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MARIANA CRISTINA PEDRASSA
IDENTIDADE CULTURAL NO CURRÍCULO DA EDUCAÇÃO
INFANTIL NA REDE MUNICIPAL DE VINHEDO
CAMPINAS 2018
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
Faculdade de Educação
MARIANA CRISTINA PEDRASSA
IDENTIDADE CULTURAL NO CURRÍCULO DA EDUCAÇÃO
INFANTIL NA REDE MUNICIPAL DE VINHEDO
Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas, como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestra em Educação, na área de concentração de Educação.
Orientadora: PROFA. DRA. GABRIELA GUARNIERI DE CAMPOS TEBET
ESTE TRABALHO CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DE DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA ALUNA MARIANA CRISTINA PEDRASSA E ORIENTADA PELA PROFA. DRA. GABRIELA GUARNIERI DE CAMPOS TEBET
CAMPINAS 2018
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
IDENTIDADE CULTURAL NO CURRÍCULO DA EDUCAÇÃO INFANTIL
NA REDE MUNICIPAL DE VINHEDO
Autora: Mariana Cristina Pedrassa
COMISSÃO JULGADORA:
Profa Dra Gabriela Guarnieri de Campos Tebet Profa Dra Andrea Braga Moruzzi Profa Dra Joseane Maria Parice Bufalo Profa Dra Maria do Carmo Martins
A Ata da Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na Secretaria do Programa da Unidade.
2018
DEDICATÓRIA
Dedico à educação que mudou a minha vida. Ser professora é um modo de estar no mundo, buscando nos encontros cotidianos ações que gerem uma sociedade mais igualitária. Às crianças que trazem o novo e reiniciam um novo tempo. Aos educadores que escolheram a educação como um caminho de reinvenção e resistência.
AGRADECIMENTOS
Bernardo: pelo amor puro, intenso e verdadeiro. Você me inspira a querer ser mais do que fui até hoje!
Obrigada pelo olhar de descoberta e pelo encantamento frente ao novo!
Vera e Nilton: pelo amor infinito e apoio incondicional. Vocês me ensinaram a ser autêntica e a lutar pelos meus sonhos.
Obrigada por caminharem comigo em todos os momentos.
Matheus, Natália, Manuela e Laura: pelo amor familiar. Vocês confiaram na minha vitória.
Obrigada pela cumplicidade e amor.
Eduardo: pela contribuição teórica e pelas inúmeras leituras do texto.
Você me inspirou com sua trajetória e potencializou a minha escrita. Obrigada pelos comentários e conversas incessantes, mesmo quando soava
desagradável, me impulsionava a superar as minhas dificuldades.
Aos meus amigos, em especial aos que participaram da minha defesa: pelo apoio e pela escuta atenta.
Vocês me incentivaram e contribuíram com a minha pesquisa. Obrigada pela alegria, tristeza e dores compartilhadas.
Andrea Moruzzi, Maria do Carmo Martins, Silvio Gallo e Joseane
Bufalo: pela prontidão, humildade e ensinamento. Vocês me ajudaram a alinhavar o texto com os seus saberes.
Obrigada por participarem com tanta dedicação das minhas bancas (de qualificação e defesa).
Gabriela Tebet: pela confiança.
Você acreditou em mim e me ensinou o caminho árduo da vida acadêmica.
Obrigada pelos encontros e pelos ensinamentos!
RESUMO
Investigamos o currículo na Educação Infantil do município de Vinhedo/SP perguntando: que identidades culturais o currículo pretende produzir? Para isso, analisamos discursos sobre o currículo em materiais extraídos do Facebook da Secretaria de Educação (Cidade Educadora) e documentos disponíveis no site da Prefeitura Municipal de Vinhedo. Estes discursos foram analisados quantitativa e qualitativamente. Foram apresentadas numericamente em gráficos e tabelas as principais questões (categorias de análise) identificadas nos dados estudados e analisamos o material coletado contando com um software específico para este tipo de pesquisa: o N-Vivo. A análise foi realizada sobretudo a partir de um diálogo com autoras como Barbosa (2006; 2008), Ostetto (2013), Oliveira (2010), Abramowicz (1999) e Finco (2015), no que diz respeito à Educação Infantil e seu currículo. Também mobilizamos o conceito de currículo (SILVA, 1999; 2010; 2014) e identidade cultural (HALL, 2015 e 2003). Observamos que a Secretaria de Educação implementou políticas públicas no município baseadas em uma gestão educacional empresarial, ao invés de democrática. Constatamos uma tentativa de aproximação com as Diretrizes Curriculares para a Educação Infantil, ao considerar o conceito de criança e o papel das interações e brincadeiras no processo educativo, no entanto o modo como o documento estrutura a rotina da Educação Infantil mostra um grande contrassenso em relação a essas diretrizes. Ao analisar os registros das práticas, observamos que predominam atividades baseadas em datas comemorativas e projetos pedagógicos definidos pela Secretaria de Educação. A instituição impõe a realização de atividades nos Centros de Educação Infantil, desconsiderando o Projeto Político Pedagógico da unidade e suas especificidades. Muitas vezes as atividades são muito distantes das ações e das temáticas desenvolvidas nas instituições, ficando desvinculadas do trabalho pedagógico local. O trabalho é centrado no adulto e privilegia conteúdos programáticos, focando em resultados e não em processos. Deste modo, as crianças muitas vezes ficam invisibilizadas. As práticas curriculares analisadas mostram que o currículo da Educação Infantil de Vinhedo (re)produz a identidade hegemônica, cristalizando-a cada vez mais em nossa sociedade: trata-se da identidade do homem, adulto, branco, cristão, heterossexual e europeu. Ou seja, o currículo da Educação Infantil do município de Vinhedo afirma as identidades hegemônicas e apaga as culturas das minorias.
Palavras-chave: identidade cultural; currículo; Educação Infantil e Cidade Educadora.
ABSTRACT
We investigated the curriculum in Early Childhood Education in the city of Vinhedo /
SP asking: what cultural identities does the curriculum intend to produce? For this,
we analyzed discourses about the curriculum in materials extracted from Facebook of
the Education Secretariat (Educating City) and documents available on the website
of the Municipality of Vinhedo. These discourses were analyzed quantitatively and
qualitatively. They were numerically presented in graphs and tables (analysis
categories) identified in the studied data and we analyzed the collected material with
specialised software for this type of research: N-Vivo. The analysis was carried out
mainly from a dialogue with authors such as Barbosa (2006; 2008), Ostetto (2013),
Oliveira (2010), Abramowicz (1999) and Finco (2015), with regard to Early Childhood
Education and its curriculum. We also mobilized the concept of curriculum (SILVA,
1999, 2010, 2014) and cultural identity (HALL, 2015 and 2003). We observed that the
Education Secretariat implemented public policies in the municipality based on a business
management education, rather than a democratic one. We find an attempt to approach
the Curricular Guidelines for Early Childhood Education, when considering the concept of
child and the role of interactions and games in the educational process, however the way
the document structures the routine of Early Childhood Education shows a great
contradiction in relation to these guidelines. When analyzing the records of practices,
we observed that activities based on commemorative dates and pedagogical projects
defined by the Education Secretariat predominate. The institution imposes the
accomplishment of activities in the Early Childhood Education Centers, disregarding
the Pedagogical Political Project of the unit and its specificities. Often the activities
are very distant from the actions and the themes developed in the institutions, being
disconnected from the local pedagogical work. The work is adult-centered and
privileges programmatic contents, focusing on results not on processes. In this way,
children often become invisible. The curricular practices analyzed show that the
curriculum of the Early Childhood Education in Vinhedo (re) produces the hegemonic
identity, crystallizing it more and more in our society: it is the identity of the man, adult,
white, Christian, heterosexual and European. That is, the curriculum of Early Childhood
Education in the municipality of Vinhedo affirms hegemonic identities and erases minority
cultures.
Keywords: cultural identity; curriculum; Early Childhood Education and Educating
City.
LISTA DE TABELAS
Tabela 1: Grade curricular da Educação Infantil de Vinhedo ........................... 61
Tabela 2: Palavras mais usadas nas publicações ............................................ 66
Tabela 3: Agrupamento das crianças nas turmas ............................................ 74
Tabela 4: Semanas comemorativas ................................................................. 77
Tabela 5: Frequência das publicações com a palavra “atividade” .................... 82
Tabela 6: Datas comemoradas entre 2015 e 2016 ........................................ 103
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 1: Pessoas ........................................................................................... 69
Gráfico 2: Objetivos das ações pedagógicas ................................................... 72
Gráfico 3: Local das instituições e formas de nomeá-las ................................. 73
Gráfico 4: Publicações em que aparece a palavra “semana” ........................... 76
Gráfico 5: Categorização das publicações com a palavra “semana” ................ 76
Gráfico 6: Publicações com a palavra “atividade” ............................................ 79
Gráfico 7: Função da palavra “atividade” nas publicações ............................... 80
Gráfico 8: Frequência das publicações com a palavra “atividade” ................... 81
Gráfico 9: Concentração de publicações com a palavra “atividade” ................. 83
Gráfico 10: Categorização das publicações com a palavra “projeto” ............... 85
Gráfico 11: Projetos municipais ........................................................................ 87
Gráfico 12 Projetos dos Centros de Educação Infantil ..................................... 95
Gráfico 13: Projetos das turmas ....................................................................... 98
Gráfico 14: Projetos municipais ...................................................................... 100
Gráfico 15: Comparação entre a quantidade projetos municipais e outros projetos ............ 100
Gráfico 16: Publicações entre 2015 e 2016 ................................................... 101
Gráfico 17: Datas comemoradas entre 2015 e 2016 ...................................... 103
LISTA DE SIGLAS
AICE – Associação Internacional das Cidades Educadoras
BNCC – Base Nacional Comum Curricular
CEI – Centro de Educação Infantil
CENPEC – Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária)
CF – Constituição Federal
Consed – Conselho Nacional de Secretaria Estaduais de Educação
DCNEI – Diretrizes Curriculares para a Educação Infantil
LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
MEC – Ministério da Educação
PPP – Projeto Político Pedagógico
RCNEI – Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil
UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul
12
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO: IDENTIDADE CULTURAL E CURRÍCULO ........................... 13
1. VINHEDO E SUAS POLÍTICAS PÚBLICAS ............................................... 25
1.1 POLÍTICAS PÚBLICAS CONTEMPORÂNEAS ........................................................... 26
1.2. VINHEDO: UMA CIDADE EDUCADORA? .............................................................. 37
2. ANÁLISE DOS DOCUMENTOS CURRICULARES .................................... 47
2.1 DOCUMENTOS CURRICULARES: DEBATE NACIONAL ........................................... 48
2.2 DOCUMENTO CURRICULAR: DEBATE MUNICIPAL ................................................ 57
3. ANÁLISE DAS POSTAGENS DA PÁGINA CIDADE
EDUCADORA (VINHEDO) .......................................................................... 65
3.1 ANALISANDO ALGUNS TERMOS ....................................................................... 66
3.2 ANÁLISE DAS POSTAGENS: MODELOS DE PLANEJAMENTO .................................. 75
3.2.1 SEMANAS COMEMORATIVAS ............................................................................ 76 3.2.2 ATIVIDADES ...................................................................................................... 79 3.2.3. PROJETO .......................................................................................................... 84
3.3 ANÁLISE DAS POSTAGENS SOBRE ATIVIDADES COMEMORATIVAS ...................... 101
3.3.1 MANIFESTAÇÕES CULTURAIS: FESTAS E DATAS RELIGIOSAS ............................. 104 3.3.2 ESPÍRITO NACIONAL E FORMAÇÃO DE CIDADÃOS CONSCIENTES ........................ 108 3.3.3 ATIVIDADES FUNDAMENTAIS NA EDUCAÇÃO INFANTIL ................................... 113 3.3.4 COMEMORAÇÕES REFERENTES AOS MEMBROS DA FAMÍLIA .............................. 115
3.4 IDENTIDADES CULTURAIS: O DITO E O NÃO-DITO ........................................................... 118
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................... 123
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................. 126
ANEXOS ........................................................................................................ 131
ANEXO 1: EDITAL DO CONCURSO PARA AUXILIAR DE EDUCAÇÃO INFANTIL ................ 132
ANEXO 2: FOLDER DA SEMANA DA CONSCIÊNCIA NEGRA DO ANO 2015 ................... 133
ANEXO 3: FOLDER DA SEMANA DA CONSCIÊNCIA NEGRA DO ANO 2016 ................... 134
14
Investigamos o currículo na Educação Infantil do município de
Vinhedo/SP1. O interesse pelo assunto foi despertado por estudos, formações e
debates na instituição em que fui coordenadora pedagógica2 e em reuniões com a
assessoria pedagógica3 da Prefeitura Municipal do referido município. Ao estudar as
Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Infantil (DCNEI) de 2009, as
consultas públicas4 e textos de autores que discutem a Educação Infantil e suas
peculiaridades, passei a questionar a antecipação da escolarização (realização de
práticas do Ensino Fundamental), a fragmentação do currículo em áreas do
conhecimento (como português, matemática, artes etc.) e a falta de autonomia dos
docentes (a Secretaria de Educação determina unilateralmente práticas curriculares
cotidianas fundamentais dos Centros de Educação Infantil – CEIs).
Iniciei esta pesquisa querendo provar a discrepância entre a proposta das
DCNEI (2009) e os documentos curriculares municipais e práticas cotidianas dos
educadores5. Passei a compreender, a partir dos estudos das teorias do currículo,
que as leis curriculares expressam a visão de mundo de determinados grupos
sociais, especialmente os dominantes. No currículo se
1 O município de Vinhedo, pertencente à região metropolitana de Campinas, tem uma população de
63.685 habitantes, o IDH de 0,817 e o IB per capita de 71.364,01. A rede municipal de ensino atendia, em 2013, 10.192 crianças, jovens e adultos, sendo que 2.918 crianças frequentavam seus 20 Centros de Educação Infantil (Dados do IBGE 2008, 2010 e INEP).
