulos, o que comeou a caracterizar o

    incio de sua institucionalizao, com um grupo de lderes e as primeiras ordenanas.

    Temos posteriormente, a expanso do cristianismo em duas fases. A

    primeira estava circunscrita regio da Palestina, graas principalmente aos apstolos

    Pedro, Tiago e Joo e aos diconos6 Estevo e Filipe (Atos dos Apstolos 1-10). A

    segunda seria o momento em que as misses se voltaram para os gentios os vrios

    5 Flvio Josefo, historiador judeu do sculo I d.C., distingue trs seitas no judasmo: Havia ento entre

    ns trs seitas, divergentes nas questes relativas s aes humanas. A primeira era a dos fariseus; a

    segunda, a dos saduceus; a terceira, a dos essnios (FLVIO JOSEFO. Antiguidades, XIII, 9, 520). Mais frente, ele repete os trs grupos e fala de uma quarta seita, porm, sem nome-la (FLVIO JOSEFO.

    Antiguidades, XVIII, 2, 760). Os crticos se dividem na opinio de que seja os zelotes ou os Sicrios, no

    entanto, no h como precisar, pois Josefo no d informaes suficientes para tal (HENGEL, 1989, p.

    88-89). Ambos os grupos so citados na obra Guerra dos Judeus Contra os Romanos (FLVIO JOSEFO.

    Guerra dos Judeus Contra os Romanos, II, 44, 232; IV, 12, 303-305; 13, 307; 14, 308-309, para o

    primeiro grupo; e IV, 24, 329; VII, 30, 534, para o segundo). 6 Os apstolos tinham a funo bsica da pregao da palavra e da orao, isto , o servio espiritual da

    Igreja enquanto os diconos deveriam cuidar da parte material: E os doze, convocando a multido dos

    discpulos, disseram: no razovel que ns deixemos a palavra de Deus e sirvamos s mesas. Escolhei,

    pois, irmos, dentre vs, sete homens de boa reputao, cheios do Esprito Santo e de sabedoria, aos quais

    constituamos sobre este importante negcio. Mas ns perseveraremos na orao e no ministrio da

    palavra (Atos 6:2-4).

  • P g i n a | 15

    grupos politestas , comeando com o apstolo Pedro (Atos dos Apstolos 10:1-48).

    Porm, o principal divulgador foi o apstolo Paulo, conhecido, por isso, como o

    apstolo dos gentios (Romanos 11:13; II Timteo 1:11; Glatas 2:8). Este no

    conheceu Jesus pessoalmente, porm foi personagem fundamental para que o

    cristianismo adquirisse um status de universalidade. As vrias comunidades da geradas

    se intitulariam comunidades paulinas, no obstante, muitas delas se formassem sem o

    pioneirismo de Paulo. o caso da comunidade de Roma, por exemplo. Paulo colaborou

    com o crescimento dessa comunidade por meio de uma carta e durante a sua priso em

    Roma, mas no foi o seu fundador7.

    Outro personagem muito importante foi o apstolo Barnab a quem Paulo

    acompanhou em vrias cidades. A partir da, as fronteiras do cristianismo se tornaram

    cada vez mais amplas e suas trocas culturais, mais frequentes. Tais fatores ocasionaram

    uma maior mutao identitria. Do final do primeiro sculo ao incio do segundo, temos

    um cristianismo com vrias caractersticas helnicas, visivelmente percebidas nos

    escritos joaninos8, por exemplo.

    Em suma, o cristianismo pode assim ser visto em quatro instncias: um

    estado latente com as pregaes de Jesus; um segundo momento, depois da morte de

    Jesus, com a misso de seus discpulos em divulgar as mensagens crists. Esse perodo

    se subdividiria em dois: na pregao aos judeus e, depois, aos demais povos.

    Posteriormente, temos, com os herdeiros dos primeiros apstolos Os Padres

    Apostlicos e na interao com os povos politestas, uma nova reformulao da

    mensagem crist. Neste momento, comeam a se cristalizar a mesclagem entre os

    aspectos judaicos no cristianismo e as ideias helnicas.

    Por fim, j no segundo sculo propriamente dito, com os Padres

    Apologistas, vemos um cristianismo bastante multifacetado. Novas hairesis9 surgiram

    de dentro do movimento cristo. Justino faz parte deste ltimo momento. E nele que

    se encontra nossa proposta: responder questo Quid sit christianum esse? Ou seja, o

    que era ser cristo? Mais precisamente, o que era ser cristo na concepo de Justino?

    7 Apesar da indicao conjunta de Pedro e Paulo por Irineu (Contra as Heresias, III, 1.1 e 3.2) deduz-se

    pelos Atos dos Apstolos e pela Carta aos Romanos (Caps. 1 e 15) que Paulo no foi o fundador,

    enquadrando-se mais como um contribuidor doutrinrio da comunidade crist em Roma. Mesmo o

    pioneirismo de Pedro em Roma questionvel uma vez que, na carta que Paulo escreve para os romanos,

    ele no o cita em parte alguma. Se Pedro fosse realmente o fundador da Igreja em Roma era de se esperar

    alguma meno ao seu nome nessa carta. 8 O evangelho, as trs cartas e o Apocalipse, todos atribudos ao apstolo Joo.

    9 Significa escolha, seita, partido (PEREIRA, 1998, p. 18).

  • P g i n a | 16

    Assim, propomos analisar como Justino de Roma caracterizou o

    cristianismo de seu tempo. Escolhemos para essa anlise a sua I Apologia. A partir dela

    gostaramos de entender melhor a identidade crist daquele perodo como proposta pelo

    o autor analisado. Justino critica a atitude dos magistrados romanos por condenarem os

    cristos apenas por causa de um rtulo, isto , do reconhecimento de que eram cristos

    (JUSTINO. I Apologia, IV, 1-9). Perguntamos: como Justino rotulava os cristos?

    Como ele identifica queles de seu prprio grupo? O que pode se perceber em sua obra

    sobre as interaes culturais que foram fundamentais para a construo de uma

    identidade crist em sua poca? Dentro destas questes ainda nos importante

    perguntar: at que ponto houve negociaes culturais com os povos greco-romanos?

    Estas perguntas nos remetem ao que foi exposto por Andr Leonardo Chevitarese e

    Gabriele Cornelli quando afirmam:

    A questo mais premente, do ponto de vista historiogrfico,

    exatamente aquela de conseguir compreender o produto final das

    diversas interaes entre culturas diferentes para originarem este

    estgio cultural especfico. (CHEVITARESE & CORNELLI, 2003, p.

    15).

    O produto final, dentro da nossa proposta, a viso de Justino sobre o que

    era o cristianismo do sculo II d.C. Ou seja, deve-se entender produto final como

    aquele que se quer estudar no momento: o cristianismo primitivo a partir da I Apologia

    de Justino de Roma. No final em sua existncia, mas no recorte proposto.

    As questes acima so fundamentais para estabelecer certos parmetros para

    no incorrermos em alguns equvocos. O primeiro deles seria a iluso de que o

    cristianismo continuou sendo at meados do segundo sculo meramente uma nova seita

    do judasmo. O nascimento dentro de uma cultura que j interagia com o helenismo e o

    contato inevitvel com a cultura greco-romana tornou impossvel essa pureza. O

    cristianismo passou a ser uma nova cultura, com suas prprias especificidades, tendo

    em suas bases as relaes entre as culturas judaicas e greco-romanas.

    Mas, tambm, no podemos cometer o equvoco de pensar que a expanso

    do cristianismo ocorreu graas apenas ao encontro com a cultura greco-romana. fato

    que este encontro foi um forte fator colaborador, mas no nico. Percebemos que ao

    longo dos sculos o cristianismo tornou-se cada vez mais plstico, adaptvel s vrias

    condies que o tempo lhe ofereceu. A cultura crist conseguiu negociar com outras

  • P g i n a | 17

    culturas, manteve certas doutrinas bsicas e conseguiu tornar-se universal, catlica

    () em seu sentido mais literal.

    Ao nos referirmos aos povos no cristos utilizamos termos diversos, tais

    como: povos politestas, pagos e gentios. Apesar do elevado preconceito que estes

    termos carregam (principalmente os dois ltimos), os utilizamos, neste trabalho, sem

    nenhuma conotao negativa, exceto quando os prprios autores cristos utilizam algum

    destes termos com esta concepo. Grosso modo, eles se referem, geralmente, aos

    demais povos que no eram judeus nem cristos. Apesar da ambiguidade e da

    dificuldade de uma definio mais precisa destes termos, o que nos importa aqui so os

    cristos e o ponto de vista de Justino que retrata gregos, romanos e judeus, ou seja, a

    alteridade em relao aos cristos. Do ponto de vista de Justino, a alteridade mltipla,

    ao contrrio da crist que nica, ainda que tenham outros que se digam cristos, mas o

    so apenas de nome e no de fato (JUSTINO. I Apologia, IV, 7).

    Ao utilizarmos o termo povos politestas estamos relacionando um

    aspecto especfico dos povos que habitavam o Mediterrneo: os mltiplos deuses dos

    gentios em contraposio ao monotesmo judaico e cristo. Como trabalhamos esses

    contatos interculturais, para ns de fundamental importncia a abordagem das vrias

    oportunidades que judeus, cristos e politestas, inseridos no Mediterrneo antigo,

    tiveram de se encontrar (CHEVITARESE & CORNELLI, 2003, p. 7).