2 Centro de Educação Infantil “Tia Anastácia” (Vinhedo/SP).
3 É um grupo formado por quatro professoras, que se afastaram das suas funções para ministrar
cursos e palestras para auxiliares de Educação Infantil, professores e gestores.
4 O Ministério da Educação elaboraria orientações para a implementação das DCNEI, conforme previsto
no texto das diretrizes. Diante disso, a Secretaria de Educação Básica, através da Coordenação Geral de Educação Infantil, elaborou as Consultas Públicas, com consultoria técnica especializada, sobre diferentes temas pertinentes às práticas pedagógicas da Educação Infantil.
5 Mesmo sabendo que a maioria dos educadores são mulheres, utilizamos o sujeito no masculino, pois
acreditamos que o CEI é um espaço em que profissionais de ambos os sexos podem exercer a docência. Fizemos essa opção para não perpetuar a concepção de que é preciso ter instinto materno para ser profissional da Educação Infantil, considerando a mulher como naturalmente preparada para cuidar de crianças pequenas. E sabemos que, para termos Educação Infantil de qualidade, é necessário ter profissionais bem formados academicamente, indiferentemente do sexo.
15
entrecruzam práticas de significação, de identidade social e de poder. É por isso que o currículo está no centro dos atuais projetos de reforma social e educacional. Aqui se trava lutas decisivas por hegemonia, por predomínio, por definição e pelo domínio do processo de significação. Como política curricular, como macrodiscurso, o currículo tanto expressa as visões e os significados do projeto dominante quanto ajuda a reforçá-las, a dar-lhes legitimidade e autoridade (SILVA, 2010, p.29).
O currículo não é neutro e desinteressado. Pelo contrário, está relacionado ao
que somos / nos tornaremos, “nele se entrecruzam domínio, regulação e governo; mas
nele também pessoas, forças e objetos se encontram, conquistam, produzem,
revitalizam” (PARAÍSO, 2006, p.1). Nesse sentido, as relações de poder não são externas
e não podem ser alforriadas: são essenciais às relações de significação do currículo. E o
seu efeito é a produção de identidades culturais6, mas não como objeto acabado (já que
são sempre construídas e reconstruídas constantemente).
Percebi que o currículo contribui para a formação das identidades culturais dos
sujeitos, e esta constatação mudou minha pesquisa. Os objetivos passaram a ser:
● Analisar a proposta pedagógica do município de Vinhedo e as postagens da página do Facebook mantida por sua Secretaria de Educação do município7, identificando as identidades culturais que o currículo pretende produzir;
● Identificar quais discursos sobre Educação Infantil, infância e currículo emergem da análise dessas postagens e quais identidades culturais pretendem produzir; e
● Analisar o modo como o município de Vinhedo se coloca frente ao debate atual sobre o currículo da Educação Infantil.
As questões que orientam a pesquisa foram definidas da seguinte forma:
Questão principal: que identidades culturais o currículo da Educação Infantil de Vinhedo pretende produzir?
Questões secundárias: quais discursos sobre Educação Infantil, infância e currículo emergem nas postagens da Secretaria de Educação em sua mídia social oficial? Qual a posição adotada pelo município de Vinhedo no que diz respeito ao debate sobre o currículo da Educação Infantil?
6 Para Silva (2010) as identidades culturais são as definições de um grupo social sobre si mesmo, ou
como outros grupos os definem. São hierarquizadas em um processo de significação cultural e social; portanto, a identidade e a diferença não são produtos da natureza. “Por meio do processo de significação construímos nossa posição sujeito e nossa posição social, a identidade cultural e social de nosso grupo, e procuramos construir as posições e as identidades de outros indivíduos e de outros grupos” (SILVA, 2010, p.21).
7 Cidade Educadora (Facebook). Disponível em https://goo.gl/oC91xa. Acesso em 11/07/2017.
16
Para tratar nossas questões, é imprescindível compreender o que é
identidade cultural: o conceito envolve “aqueles aspectos de nossas identidades que
surgem de nosso ‘pertencimento’ a culturas étnicas, raciais, linguísticas, religiosas e,
acima de tudo, nacionais” (HALL, 2015, p. 9). Ou ainda, como nos diz Silva (2010, p.
47): é “aquilo que o grupo tem em comum é resultado de um processo de criação de
símbolos, de imagens, de memórias, de narrativas, de mitos que “cimentam” a unidade
de um grupo, que definem sua identidade”. Todos estes elementos, portanto,
compõem o que estamos denominando como identidade cultural.
A diferença e a identidade são processos intrínsecos e não-naturais,
construídos nas e pelas representações. Entendemos a representação como um
processo cultural, que determina as identidades pessoais e coletivas. “Os discursos e os
sistemas de representação constroem os lugares a partir dos quais os indivíduos podem
se posicionar e a partir dos quais podem falar” (WOODWARD, 2014, p.18).
Nesta perspectiva a identidade é uma construção social e simbólica: a
marcação simbólica é o meio pelo qual lhe atribuímos sentido na prática, e pode ser
compreendida como os sistemas representacionais que marcam a diferença (língua,
bandeira etc). As relações sociais determinam quem são incluídos e quem são
excluídos. Conforme Silva (2014, p. 91):
Quem tem o poder de representar tem o poder de definir e determinar a identidade. É por isso que a representação ocupa lugar tão central na teorização contemporânea sobre a identidade e os movimentos sociais ligados à identidade. Questionar a identidade e a diferença significa, nesse contexto, questionar os sistemas de representação que lhe dão suporte e sustentação.
Para Woodward (2014) o nível psíquico é outro elemento que compõe a
identidade, juntamente com o simbólico e o social, e está relacionado à nossa
identificação pessoal. Com a psicanálise, compreendemos que a dimensão psíquica
funciona de acordo com a sua própria lógica, e que é importante o papel do desejo
no processo de construção da identidade. Com este aporte teórico é possível
entendermos porque o sujeito assume e investe em uma determinada identidade,
muito distante do pensamento consciente do sujeito racional.
Segundo esta mesma autora, outro fator importante para compreendermos a
identidade cultural é o essencialismo, que é fundamentado, de um lado, em fatores
históricos (a história é construída como uma verdade inabalável) e, de outro, em
fatores biológicos (que tendem a ser vistos como algo natural e inquestionável).
17
Silva (2014) argumenta que os fatores biológicos também são culturais e históricos
pois são, antes de tudo, interpretados socialmente. Sendo assim, “todos os
essencialismos nascem do movimento de fixação que caracteriza o processo de
produção da identidade e da diferença” (SILVA, 2014, p. 86).
A identidade e a diferença estão intrinsecamente ligadas à classificação
das identidades na sociedade, ou seja, os indivíduos são socialmente classificados
(brancos / negros, homem / mulher etc) e hierarquizados; há sempre, pois, relações
de poder envolvidas. São as relações de poder que determinam quais são as
identidades “normais” (“naturais”, desejáveis, “únicas”) e “anormais” (negativas,
indesejáveis, “antinaturais”).
Para Stuart Hall (2015), a partir do final do século XX ocorreu uma
transformação social que está fragmentando as identidades de gênero, raça,
sexualidade, etnia e nacionalidade. Este período é chamado de modernidade tardia,
a globalização é um processo de mudança das relações importante neste momento.
Segundo Hall (2015, p.12) estas são “sociedades de mudança constante, rápida e
permanente”, mas também uma forma de vida altamente reflexiva. Isso provoca um
abalo na nossa identidade pessoal, uma “descentração dos indivíduos tanto de seu
lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos - constitui uma ‘crise de
identidade’” (HALL, 2015, p.10). Esse processo produz o sujeito pós-moderno, cuja
identidade é móvel: é construída e transformada constantemente pela maneira como
somos representados e influenciados pelas relações culturais que estabelecemos. O
sujeito constitui identidades diferentes em diferentes situações, não tem sua
identidade centrada em apenas um “eu”. É diferente da identidade do sujeito do
Iluminismo, que “estava baseada numa concepção da pessoa humana como um
indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de
consciência e de ação, cujo o ‘centro’ consistia num núcleo interior, que emergia
pela primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia” (idem, p.10).
No contexto da modernidade tardia, a cultura nacional, que é uma das fontes
principais das identidades culturais, é fortemente afetada. As fronteiras territoriais se
tornam fluidas, aumentando a tensão entre a identidade nacional (costumes, histórias,
lugares, eventos particulares etc) e a identificação é universal (relacionada a toda a
humanidade). No entanto, segundo Hall (2015), parece improvável que a globalização
vá destruir as identidades nacionais. É mais provável que ela produza,
simultaneamente, novas identificações globais e locais. Já para Woodward (2014), a
18
homogeneização da cultura promovida pela globalização pode levar ao
enfraquecimento da identidade local, mas também pode provocar o fortalecimento das
identidades nacionais ou o surgimento de novas, através de um movimento de
resistência que luta pela afirmação das posições locais e étnicas.
A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com as quais poderíamos nos identificar a cada uma delas – ao menos temporariamente (HALL, 2015, p.12).
É exigido do sujeito pós-moderno assumir diferentes papéis sociais, em
diferentes momentos e em diferentes lugares. Estas posições podem entrar em
conflito. Para Woodward (2014), é na modernidade tardia, a partir dos anos 1960, no
ocidente - principalmente após 1968 pela rebelião estudantil pela luta dos direitos civis
- que emergiram novos movimentos sociais preocupados em afirmar a identidade de
pessoas pertencentes a grupos marginalizados e oprimidos. O foco era questionar o
essencialismo da identidade e a rigidez compreendida como algo natural. Para Silva
(2010) os novos movimentos sociais reivindicam o acesso à representação, e também
desejam o direito de controlar o processo de sua representação:
Novas identidades sociais emergem, identidades reprimidas se rebelam, se afirmam, colocando-se em questão, deslocando, a identidade unificada e centrada no indivíduo moderno: Macho, branco e heterossexual... Mudança estruturais alteram radicalmente a paisagem cultural em que essa identidade reinava soberana, assentada numa localização aparentemente firme e segura. Essa localização é abalada, essa identidade hegemônica entra em crise (SILVA, 2010, p. 27).
Considerando que o currículo organiza e produz identidades culturais,
queríamos saber se a identidade unificada e centrada no homem moderno foi
alterada, já que estas relações estão sendo vivenciadas em nossos tempos. Se a
identidade hegemônica está em crise, quais identidades ocupam este lugar? Ou, mais
especificamente: quais identidades culturais o currículo da Educação Infantil em
Vinhedo/SP pretende produzir: a identidade unificada e centrada no homem moderno
ou as identidades reprimidas que se revelam na modernidade tardia? Sabemos que
elas coexistem, e que é impossível produzir apenas a identidade hegemônica, porém
também é impossível a inexistência de traços da identidade unificada do homem
19
moderno. Assim as práticas curriculares podem contribuir para desmontar esta
identidade hegemônica, ou tentar reverter a crise desta identidade e buscar
cristalizá-la cada vez mais em nossa sociedade.
Para Silva (2014, p. 84), a produção de identidade se alterna em duas
ações: “de um lado, estão aqueles processos que tendem a fixar e a estabilizar a
identidade; de outro, os processos que tendem a subvertê-la e a desestabilizá-la.”
Sendo assim, a identidade é propensa à estabilização, mas ela está sempre passando
por processos de desestabilização.
Presos a uma maquinaria que produz sujeitos, e atropelados pelas tarefas
cotidianas, muitos educadores8 não param para pensar o que a educação nos CEIs
produz nos indivíduos. Então, este estudo mostra como determinadas práticas
(naturalizadas ou não) afetam a produção de identidades culturais.
Como já dissemos, consideramos a cultura e o currículo como produtos
de relações sociais de poder, assimétricas e hierarquizadas. E não são artefatos
acabados, mas produção e invenção, em constante modificação.
Desde sua gênese como macrotexto de política curricular até a sua transformação em microtexto de sala de aula, passando por seus diversos avatares intermediários (guias, diretrizes, livros didáticos), vão ficando registrados no currículo os traços das disputas por predomínio cultural, das negociações em torno das representações dos diferentes grupos e das diferentes tradições culturais, das lutas entre, de um lado, saberes oficiais, dominantes e, de outro, saberes subordinados, relegados, desprezados (SILVA, 2010, p. 22).
Escolhemos analisar a página no Facebook da Secretaria de Educação, pois
nela estão registradas práticas que aconteceram nos CEIs. Entendemos que há uma
distinção entre o currículo prescrito, currículo vivido e os registros e a divulgação das
práticas desenvolvidas. O currículo prescrito pode ser compreendido como o
planejamento oficial para o currículo escolar que se traduz no município de Vinhedo por
meio do documento intitulado “Proposta Pedagógica”9. Nacionalmente, podemos
compreender as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil e, mais
recentemente, a Base Nacional Comum Curricular para a Educação Infantil como
9 Cabe destacar o fato de que esse documento é tradicionalmente conhecido como Proposta Político-
Pedagógica em diversos municípios, mas em Vinhedo o caráter político da prática educativa não figura no título do documento.
20
formas de currículo prescrito. Contudo sabemos que o currículo vivido é mais amplo e
atravessado por um conjunto de elementos que ultrapassam o que estava prescrito.
No que se refere aos registros das práticas desenvolvidas e sua divulgação,
reconhecemos que tais registros revelam apenas uma pequena parte do que foi vivido
efetivamente. Uma parte que é selecionada pela docente para ser evidenciada. Uma
parte da realidade que é editada para ser divulgada. Mas ainda assim, esses registros
evidenciam elementos do currículo vivido que não podem ser desconsiderados. Nesse
sentido, a escolha de trabalhar com os registros produzidos e divulgados pela
Secretaria de Educação em sua página no Facebook visava observar os discursos
produzidos sobre aquilo que foi efetivamente desenvolvido no contexto dos CEIs,
mesmo que isso representasse apenas uma parte do todo.