    Outro termo bastante complicado o de raa. Os termos utilizados na

    literatura clssica grega so, geralmente, genos e ethnos. So tambm traduzidos como

    povo e nao ou famlia e etnia. Segundo Ton Derks e Nico Roymans isso j ocorre em

    Herdoto. Em suas palavras: Herdoto utiliza, no mnimo, duas vezes os termos

    relacionados consanguinidade para descrever a identidade coletiva dos Jnios (1.56:

    genos; 1.143: ethnos) (DERKS & ROYMANS, 2009, p. 37). Mais frente

    problematiza mais quando diz que a ideia de povo foi variadamente descrita como

    genos, ethnos ou demos10

    no grego, ou natio, gens ou populus no latim. Apesar de cada

    termo ter suas caractersticas prprias, suas especificidades, so, muitas vezes, difceis

    de discernirem (DERKS & ROYMANS, 2009, p. 210). Justino parece refletir a mesma

    compreenso do termo: Deve-se saber que o restante de todas as raas humanas

    () so chamadas de naes () pelo Esprito proftico

    (JUSTINO. I Apologia, LIII, 4).

    10

    Em I Pedro 2.9 encontramos ainda o termo . Isidro Pereira apresenta-nos os seguintes

    significados para este termo: povo, gente do povo (PEREIRA, 1998, p. 342).

  • P g i n a | 18

    Escolhemos trabalhar o termo identidade, pois permite repensar o que ser

    cristo para Justino. O termo est bastante em voga, o papo do momento, segundo

    Zygmunt Bauman (2005, p. 2223). A questo do termo identidade, tanto de forma

    geral quanto na sua formao de uma identidade nacional, tem sido uma preocupao de

    vrios estudiosos. Assim, h uma gama de ttulos de diversas reas sobre o tema, quase

    todos voltados para a modernidade, mesmo porque o conceito recente, e so,

    geralmente, focados no problema da crise identitria (HALL, 2006, p. 7;

    WOODWARD, 1997, p. 1). Por isso, a utilizao deste termo para se trabalhar com

    algo no mundo antigo corre o perigo de cair em um equvoco de anacronismo

    conceitual.

    Apesar disso, a utilizao deste termo muito comum por parte de vrios

    historiadores, principalmente queles vinculados histria cultural. Exemplo disto a

    obra Material Culture And Social Identities in the Ancient World 11

    , editado por Shelley

    Hales e Tamar Hodos. Todos os artigos desta obra trabalham com a questo da

    identidade no mundo antigo, a comear pelo captulo 1 da prpria Tamar Hodos, cujo

    ttulo Local and Global Perspectives in the Study of Social and Cultural Identities.

    Nele, ela traz vrias definies importantes; a primeira a de identidade. Ao apresentar

    a problemtica da utilizao do termo identidade na Antiguidade com a pergunta O que

    ns queremos dizer quando falamos de identidade no passado (HODOS, 2010, p. 3),

    ela revela a preocupao de se delinear o que seria identidade na Antiguidade. Ela

    explica que identidade pode ser definida como as caractersticas coletivas dos vrios

    aspectos pelos quais alguma coisa ou algum reconhecvel ou conhecido (HODOS,

    2010, p. 3).

    Outra definio importante que ela traz e est diretamente vinculada

    identidade o de etnicidade que, segundo a autora, uma forma especfica de

    identidade social que relaciona a identificao autoconsciente com um grupo

    sociocultural particular (HODOS, 2010, p. 4).

    Alm dessa perspectiva, -nos salutar a opinio defendida pela historiadora

    francesa Nicole Loraux, em seu artigo intitulado Elogio do Anacronismo12

    . Ela defende

    11

    P. ex.: LAURENCE, Ray. Cultural Identity in the Roman Empire; ROYMANS, Nico. Ethnic Identity

    and Imperial Power: The Batavians in the Early Roman Empire; GRUEN, Erich S. Culture and National

    Identity in Republican Rome; mais especificamente com identidade crist: LIEU, Judith M. Christian

    Identity in the Jewish and Graeco-Roman World (grifos nossos). 12

    Originalmente, o artigo loge de lanachronisme en histoire da professora Nicole Loraux foi publicado

    na revista Le genre humain, em 1993, e republicado na EspaceTemps. O ttulo da revista desta ltima

    Les voies traversires de Nicole Loraux: Une hellniste la croise des sciences sociales (As vias

  • P g i n a | 19

    a prtica do anacronismo na histria, mas no um anacronismo irresponsvel e

    carregado de preconceitos, e sim um anacronismo controlado (LORAUX, 2006, p.

    61). Com isso, ela quer dizer que o historiador ao utilizar-se do anacronismo deve

    entender os riscos a que se expe e que deve ser feito sempre com o intuito de percorrer

    um caminho de ida ao passado e retorno ao presente. Em suas palavras: refletirei sobre

    o mtodo que consiste em ir para o passado com questes do presente para voltar ao

    presente, com o lastro do que se compreendeu do passado (LORAUX, 2006, p. 61).

    Em suma, Loraux traz para o cenrio da discusso sobre anlise textual em Histria um

    ingrediente que a maioria dos historiadores jogou fora, ou pelo menos fingiam assim,

    que a utilizao de conceitos modernos no estudo da Antiguidade.

    Pensando nessa perspectiva, o nosso intuito irmos ao passado e buscarmos

    termos e expresses enunciadoras de identidade, tais como: ns somos, nossa

    religio, etc. Defendemos a opinio de que o substantivo portanto, aquilo que d

    nome s coisas ou seres, que designa a substncia de algo identidade fornece-nos

    muitos subsdios para entendermos os cristos na Antiguidade e que por no haver um

    termo especfico que possa se equiparar identidade, nos apoiaremos em expresses

    que a denotam.

    Os estudos mais recentes, ao trabalhar com identidade no Mundo Antigo,

    enfatizam sua pluralidade. No poderia ser diferente com o cristianismo primitivo

    (CHEVITARES & CORNELLI, 2003, p. 13). Uma viso identitria monoltica do

    cristianismo no mais possvel. As vrias comunidades primitivas crists, cada uma

    com suas especificidades, comprovam isso. Tal aspecto pode ser observado desde as

    suas origens no I sculo d.C. com as diferentes comunidades paulinas, por exemplo.

    Apesar desse multifacetamento identitrio, a tica de Justino permite ver apenas um

    cristianismo: o seu (o que comum na maioria dos autores cristos). Apesar de ele citar

    e aludir a outros tipos de cristos (JUSTINO. I Apologia, IV, 7; VII, 1, 2; XVI, 8), o

    nosso objetivo trabalhar aquilo que o prprio Justino entende como verdadeiros

    cristos. Pois, como ele mesmo diz:

    transversais de Nicole Loraux: uma helenista na encruzilhada das cincias sociais). O artigo de Nicole

    Loraux acompanhado por outros trs que trabalham com o mesmo tema do anacronismo na histria. So

    eles: Sur lanachronisme control (Sobre o anacronismo controlado), da historiadora Sophie Wahnich;

    Un anachronisme-pratique (Uma prtica do anacronismo), do professor de histria e geografia Jean-

    Marie Baldner; e, De lusage raisonn de lanachronisme (Sobre o uso racional do anacronismo), do

    professor Franois Dosse.

  • P g i n a | 20

    Aqueles, porm, que se v que no vivem como ele (Cristo) ensinou,

    sejam declarados como no cristos, por mais que repitam com a

    lngua os ensinamentos de Cristo, pois ele disse que se salvariam, no

    os que apenas falassem, mas que tambm praticassem as obras

    (JUSTINO. I Apologia, XVI, 8).

    Devido a esse fator, trabalhamos com identidade crist de forma unitria.

    No obstante, estamos cnscios da multiplicidade de cristianismos no II sculo d.C.

    Justino possui uma proposta de ortodoxia. Ele tem em mente um cristo ideal, da sua

    viso de um cristianismo.

    Para finalizarmos esse ponto, pensamos o termo identidade no Mundo

    Antigo conforme os parmetros fornecidos por Kathryn Woodward:

    A identidade nos d uma ideia de quem ns somos e de como ns nos

    relacionamos com os outros e com o mundo no qual vivemos. A

    identidade marca as maneiras pelas quais ns nos reconhecemos

    dentro do grupo que compartilha uma mesma posio, e as maneiras

    nas quais ns somos diferentes daqueles que no a compartilham.

    Frequentemente, identidade melhor definida pela diferena, ou seja,

    por aquilo que ela no . Identidades podem ser marcadas pela

    polarizao, por exemplo, nas formas mais extremas de conflito

    nacional e tnico, e pela marca de incluso e excluso - os de dentro e

    os de fora, ns e eles. (WOODWARD, 1997, p. 1, 2).

    Como trabalhamos com identidade cultural, mais propriamente com a

    identidade de um grupo os cristos pensamos em sua especificidade tanto em

    relao a sua semelhana dentro do prprio grupo (pertencimento, o auto-

    reconhecimento dos de dentro do grupo) quanto na diferena (alteridade, em relao ao

    outro, os de fora). Ou seja, para investigarmos aquilo que o cristianismo era para

    Justino, entendemos que necessrio analisarmos aquilo que ele no era dentro de suas

    prprias particularidades.

    Em sntese, identidade envolve ideias de fronteiras, igualdade e diferena,

    de continuidade, talvez de um grau de homogeneidade, e de reconhecimento de si e dos

    outros (LIEU, 2004, p. 12). Ainda assim necessrio atentar para o fato de que se nas

    sociedades hodiernas as identidades culturais mudam constante e rapidamente o mesmo

    no ocorre na Antiguidade (HALL, 2006, p. 14). Assim, o nosso conceito de identidade

    abarca tambm alteraes, mas estas so mais lentas. No obstante, tais alteraes no

    deixam de ser visveis e passveis de anlise.

    A definio de cultura que mais se adqua ao presente trabalho aquela

    proposta por Marshall David Sahlins, em sua obra Ilhas de Histria: a cultura

  • P g i n a | 21

    justamente a organizao da situao atual em termos do passado (SAHLINS, 2003, p.

    192). Por situao atual compreendemos o sculo II d.C. e o passado refere-se ao

    passado do prprio Justino, lembrando aqui da afirmao de Andr L. Chevitarese de

    que Este passado no deve ser visto como um elemento esttico, mas em constante

    mudana (CHEVITARESE, 2003, p. 14). Aqui devemos precisar dois pontos

    fundamentais. O primeiro que a cada vez que voltamos a um determinado passado,

    podemos l-lo de forma diferente. O segundo pode ser visto na relao/interao

    tradio dos antigos e as novas ideias. Admitimos que os nomes antigos, que esto na

    boca de todos, adquirem novas conotaes, muito distantes de seus sentidos originais

    (SAHLINS, 2003, p. 10). Porm, isso est longe de ser uma regra, pois, muitas das

    vezes, as palavras agregam novos significados aos antigos, ao invs de simplesmente

    desprezar os antigos. Como o prprio Sahlins afirma: As coisas devem preservar

    alguma identidade atravs das mudanas ou o mundo seria um hospcio (SAHLINS,

    2003, p. 1990).

    Quanto ao nosso mtodo de anlise, ele se aproxima do contextualismo

    lingustico proposto pela escola de Cambridge. Tal proposta nos fornece algumas regras

    hermenuticas fundamentais para o bom xito de nossa pesquisa. Um dos maiores

    representantes dessa escola o historiador britnico Quentin Skinner. A pergunta de

    Skinner reflete bem a preocupao central de sua proposta: Quais so os

    procedimentos adequados a escolher na tentativa de chegar a uma compreenso da

    obra? (SKINNER, 1988, p. 29). Seu mtodo baseia-se em estudar um texto tentando

    descobrir que atos lingusticos esto nele presentes, tentando perceber sua coerncia

    interna, sua relao com outros textos e com as condies sociais que o geraram

    (SKINNER, 2000, p. 331-332).

    Os atos lingusticos a que se refere Skinner, ou tambm conhecidos como

    aes do discurso (Speech Acts), fazem parte do carter performtico das expresses

    conforme defendido por John Langshaw Austin e John Searle (apud: STOKES, 2009, p.

    23; cf. tambm SOUZA, 2008, p. 7). Antes deles, Ludwig Joseph Johann Wittgenstein13

    j afirmava que as palavras tambm so atos (WITTGENSTEIN, 1958, p. 146e).

    13

    Costuma-se dividir Wittgenstein em duas fases: o primeiro Wittgenstein e o segundo Wittgenstein. Esta

    ltima expresso pretende caracterizar a mudana de pensamento de Wittgenstein em sua obra

    Investigaes Filosficas em oposio ao seu Tractatus Logico-Philosophicus. Atualmente, tem-se

    observado uma certa continuidade em suas obras, fazendo com que essa expresso no seja um tanto

    quanto apropriada (SPANIOL, 1989, p. 14).

  • P g i n a | 22

    Segundo Austin, os enunciados podem realizar atos locucionrios14

    , ilocucionrios e

    perlocucionrios (AUSTIN, 1962, p. 94-107). Pode-se dizer, a grosso modo, que por

    locucionrio15

    , ele se refira ao simples ato de enunciar; por ilocucionrio ao ato

    realizado ao enunciar (no momento em que se anuncia); e por perlocucionrio ao ato

    realizado por enunciar (os efeitos de anunciar). Em um retrospecto de sua teoria, ele

    explica:

    Primeiramente, distinguimos um conjunto de coisas que fazemos ao

    dizer algo, e que conclumos que por dizer ns realizamos um ato

    locucionrio, que toscamente equivalente a proferir um certo

    enunciado com um certo sentido ou referncia, que novamente est de

    forma tosca equivalente significado no sentido tradicional. Em

    segundo lugar, ns dissemos que tambm realizamos atos

    ilocucionrios tais como informar, ordenar, garantir, aceitar, etc., isto

    , expresses que tem uma certa fora (convencional). Em ltimo

    lugar, ns podemos tambm realizar atos perlocucionrios: o que ns

    trazemos sobre ou realizamos por dizer algo, tal como convencer,

    persuadir, dissuadir, e mesmo, dizer, surpreender ou enganar

    (AUSTIN, 1962, p. 108).

    Parece haver uma certa ligao com o prprio discurso filosfico. O ato

    locutivo est ligado ao mero ato de dizer, falar, expressar alguma opinio (). O

    ilocutivo est vinculado ao ato de argumentar, protestar, prximo de demonstrar

    (= conhecimento verdadeiro; = demonstrao, prova;

    = verdade). O perlocutivo, por sua vez, refere-se mais ao aspecto de

    persuaso, convencimento. Austin esclarece que: Ns podemos semelhantemente

    distinguir o ato locucionrio de ele disse que [...] (sic) do ato ilocucionrio ele

    argumentou que [...] (sic) e o ato perlocucionrio ele me convenceu que [...] (sic)

    (AUSTIN, 1962, p. 102).

    Skinner centra-se nos atos ilocucionrios, pois para ele a est a inteno do

    autor. Mas, por qu a inteno do autor est no ato ilocucionrio e no no

    perlocucionrio ou no locucionrio? O ato perlocucionrio no d para ser detectado na

    obra uma vez que ele determinado pela ao do ouvinte, no caso, do destinatrio da

    obra. O ato locucionrio simplesmente o ato de dizer algo, o que no contribui em

    14

    Os termos locucionrio, ilocucionrio e perlocucionrio so as tradues dos termos locutionary,

    ilocutionary e perlocutionary, tirados da obra How Do Things With The Words, de Austin. Mas, h

    tradutores que trazem: locutivo, ilocutivo e perlocutivo (veja, por exemplo, a traduo destes termos feita

    por Guilherme Fialho Sena de Souza Pereira, in: STOKES, 2009:, p. 23). 15

    Existem outras dimenses de significao destes termos que importante salientar. Primeiramente, o

    ato locucionrio refere-se tambm a um simples enunciado que possui sentido comum de significado,

    inexiste nele o poder de argumentao. Em segundo lugar, importante salientar ainda que uma

    expresso pode conter todos os atos de fala simultaneamente (STOKES, 2009, p. 23).

  • P g i n a | 23

    nada para entender a inteno do autor e, por sua vez, o significado da obra. Deste

    modo, no ato ilocucionrio onde podemos localizar tais questes. Nele, o ato realizado

    est vinculado com a inteno do autor, no qual o autor realiza uma ao com inteno.

    De uma forma geral, a anlise de Skinner abrange quatro instncias: os atos

    lingusticos, a coerncia interna do texto, a relao intertextual e com o contexto social

    (SKINNER, 2000, p. 330). Ele enfatiza:

    Meu interesse fundamental pelos atos lingusticos, pelos contextos

    lingusticos e pela intertextualidade. Todo meu trabalho intertextual,

    isto , trata-se de saber como e at que ponto o entendimento de um

    texto pressupe o entendimento de sua relao com outros textos.

    (SKINNER, 2000, p. 330).

    A importncia de se buscar o contexto lingustico pode ser vista na

    explanao proposta por Ricardo Silva s ideias de John Dunn, em seu artigo The

    Identity of the History of Ideas, na revista Philosophy:

    A reconstituio do contexto lingustico de um autor relevante na

    medida em que nos ajuda a recuperar a inteno do autor ao efetuar

    determinada ao. Se escrever fazer coisas com palavras, o

    objetivo central do historiador revelar o que um determinado autor

    estava fazendo ao escrever o que escreveu (DUNN, 1968, p. 93,

    apud: SILVA, 2010, p. 303).

    A busca pela inteno do autor ponto fundamental para Skinner. Enquanto

    uns promulgam a morte do autor, outros acreditam que o significado de uma obra esteja

    na inteno do autor, mas que seja impossvel recuper-lo, e h ainda outros para os

    quais o significado esteja na recepo da obra (SKINNER, 2009, p. 78). Para Skinner,

    tanto o significado est na inteno do autor (portanto, no presente da prpria obra)

    quanto possvel recuper-lo. Uma das mais fortes crticas feitas a Skinner

    exatamente neste quesito. Sua resposta que para ele existe uma diferena entre

    motivos e intenes.