Esta página recebeu o nome de Cidade Educadora quando foi criada em
julho de 2014. Em outubro de 2017, passou a ser nomeada como Secretaria de
Educação de Vinhedo. Nesta página são postados vídeos, textos e fotos. Grande parte
do material são registros de práticas curriculares elaborados por docentes e pela equipe
gestora das unidades educacionais10. Uma pequena parcela de postagens da
Secretaria da Educação é sobre informes de atividades, eventos, campanhas etc.
Resolvemos utilizar as publicações por serem i) produzidas por diferentes
categorias de profissionais que formam a rede municipal de educação de Vinhedo, ii)
uma forma dinâmica e rápida de disponibilizar as atividades realizadas nos CEIs, iii)
legitimadas socialmente e iv) uma ferramenta digital com grande poder de
abrangência.
As relações de poder entre os sujeitos se materializam nos registros das
práticas publicadas no Facebook, cuja análise nos mostrou que esse espaço não é
participativo em um sentido mais amplo, por ser controlado pela Secretaria de
Educação. Ela é a única administradora da página (os materiais passam pela análise
da equipe responsável e podem sofrer modificações ou não serem publicados).
Desta forma, as postagens constituem um documento cuja análise pode evidenciar
as identidades culturais produzidas / em produção.
10
Nessa dissertação trabalhamos com os discursos de gestores, docentes e auxiliares de Educação Infantil, mas reconhecemos que as crianças também produzem seus discursos sobre o currículo que vivenciam e uma pesquisa sobre os seus discursos seria igualmente interessante. Futuramente pretendemos realizar a pesquisa com as crianças.
21
As três categorias profissionais que participam das práticas pedagógicas
e escrevem as publicações são: i) equipe gestora (diretor, coordenador pedagógico
e gestor de creche), ii) professor de Educação Infantil e iii) auxiliar de Educação
Infantil. Para analisar as publicações é necessário compreender a função, a forma
de provimento e formação acadêmica destas categorias profissionais. Falemos
sobre estes pontos:
i) Equipe gestora
É responsável pelo gerenciamento pedagógico e administrativo do CEI.
Para exercer esse cargo é exigida a licenciatura plena em pedagogia. Os
profissionais são nomeados pelo prefeito, o que pode gerar uma relação de
clientelismo. Grande parte das publicações analisadas foram escritas pela equipe
gestora, e são esses profissionais que as enviam à Secretaria da Educação.
ii) Professores
Admitidos após aprovação em concurso público, são responsáveis por
turmas de crianças de dois anos a cinco anos e 11 meses. Devem planejar, executar
e avaliar as ações educacionais. Segundo os Parâmetros de Qualidade para a
Educação Infantil, “os profissionais que atuam diretamente com as crianças nas
instituições de Educação Infantil são professores e professoras de Educação Infantil”
(BRASIL, 2008, p.38). Porém no município de Vinhedo há também outro tipo de
profissional que atua diretamente com as crianças: os auxiliares.
iii) Auxiliares
Não fazem parte do quadro do magistério municipal: é-lhes exigida
apenas a formação no Ensino Médio. Suas atribuições são as seguintes:
a) atuar nas Unidades Educacionais da Rede Municipal, prioritariamente nas creches, ou nas Unidades Educacionais, que abriguem classes e turmas de Educação infantil; b)responsável pelos cuidados de higiene, alimentação e recreação de crianças de 0 (zero) até 6 (seis), em qualquer modalidade de Unidade Educacional – Creche ou escola de Educação Infantil; b)responsável, como auxiliar dos docentes, pelos cuidados de higiene, alimentação e recreação das crianças na faixa de 3 (três) a 6 (seis) anos, nas Escolas de Educação Infantil ou de Ensino Fundamental, que abriguem classes de Educação Infantil (Lei Complementar n.110, 20/12/2011, grifo nosso).
22
Os auxiliares de Educação Infantil são os únicos profissionais que atuam
com os bebês (zero a dois anos). As crianças de dois a três anos contam, em um
período do dia, com um professor de Educação Infantil. E as crianças de três anos a
cinco anos e 11 meses ficam um período com o professor e, no contraturno, com
auxiliares de Educação Infantil.
Segundo as DCNEI, essa etapa pode ser oferecida em período parcial ou
integral. Não há, portanto, nenhuma referência a um turno regular e um contraturno.
Há, no uso dessa expressão, uma concepção de currículo da Educação Infantil
voltada apenas para o cuidado das crianças, desassociando o cuidar do educar. Para
o poder público municipal isso justifica a falta de exigência de formação acadêmica
para esses profissionais e a remuneração diferenciada. Desta forma, os auxiliares de
Educação Infantil atuam diretamente com crianças, mas não são valorizados e nem
reconhecidos como professores.
Também é importante dizer que os resultados das análises foram obtidos
a partir do que foi publicado; isso não significa que outras práticas não aconteçam
nos CEIs, mas não são visibilizadas na rede social. Para compreender os dados
com maior clareza confrontamos essas análises com as de materiais disponíveis no
site oficial da Prefeitura Municipal de Vinhedo: reportagens e documentos municipais
(proposta pedagógica, leis, decretos etc).
Utilizamos um software específico para pesquisas qualitativas (N-Vivo).
Ele ajuda a organizar, analisar e encontrar informações em dados não-estruturados
ou qualitativos como entrevistas, textos, artigos, mídias sociais e conteúdo web.
Utilizando o N.Capture (uma extensão de navegador da Web) capturamos as
publicações de forma rápida e fácil. O software N-Vivo propiciou a descoberta de
conexões e de novas informações que contribuíram para a análise dos dados, já que
ele disponibiliza um local para agrupar o material (o programa chama esse
agrupamento de nó). Organizamos as informações em categorias de análise, o que
facilita a identificação dos dados. O software também fornece ferramentas que
permitem consultar os dados de modo mais eficiente. Depois que o material foi
separado em nós, analisamos as publicações conforme sua categoria e produzimos
gráficos e tabelas utilizando o Excel.
As análises incidiram sobre 815 referências (a maioria são publicações,
mas há também comentários). Foram selecionadas todas as referências que tinham
em seu corpo de texto as palavras “CEI”, “CEIs”, “C.E.I.”, “C.E.I.s” e “infantil”. A
23
primeira publicação foi no dia 04 de julho de 2014 e, a última, em 21 de outubro de
2016. Recolhemos os dados com o N-Capture em 21 de dezembro de 2016. Não
houve publicações referentes à Educação Infantil durante o período de outubro a
dezembro do referido ano11.
Estes discursos foram analisados quantitativa e qualitativamente. No que diz
respeito à análise quantitativa, foram apresentadas numericamente em gráficos e tabelas
as principais questões (categorias de análise) identificadas nos dados estudados.
Também fizemos uma análise qualitativa do conteúdo do material coletado. De acordo com
Gil (1990, p. 20) esta é “uma técnica de pesquisa sistemática e qualitativa do conteúdo
manifesto das comunicações”. O autor apresenta as três fases a serem realizadas: i) pré-
análise (escolha e formulação das hipóteses), ii) exploração do material (escolha das
categorias de análise) e iii) tratamento dos dados interpretados (procedimentos
estatísticos dos resultados encontrados).
A análise foi realizada sobretudo a partir de um diálogo com autoras como
Barbosa (2006; 2008; 2009), Ostetto (2013), Oliveira (2010), Abramowicz (1999)
Finco (2015) e Fochi (2015), no que diz respeito à Educação Infantil e seu currículo.
Também mobilizamos o conceito de currículo (SILVA, 1999; 2010; 2014) e
identidade cultural (HALL, 2003; 2015).
No capítulo 1 discutimos as políticas públicas realizadas pelo município de
Vinhedo, e pudemos notar que envolvem políticas contemporâneas neoliberais, como o
conceito de Cidade Educadora elaborado (inter)nacionalmente. No capítulo 2 analisamos a
Proposta Pedagógica Municipal, relacionando-a às disputas do currículo na Educação
Infantil em nível Nacional. No capítulo 3 estudamos o panorama das publicações do
Facebook da Secretaria Municipal de Educação: analisamos as marcas das organizações
curriculares mais frequentes (semana, projeto e atividade) e as atividades relacionadas às
datas comemorativas vivenciadas no município.
Iniciamos os capítulos com charges de Francisco Tonucci, um pedagogo
italiano que iniciou sua produção em 1968 e tem mais de 1000 desenhos publicados.
Há alguns que fazem críticas aos modelos de educação e seus profissionais de forma
sátira e cômica. Segundo o autor, a intenção é “olhar o mundo com os olhos das
crianças, dar voz às crianças que normalmente se calam e denunciar em seu nome os
11
Ainda que não tenhamos informações sobre o motivo da suspensão das publicações na rede social durante esse período, convém destacar que outubro de 2016 foi um mês de eleições municipais.
24
erros que nós, os adultos, cometemos com eles” (TONUCCI, 2008, p.vii). Ele é um
educador que pensou sobre as principais questões da Educação Infantil, propondo a
escuta das crianças, considerando-as como produtoras de cultura e não como meras
receptoras de conhecimento.
Outro fato que aproximou Tonucci da nossa pesquisa é sua defesa da
transformação da cidade a partir de meninos e meninas que nela vivem, e que
políticas públicas devem garantir às crianças o direito ao brincar12.
Concordamos com Juan Carlos Tedesco (2008, p.21):
Uma visão superficial do pensamento de Tonucci daria ênfase na centralidade de meninos e meninas ao elaborar políticas sociais, especialmente urbanas. É óbvia que as crianças estão no centro da preocupação, mas os postulados de Tonucci interpelam fundamentalmente os adultos. São eles que devem assumir a responsabilidade de criar as condições para que as escolas, as praças, os museus, os hospitais, as ruas e todos os espaços da cidade, assim como as pautas culturais que orientam sua utilização, estejam definidas por critérios que permeiam às crianças exercerem seu direito a uma infância feliz.
Além do protagonismo infantil, Tonucci também acredita na educação
como experiência, o que retratou inúmeras vezes em suas produções. Ele relata que
os membros da academia, em pareceres, diziam que ele “era muito ligado na
experiência e demasiadamente militante para ser pesquisador” (TONUCCI, 2008,
p.16). Utilizamos, portanto, suas charges para iniciar de forma lúdica e reflexiva as
discussões que realizamos nos capítulos.
12
Essas declarações do autor estão presentes em uma entrevista concedida ao site da AICE (Associação Internacional das Cidades Educadoras). CIDADE EDUCADORA. Disponível em https://goo.gl/8fWtjj. Acesso 15/05/2017.
26
1.1 Políticas públicas contemporâneas
A partir do texto de Hofling (2001), compreendemos que as políticas públicas
são produzidas na relação entre Estado e Sociedade, e que sua implementação é feita por
diversos atores que, nas esferas cotidianas, colocam-nas em ação ou as modificam. O
Estado é um conjunto de instituições estáveis, que não compõem necessariamente um
todo semelhante. Já o governo é constituído por projetos e programas estabelecidos para
a sociedade como um todo, a partir de uma visão política em determinado momento.
Quanto à educação, é “uma política social, uma política pública de corte social, de
responsabilidade do Estado” (HOFLING, 2001, p. 31).
Para a autora as políticas sociais, incluindo a Educação, são uma forma
de intervenção do Estado, que visa a conservação das relações sociais de
determinado modelo econômico. No entanto, os projetos e programas não são
implementados automaticamente: sofrem impactos que podem levar a resultados
diferentes do previstos, principalmente as políticas sociais que, na sociedade capitalista,
sofrem intervenções de diferentes relações de poder (HOFLING, 2001). Para tanto,
antes de trazer à baila a concepção de políticas públicas na rede municipal de
educação de Vinhedo, trazemos a definição de Hofling (2001, p. 31):
Políticas públicas são aqui entendidas como o “Estado em ação” (Gobert, Muller, 1987); é o Estado implantando um projeto de governo, através de programas, de ações voltadas para setores específicos da sociedade. Estado não pode ser reduzido à burocracia pública, aos organismos estatais que conceberiam e implementariam as políticas públicas. As políticas públicas são aqui compreendidas como as de responsabilidade do Estado – quanto à implementação e manutenção a partir de um processo de tomada de decisões que envolve órgãos públicos e diferentes organismos e agentes da sociedade relacionados à política implementada. Neste sentido, políticas públicas não podem ser reduzidas a políticas estatais.
A partir destes conceitos descremos algumas ações implementadas e
vivenciadas no município de Vinhedo nos últimos anos. São elas: i) líderes Brasil: curso
de gestão educacional, ii) avaliações externas e índices de desenvolvimento, iii)
educação empreendedora e iv) parceria público/não-estatal e público/privado. As
ações listadas a seguir nos dão a dimensão do panorama político local:
27
Encontro de Líderes Brasil: gestão educacional
Desde a Constituição de 1988, que estabeleceu o princípio da gestão
democrática, vem havendo uma disputa pela gestão do sistema educacional. De um lado,
os movimentos sociais exigem a participação da população em conselhos e, de outro
lado, há uma pressão pela qualidade e competência da gestão escolar. Arelaro (2007, p.
899) afirma que, para solucionar o problema, os dirigentes públicos estabelecem
“parcerias” público-privado, a partir da lógica de mercado para a gestão da educação,
“gestando um novo e contraditório conceito de eficiência educacional, em que a participação
dos diferentes segmentos da comunidade escolar é dispensada”.
A gestão educacional passa de democrática (com a participação da população
nas decisões) para uma gestão gerencial (focada na maior eficiência e eficácia do sistema).
Segundo Peroni, Oliveira e Fernandes (2009, p. 772) esse modelo toma “como imperativo
a persecução da administração por objetivos em escala organizacional, com fortes
componentes de divisão do trabalho, de racionalidade instrumental e hierarquia estrutural,
com vista à qualidade total do setor educacional”.
O município de Vinhedo, em consonância com essa tendência, ofereceu
em 2014 aos gestores educacionais o curso Encontro de Líderes Brasil, que tinha
como objetivo aumentar a qualidade da educação melhorando o desempenho de
crianças e jovens em exames e competições nacionais.