    Na opinio de Skinner, os motivos de um escritor algo que existe antes da

    apario da obra e est ligada a ela. As intenes esto vinculadas ao projeto de criar

    uma obra, s caractersticas da obra em si. Os motivos so externos ao texto, enquanto

    as intenes so internas. Os motivos envolvem aspectos psicolgicos, difceis de serem

    detectados e so irrelevantes para a atividade de interpretar os significados dos textos

    (SKINNER, 2009, p. 88). Por isso, Skinner foca sua busca do significado nas intenes

    do autor e no nos motivos (SKINNER, 2009, p. 87).

  • P g i n a | 24

    Skinner, em sua obra Visions Politics: Volume I: Regarding Method, mais

    precisamente no captulo 5, intitulado Motives, Inteciones and Interpretacion, divide os

    significados de um texto em trs. O primeiro o significado textual, aquele que busca o

    significado das palavras no texto e no se ocupa com a inteno do autor. O significado

    2 referenciado como aquele que dado na recepo do texto, ou seja, a resposta do

    leitor, ou a interpretao que o leitor d a um determinado texto. Aqui temos um

    significado que no fixo, pois cada leitor vai interpretar o texto de um jeito particular.

    O significado 3 aquele que se ocupa com o que quer dizer o escritor com o que disse

    em um determinado texto. Skinner centra sua argumentao neste significado,

    apontando que possvel recuper-lo (SKINNER, 2009, p. 78-81).

    Em suma, para Skinner as intenes do autor, portanto, o significado de uma

    obra, encontram-se na fora ilocucionrio existente no texto. Encontrar a inteno do

    autor equivale a ser capaz de dizer o que deu significado a obra como atacar a, ou

    defender-se de, criticar a, ou contribuir para alguma atitude ou linha de argumentao

    concreta (SKINNER, 2009, p. 11, 15).

    Ele ainda esclarece que a compreenso do ato ilocucionrio realizado por

    um falante seria equivalente a compreender suas intenes primrias quando profere o

    enunciado (SKINNER, 2009, p. 12). Ele enfatiza: Quando proferimos um enunciado

    com significado, ao mesmo tempo realizamos com xito atos ilocucionrios como

    prometer, avisar, suplicar e informar (SKINNER, 2009, p. 11). Na prtica, ento,

    localizar os atos ilocucionrios em um texto compreende encontrarmos termos e

    enunciamos que expressem crtica a algo ou algum, defesa de alguma ideia, promessa,

    aviso, splica e informao, etc.

    Propomos especificamente analisar uma questo identitria em Justino. Essa

    no , aparentemente, a preocupao primria dele, mas ele acaba por faz-lo ao buscar

    defender os cristos. Por isso, o nosso intento identificar o significado de ser cristo

    em Justino. importante a observao feita pelo professor de sociologia e cincia

    poltica Ricardo Silva, da Universidade Federal de Santa Catarina, ao analisar a

    dimenso metodolgica da obra de Skinner, que nos serve de advertncia e

    orientao:

    Evitarei o impulso de avaliar o mtodo de Skinner luz de suas

    realizaes prticas como historiador por considerar que qualquer obra

    substantiva complexa realiza, ao mesmo tempo, mais e menos do que

    prescreve o mtodo que a inspirou. Realiza mais porque h fatores no

    controlados pelas prescries metodolgicas que influenciam o

  • P g i n a | 25

    resultado de uma investigao, tais como o acesso a recursos materiais

    e institucionais, a sorte na descoberta de documentos relevantes, ou

    caractersticas idiossincrticas, como a energia individual e a

    criatividade dos pesquisadores; e realiza menos porque toda

    metodologia exagera em suas prescries, sugerindo um ideal

    procedimental que jamais se efetiva integralmente. (SILVA, 2010, p.

    300).

    Para as obras consideradas para os evanglicos como apcrifas e para os

    catlicos como deuterocannicas, tais como: I Macabeus e II Macabeus, utilizamos a

    Bblia Catlica da Edio Paulina, traduo da Vulgata pelo Padre Matos Soares.

    Toda citao de idioma estrangeiro, caso no haja indicao em contrrio,

    traduo nossa. A verso da Bblia utilizada em portugus a Corrigida e Revisada

    Fiel ao Texto Original, da Sociedade Bblica Trinitariana do Brasil, tambm conhecida

    pela sigla: SBTB, pois, acreditamos que uma das melhores tradues atualmente da

    obra em questo. A verso grega do Novo Testamento que utilizamos a conhecida

    como Textus Receptus (texto recebido), produzido tambm, pela SBTB, e desenvolvida

    a partir da verso feita por Theodoro Beza de 1598. Utilizamos a Septuaginta, verso

    grega do Antigo Testamento, editada em 1856 por Constantino Von Tischendorf. Para o

    texto em latim da Bblia, utilizamos a Vulgata Clementina editada por Michaele

    Tweedale e aprovada pela Conferncia dos bispos da Inglaterra e de Gales em 2006.

    A I Apologia utilizada nas verses em portugus e em ingls. A primeira

    traduzida por Ivo Storniolo e Euclides M. Balancin e faz parte da coleo Patrstica da

    editora Paulus. A verso inglesa traduzida e editada por Alexander Roberts e James

    Donaldson, e consta de uma obra maior intitulada The Anti-Nicene Fathers. O texto no

    original grego consta da coleo Patrologiae Cursus Completus, Series Graeca,

    Volume 6, disponvel no site da Documenta Catholica Omnia: http://www.documentaca

    tholicaomnia.eu/20vs/103_migne_gm/0100-0160,_Iustinus,_Apologia_Prima_%28MP

    bG_006_0327_0440%29,_GM.pdf, editado por Jacques Paul Migne. uma edio

    bilngue com o texto grego em uma coluna e uma traduo latina em outra. O texto

    grego baseado no Codex Parisinus graecus 450.

    Com o intuito de alcanarmos um melhor entendimento do que seja a

    identidade crist especificamente para Justino, a presente Dissertao divide-se em trs

    captulos. O primeiro captulo tem como objetivo analisar a relao de interculturao

    entre cristos e os gentios. Por este termo, referimo-nos especificamente ao intercmbio

    entre culturas ocasionado devido ao dinamismo cultural existente nas culturas do

    Mediterrneo. Sobre o termo, Raul Fornet-Betancourt nos esclarece que estes

  • P g i n a | 26

    intercmbios culturais possuem duas caractersticas: Pressupe o fim do trnsito de

    mo nica do Ocidente-Oriente/Sul e (a) substituio da relao hegemnica por

    relaes bilaterais e multilaterais (FURNET-BETANCOURT, 2007, p. 5). Tais

    aspectos so importantes para entender que as relaes de interculturao ocorreram por

    troca e no meramente por influncia de uma cultura sobre a outra (CHEVITARESE,

    2003, p. 12, 13).

    Neste captulo, apontamos e comentamos alguns fatores que possibilitaram

    essa interao cultural. No segundo captulo, focamos em informaes bsicas e

    fundamentais sobre a nossa fonte. Perpassamos nele assuntos relacionados autoria, aos

    manuscritos de que dispomos, datao, gnero, as fontes utilizadas por Justino na

    composio de sua I Apologia e, por ltimo, a contextualizao das perseguies que

    estimularam a produo da obra. No terceiro captulo, nos concentramos na anlise da

    obra, buscando por expresses e enunciados que possam nos revelar o que pensava

    Justino sobre o que era ser cristo.

    Em suma, o primeiro captulo centra-se no contexto das interaes culturais;

    o segundo, em aspectos relevantes sobre a obra; e, o terceiro, na obra propriamente dita,

    com a inteno de buscar, no prprio texto, a identidade crist conforme vista por

    Justino. A partir do texto (nossa fonte) buscamos o contexto. O texto nos revela que os

    cristos gentios so em maior nmero que os cristos judeus (JUSTINO. I Apologia,

    LIII, 3). Isto nos fala de interao cultural. Lembremos que o texto endereado

    Ao Imperador Tito lio Adriano Antonino Pio Csar Augusto, ao seu

    filho Verssimo, filsofo, e a Lcio, filho natural do Csar, filsofo e

    filho adotivo de Pio, amante do saber, ao sacro Senado e a todo o povo

    romano (JUSTINO. I Apologia, I,1).

    O que nos mostra o seu contexto histrico e datao aproximada. Ainda o

    texto nos fornece dados sobre o gnero e fontes utilizadas pelo autor (sobre o gnero cf.:

    JUSTINO. I Apologia, I, 1; LXVIII, 3; sobre as fontes: JUSTINO. I Apologia. XXII, 6;

    XXXII, 1; LIX, 2-4; LXIV, 2; etc.). O texto traz expresses com fora identitria, tais

    como: Eu, um deles, Somos vossos melhores ajudantes, Que no somos ateus,

    Sobre a temperana, Sobre amar a todos, nossa religio, Sobre sermos paciente,

    Sobre no jurar nunca, Sobre adorar unicamente a Deus, Quanto a tributos e

    contribuies, Como dissemos antes, Explicaremos agora, Do que foi dito at

    aqui, De nossa parte, entre outros (JUSTINO. I Apologia, I, 1, XII, 1; XIII, 1; XV, 1-

    9; XVI, 1, 5-6; XVII, 1, LVIII, 1; LXI, 1; LXIV, 1; LXV, 1). Elas esto vinculadas ao

  • P g i n a | 27

    propsito de demonstrar quem so os cristos para que os magistrados romanos no os

    sentenciem com pena de morte, como contra inimigos (JUSTINO. I Apologia,

    LXVIII, 1).