Vejamos as características desta política na reportagem “Em parceria inédita,
Prefeitura proporciona capacitação de liderança às diretoras de escolas municipais”:
Vinhedo tem se destacado na Região Metropolitana de Campinas como a cidade em que os investimentos municipais em Educação aumentam ano a ano, na mesma proporção da qualidade ofertada aos alunos, comprovado pelos desempenhos em ações como a Prova Brasil, Olimpíadas de Matemática e Informática. E este cenário, neste ano, tem ganho mais um importante investimento. Graças a uma parceria inédita da Secretaria de Educação da Prefeitura de Vinhedo com um grupo de notáveis de ex-alunos da Fundação Getúlio Vargas, semanalmente, como na última sexta-feira, diretoras das escolas municipais e professores da Espaço do Saber (espaço voltado especialmente às formações contínuas dos profissionais do setor educacional municipal) tem participado de encontros focados em capacitações, sob o tema "Encontro de Líderes Brasil", com o objetivo de proporcionar ganhos de qualidade no dia a dia do trabalho, nas escolas municipais, com reflexos ainda mais positivos nos encaminhamos pedagógicos. O secretário de Educação da Prefeitura de Vinhedo, José Luis Bernegossi, que tem acompanhado todos os encontros, lembra que
28
este grupo de ex-alunos comandam, atualmente, grandes corporações e empresas em áreas estratégicas de negócios. "São ex-alunos da FGV que doam seus conhecimentos para ações, como essa, na área pública. Eles compartilham conhecimento, principalmente na área de gestão, para que nossas diretoras possam aperfeiçoar e despertar o espírito de liderança. Ainda, cada uma das diretoras tem um mentor para orientação, que são gestores em alto escalão dessas grandes corporações, que adotam, como padrinhos, nossas diretoras nesse processo de gestão, levando-as para conhecerem seus ambientes de trabalho e, assim, compartilhar experiências de lideranças na prática, trazendo importantes conceitos para serem aplicados em cada uma das nossas unidades de ensino, proporcionado ganhos impressionantes de qualidade na formação dos nossos alunos", reforçou o secretário de Educação, José Luis Bernegossi13.
Essa é uma parceria em que os executivos que oferecem o curso são
voluntários, e impõe ao sistema educacional municipal características da gestão
empresarial. “Em tal lógica, o ensino está sendo destituído da pedagogia da
constatação, da transformação. Nesse lugar caberia agora a pedagogia da
conformação e da consolidação imposta pelo pensamento hegemônico” (PERONI,
OLIVEIRA e FERNANDES, 2009, p. 774). O que muda é que
Nesta nova pedagogia da hegemonia não se pretende historicizar as relações sociais; pelo contrário: busca-se naturalização dos fenômenos para a conciliação social. Para tanto, este projeto educacional hegemônico, descentralizou a gestão de sistema e de unidades escolares, centralizou diretrizes curriculares, elevou a educação à condição de importante indicador econômico e social de forma centralizada, por meio de programas de avaliação larga escala para a educação básica (PERONI, OLIVEIRA e FERNANDES, 2009, p. 773)
Neste trecho observamos como a gestão educacional pública é orientada
pela lógica neoliberalista. “As teorias gerenciais em educação retornam ao debate a
ideia de que o mercado é o padrão referencial para a escola” (PERONI, OLIVEIRA e
FERNANDES, 2009, p. 774). Por isso, o curso foi oferecido por um grupo especialista
em gestão empresarial. Eles aplicam técnicas de negócios, em busca de produtividade e
“resultados” no setor público e educacional.
Nesta mesma reportagem o “mentor” (o executivo que foi o formador no
município de Vinhedo) ressalta que “o nosso foco principal é construir aprendizado para
13
VINHEDO, grifo nosso, disponível em https://goo.gl/1mZ89M. Acesso em 28/12/2017.
29
transformar sonhos em sucesso". Esta frase foi fixada, pelos gestores, em todos os prédios
públicos pertencentes à Secretaria da Educação durante a realização do curso.
14
A frase também foi capa do Facebook da Secretaria da Educação15:
Os Gestores dos CEIs participavam do curso “Lideres Brasil”, depois a
comunidade (pais, alunos, professores e funcionários) era envolvida neste processo. Os
gestores implementavam, nas unidades escolares, as propostas do “mentor”:
14
SECRETARIA DE EDUCAÇÃO DE VINHEDO. Facebook. 27/07/2014. Disponível em https://goo.gl/xj9J8G. Acesso em 08/01/2018.
15 SECRETARIA DE EDUCAÇÃO DE VINHEDO. Facebook. 17/07/2014. Disponível em https://goo.gl/uvHNv4. Acesso em 08/01/2018.
30
16
No LinkedIn “Líderes Brasil”, na apresentação, está escrito que o sonho da
organização é transformar as vidas de um milhão de brasileiros, através de uma
educação pública de qualidade, para que essas pessoas realizem seus sonhos
profissionais. Para isso, desenvolvem um projeto que prepararia os diretores para
liderarem a comunidade escolar a obter resultados medidos por três indicadores:
Prova Brasil, Saresp e índice de reprovações de alunos.
A intenção era que a comunidade escolar tomasse consciência dos seus
sonhos, e acreditasse que sua realização dependeria dos seus esforços. Esse
empenho seria medido nas avalições oficiais, o que poderia melhorar os índices
educacionais do município. A avaliação e competição são vistos de uma forma sadia,
estimulariam as crianças e os adolescentes a se dedicarem ao estudo. Nestas
condições o Estado exerce controle sobre o indivíduo, essa maquinaria o transforma
em sujeitos. Para Foucault (1995, p.235) há dois significados para sujeito: “sujeito a
alguém pelo controle e dependência, e preso à sua própria identidade por uma
consciência ou autoconhecimento”. Com a naturalização destas avaliações o sujeito
se autorregula na busca de “melhores resultados”. Então, quais identidades culturais
pretende-se produzir com estas avaliações?
Avaliações externas e Índices de desenvolvimento
Há no site da Prefeitura de Vinhedo e no Facebook da Secretaria da
Educação inúmeras reportagens sobre o desempenho do município: avaliações
nacionais e estaduais, torneios de conhecimentos e índices de desenvolvimento.
São apresentados à população como prova da qualidade da educação pública.
16
SECRETARIA DE EDUCAÇÃO DE VINHEDO. Facebook. 27/07/2014. Disponível em https://goo.gl/HAbQSG. Acesso em 08/01/2018.
31
O prefeito Jaime Cruz, durante uma reunião com os gestores escolares, disse:
“estive por muitos anos à frente da Secretaria de Educação e sei da responsabilidade de
vocês, mas tenho certeza que se empenharão para que possamos melhorar cada vez mais
os nossos índices”17. Assim, a educação democrática preconizada no artigo 26 da LDB18,
em que a qualidade da educação era pautada em uma reflexão coletiva (com a participação
da comunidade na elaboração do PPP e nos conselhos escolares), passa para uma
educação como modelo único, voltada para melhorar o desempenho dos jovens e das
crianças nas provas externas.
O prefeito Jaime Cruz afirma que “o Saresp é importante para que
possamos traçar estratégias para aprimorar a qualidade do ensino. Valorizamos o
engajamento dos profissionais de ensino de Vinhedo e aos alunos que mostraram
todo seu potencial na avaliação”19. Ainda segundo o prefeito, esta avaliação mede a
qualidade do ensino, o desempenho dos profissionais e o “potencial” dos alunos. Em
contraposição à ideia de excitar o potencial dos alunos como algo positivo, Arelaro
(2007, p.913) afirma que esse modelo “propicia e estimula ‘o melhor de cada’ aluno –
que é seu desejo de vencer –, quaisquer que sejam seus ‘adversários’ mais próximos,
antes chamados de colegas e amigos”. Em relação ao desempenho docente, o papel
do professor, segundo o artigo 13 da LDB, não é preparar para as avaliações
externas. O professor seria incumbido de
:
I – participar da elaboração da proposta pedagógica do estabelecimento de ensino; II – elaborar e cumprir plano de trabalho, segundo a proposta pedagógica do estabelecimento de ensino; III – zelar pela aprendizagem dos alunos; IV – estabelecer estratégias de recuperação para os alunos de menor rendimento; V – ministrar os dias letivos e horas-aula estabelecidos, além de participar integralmente dos períodos dedicados ao planejamento, à avaliação e ao desenvolvimento profissional; VI – colaborar com as atividades de articulação da escola com as famílias e a comunidade.
17
VINHEDO. Disponível em https://goo.gl/W8ddgu. Acesso em 27/12/2017.
18 Art. 14. Os sistemas de ensino definirão as normas da gestão democrática do ensino público na educação básica, de acordo com as suas peculiaridades e conforme os seguintes princípios:
I – participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola; II – participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes 19
VINHEDO. Disponível em https://goo.gl/ZFSVuM. Acesso em 27/12/2017
32
A LDB preconiza, pois, outra concepção de avaliação, que é confirmada
com mais especificidade no Art. 24, parágrafo V: a “avaliação contínua e cumulativa
do desempenho do aluno, com prevalência dos aspectos qualitativos sobre os
quantitativos e dos resultados ao longo do período sobre os de eventuais provas
finais”. Desta forma, podemos afirmar que a avaliação não deveria ter como objetivo
classificar ou selecionar: deveria se fundamentar em aprendizagens significativas e
funcionais, aplicáveis em diversos contextos e atualizadas o quanto for preciso para
que os jovens e as crianças continuem a aprender. Observamos que a concepção
presente na LDB é antagônica à que se vê na prática pedagógica voltada para as
provas externas, nas quais a educação é medida pela quantidade, em detrimento da
qualidade.
Nota-se a porosidade do Estado, porosidade que permite a aderência de
ideias neoliberais na máquina pública. Essa regulação é feita por grupos políticos e
explicita determinada concepção sobre educação. A questão da qualidade, neste
ponto, nos parece também ser objeto de disputa entre os discursos (jurídico, político-
partidário, econômico, pedagógicos etc).
O município também estimula a participação das crianças e jovens em
concursos, torneios, olimpíadas etc, como observamos na reportagem a seguir:
E comprometimento não faltou também aos estudantes de Vinhedo, que se destacaram em importantes torneios do conhecimento de abrangência nacional, como OBA – Olimpíada Brasileira de Astronomia e Astronáutica, Olimpíada de Língua Portuguesa – Escrevendo o Futuro, projeto EPTV na Escola, concurso Estrada para a Cidadania da CCR AutoBan. Outros alunos também foram reconhecidos nos maiores torneios do país, na disciplina de matemática: Olimpíada Paulista de Matemática, OBMEP – Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas. Um estudante também representou o Brasil na Olimpíada Matemática Rioplatense, que tem caráter internacional e reúne alunos de diversos países.20
A educação visa a competição, baseada em um discurso pautado no
interesse e no comprometimento das crianças e jovens para atingir objetivos da
administração pública. Observamos como estes resultados são utilizados como anúncio
para a população, ainda que isso, por vezes, seja “maquiado”. O exemplo do Índice
Paulista da Primeira Infância (IPPI) é bastante ilustrativo. A tabela do IPPI, publicada
20
VINHEDO. Disponível em https://goo.gl/e8vR4. Acesso em 28/12/2017.
33
pela prefeitura, mostra Vinhedo no topo da lista da Região Metropolitana de Campinas
(RMC)21, mas... Como esse índice é produzido? Primeiro: por dados quantitativos e não
qualitativos. E é mensurado por duas variáveis: saúde e educação. O resultado de cada
uma destas variáveis é obtido pelo cálculo de outras.
Para a elaboração do IPPI dos municípios, foram incluídos, no tópico da saúde, os percentuais de nascidos vivos com baixo-peso (menos de 2,5 kg) e de partos não cesarianos realizados no SUS, além dos resultados obtidos nas taxas de mortalidade na infância (menores de cinco anos) e de mortalidade por causas evitáveis em menores de um ano. Já na área da educação, foram consideradas as matrículas em creche em relação à população de 0 a 3 anos e em pré-escola em relação à população de 4 e 5 anos. Também foram contabilizados os números médios de docentes com ensino superior para cada 26 crianças e de profissionais por turma, nas creches das redes pública e conveniada22.
Na saúde, o cálculo é feito a partir da taxa de natalidade e partos não-
cesarianos, e pela taxa de mortalidade de crianças entre zero e seis anos. Em 2014,
ano de referência para os cálculos, não havia maternidade, por problemas
administrativos na Santa Casa de Vinhedo!
Na educação, o cálculo é feito a partir do número de matrículas, do número
médio de profissionais e da quantidade de profissionais com curso superior por criança,
incluindo a rede conveniada. E, aqui, esta é a estratégia amplamente difundida por
quase todos os municípios: a base do quadro de profissionais da Educação infantil,
cujo nome pode variar entre "auxiliar", "agente" ou "monitor", é contratada fora do
quadro do magistério e, portanto, o edital de contratação não exige curso superior23.
Como se vê, o número maior ou menor deste índice para educação não advém
totalmente da capacidade administrativa dos municípios: depende em grande medida
do número de profissionais formados em curso superior.
Talvez o IPPI pudesse ser levado um pouco mais a sério em municípios onde
profissionais são contratados com os mesmos direitos dos professores – o que é justo, pois
são igualmente responsáveis pela atividade-fim da creche, isto é, a educação e o cuidado
das crianças – e onde a formação inicial dos profissionais, contratados com formação em
ensino médio, seja considerada como uma política pública.
21
VINHEDO. Disponível em https://goo.gl/8dtKSb. Acesso em 27/12/2017.
22 VINHEDO. Disponível em https://goo.gl/8dtKSb. Acesso em 27/12/2017.
23 Ver no Anexo 1 o edital do último concurso para auxiliar de Educação Infantil.
34
Portanto, o índice que mensura a qualidade da primeira infância em
Vinhedo não nos parece confiável, já que desconsidera o que realmente interfere na
qualidade da rede municipal de ensino: o fortalecimento dos conselhos de escola com a
participação efetiva da comunidade, inclusive na construção do PPP em cada unidade
e reconhecimento das instituições de ensino como espaço de formação e não apenas de
transmissão de saberes medida em avaliações ranqueadoras.