    Assim, trabalhamos o terceiro captulo de forma a abranger questes como a

    estrutura da I Apologia, o papel das profecias do Antigo Testamento, como Justino via

    seu Mestre Jesus, sua noo de cristianismo enquanto raa, suas influncias advindas do

    estoicismo e do platonismo, sua viso sobre aqueles que no eram cristos e aqueles que

    se diziam cristos e, em sua concepo, no eram (os herticos), a inteno do autor a

    partir dos atos ilocucionrios, e, por fim, tendo com base estes temas analisados,

    passamos a expor, mais diretamente, aquilo que Justino entendia como ser cristo.

    A construo de todos os captulos foi pautada pela busca de entendimento

    do texto e, da inteno do autor em relao identidade crist, no somente pelo texto,

    mas pelo seu contexto. Trabalhamos a seguir com as interculturaes entre os cristos e

    os gentios.

  • P g i n a | 28

    CAPTULO 1

    A RELAO DE INTERCULTURAO ENTRE OS CRISTOS E

    OS GENTIOS: ASPECTOS QUE POSSIBILITARAM A

    CONSTRUO DE IDENTIDADES CRISTS

    Quando So Paulo e seus sucessores recorrem a formas filosficas

    gregas, antes de tudo para expressar, cmoda e eficazmente, uma

    mensagem cujo corao no est por essa razo alterado; como teriam

    podido ser ouvidos pelos gregos que eles queriam tocar a no ser

    falando a sua linguagem, manejando os esquemas mentais que lhes

    eram familiares? (PPIN, 1979, p. 180, apud: SACHOT, 2004, p. 89).

    Na base da identidade crist, na tica de Justino, esto as relaes

    interculturais entre cristos, judeus e os povos politestas. Essas relaes foram

    proporcionadas por alguns elementos/fatores culturais que foram fundamentais para o

    desenvolvimento da ideia de uma identidade crist unitria. Entendemos por esquemas

    mentais esses elementos culturais pertencentes a estes povos que, graas plasticidade

    prpria do cristianismo, pde faz-lo chegar at os nossos dias. A maneira como o

    cristianismo adaptou, atualizou e ressignificou tais elementos, em uma relao de

    diacronia e sincronia, foi deveras peculiar. Assim, o nosso objetivo no presente captulo

    apresentar e analisar alguns desses elementos. Perguntamos: quais os fatores que

    possibilitaram a interao cultural entre os gregos e cristos? Qual foi a importncia

    desses fatores para a construo da identidade crist tal qual podemos detectar no sculo

    II d.C. na I Apologia de Justino?

    Estes elementos serviram-se de uma relao de reciprocidade entre os

    cristos e os povos politestas. Se por um lado, eles foram fundamentais para a

    emergncia, a sobrevivncia e a permanncia do cristianismo; em contrapartida, para os

  • P g i n a | 29

    povos helnicos, o cristianismo serviu como uma resposta existencial aos problemas e

    anseios que lhes eram contemporneos. Arnold J. Toynbee salienta que:

    Quando a Igreja crist adotou as artes visuais helnicas, as lnguas

    gregas e latina, a filosofia helnica e as instituies polticas romanas

    como meio de se colocar em contato com os helenos passveis de

    converso, no s conseguiu obter meios eficientes de comunicao,

    como tambm os revigorou insuflando nova vida crist nas ressecadas

    veias helnicas (TOYNBEE, 1963, p. 207).

    Com o objetivo de responder s questes acima, elencamos sete fatores que

    foram essenciais para a formao da identidade crist que encontram correspondncia

    na I Apologia de Justino medida que fazem parte da constituio daqueles a quem ele

    se declara eu, um deles (JUSTINO. I Apologia, I, 1). Os fatores so: a utilizao do

    idioma grego tanto na escrita quanto na fala; a utilizao do estilo grego nos escritos e

    pregaes; a utilizao da ideia do Logos; a identificao dos cristos pelos gregos com

    a sua prpria cultura; as sinagogas judaicas; os martrios; e a no necessidade da guarda

    das leis mosaicas por parte dos cristos-gentios.

    1.1. A utilizao do idioma grego tanto na escrita quanto na fala

    Sem dvida alguma, a utilizao do idioma grego foi um forte fator para a

    melhor aceitao da mensagem crist (TOYNBEE, 1963, p. 207). Como alcanar mais

    adeptos falando em hebraico ou aramaico quando a maioria dos povos falava o koin16

    ?

    Certamente seria infrutfero. Ao falar da glossolalia (o dom de falar em outras lnguas),

    Paulo exortou os fiis de Corinto: Assim tambm vs, se com a lngua no

    pronunciardes palavras bem inteligveis, como se entender o que se diz? porque

    estareis como que falando ao ar (I Corntios 14:9). E mais frente: Mas, se eu ignorar

    o sentido da voz, serei brbaro para aquele a quem falo, e o que fala ser brbaro para

    mim (I Corntios 14:11). Fazer-se entendido era fundamental, j que os cristos tinham

    o objetivo de que outros povos viessem a conhecer sua mensagem: Est escrito na lei:

    Por gente de outras lnguas, e por outros lbios, falarei a este povo (I Corntios 14:21).

    Vrias so as profecias do Antigo Testamento que os incentivavam a pregar para os

    16

    Os estudiosos dividem a lngua grega em cinco estgios. O primeiro, vai de 1500 a.C. a 900 a.C.,

    conhecido como perodo formativo; o segundo, vai de 900 a.C. a 330 a.C., como clssico; o terceiro, vai

    de 330 a.C. a 330 d.C., como koin; o quarto, vai de 330 d.C. a 1453 d.C., de bizantino; e o quinto,

    chamado de moderno, e vai de 1453 d.C. at os dias atuais (REGA, 1991, p. 1).

  • P g i n a | 30

    outros povos que no os judeus. Justino chega a ressaltar que os cristos-gentios seriam

    em maior nmero que os cristos-judeus:

    Citarei para vs a profecia que prediz que os crentes sero em maior

    nmero entre aqueles que procedem da gentilidade do que entre os

    judeus e samaritanos. Diz assim: Alegra-te, estril, tu que no

    concebes; rompe e grita de jbilo, tu que no sofres dores de parto,

    porque so mais numerosos os filhos da abandonada do que daquela

    que tem marido (JUSTINO. I Apologia, LIII, 5).

    A citao que Justino faz acima retirada do livro do profeta Isaas (mais

    especificamente Isaas 54:1). Tais citaes eram interpretadas para legitimar as

    evangelizaes dos no judeus. A maioria so citaes diretas da Septuaginta, uma

    verso grega das Escrituras Sagradas dos judeus17

    , que, por isso, acabou sendo

    conhecida como a Bblia dos cristos (SCHOLZ, 2006, p. 15). Tudo era feito de

    forma a facilitar a recepo da mensagem por parte dos povos de fala grega. Graas ao

    processo de helenizao realizado por Alexandre, o Grande e seus generais isso se

    tornou possvel18

    (JAEGER, 1965, p. 12), pois a maioria dos povos falava a lngua

    grega. Os frutos dessa estratgia eram perceptveis j no segundo sculo. Justino declara

    que somos mais numerosos e mais sinceros cristos do que os judeus e os samaritanos

    (JUSTINO. I Apologia, LIII, 3).

    importante observar que todo o Novo Testamento foi escrito em grego: do

    Evangelho Segundo Mateus ao Apocalipse. O grego utilizado o que era falado pela

    maioria: o koin. Os livros atribudos ao evangelista Lucas19

    (um evangelho e os Atos

    dos Apstolos), apesar de tambm utilizar basicamente o Koin, so os nicos que

    demonstram possuir uma riqueza lingustica incomum para o Novo Testamento. Seu

    evangelho pode ser dividido em trs sees: o prefcio do evangelho lucano uma

    construo feita no estilo clssico grego; o restante do captulo 1 e o captulo 2 so

    17

    O Velho Testamento hebraico com alguns acrscimos. Alm do Canon hebraico, a Septuaginta possui I

    Esdras (o Esdras que consta na nossa Bblia , na Septuaginta, 2 Esdras e, refere-se aos nossos livros de

    Esdras e Neemias); Judite; Tobias; I, II, III e IV Macabeus; Odes (cnticos); Sabedoria de Salomo;

    Eclesistico (ou Sircida); Salmos de Salomo; Baruque; Carta de Jeremias (Baruque 6, nas Bblias

    catlicas); e acrscimos ao livro de Daniel: uma histria de Suzana (captulo 13 nas Bblias catlicas) e

    Bel e o Drago (captulo 14 nas Bblias catlicas). Justino faz uma aluso Septuaginta em sua I

    Apologia XXXI, 2-5. 18

    No podemos esquecer as contribuies proporcionadas pelo prprio Imprio Romano. Como disse

    Richard Hingley: Roma atuou como um catalizador nas transformaes que ocorreram pela Pennsula

    Itlica e por todo imprio (HINGLEY, 2005, p. 55). 19

    Lucas possivelmente o nico autor no judeu. Tudo leva a crer que suas origens so gregas

    (SANTOS, 2008, p. 51; Colossenses 4:11-14).