Educação Empreendedora
A palavra “empreendedorismo”, tão em moda no nosso século, é
compreendida como a disposição ou capacidade de idealizar, coordenar e realizar
projetos, serviços, negócios, e a iniciativa de implementar novos negócios ou
mudanças em empresas já existentes, com alterações que envolvem inovação e
riscos. No neoliberalismo os sujeitos são chamados a empreender (autogerir): no
discurso neoliberal as tecnologias reduzem os empregos, e caberia a cada um ter
uma ideia inovadora e criativa para ter o seu próprio negócio.
Segundo reportagem divulgada no site municipal24, a prefeitura de
Vinhedo, em parceria com o Sebrae, realiza “ações empreendedoras” no município
desde 2013: em dois anos foram desenvolvidos 27 projetos, em diversas áreas
(inclusive na educação com o Projeto “Jovem Empreendedor”).
Nos últimos anos, a Prefeitura tem trabalhado para transformar Vinhedo em uma cidade empreendedora, por meio de ações realizadas em parceria com o Sebrae – Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas – de São Paulo que possibilitam a ampliação do mercado de oportunidades, promove a competitividade e a formação do micro e pequeno empreendedor, estimula a formalização de negócios, incentiva a geração de emprego e renda e reduz a burocratização25.
O projeto “Jovem Empreendedor” é realizado na rede municipal no ensino
fundamental II, e os professores foram capacitados para desenvolver atividades teóricas
e práticas sobre empreendedorismo26. Segundo a prefeitura, “durante o ano, os
professores prepararam as crianças e adolescentes para o mercado de trabalho, onde
24
VINHEDO. Disponível em https://goo.gl/JQhtFw . Acesso em 27/12/2017.
25 VINHEDO. Disponível em https://goo.gl/JQhtFw. Acesso em 27/12/2017
26 VINHEDO. Disponível em https://goo.gl/YoRxYr. Acesso em 27/12/2017
35
interagiram e vivenciaram experiências que estimulam a vontade e o interesse em
empreender”27. Podemos observar o traço das políticas contemporâneas voltadas ao
lucro, competição, individualismo, sucesso como mérito individual, fracasso como
“culpa” do indivíduo e capacitação para o trabalho (preparação para o futuro). A
perspectiva é acrítica e formadora de consenso em torno do sistema capitalista, e
silencia perspectivas de transformação social.
Esse é um dos projetos em que a prefeitura faz parceria para “melhorar a
qualidade educacional”, na contramão de uma educação pública e democrática
voltada à emancipação das crianças e jovens.
Parceria público/privado e público/não-estatal
O município de Vinhedo segue políticas contemporâneas nas quais são
realizadas parcerias com empresas privadas ou públicas não-estatais.
As consequências da implementação dessa política são previsíveis: cada vez mais, o Estado buscará “parceiros” para dividir sua responsabilidade educacional, tanto com relação ao atendimento da demanda e da oferta, em especial, por meio do estabelecimento de contratos com creches comunitárias, ou convênios para o atendimento em educação especial, ou mesmo para o funcionamento de classes de educação de jovens e adultos em associações filantrópicas ou comunitárias, quanto com relação à qualidade, com contratos e convênios com escolas e sistemas privados de ensino para “transferência” sumária de métodos e técnicas de ensino e de compras de materiais “unificados” e adequados para o “sucesso” nas provas e exames nacionais – reservando-se ao Estado a função exclusiva de definir o “produto esperado” (educação para a cidadania?) e os mecanismos de aferição de qualidade do “produto efetivamente produzido” (aluno “civilizado” e Cidadão?) (ARELARO, 2007, p. 917).
A partir do que nos mostra Arelaro podemos selecionar três pontos
principais e relacioná-los com três iniciativas vivenciadas no município de Vinhedo: i)
Projeto Autoban: parcerias para dividir responsabilidades educacionais, ii) Selando
Parcerias: convênios com Ongs para atendimentos educacionais e iii) Fundação
Lemann: transferência de métodos e técnicas de ensino.
A Autoban é a concessionária que administra as rodovias que passam
pelo município (Anhanguera e Bandeirantes). Em parceria com esta empresa o
município desenvolveu um projeto de educação para o trânsito para conscientização
27
VINHEDO. Disponível em https://goo.gl/z7yr7a. Acesso em 27/12/2017
36
das crianças, que disseminariam ensinamentos para os familiares, amigos e
comunidade em geral. Esse é um exemplo de uma empresa privada que contribui
com o município para a formação de um “cidadão consciente” de seus direitos e
deveres, uma criança ou um jovem “civilizado”.
O segundo ponto que vamos destacar é o programa “Selando Parcerias”,
firmado pela prefeitura com Ongs desde 2009. A prefeitura faz a transferência do recurso
financeiro e as instituições realizam a gestão das organizações, oferecendo o serviço à
população. Segundo a prefeitura28, em 2017 foi autorizado o repasse de R$ 8.893.079,11
para entidades, a título de subvenção social ou auxílio para despesas de capital. Esses
recursos são utilizados em três áreas: assistência social (proteção básica, especial e de
alta complexidade), educação e cultura e saúde.
Na área da educação a prefeitura repassou em 2017 recursos para três
instituições: duas têm por finalidade atender crianças, adolescentes e adultos com
deficiências (CEIVI e LARCAB) e uma realiza atividades educacionais para jovens
acima de 18 anos visando sua inserção no mercado de trabalho (ACOVEC). Com
essas parcerias o município transfere para instituições conveniadas sua
responsabilidade pelo atendimento especializado a deficientes e educação
continuada para jovens e adultos. São essas instituições que estabelecem uma nova
hierarquia salarial, diferente da estabelecida no Estatuto do Magistério e no Plano de
Cargos e Carreira dos servidores municipais.
O terceiro ponto apresentado por Arelaro (2007), a transferência de métodos e
técnicas de ensino através de parcerias, aparece no convênio da prefeitura com a
Fundação Lemann em 2014. A instituição ofereceu o Curso Técnicas Didáticas I, com
duração de 90 horas (de fevereiro a novembro), destinada aos professores e gestores do
Ensino Fundamental. O curso foi ministrado pela empresa Elos Educacionais. Foram
abordados temas como liderança e observação de aula, alinhamento construtivo,
planejamento, avaliação, cultura escolar e altas expectativas29.
Isso nos mostra que o município privilegia a gestão gerencial em
detrimento da gestão democrática. Privilegia um modo de gerir a educação que visa
resultados nas provas externas, ao invés de privilegiar a capacidade de professores
28
VINHEDO. Disponível em https://goo.gl/EDGFwa. Acesso em 27/12/2017.
29 VINHEDO. Disponível em https://goo.gl/92joKs. Acesso em 27/12/2017.
37
e gestores para realizar um projeto pedagógico em consonância com as
características da comunidade escolar.
Sabe-se que entre a concepção e as práticas oriundas da articulação entre educação e democracia que permeiam a gestão educacional neste contexto, muito ainda se preserva de questões, tais como clientelismo, o paternalismo e o coronelismo políticos. Não obstante, é esta mesma prática que revela as contradições desse processo e que, por isso mesmo, tais práticas poderiam ser derrotadas, porque aflorariam do diálogo, do conflito e do embate das idéias. A subsunção da gestão democrática à gestão gerencial, contudo, inverter essa lógica. A reforma do Estado, na perspectiva de sua retração para as políticas sociais e, particularmente, para a política educacional, destituiu a sociedade civil da participação política educacional (PERONI, OLIVEIRA e FERNANDES, 2009, p.774).
Essas políticas de transferência de recursos públicos para setores privado ou
não-estatal começam a tomar força a partir da crise do capitalismo, no pós-guerra. Nas
teorias neoliberais e nos estudos sobre a terceira via, a crise é tratada como sendo do
Estado, mas as estratégias de superação têm outro foco: “o neoliberalismo defende o
estado mínimo e a privatização e a terceira via, a reforma do estado e a parceria com o
terceiro setor (PERONI, OLIVEIRA e FERNANDES, 2009, p.763).
A prática de parcerias é muito utilizada (e naturalizada) na administração
pública no município de Vinhedo. A prefeitura admite que “por determinação do
prefeito Jaime Cruz, todas as secretarias municipais estão buscando parcerias na
iniciativa privada para a manutenção e também para a implantação de projetos
importantes no município30”. Vemos, portanto, que o município interage com políticas
recentes que mantém a lógica de mercado enfatizando o lucro, a privatização, a
execução de políticas sociais por instituições privadas e não-estatais e a qualidade da
educação baseada em índices e avaliações nacionais.
1.2. Vinhedo: uma Cidade Educadora?
Além de, em seu perfil de Facebook, a Secretaria da Educação nomear
Vinhedo como Cidade Educadora, no site da prefeitura há várias reportagens em que o
30
VINHEDO. Disponível em https://goo.gl/MM3o6e. Acesso 27/12/2017.
38
município se intitula como Cidade Educadora, no entanto não é associado à AICE31. Por
isso, interessou-nos verificar se os princípios norteadores do movimento mundial estão
presentes nos materiais municipais analisados, e de que modo.
O conceito de Cidade Educadora foi desenvolvido em 1970, em debates na
UNESCO sobre a noção de cidade educativa. O desafio central era pensar em
alternativas para um mundo em crise e em mudança. Em 1971 foi formada uma
comissão internacional que começou a pensar as instituições escolares como parte do
sistema educativo (e não seu único componente). Os pesquisadores da Unesco
percebiam que havia uma mudança, “a educação passava a ser uma demanda da
população, uma necessidade, ‘um direito’ e até uma exigência: passagem da obrigação
estatal para a responsabilidade pessoal” (NOGUEIRA-RAMIRES, p. 16, 2011). A
sociedade educava, oferecendo oportunidades para os cidadãos.
Esse conceito ganhou força na Conferência Mundial sobre Educação para
Todos (Jomtien/Tailândia, 1990) e, em grande parte, atualiza e amplia a perspectiva
da UNESCO. A conferência abriu caminho para que naquele mesmo ano
acontecesse o I Congresso Internacional de Cidades Educadoras (Barcelona /
Espanha), em que um grupo de cidades discutiu e passou a aplicar princípios que
norteariam suas políticas públicas32.
Esses princípios foram consolidados na Carta das Cidades Educadoras,
escrita no primeiro congresso e revisada no Congresso Internacional de Bolonha (1994)
e no de Gênova (2004). Na carta é afirmado que cabe às cidades
Primeiro “investir” na educação de cada pessoa, de maneira a que esta seja cada vez mais capaz de exprimir, afirmar e desenvolver o seu potencial humano, assim como a sua singularidade, a sua criatividade e a sua responsabilidade. Segundo, promover as condições de plena igualdade para que todos possam sentir-se respeitados e serem respeitadores, capazes de diálogo. Terceiro, conjugar todos os fatores possíveis para que se possa construir, cidade a cidade, uma verdadeira sociedade do conhecimento sem exclusões, para a qual preciso providenciar, entre outros, o acesso fácil de toda a população às tecnologias da informação e das comunicações que permitam o seu desenvolvimento33.
31
Atualmente a AICE tem 477 municípios associados em 37 países. No Brasil são 14: Belo Horizonte/MG, Caxias do Sul/RS, Guarulhos/SP, Horizonte/CE, Mauá/SP, Porto Alegre/RS, Santiago/RS, Santo André/SP, Santos/SP, São Bernardo do Campo/SP, São Carlos/SP, São Paulo/SP, Sorocaba/SP e Vitória/ES.
32 Nesta conferência foi criada a Associação Internacional das Cidades Educadoras (AICE).
33AICE. Disponível em https://goo.gl/mQdKAZ. Acesso 06/06/2017.
39
Esse movimento atribui à educação o papel de nortear as políticas das cidades e
processos educativos, através de práticas que considerem a diferença, a igualdade de
direitos e a participação democrática. As cidades devem promover o planejamento
urbano, a participação dos cidadãos nos processos decisórios, a ocupação dos espaços e
dos equipamentos públicos, consciência ambiental e disponibilidade de bens culturais e
serviços tecnológicos. Para ser educadora, a cidade precisa buscar participação
política de crianças, jovens, adultos e idosos, e também promover projetos que
favoreçam as relações intergeracionais. Cabe às cidades:
agir desde a sua dimensão local, enquanto plataforma de experimentação e consolidação de uma plena cidadania democrática e promover uma coexistência pacífica graças à formação em valores éticos e cívicos, o respeito pela pluralidade dos diferentes modelos possíveis de governo, estimulando mecanismos representativos e participativos de qualidade. (...) A diversidade é inerente às cidades atuais e prevê-se que aumentará ainda mais no futuro. Por esta razão, um dos desafios da cidade educadora é promover o equilíbrio e a harmonia entre a igualdade e a diversidade, salvaguardando os contributos das comunidades que integram e o direito de todos aqueles que a habitam, sentindo-se reconhecido a partir das suas identidades culturais34.
A ideia é educar para a cidadania, o que possui uma relação fundamental
com a democracia. A cidade deveria ser regida por princípios democráticos, com
participação política de todas as gerações e valorização das identidades culturais.
Com o mecanismo de governamentalidade o indivíduo acredita que é livre,
que pode participar das decisões e que é fundamental no processo democrático. É
nestas condições que se exerce controle sobre ele. A liberdade, que está nas políticas
públicas contemporâneas como um direito do indivíduo, torna-se uma condição para o
exercício do poder. Para Foucault somente indivíduos livres são governados:
O poder só se exerce sobre “sujeitos livres”, enquanto “livres” – entendendo-se por isso sujeitos individuais ou coletivos que têm diante de si um campo de possibilidade onde diversas condutas, diversas reações e diversos modo de comportamento podem acontecer. Não há relação de poder onde as determinações estão saturadas – a escravidão não é uma relação de poder, pois o homem está acorrentado (trata-se então de uma relação física de coação) – mas apenas quando ele pode se deslocar e, no limite, escapar. Não há, portanto, um confronto entre poder e liberdade, numa relação de exclusão (onde o poder se exerce, a liberdade desaparece); mas um
34
AICE. Disponível em https://goo.gl/mQdKAZ. Acesso 06/06/2017.