  • P g i n a | 31

    caracterizados por um formato hebraico20

    ; a partir do captulo 3 em diante, utilizam um

    grego helenstico ao estilo da Septuaginta (MORRIS, 1983, p. 25).

    Vrios nomes no Novo Testamento so transcritos, quando no traduzidos,

    para o grego. o caso de Mateus, Marcos, Joo, etc. Dois exemplos interessantes so os

    nomes de Paulo () e Jesus (). O primeiro chamava-se anteriormente

    Saulo, do nome hebraico Saul (Atos dos Apstolos 13:9); o segundo traduo do termo

    hebraico Iehoshua, que quer dizer aquele que salva ou Jeov salvao (VINE,

    2002, p. 728; DOUGLAS, 1995, p. 869). O nome prprio no idioma grego facilita a

    comunicao. O nome hoshua 21

    um termo brbaro aos ouvidos e olhos dos gregos,

    mas (Iesous22) soa melhor na audio e mais inteligvel na viso deles. A

    identificao mais imediata.

    Seja na fala ou na escrita, os gregos estavam bem servidos com a mensagem

    do Evangelho. Era na sua lngua que ouviam as pregaes daqueles judeus que estavam

    espalhados pelos vrios territrios. Era na sua lngua que liam os escritos cristos. Tudo

    era feito de forma a no dificultar a pregao do (evangelho, boa nova).

    1.2. A apropriao do estilo grego nos escritos e pregaes

    Toda literatura crist antiga possui uma forte herana da cultura grega, seja

    na forma ou no contedo. O Novo Testamento formado basicamente por evangelhos,

    uma histria (claro, nos moldes cristos com heranas helensticas) e cartas. Destes trs,

    o nico que uma criao nova dos prprios escritores cristos so os evangelhos.

    Gnther Bornikamm declara: O fato que os Evangelhos, no s os trs primeiros,

    mas em maior grau o quarto, so nicos na literatura antiga (BORNKAMM, 1981, p.

    35). Gerd Theissen v este gnero como uma variante do bios (THEISSEN, 2007, p.

    13). Geza Vermes, um dos grandes eruditos contemporneos que pesquisam sobre o

    Cristianismo Primitivo, demonstra a mesma ideia ao comentar criticamente uma citao

    de Bultmann quanto ao desinteresse biogrfico dos evangelistas:

    20

    Como, por exemplo, o uso frequente da conjuno e (FILHO, 2003, p. 81-90; compare, por exemplo,

    Gnesis 1:2-31 e Lucas 1:5-8; 10-12; 14, 16-26; 28-36). 21

    Jesus (o mesmo que Josu) em caracteres hebraicos. utilizada aqui para se ter uma ideia da

    complicao visual que seria se fossem utilizados os caracteres hebraicos para representar o nome de

    Jesus. Se apenas um nome j seria problemtico, imagine todo um texto com estes caracteres. A

    transcrio : Iehoshua. 22

    Transcrio do nome Jesus do hebraico para o grego.

  • P g i n a | 32

    Se os evangelistas tivessem pretendido relatar, como afirmam

    Bultmann e seus seguidores, no a vida, as ideias e as aspiraes de

    Jesus, mas a mensagem doutrinria correspondente s necessidades

    espirituais e organizacionais da igreja primitiva, teriam sido mais bem

    orientados se adotassem a forma literria mais adequada de cartas,

    panfletos ou sermes, em vez de escrever uma falsa biografia

    (VERMES, 2006, p. 178).

    Josh McDowell, apoiando-se numa citao de Stanley N. Grundry, defende

    veementemente, em seu livro Evidncias que Exige um Veredicto, que os evangelistas

    tiveram como objetivo escrever uma Vita de Jesus (GRUNDRY, 1966, apud:

    MCDOWELL, 1997, p. 370). Vrios outros autores discordam dessa definio. o

    caso, por exemplo, de Dominic Crossan que afirma: Os Evangelhos no so nem

    histrias nem biografias, mesmo dentro das antigas tolerncias para esses gneros

    (CROSSAN, 1995, p. 17). E conclui que: Cada um o que foi por fim chamado um

    Evangelho ou Boas Novas (CROSSAN, 1995, p. 17). Gnther Bornkamm, na mesma

    linha de pensamento de Crossan, afirma que no possvel classificar os evangelhos

    entre as grandes obras de historiadores gregos e romanos, como Tucdides, Polbio e

    Tcito, nem entre biografias contemporneas como As Vidas dos Csares de Suetnio...

    e as apreciadas biografias de Plutarco (BORNKAMM, 1981, p. 35).

    A professora de teologia da PUC-Rio, Maria Clara Lucchetti Bingemer,

    tambm entende que Os Evangelhos no so biografia (BINGEMER, 2005, p. 21).

    Segundo ela, o que os escritores neotestamentrios fazem oferecer sua interpretao

    de f dos fatos histricos-transcendentes que marcam a vida, morte e ressurreio de

    Jesus (BINGEMER, 2005, p. 21). J o holands Rochus Zuurmond, professor de

    Teologia Bblica na Universidade Livre de Amsterdam, mais categrico: O que os

    Evangelhos trazem certamente no uma biografia de Jesus, e mesmo da antiga Vita

    apenas alguns elementos formais foram adotados (ZUURMOND, 1998, p. 70).

    John P. Meier afirma que no era a inteno dos evangelistas

    proporcionarem uma narrativa completa ou mesmo um sumrio da vida de Jesus

    (MEIER, 1993, p. 50), e ironiza: reconhecemos a impossibilidade de escrever uma

    biografia (no sentido moderno) de um homem que morreu na casa dos trinta anos e de

    quem conhecemos, no mximo, acontecimentos em trs ou quatro anos de sua vida

    (MEIER, 1993, p. 50). Mesmo o telogo F. F. Bruce concorda que, ao menos no sentido

    moderno, os Evangelhos no podem ser considerados biografias devido ao seu contedo

    estar centralizado apenas no perodo de seu ministrio, isto , nos ltimos anos de vida

  • P g i n a | 33

    de Jesus (BRUCE, 1990, p. 15). Bornkamm mais categrico e detalhista em sua

    argumentao:

    O que mais importante e surpreendente que os Evangelhos

    mostram to pouco ou at mesmo nenhum interesse pela

    personalidade histrica do seu heri. Nada existe sobre o fundo

    social e familiar de Jesus, as experincias de sua juventude, os seus

    talentos, sua educao e desenvolvimento, o seu carter, ou mesmo

    que feio tinha (BORNKAMM, 1981, p. 35-36).

    James H. Charlesworth, professor titular de Lngua e Literatura do Novo

    Testamento, declara que no era do interesse dos evangelistas produzirem uma obra de

    teor biogrfico (CHARLESWORTH, 1992, p. 28). E o Novo Dicionrio de Teologia, ao

    se referir mais especificamente a Lucas e seu evangelho, defende que este no tinha

    nenhuma inteno de escrever uma biografia (DOUGLAS, 1995, p. 964). No obstante,

    podemos facilmente concordar com a afirmao de Frances Young de que eles (os

    evangelhos) tm analogias significativas com a literatura biogrfica do perodo, embora

    possua tambm caractersticas distintas (YOUNG, 2004, p. 9).

    O fato que os evangelhos, sendo ou no biografia, carregam em seu

    contedo e forma vrios traos do helenismo. Eles possuem no s alguns resqucios do

    gnero biogrfico, mas tambm parbolas, sentenas, narrativas, alegorias. O que se v

    neles uma variedade de gneros muito grande. coerente a afirmao de Klaus Berger

    que diz haver uma multiplicidade de gneros nos Evangelhos (BERGER, 1998, p. 5-6).

    Mais especificamente sobre o gnero biogrfico importante salientar que

    ele s recebeu o nome de biografia no final da Antiguidade, pois anteriormente os

    gregos utilizavam o termo 23

    (vida)ou seu plural (vidas) (BURKE, 1997, p.

    7). Momigliano assinala que esses termos surgiram no sculo V a.C. quando j havia

    algumas tentativas de se escrever algo como uma biografia. Porm, somente no perodo

    helenstico24

    que se teve uma noo mais exata da definio deste gnero

    (MOMIGLIANO, 1971, p. 12).

    Para Momigliano, a pr-histria do gnero biogrfico pode ser reconhecida

    em outros gneros com teor biogrfico. Ele diz: inclino-me a considerar as anedotas, as

    colees de ditos, cartas avulsas ou agrupadas, e os discursos apologticos como os

    23

    No mundo romano, o seu correspondente latino seria Vita, e seu plural, Vitae. 24

    O perodo helenstico teve inicio no sculo IV a.C com as conquistas de Alexandre Magno. Claude

    Moss aponta que O Grego... tornou-se a lngua oficial das chancelarias reais. Assim a cultura grega

    espalhou-se pelo Mediterrneo (MOSS, 2004, p. 160). Porm, adverte para o fato de que no que diz

    respeito aos aspectos religiosos e artsticos a dominao greco-macednica no conseguiu suprimir

    tradies j existentes no Egito, na Sria, na Palestina e na sia Menor (MOSS, 2004, p. 160).

  • P g i n a | 34

    verdadeiros antecedentes da biografia (MOMIGLIANO, 1971, p. 23). Ele salienta que

    no temos obras biogrficas tanto no VI quanto no V sculo a.C., ao contrrio das obras

    historiogrficas, onde podemos encontrar vrias. S podemos contar com os encmios

    de Iscrates e Xenofontes (Euagoras, do primeiro; e, Agesilaus, do segundo), ambos

    escritos no V sculo a.C.; uma novela filosfica (Cyropaedia) tambm de Xenofontes,

    escrita no V sculo a.C.; e um fragmento onde consta a Vida de Satirus, escrita por

    Eurpedes no III sculo a.C.. Apenas no I sculo a.C. que teremos as primeiras

    colees biogrficas25

    (MOMIGLIANO, 1971, p. 8-9).

    Se, por um lado, os evangelhos so um novo gnero mesmo comportando

    vrios outros gneros advindos ou aperfeioados pelos gregos , o gnero epistolar

    bastante comum aos escritores gregos, bem como para os romanos. O Novo Testamento

    formado, em sua maior parte, de epstolas. Dos vinte e sete livros, cerca de vinte e

    uma so nesse formato e o livro de Apocalipse possui, logo no incio do livro, sete

    cartas dirigidas s sete igrejas da sia Menor (Apocalipse 2:1-3:22). Dessas vinte e

    uma, um total de treze so atribudas ao apstolo Paulo26

    . As cartas so, assim, as

    preferncias dos autores cristos. Isto no s no primeiro sculo, mas posteriormente

    tambm. No segundo sculo encontramos a I Epstola aos Corntios, de Clemente de

    Roma. De Incio de Antioquia temos sete epstolas deste perodo dirigidas a Policarpo

    de Esmirna, aos Efsios, aos Esmirnenses, aos Filadelfos, aos Magnsios, aos Romanos

    e aos Tralianos.

    No terceiro sculo, temos II Epstola aos Corntios, I e II Epstola Sobre a

    Virgindade, todas atribudas a um Pseudo-Clemente de Roma. Constam ainda duas

    cartas que nos chegaram em fragmentos, de autoria de Dionsio de Alexandria (Carta ao

    Bispo Baslides e Carta ao Bispo Dionsio de Roma); No quarto sculo, constam mais

    de sessenta cartas atribudas a Atansio de Alexandria e vrias outras atribudas a

    Ambrsio de Milo. Ainda neste sculo, temos um fragmento de uma Carta a Aeglon

    de Cinpolis, uma Carta a Alexandre de Constantinopla, uma Carta aos Ministros da

    Igreja Catlica e uma Carta aos Sacerdotes e aos Diconos de Alexandria e Mareotis,

    de autoria de Alexandre de Alexandria, alm de centenas de outras.

    25

    Escritas em latim, por Cornlio Nepos, bigrafo contemporneo de Ccero (o ilustre pensador, filsofo,

    poltico e orador romano). 26

    Excetuando-se, claro, a epstola aos Hebreus, pois apenas Eusbio atribui a Paulo a autoria dessa

    epstola (EUSBIO. Histria Eclesistica, II, 17.12). Cabe informar ainda que a crtica moderna

    considera que das treze epstolas apenas 7 so tidas como autnticas. So elas: aos Romanos, I e II

    Corntios, aos Glatas, aos Filipenses, I Tessalonicenses e Filemon. Trs so consideradas inautnticas:

    aos Efsios, I Timteo e a epstola a Tito. E trs possuem autoria considerada discutvel. So elas: aos

    Colossenses, II Tessalonicenses e II Timteo (QUESNEL, 2008, p. 91-92).

  • P g i n a | 35

    Young, ao comentar sobre as cartas de Paulo, nos diz que sua origem est

    fincada no grande universo das literaturas da Antiguidade, e ao mesmo tempo, possui

    sua prpria especificidade (YOUNG, 2004, p. 9). Vrios eruditos trabalharam numa

    comparao das epstolas gregas e romanas com as do Novo Testamento. Klaus Berger,

    por exemplo, encontrou quatro correspondncias com as epstolas greco-romanas

    (BERGER, 1998, p. 331):

    No carter semi-oficial da carta;

    No entrelaamento da doutrina com as coisas pessoais (o mestre como

    exemplo);

    Na tendncia para colecionar cartas;

    Nos elementos da diatribe/dialxis, refletindo claramente a autoridade de quem

    fala.

    Quanto a este ltimo gnero, o autor explica:

    A diatribe/dialxis... pressupe a identidade entre o autor e quem

    dirige a conversa. A essa forte acentuao do eu do autor, que fala e

    escreve, corresponde o carter indefinido do outro, que no tem

    nome, e do qual o autor j conhece de antemo as objees. Isso supe

    que o autor se v como um guia espiritual: na sua superioridade de

    guia espiritual ele j sabe de antemo como o outro h de reagir.

    Como o outro nem precisa estar realmente presente, este gnero se

    presta particularmente bem para ser usado em forma de carta

    (BERGER, 1998: 104).

    Mais especificamente em Justino, temos dois gneros: uma apologia e um

    dilogo. Quanto ao primeiro, analisada no prximo captulo quando falamos do

    gnero da I Apologia. No caso do Dilogo com Trifo27

    , este lembra muito os dilogos

    dos filsofos gregos, principalmente, os socrticos encontrados nas obras platnicas

    (DROBNER, 2003, p. 87). Seus dilogos mais conhecidos so Apologia de Scrates28

    e

    A Repblica. No estilo da maiutica de Scrates, Justino busca parir29

    uma ideia em

    27

    H, na verdade, dois dilogos. No incio do Dilogo com Trifo, Justino conta-nos a histria de sua

    converso. Nessa histria, Justino se encontra com um certo ancio cristo. Trava-se ento um dilogo

    entre Justino e o ancio (Dialogo com Trifo. III.1-VIII.2). 28

    Como vemos no captulo 2, a Apologia de Scrates trata-se de uma obra de Plato cujo gnero a

    apologia. Porm, pode-se observar, na estrutura da obra, que ela disposta em forma de dilogo. 29

    Maiutica Gr. , do verbo que significa fazer de parteira, com o

    mesmo radical de que significa me (PEREIRA, 1998, p. 354) significa: Arte de parteira (ABBAGNANO, 2003. p. 637). Na obra de Plato, intitulada Teeteto, Scrates equipara a sua funo

    das parteiras. A tcnica utiliza-se basicamente de perguntas que levam o interlocutor a se questionar, e

  • P g i n a | 36

    Trifo: Jesus como o messias prometido. A construo muito semelhante apesar de na

    obra de Justino ocorrer quase um monlogo, pois para cada pergunta de Trifo h uma

    extensa resposta por parte de Justino. Mas o bsico existe: os questionamentos de Trifo

    (poucos) e as rplicas de Justino (abundantes). importante salientar que os dilogos na

    Antiguidade so, geralmente, de cunho filosfico (MORA, 2000, 727).

    Mas se o gnero das obras crists era familiar aos gregos, o contedo revela

    mais familiaridade ainda. Ao observarmos no somente a obra de Justino, mas mesmo o

    Novo Testamento, encontramos vrias heranas da cultura grega. Paulo, em suas

    epstolas, revela-se um conhecedor da arte grega de escrever. Ao desenvolver o seu

    raciocnio, mostra compartilhar da lgica e da retrica gregas. No somente isso, mas

    Paulo um grande citador de autores gregos. Na sua pregao no Arepago (Atos dos

    Apstolos 17), ele cita o poeta grego Arato (310-240 a.C.) em seu poema Fenmenos

    Naturais, quando diz: Pois somos tambm sua gerao (Atos dos Apstolos 17:28;

    ARATO. Fenmenos Naturais, I). Em Arato temos:

    Permita-nos comear com Zeus: ns mortais nunca devemos deixar de

    mencion-lo. Todas as estradas e todos os lugares onde se ajuntam os

    homens esto cheios de Zeus, at o mar e os seus portos. Sempre

    dependemos de Zeus, pois, somos tambm sua gerao (ARATO.

    Fenmenos Naturais, I, grifo nosso).

    Paulo cita o filsofo grego Epimnides (cerca de 600 a.C.) tambm quando

    diz: Porque nele vivemos, e nos movemos, e existimos (Atos dos Apstolos 17:28;

    EPIMNIDES. Cretica apud: CALMACO. Hinos, I, 4). Epimnides diz:

    Os cretenses so sempre mentirosos. Sim, uma tumba, Senhor, para

    ti os cretenses edificaram, mas, tu no ests morto, pois tu s eterno.

    Nele vivemos e movemos e temos nosso ser (EPIMNIDES. Cretica

    apud: CALMACO. Hinos, I, 4, grifo nosso).