40
jogo muito mais complexo: neste jogo, a liberdade aparecerá como condição de existência do poder (ao mesmo tempo sua precondição, uma vez que é necessário que haja liberdade para que o poder se exerça, e também seu suporte permanente, uma vez que ela se abstraísse inteiramente do poder que sobre ela se exerce, por isso mesmo desapareceria, e deveria buscar um substituto na coerção pura e simples da violência); porém, ela aparece como aquilo que só poderá se opor a um exercício de poder que tende, enfim, a determiná-la inteiramente (FOUCAULT, 1995, p. 244, grifo nosso).
A liberdade é condição para o poder. Por isso, a necessidade de afirmar a
liberdade de todos os indivíduos, inclusive das crianças, como condição para
governá-las. Portanto podemos compreender que poder não é: ele se faz. “O
exercício do poder não é um fato bruto, um dado institucional, nem uma estrutura que
se mantém ou se quebra: ele se elabora, se transforma, se organiza, se dota de
procedimentos mais ou menos ajustados” (FOUCAULT, 1995, p. 247). É a ação do
Estado sobre as ações os indivíduos. É poder exercido sobre a população – o mecanismo
de governamentalidade, que “são táticas de governo que permite definir a cada
instante o que deve ou não competir ao Estado (...), portanto o Estado, em sua
sobrevivência e em seus limites, deve ser compreendido com base nas táticas
gerais da governamentalidade” (FOUCAULT, 2015, p.430).
Para Nogueira-Ramires (2001) a educação na modernidade deve ser
pensada em três momentos: 1) instrução (ensino) no século XVII e XVIII, 2) educação
liberal, que emerge no final do século XIX e 3) sociedade da aprendizagem ou cidades
educativas, iniciado no final do século XIX. Neste terceiro momento, pela primeira vez na
história se pensou o conhecimento como recurso central e, com isso, a necessidade de
ensinar durante toda a vida. Desta forma, o movimento da Cidade Educadora se coliga
ao jogo de governo das populações, já que a função educativa é de todos e de cada um.
Uma educação de si e dos outros ao longo de toda vida.
O Movimento da Cidade Educadora faz parte da postura política
contemporânea – exercer o mecanismo de governamentalidade – em que o
indivíduo tem direito à participação na sociedade democrática, mas esse é um
dispositivo de instrumentalização, de poder, de governo.
Sua fortaleza está associada à disseminação e expansão da governamentalidade liberal (e neoliberal), essa forma econômica de governamento que pretende governar menos para governar mais, isto é, essa forma de governar cujo fundamento é a liberdade, o interesse, a agência e autorregulação dos indivíduos. Podemos dizer que a
41
aprendizagem é hoje a forma do governamento pedagógico, o governamento não mais do cidadão, mas do “aprendiz permanente”, do Homo discentis. Aprender ao longo da vida, aprender a aprender é a divisa do governamento contemporâneo. Estamos sendo compelido a nos comportar como aprendizes permanentes, que moram em sociedades de aprendizagem ou cidades educativas (NOGUEIRA-RAMIRES, p.230, 2011)
No Brasil há algumas experiências baseadas na Carta das Cidades
Educadoras, mas a concepção desse movimento teve mais visibilidade após o
Programa Mais Educação (Decreto nº 7.083, de janeiro de 2010), cujo objetivo é
ampliar o tempo de permanência de crianças, adolescentes e jovens matriculados
em escolas públicas. Esse programa visa a oferta de educação em tempo integral
(igual ou superior a sete horas), e trouxe para o centro do debate a cidade como
território educativo, devido aos princípios que o norteiam:
Art. 2o São princípios da educação integral, no âmbito do Programa Mais Educação:
I - a articulação das disciplinas curriculares com diferentes campos de conhecimento e práticas socioculturais citadas no § 2o do art. 1o;
II - a constituição de territórios educativos para o desenvolvimento de atividades de educação integral, por meio da integração dos espaços escolares com equipamentos públicos como centros comunitários, bibliotecas públicas, praças, parques, museus e cinemas;
III - a integração entre as políticas educacionais e sociais, em interlocução com as comunidades escolares;
IV - a valorização das experiências históricas das escolas de tempo inte-gral como inspiradoras da educação integral na contemporaneidade;
V - o incentivo à criação de espaços educadores sustentáveis com a readequação dos prédios escolares, incluindo a acessibilidade, e à gestão, à formação de professores e à inserção das temáticas de sustentabilidade ambiental nos currículos e no desenvolvimento de materiais didáticos;
VI - a afirmação da cultura dos direitos humanos, estruturada na diversidade, na promoção da equidade étnico-racial, religiosa, cultural, territorial, geracional, de gênero, de orientação sexual, de opção política e de nacionalidade, por meio da inserção da temática dos direitos humanos na formação de professores, nos currículos e no desenvolvimento de materiais didáticos; e
VII - a articulação entre sistemas de ensino, universidades e escolas para assegurar a produção de conhecimento, a sustentação teórico-metodológica e a formação inicial e continuada dos profissionais no campo da educação integral (BRASIL, 2010, p.1, grifo nosso).
42
Além dessa medida, a meta 6 do PNE (Plano Nacional de Educação) em
2014 determinou que até o ano de 2024 os municípios devem “oferecer educação
em tempo integral em, no mínimo, 50% (cinquenta por cento) das escolas públicas,
de forma a atender, pelo menos, 25% (vinte e cinco por cento) dos (as) alunos (as) da
educação básica” (BRASIL, 2014). Segundo Santos e Santos (2014), para realizar a
educação em tempo integral muitos governantes municipais buscaram locais fora das
instituições escolares, o que gerou experiências de ocupação de espaços das cidades
por jovens, adolescentes e crianças.
A prefeitura de Vinhedo, com o intuito de oferecer educação em tempo
integral, criou em caráter permanente o decreto municipal n.084/2014 que institui o
Programa Cidade Educadora. Partimos deste decreto, que foi instituído em 24 de abril
de 2014 pelo prefeito da cidade de Vinhedo, Jaime Cruz35.
Art. 1.º Fica instituído, em caráter permanente, o Programa de Atividades Complementares Curriculares em Contraturno, a ser deno-minado “Programa CIDADE EDUCADORA”, visando à melhoria da qualidade do ensino por meio da ampliação de tempos, espaços e oportunidades educativas realizadas na escola ou no território em que está situada, em contraturno, atendendo às necessidades socioeducacionais dos alunos (VINHEDO, 2014, p. 9).
A criação do projeto tem embasamento legal nos artigos 1º e 34 da LDB
(Lei 9394/96 - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional)36, do 6º e 227º da
35
Jaime Cruz era vice-prefeito e secretário de educação. Assumiu como chefe do executivo após o prefeito eleito deixar o cargo, acusado de corrupção. O ex-prefeito não é simples réu, mas foi condenado em segunda instância e, por conseguir seu habeas corpus, aguarda em liberdade a análise do recurso contra sua condenação.
36 Art. 1º A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais.
§ 1º Esta Lei disciplina a educação escolar, que se desenvolve, predominantemente, por meio do ensino, em instituições próprias.
§ 2º A educação escolar deverá vincular-se ao mundo do trabalho e à prática social.
Art. 34. A jornada escolar no ensino fundamental incluirá pelo menos quatro horas de trabalho efetivo em sala de aula, sendo progressivamente ampliado o período de permanência na escola.
§ 1º São ressalvados os casos do ensino noturno e das formas alternativas de organização autorizadas nesta Lei.
§ 2º O ensino fundamental será ministrado progressivamente em tempo integral, a critério dos sistemas de ensino.
43
CF (Constituição Federal) de 198837 e 1º e 3º do Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA) de 13 de julho de 199038. Está descrito nesses artigos que a
educação em tempo integral é dever do poder público e direito das crianças.
Esse projeto abrange os três níveis de educação (Educação Infantil,
Ensino Fundamental I e II), que são de responsabilidade do município. Para as
crianças da Educação Infantil, as atividades do contraturno39 seriam vivenciadas nos
próprios prédios do CEI. As crianças e jovens do Fundamental I e II utilizariam i) o
espaço da escola, ii) as instituições da Secretaria Municipal de Esporte e Lazer
(centros esportivos, piscinas públicas, parque municipal etc), iii) espaços da
Secretaria Municipal de Cultura e Turismo (os três centros culturais do Município) e iv)
instituições conveniadas com a Prefeitura Municipal de Vinhedo.
Em relação ao currículo, no decreto não há menção às práticas pedagógicas
desenvolvidas no período escolar. Ele aborda apenas o contraturno, em que atividades
devem estar vinculadas ao PPP da escola (documento que reflete as necessidades
educacionais da instituição e os desejos da comunidade escolar). Nesse currículo,
segundo o decreto, devem estar presentes os princípios e concepções da LDB (Lei de
Diretrizes e Base), Leis da Educação Nacional e as Diretrizes para a Educação do
Município de Vinhedo.
Para compreendermos os objetivos e concepções do Programa Cidade
Educadora e a trajetória municipal até a sua implementação, analisamos, além dos
documentos já citados, reportagens que a equipe de jornalismo da prefeitura
produziu e divulgou entre os anos de 2009 a 201440.
37
Art. 6o São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição (EC n
o 26/2000 e EC n
o 64/2010).
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à Da Ordem Social 129 liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (EC n
o 65/2010).
38 Art. 1º Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente.
Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
39 Problematizamos adiante a noção de contraturno associada à Educação Infantil.
40 Após o ano 2014 não foram publicadas reportagens sobre o tema.
44
A primeira reportagem é “Prefeitura inicia estudo para criação da escola
integral” (07/08/2009)41. Nesta matéria, a prefeitura anunciou que estava iniciando um
estudo para criar a escola em tempo integral. O objetivo desse projeto seria ampliar a
jornada escolar e atribuir à Secretaria da Educação a responsabilidade sobre as
atividades do contraturno. Naquele período havia duas instituições que realizavam
atendimento para crianças a partir dos seis anos no turno oposto ao escolar, mas
eram vinculadas à Secretaria de Promoção e Assistência Social. As crianças e bebês
de zero a seis anos já ficavam em período integral nas creches e pré-escolas, sob
responsabilidade da Secretaria Municipal de Educação.
A maioria das reportagens estudadas é de 2013, ano que antecedeu a
promulgação do decreto. Naquele período uma comissão intersecretarial estava
estruturando o projeto. Em várias reportagens é citada a parceria com o Programa
Mais Educação, como esta, por exemplo:
O programa Mais Educação é do governo federal e compreende a adoção da educação integral na escola municipal a partir do ofereci-mento de atividades optativas aos alunos no horário contrário ao de aula, que incluem acompanhamento pedagógico (matemática, letramento, línguas estrangeiras, ciências, história, geografia, filosofia e sociologia) e ações nas áreas de meio ambiente, esportes e lazer, direitos humanos, cultura e artes, inclusão digital, prevenção e promoção da saúde, educomunicação, além de educação científica e econômica (VINHEDO. Disponível em http://goo.gl/whH3Qv Acesso em 20/05/2017).
Na descrição do Programa Mais Educação e no decreto municipal
084/2014 é dito que as atividades em tempo integral são planejadas a partir de uma
concepção de educação de turnos (manhã, tarde e noite) tradicionalmente instituída
no Brasil. A organização curricular do período escolar não se altera, apenas são
agregadas atividades complementares no contraturno.
Uma proposta de educação integral em tempo e espaço integral implica essencialmente em outro conceito e estrutura de currículo e experiência escolar. O habitual currículos excessivamente fragmentado em tempos e disciplinas parece ser um entrave em relação à implementação ou um elemento de obstaculização da execução da referida proposta. Entretanto, com tal consideração, não se objetiva indicar a dissolução das disciplinas escolares, tão pouco a ampliação do conceito e estrutura de currículo de modo a abranger qualquer prática e poder ser praticado por qualquer um. A presente consideração põe em questão a fragmentação curricular, realidade de muitas
41
VINHEDO. Disponível em https://goo.gl/aH4ZPL. Acesso 20/05/2017
45
escolas brasileiras e, ao mesmo tempo, aponta a necessidade de adoção de princípios articuladores e integradores em sua realização no cotidiano escolar (SANTOS e SANTOS, 2014, p.12).
O resultado desse decreto é o aumento da quantidade de horas em que
crianças e adolescentes permanecem em atividades educacionais sob a tutela do poder
público. Para isso, a prefeitura utiliza prédios e serviços de várias secretarias
municipais e recursos do Programa Mais Educação do Governo Federal.
Recortamos alguns trechos de reportagens para compreender a
concepção de Cidade Educadora do município de Vinhedo. Iniciamos com a análise
de duas falas do prefeito sobre a criação e implementação do programa:
Este grupo de trabalho tem se fortalecido e agregado a participação gradual de várias secretarias municipais, que a partir da união de experiências e serviços vão permitir para Vinhedo se tornar uma cidade fundamentalmente educadora e também a tornar a educação integral uma realidade, em benefício dos alunos da Rede Municipal de Ensino”, disse o prefeito Milton Serafim42 Com a Educação Integral, queremos reforçar o conceito de Cidade Educadora, isto é, a ideia de que todos os espaços do município podem e devem educar43.