    A primeira frase dessa citao tambm utilizada por Paulo em uma de suas

    cartas, quando afirma: Um deles, seu prprio profeta, disse: Os cretenses so sempre

    mentirosos, bestas ruins, ventres preguiosos (Tito 1:12). Paulo se revela um assduo

    leitor de filsofos e poetas gregos. Sua inteno no discurso no Arepago provar que

    posteriormente a construir um raciocnio mais slido e verdadeiro sobre determinado assunto (PLATO,

    Teeteto, VII). Scrates esclarece: A minha arte obsttrica tem atribuies iguais s das parteiras, com a

    diferena de eu no partejar mulher, porm homens, e de acompanhar as almas, no os corpos, em seu

    trabalho de parto. Porm a grande superioridade da minha arte consiste na faculdade de conhecer de

    pronto se o que a alma dos jovens est na iminncia de conceber alguma quimera e falsidade ou fruto

    legtimo e verdadeiro (PLATO, Teeteto, VII).

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    O Deus que fez o mundo e tudo que nele h, sendo Senhor do cu e da terra, no habita

    em templos feitos por mos de homens (Atos dos Apstolos 17:24). A isso Justino

    tambm refora com o testemunho de poetas gregos:

    [...] que no se devem adorar obras de mos humanas, no seno

    repetir o que disseram Menandro, o poeta cmico, e outros com ele,

    que afirmaram que o artfice maior do que aquele que o fabrica.

    (JUSTINO. I Apologia, XX, 5).

    Hermas Sozomeno, escritor cristo, escreveu no sculo V d.C. uma obra

    com o mesmo ttulo da de Eusbio, ou seja, Histria Eclesistica. Ele registrou que

    vrios escritos de Apolinrio de Laodicia (cerca de 310 d.C a 390 d.C), filho de

    Apolinrio, o velho (sculo IV), so imitaes de obras gregas (SOZOMENO. Histria

    Eclesistica, V, 18):

    Gneros de obras de Apolinrio citadas

    por Sozomeno

    Autores gregos modelares

    Sobre as antiguidades dos Hebreus at o

    reino de Saul

    Homero

    Comdias Menandro

    Tragdias Eurpedes

    Odes Pndaro

    Sozomeno explica que Apolinrio pegou vrios temas das Escrituras e

    produziu em pouco tempo um conjunto de obras que em gnero, expresso,

    personagem e arranjo so bem aprovados como similares literatura grega

    (SOZOMENO. Histria Eclesistica, V, 18). Scrates de Constantinopla, conhedido

    tambm como Escolstico, em uma obra tambm intitulada Histria Eclesistica,

    informa-nos ainda que Apolinrio exps os evangelhos e doutrinas dos apstolos em

    forma de dilogo, tal qual tinha feito Plato entre os gregos (SCRATES

    ESCOLSTICO. Histria Eclesistica, III, 16). Sobre o pai, diz que ele traduziu o

    Pentateuco de Moiss em hexmetros gregos, ao estilo dos versos hericos;

    parafraseou todos os livros histricos do Velho Testamento, colocando-os

    parcialmente em compasso datlico, e parcialmente reduziu-os forma da tragdia

    dramtica (SCRATES ESCOLSTICO. Histria Eclesistica, III, 16). Em suma,

    independente do pioneirismo ou no dos gregos nos gneros e formas de se escrever, os

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    escritos cristos (e, como vimos, isto inclui a obra de Justino) tiveram muita influncia

    direta deles.

    1.3. A apropriao do conceito de Logos

    Abordamos, a seguir, a questo do Logos. A fim de entendermos melhor o

    que representa o Logos para o cristianismo, abarcamos trs pontos fundamentais: o

    Logos no mundo grego, o Logos no pensamento de Flon de Alexandria e o Logos nos

    escritos dos cristos primitivos. O primeiro caso, num contexto bem anterior ao

    cristianismo, trata-se de uma reflexo introdutria em que se busca entender o que era o

    Logos e o que ele representava para os gregos no perodo clssico. Pois, tal ideia, como

    entendemos, foi basilar para escritores posteriores, tanto cristos quanto no cristos,

    isto , as bases para o Logos cristo tm sua origem no pensamento grego.

    No segundo, busca-se apresentar um desenvolvimento do Logos fora do

    contexto cristo, mas contemporneo a ele. No terceiro, importa esclarecer a ideia de

    Logos nos autores cristos. O autor do Evangelho de Joo foi o primeiro a utilizar o

    termo Logos identificando-o com o Cristo. Alm dele temos Irineu de Lio, Atengoras

    de Atenas, Clemente de Alexandria e, como no podamos deixar de falar: Justino

    Mrtir. Ele traz-nos uma diferena em relao ao Evangelho de Joo que relevante

    tratarmos aqui: o Logos parcial existente nos poetas gregos. No obstante, alguns

    pontos perpassam todos eles, como, por exemplo, a preexistncia do Logos.

    1.3.1. O Logos no mundo grego

    O termo Logos um dos que mais possui definies no vocabulrio da

    lngua grega30

    e, por isso, certamente, uma das palavras mais utilizadas. mais

    comumente traduzido como tratado, razo, palavra e Verbo. O ponto que nos interessa

    neste momento o aspecto filosfico do termo, pois da que os autores cristos vo

    conhecer e ressignificar o termo. Afinal de contas, o que o Logos no pensamento

    filosfico?

    30

    Cf. PEREIRA, 1998, p. 350.

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    Nos primeiros filsofos, tambm conhecidos como pr-socrticos

    (anteriores ao primeiro marco da filosofia clssica grega: o filsofo Scrates), j havia

    uma preocupao em entender a natureza das coisas, do Universo. Tal preocupao se

    traduz pela pergunta O que a physis? (ABRO, 2004, p. 24). Physis , geralmente,

    traduzido por natureza, mas abarca tambm a realidade. No aquela pronta e acabada,

    mas a que se encontra em movimento e transforma, a que nasce e se desenvolve

    (ABRO, 2004, p. 24). O conhecimento da physis implica em entender a origem das

    coisas que constituem a realidade (ABRO, 2004, p. 24). Buscam-se as origens, os

    princpios ordenadores do Cosmo.

    Esses primeiros filsofos formam o que ficou conhecido como Escola de

    Mileto, pois nessa cidade que eles surgiram. So eles: Tales, Anaximandro e

    Anaxmenes (ABRO, 2004, p. 25). Cada um deles aponta para um elemento como

    ordenador do Universo. Segundo Tales (640 a.C. 562 a.C.) a gua. Para

    Anaximandro (610 a.C. 547 a.C.) o eterno peiron, que significa indeterminado ou

    ilimitado (ABRO, 2004, p. 26). Devido ao constante movimento do peiron surgem

    dicotomias antagnicas: gua/fogo, frio/quente, que constituem o Universo e o equilibra

    a partir da harmonia entre eles (ABRO, 2004, p. 26). Anaxmenes (588 a.C. 524

    a.C.) fica no meio termo entre as duas propostas anteriores e defende que o ar o

    princpio da physis, pois o ar no to abstrato como o peiron, nem palpvel demais

    como a gua (ABRO, 2004, p. 27).

    Vrias discusses posteriores surgiram como opo a estas. Elas foram

    fundamentais para o desenvolvimento de uma explicao racional (Logos) para o

    mundo. A partir dessas ideias que o filsofo pr-socrtico Herclito de feso

    desenvolver sua ideia de Logos. Sua obra mais conhecida Sobre a Natureza na qual,

    segundo Digenes Larcio, fala sobre o Universo, a Poltica e a Teologia (DIGENES

    LARCIO. Vidas e Doutrinas dos Filsofos Ilustres, IX, 1-17). Dela s possumos

    fragmentos.

    Herclito afirma que existe uma unidade no Universo (ABRO, 2004, p.

    31). Essa unidade resultado dos conflitos entre os opostos e no de uma harmonia

    entre eles, como dizia Anaximandro. a tenso que gera a unidade. Em um de seus

    aforismos diz O combate de todas a coisas pai, de todas rei (HERCLITO.

    Fragmento 53, apud: HIPLITO. Refutao, IX, 9). Plutarco cita-o, revelando que

    para os despertos um mundo nico e comum , mas os que esto no leito cada um se

    revira para o seu prprio (HERCLITO, Fragmento 89, apud: PLUTARCO. Da

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    Superstio, III, 166C). E, segundo Herclito, o prprio Logos afirma essa unidade:

    No de mim, mas do Logos tendo ouvido sbio homologar tudo um

    (HERCLITO. Fragmento 50, apud: HIPLITO. Refutao, IX, 9).

    Para Herclito, o Logos a causa Universal do mundo, o ordenador

    csmico, o princpio ativo do Universo: alimentam-se todas as leis humanas de uma s,

    a divina: pois, domina to longe quanto quer, e suficiente para todas (as coisas) e

    ainda sobra31

    (HERCLITO, Fragmento 114, apud: ESTOBEU. Florilgio, I, 174). Os

    estoicos se apropriaram da ideia do Logos como razo e princpio ativo do Universo que

    anima, organiza e guia seu princpio passivo, que a matria (ABBAGNANO, 2000,

    p. 630). Reconhecem o Logos como Deus, criador de tudo, ou ainda, como o intelecto

    de Deus que ordena todas as coisas (DIGENES LARC