No primeiro trecho o prefeito enfatiza o título do município (Cidade
Educadora), sem explicar o significado da expressão. No segundo, fala de um
conceito que está em consonância com o movimento internacional: a cidade como
um território educador. No entanto, nos materiais analisados a definição de Cidade
Educadora parte do significado dos termos e faz uma conceitualização genérica,
sem explicitar a fundamentação teórica:
O que é uma cidade educadora? Definido pelo dicionário como ação de se transmitir conhecimentos ou de instruir, o verbo educar contempla em sua definição muito mais que o cultivo do saber escolar. Congrega em sua significação o desenvolvimento moral, intelectual e físico do ser humano e a busca por seu desenvolvimento global. Dentro desta definição, o emprego da terminologia “cidade educadora” prevê a oferta de atividades escolares, esportivas, sociais e culturais a fim de se potencializar a capacidade global do aluno. Para tanto, unifica os esforços e recursos existentes em projetos que melhorem a qualidade de vida do cidadão a partir da participação ativa e na
42
VINHEDO, grifo nosso. Disponível em goo.gl/R1j93I. Acesso em 20/05/2017.
43 VINHEDO, grifo nosso. Disponível em http://goo.gl/PJbTjA Acesso em 20/05/2017
46
utilização dos serviços que já são ofertados pelo município, ampliando sua abrangência e aproveitamento44.
A prefeitura não menciona, nas reportagens e no decreto 084/2014, a Carta
das Cidades Educadoras e seus princípios norteadores. É possível supor, sobretudo
tendo em vista o artigo 14 do decreto municipal 084/2014, que o esforço do poder
público na implementação de tal projeto tivesse como foco de ação reduzir a evasão,
reprovação e a distorção idade/ano das crianças e adolescentes. E principalmente,
ampliar o tempo diário de permanência da criança na escola.
Para Vieira e Aquino (2015) os municípios ao redor do mundo desejam tornar-
se uma Cidade Educadora: “o atributo de educadora figura como distintivo honorífico
àquelas localidades que o recebem, sendo estas laureadas como espaços democráticos,
globalizados e defensores dos direitos humanos, da liberdade e da qualidade de vida”.
Acreditamos que este fato leva a prefeitura municipal de Vinhedo a ansiar por este título.
Este desejo está ligado com a concepção de gestão pública educacional e de
governamentalidade vigente, afetando políticas públicas do município que visam melhorar
os índices e o desempenho nas avaliações externas.
44
VINHEDO. Disponível em http://goo.gl/KrC6Nk Acesso em 20/05/2017.
48
2.1 Documentos curriculares: debate nacional
Os documentos curriculares disseminam um discurso próprio e são um
mecanismo altamente eficaz: são referências e geram diretrizes, parâmetros, grades,
guias, livros didáticos materiais paradidáticos, multimídias etc. Movimentando com
eficácia a indústria cultural da educação, também atribuem ações, funções, papéis e
relações para os indivíduos no processo educacional (SILVA, 2010). Devido ao seu
grande poder discursivo, analisamos as leis curriculares da Educação Infantil no nosso
país e o modo como o município de Vinhedo se coloca frente ao debate atual.
Atualmente a Educação Infantil é a primeira etapa da Educação Básica: é
oferecida para crianças de zero a três anos, com obrigatoriedade para as crianças de
quatro e cinco anos, sendo dever do Estado e direito da criança. Estas conquistas são
recentes e se intensificaram nas últimas décadas, após a promulgação da
Constituição Federal (CF, 1988).
Para colocar em prática o que foi garantido na CF, um conjunto de ações foi
desenvolvido pelo MEC no início dos anos 1990. Nesse sentido, podemos destacar a
publicação de Critérios para uma creche que respeite os direitos fundamentais das crianças
(1995) e a promulgação do Plano Nacional de Educação Infantil (1994), que definiu
como ação prioritária a elaboração, implementação e avaliação do currículo e da proposta
pedagógica em consonância com diretrizes e fundamentos teóricos relevantes. O MEC
também criou uma comissão composta por especialistas, a fim de desenvolver uma
metodologia para analisar as propostas pedagógicas e curriculares das Secretarias de
Educação dos estados. Com base nesses estudos, foi elaborado o documento Proposta
pedagógica e currículo em Educação Infantil: um diagnóstico e uma construção de uma
metodologia de análise (1996).
Neste documento, Kishimoto define currículo como “explicitação de
intenções que dirigem a organização da escola visando colocar em prática
experiências de aprendizagem consideradas relevantes para crianças e seus pais”
(KISHIMOTO, 1994, citada por BRASIL, 1996, p.13). Para a autora, a criança é um
ser único, suas experiências são vividas e sentidas de formas diferentes; cada
criança percorre, pois, um currículo. Para Oliveira (1994, citada por BRASIL, 1996), o
currículo é um roteiro de viagem coordenado por um parceiro, o educador; as
atividades são programadas, mas se desenvolvem com a participação de todos, com
49
autonomia e cooperação. Mello (1994, citada por BRASIL, 1996) defende um
currículo aberto e uma proposta pedagógica que oriente fundamentos e objetivos, de
modo que seja possível ajustá-lo a situações diversas e às especificidades
regionais. Esta definição se entrelaça com a de Machado (1994, citada por BRASIL,
1996), que define o projeto político educacional como um plano que almeja guiar as
ações; deve, entretanto, ser incompleto pois se transforma no cotidiano das
instituições, conforme as ações dos sujeitos. Kramer (1994, citada por BRASIL,
1996) traz uma discussão mais ampla, e não estabelece diferença entre os termos
“proposta pedagógica” e “currículo”:
É um convite, um desafio, uma aposta. Uma aposta porque, sendo ou não parte de uma política pública, contém um projeto político de sociedade e um conceito de cidadania, de educação e de cultura. Portanto, não pode trazer respostas prontas apenas para serem implementadas, se tem em mira contribuir para a construção de uma sociedade democrática, onde a justiça social seja de fato um bem distribuído igualitariamente a toda coletividade. Uma proposta peda-gógica expressa sempre os valores que a constituem, e precisa estar intimamente ligada à realidade a que se dirige, explicitando seus objetivos de pensar criticamente essa realidade, enfrentando seus mais agudos problemas. Precisa ser construída com a participação efetiva de todos os sujeitos – crianças e adultos, professores/ educadores e profissionais não-docentes, famílias e população em geral - levando em conta suas necessidades, especificidades, realidade (KRAMER,1994, citada por BRASIL, 1996, p.18).
Proposta pedagógica e currículo em Educação Infantil: um diagnóstico e
uma construção de uma metodologia de análise (1996), além de trazer as
concepções de currículo e a proposta pedagógica que norteariam a Educação
Infantil no Brasil, delineou um roteiro para a elaboração e análise de propostas.
No mesmo ano foi promulgada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB), a lei nº 9.394, reafirmando direitos que estavam em discussão.
Estabeleceu a Educação Infantil como primeira etapa da Educação Básica e delineou
sua finalidade: desenvolver crianças de zero a seis anos em seus aspectos físico,
psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade.
A avaliação, nesta etapa, aconteceria através do acompanhamento e registro do
desenvolvimento das crianças, sem o caráter de promoção para o acesso ao ensino
fundamental. Esta lei estabelece que “a União incumbir-se-á de (...) estabelecer, em
colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, competências e
diretrizes para a Educação Infantil (...) que nortearão os currículos e seus conteúdos
50
mínimos, de modo a assegurar formação básica comum” (art. 9º, IV). Com isto, o
MEC justificou a criação do Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil
(RCNEI).
Podemos afirmar que o RCNEI de 1998, ao traçar as linhas gerais para
um currículo a ser implementado em âmbito nacional, opõe-se à construção de uma
política pública coletiva, democrática, diferentemente dos documentos anteriores
(em que o currículo e a proposta pedagógica seriam construídos nas instituições de
Educação Infantil, considerando a diversidade cultural do país). Segundo Amorim e
Dias (2012, p.128) o RCNEI foi publicado para atender às políticas governamentais
do presidente Fernando Henrique Cardoso: o país havia se comprometido junto ao
FMI (Fundo Monetário Internacional) a estabelecer um currículo nacional para
diversos níveis de educação.
A versão preliminar do RCNEI foi encaminhada, em fevereiro de 1998,
para mais de 700 profissionais para que no prazo de um mês fossem emitidos
pareceres ao MEC. Os pareceristas apontaram a necessidade de ampliar o debate
para a elaboração do documento (CERISARA, 2002, p. 336), e sua versão final foi
publicada em outubro de 1998. Foi dividido em três volumes, sendo o primeiro
claramente uma tentativa de incluir os pareceres de importantes pesquisadoras e
pesquisadores da área sem, contudo, modificar a concepção de criança e de
Educação Infantil presentes no documento. Segundo Cerisara (2002, p.337), a
concepção de Educação Infantil está “muito mais próxima da do ensino fundamental
do que o próprio referencial declara na sua Introdução”.
Com a publicação do RCNEI, o currículo é desenhado a partir de áreas de
conhecimento cujos conteúdos devem ser aprendidos pelas crianças em situações
significativas de aprendizagem. Assim concebido, o currículo submete a experiência e os
saberes dos sujeitos envolvidos na Educação Infantil à sua versão escolar de trabalho,
como bem observou Cerisara (2002) e, desta maneira, as linguagens e as culturas
infantis são bloqueadas em nome de determinado processo de construção de
conhecimento. Para alcançar seus objetivos, nesta perspectiva, a Educação Infantil divide
os saberes em componentes curriculares fragmentados e repetitivos. Esta concepção de
currículo se baseia na ilusão de que a melhor maneira de organizar o trabalho
pedagógico é por áreas de conhecimento e, a fim de atingir seus objetivos, divide o
tempo – período de trabalho dos adultos e, por conseguinte, de permanência das
crianças na creche ou pré-escola – em atividades planejadas e avaliadas de acordo com
51
as orientações didáticas. Escolarizada pelo currículo, tende a se tornar também
escolarizante. Em 04 de abril de 1999 foram promulgadas as Diretrizes Curriculares
Nacionais, que seguiram o caminho do RCNEI e definiram que
As Propostas Pedagógicas das Instituições de Educação Infantil, ao reconhecer as crianças como seres íntegros, que aprendem a ser e conviver consigo próprios, com os demais e o próprio ambiente de maneira articulada e gradual, devem buscar a partir de atividades intencionais, em momentos de ações, ora estruturadas, ora espontâneas e livres, a interação entre as diversas áreas de conhecimento e aspectos da vida cidadã, contribuindo assim com o provimento de conteúdos básicos para a constituição de conhecimentos e valores (BRASIL,1999, p.1).
Apontando para uma direção mais participativa, a rota anterior foi
retomada pelo governo Lula. Mais de 40 entidades e organizações (universidades,
associações científicas, movimentos sociais, ONGs etc) retomaram a discussão,
assumindo uma concepção diferente dos RCNEI. Em 2009, a Câmara de Educação
Básica do Conselho Nacional de Educação do Ministério da Educação, após debates
com a população, aprovou as DCNEI (Resolução CNE n. 05/09. Neste novo
documento, o currículo é concebido como um
Conjunto de práticas que buscam articular as experiências e os saberes das crianças com os conhecimentos que fazem parte do patrimônio cultural, artístico, ambiental, científico e tecnológico, de modo a promover o desenvolvimento integral de crianças de 0 a 5 anos de idade (BRASIL, 2009).
Como vimos, pensar o currículo da Educação Infantil a partir da garantia
de experiências faz parte de um debate que vem sendo realizado nas últimas
décadas no Brasil, mas pouco havia avançado em relação aos documentos
nacionais que orientam as práticas pedagógicas. Nas DCNEI e nos documentos
federais que se baseiam nessas diretrizes, há uma linha que norteia a constituição
do currículo. As DCNEI, por exemplo, definem que a
proposta pedagógica ou projeto político pedagógico é o plano orientador das ações da instituição e define as metas que se pretende para a aprendizagem e o desenvolvimento das crianças que nela são educados e cuidados. É elaborado num processo coletivo, com a participação da direção, dos professores e da comunidade escolar (BRASIL, 2009, p.13).
52
Partindo desta definição, o currículo só se materializa nas ações dos
sujeitos. Por outro lado, as DCNEI afirmam que o documento deve orientar as
instituições e sua proposta pedagógica, uma vez que “define as metas que se
pretende para a aprendizagem e o desenvolvimento das crianças que nela são
educados e cuidados” (BRASIL, 2009). Deve ser construído em um processo
coletivo, com a participação de toda comunidade escolar (pais, professores,
funcionários e equipe gestora). Para promover uma educação de qualidade, os
profissionais não podem ser meros executores de propostas pré-estabelecidas:
devem participar de sua concepção, construção e consolidação.
Após a aprovação das DCNEI, foram elaboradas as Consultas Públicas
por especialistas da área. Zilma de Moraes Ramos de Oliveira escreveu a Consulta
Pública O currículo na Educação Infantil: o que propõem as novas Diretrizes
Nacionais? Oliveira (2010, p.4) explicita como os creches e pré-escolas devem
organizar suas práticas pedagógicas:
Para alcançar as metas propostas em seu projeto pedagógico, a instituição de Educação Infantil organiza seu currículo. Este, nas DCNEIs, é entendido como “as práticas educacionais organizadas em torno do conhecimento e em meio às relações sociais que se travam nos espaços institucionais, e que afetam a construção das identidades das crianças”. O currículo busca articular as experiências e os saberes das crianças com os conhecimentos que fazem parte do patrimônio cultural, artístico, científico e tecnológico da sociedade por meio de práticas planejadas e permanentemente avaliadas que estruturam o cotidiano das instituições. Esta definição de currículo foge de versões já superadas de conceber listas de conteúdos obrigatórios, ou disciplinas estanques, de pensar que na Educação infantil não há necessidade de qualquer planejamento de atividades, de reger as atividades por um calendário voltado a comemorar determinadas datas sem avaliar o sentido e o valor formativo dessas comemorações, e também da ideia de que o saber do senso comum é o que deve ser tratado com crianças pequenas.
Para Oliveira, o currículo baseado em datas comemorativas e em áreas
de conhecimento é uma visão superada. No entanto, muitas atividades ainda são
baseadas nela. As práticas vivenciadas nas creches e pré-escolas são organizadas de
várias formas: por exemplo, há professores e pesquisadores que defendem que caberia
aos profissionais transmitir os conteúdos históricos e sociais acumulados, pois a
criança, ao aprender uma grande quantidade de conhecimentos, teria êxito no
futuro. Outros, defendem uma pedagogia da infância em que as crianças devam
53
vivenciar experiências do seu interesse, como brincadeiras e interações com
adultos, outras crianças e bens culturais.
As DCNEI (2009) deslocam a função da Educação Infantil de transmissão
de conhecimentos para a garantia de experiências. Pagni (2010), ao tratar da
experiência, afirma que:
A sua gênese e desenvolvimento resultaram, didaticamente falando, em pedagogias que centraram a práxis educativa na consciência moral, na formação da consciência histórica e no pensar reflexivo, elegendo a experiência como um conceito fundamental para a atividade formativa e, por sua vez, a infância como sujeito dileto da arte pedagógica. Em outra tradição, a experiência foi desvalorizada, sob a argumentação de que seria uma forma inferior de conhecimento, porque se apoiaria nas faculdades sensíveis e na imaginação, assim como em uma sensibilidade que, ao julgar os resultados e a utilidade dos saberes produzidos, concorreria apenas para a aquisição de sabedoria prática, responsável pela condução da vida comum. Em sua origem, com Immanuel Kant, essa tradição considera que o conhecimento possibilitado pela experiência desprezaria as faculdades superiores e a verdadeira sabedoria, responsáveis pela produção do conhecimento objetivo da ciência e das idéias racionais da filosofia (PAGNI, 2010, p.16).
A partir dessas duas concepções abre-se um embate entre sujeito do
conhecimento e sujeito da experiência (LARROSA, 2002). O sujeito do conhecimento,
condição para se atingir o conhecimento considerado verdadeiro, deve ser sempre o
mesmo, de modo similar, pois só deste modo se poderia garantir a veracidade e
universalidade dos conhecimentos científicos. Seu processo de construção,
portanto, prescindiria de uma criança ideal a ser tomada como referência.
Em contrapartida, de acordo com Larrosa (2002, p. 24), “o sujeito da
experiência se define não por sua atividade, mas por sua passividade, por sua
receptividade, por sua disponibilidade, por sua abertura”. Pensar a criança como sujeito da
experiência na modernidade implica, do ponto de vista das práticas pedagógicas, na recusa
da atividade como meio para atingir os conteúdos de uma área de conhecimento e, ao
mesmo tempo, em aceitar a passividade como condição para garantir experiências. Isto
não significa abandonar a criança, deixá-la à deriva de seus próprios recursos; não é o
laissez-faire da criança em um mundo pré-existente, pois esta renúncia não implicaria em
abdicar da tarefa do profissional da Educação Infantil: educar e cuidar da criança. Ao
contrário, aceitar a passividade do sujeito da experiência implica em repensar o tempo e o
espaço, de forma que a singularidade das crianças não seja reduzida a uma grade horária,
54
a uma rotina. Assim, por exemplo, a brincadeira não tem que acabar porque chegou a hora
de colorir com lápis um desenho fotocopiado no papel A4, ou de grafar o nome com auxílio
de um crachá etc.
Essa disputa continua na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), um
documento curricular para todo o país. Desde a LDB havia uma menção à
expressão “base nacional curricular”: o artigo 26 salienta que os Ensinos
Fundamental e Médio devem ter uma base comum e ser complementados por uma
parte diversificada. No entanto, a LDB não aponta (explicitamente) uma normatização:
mencionava apenas a base comum associada às Diretrizes Curriculares, que deveria ser
estabelecida tal como o descrito em seu artigo 945. Este artigo teve a redação
alterada pela lei nº 12.796, de 2013, a mesma que tornou obrigatória a matrícula de
todas às crianças a partir de quatro anos de idade:
Art. 26. Os currículos da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio devem ter base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e em cada estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos educandos.
Especialistas na área entraram, pois, na discussão do currículo comum,
questionando a importância, a função e o impacto para a Educação Infantil.
Antes de entrar nas especificidades da Educação Infantil é importante
compreender as disputas políticas e pedagógicas, públicas e privadas, que ocorreram no
processo de elaboração da BNCC. No ano de 2013 foram promulgadas as Diretrizes
Curriculares para a Educação Básica. No ano seguinte iniciaram as discussões a
respeito da BNCC sem considerar o processo de elaboração das Diretrizes
Curriculares, o que vinha ocorrendo havia dois anos sob a coordenação do MEC,
apesar de estar descrito na apresentação do documento que “são estas Diretrizes
que estabelecem a base nacional, responsável por orientar a organização,
articulação, o desenvolvimento e avaliação das propostas pedagógicas de todas as
redes de ensino brasileiro” (BRASIL, 2013, p.4). Então, qual a necessidade da BNCC
se as Diretrizes Curriculares, que haviam sido amplamente discutidas, estavam ainda
em processo de apropriação pelos professores?
45
Art 26 Estabelecer, em colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, competências e diretrizes para a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio, que nortearão os currículos e seus conteúdos mínimos, de modo a assegurar formação básica comum.
55
O currículo é um território em disputa de poder e a BNCC se mostra um
campo fértil para conflitos de interesses. Nas discussões da BNCC os indivíduos,
instituições e movimentos sociais se articularam buscando espaços para influenciar
sua produção.
As políticas públicas, por vezes, endossam aquilo que se propõem a romper:
embora tenham como objetivo garantir direitos infantis, muitas vezes não são
sustentadas por princípios que promovam a emancipação das crianças; mantém, pois,
estruturas de poder vigentes. Uma estratégia de maquinaria do poder seriam as
consultas públicas online. Na BNCC o processo foi aparentemente democrático mas, no final,
foi ouvido apenas o Movimento pela Base Nacional Comum, formado por instituições
privadas, institutos, instituições educacionais e fundações.
Este movimento foi criado em 2013 e, segundo o site oficial46, é formado por
um grupo não-governamental de profissionais da educação que atua na construção de
uma base curricular de qualidade. Segundo Peroni e Caetano (2015) o movimento foi
iniciado no seminário internacional organizado pelo Conselho Nacional de Secretaria
Estaduais de Educação (Consed) e pela Fundação Lemann. Neste evento foi firmado o
compromisso de criar uma base nacional comum para promover a imparcialidade
educacional e o ajustamento do sistema brasileiro de educação. Desta forma, “a base
serviria como espinha ‘dorsal’ para os direitos de aprendizagem de cada aluno, a
formação dos professores, os recursos didáticos e as avaliações externas” (PERONI e
CAETANO, 2015, p. 344). O apoio institucional ao movimento contou com diversas
instituições: Abave, Cenpec, Comunidade Educativa Cedac, Consed, Fundação
Lemann, Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, Fundação Roberto Marinho, Instituto
Ayrton Senna, Instituto Inspirare, Instituto Natura, Instituto Unibanco, Todos Pela
Educação e Undime.
A participação destas instituições na elaboração da Base nos mostra que
empresários articulam instituições para influenciar o currículo. Eles não se opõem ao
Estado e nem interferem nos interesses econômicos: atuam no e com ele para
modificar a formar de gerir a educação pública. Na elaboração da Base vemos que,
na disputa entre o público e o privado, o privado se articulou e direcionou o processo
46
MOVIMENTO PELA BASE. Disponível em https://goo.gl/JAeb4B. Acesso em 18/01/18.
56
de construção do documento, interferindo no seu conteúdo. Peroni e Caetano (2015,
p 348) afirmam que
o estado continua como responsável pelo acesso e, inclusive, amplia as vagas públicas, mas o “conteúdo” pedagógico e gestão da escola é cada vez mais determinado por instituições que induzem a lógica mercantil, com a justificativa de que, assim, estão contribuindo para a qualidade da escola pública.
A Base se tornou um documento que impõe um padrão nacional para
todo o país, mesmo com realidades tão diversas: o currículo é comum a todos os
estudantes brasileiros, o que é naturalizado por um discurso que postula o direito do
sujeito de obter determinadas aprendizagens já na educação básica. Este
documento contribui para práticas de educação neoliberal contemporâneas
(avaliação externa, parcerias público/privado, materiais didáticos padronizados,
formação de professores oferecida por grandes corporações etc).
Ter uma Base Nacional Comum Curricular poderia ser um caminho para
maior democratização dos conteúdos, se realmente tivesse sido debatida
amplamente com a sociedade e com especialistas da área. Porém, houve um
engessamento, cristalizando uma proposta voltada para o mercado.
No campo da Educação Infantil, o principal argumento da equipe técnica
para a necessidade de uma BNCC era o de que as DCNEI não haviam se efetivado
nas práticas educacionais, e que este documento poderia orientar as instituições
para realizar práticas que garantissem experiências. Campos e Barbosa (2015)
justificam a necessidade da BNCC na Educação Infantil afirmando que: “as
pesquisas continuam a indicar que as práticas cotidianas ainda são sistematizadas
muita mais numa concepção próxima do ensino escolarizante do que na lógica
indicada nas diretrizes curriculares”.
No entanto, o que vimos na última versão da Base foi um conjunto de
competências que os bebês e as crianças deveriam atingir. Apesar da BNCC utilizar
o termo campos de experiência, há uma fragmentação das práticas em objetivos de
aprendizagens e desenvolvimento: são 87 práticas esperadas para as crianças
atingirem no período de zero a cinco anos, dentro dos cinco campos de experiência:
i) o eu, o outro e o nós, ii) corpo, gestos e movimentos, iii) traços, sons, cores e
formas, iv) escuta, fala, pensamento e imaginação e v) espaço, tempos, quantidades,
relações e transformações.
57
Na BNCC, a noção de direito de aprendizagem é apresentado como um
direito do indivíduo, mas, se analisarmos o documento com atenção, percebemos
que se trata de uma ampliação do sistema de dominação: as empresas privadas e
os reformadores empresariais atuam no território em disputa (de poder), sem
explicitar sua condição de pretendentes a uma nova configuração de poder,
prescrevendo aquilo que eles julgam como fundamentais para a formação escolar.
Então, apesar do argumento de que seria necessária uma BNCC para
efetivar as DCNEI, o que observamos é que o texto fica mais próximo da estrutura
do RCNEI: os campos de experiências se assemelham aos eixos de trabalho. Sendo
assim, temos uma visão de currículo pautado em conteúdo, distanciando-se da
garantia de experiências das DCNEI.
Convém destacar que esse não é apenas um debate teórico: a disputa
curricular também afeta relações cotidianas no contexto das políticas municipais. Por
isso, refletimos sobre o modo como o currículo da Educação Infantil vem sendo
construído em Vinhedo.
2.2 Documento curricular: debate municipal
Analisamos a Proposta Pedagógica47 do município de Vinhedo. Esse
documento é assinado pelo prefeito Milton Serafim e pelo vice-prefeito e secretário
da Educação, Jaime Cruz, em 2013: “o presente documento foi elaborado visando à
organização da proposta do trabalho da Rede Municipal de Ensino e sua
implementação nas escolas” (VINHEDO, 2013, p.4). Não há menção à participação
da comunidade escolar (pais, professores, funcionários, crianças e adolescentes etc)
em sua elaboração. Isso mostra qual identidade cultural se pretende produzir, pois
não há participação na elaboração do documento dos sujeitos da ação.
Na introdução é dito que a Proposta Pedagógica é baseada nas
legislações educacionais vigentes. Há também um breve histórico da educação no
município de Vinhedo. Sobre a trajetória específica da Educação Infantil, é relatado
que as primeiras unidades funcionavam
47
Proposta Pedagógica do Município de Vinhedo. Disponível em goo.gl/RTmJFK. Acesso em 26/05/2017.
58
nos prédios das escolas estaduais, anos mais tarde a Prefeitura Municipal assumiu a Educação Infantil no município e foram sendo construídos gradativamente os Centros de Educação Infantil para atender as demandas dos bairros. De lá para cá o município vem investindo cada vez mais na educação das crianças de 4 meses a 5 anos de idade (VINHEDO, 2013, p.5).
Ainda sobre a Educação Infantil, além dessa descrição sucinta e
superficial da história das creches e pré-escolas municipais, há também uma seção
que trata de sua proposta pedagógica. O primeiro parágrafo desse capítulo, em
negrito, define o objetivo geral. Esta forma de iniciar está presente também nas
propostas para os demais níveis de ensino/educação (Ensino Fundamental,
Educação de Jovens e Adultos e Educação Especial).
Objetivo Geral: A Educação Infantil tem por finalidade o desenvolvimento integral da criança a partir em seus (sic) aspectos físicos, afetivo, psicológico, intelectual, social, complementando a ação da família e da comunidade (VINHEDO, 2013, p.22).
O objetivo geral remete ao artigo 29 da LDB:
a educação infantil, primeira etapa da educação básica, tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança até seis anos de idade, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade (BRASIL, 1996).
As DCNEI avançam ao definir o currículo como um
Conjunto de práticas que buscam articular as experiências e os saberes das crianças com os conhecimentos que fazem parte do patrimônio cultural, artístico, ambiental, científico e tecnológico, de modo a promover o desenvolvimento integral de crianças de 0 a 5 anos de idade (BRASIL, 2009, p.12.).
Notamos, por exemplo, o uso do verbo articular, que se refere a unir, ligar. Além
disso, a criança é concebida como um ser dotado de saberes e não apenas um receptáculo
de saber do adulto. Os educadores vão desenvolver suas práticas pedagógicas
considerando as crianças e suas singularidades, a partir do que elas têm e não do que lhes
falta, “articulando seus saberes com os conhecimentos” da sociedade.
Todavia, na proposta Pedagógica de Vinhedo tal definição não é utilizada. Ainda
que a significado de criança tenha sido obtida no texto das DCNEI, reconhecendo que a
criança “brinca, imagina, fantasia, deseja, aprende, observa, experimenta, narra, questiona e
constrói sentidos sobre a natureza e a sociedade, produzindo cultura” (BRASIL, 2009, p.12),
não são feitas referências aos seus saberes ao definir os objetivos da Educação Infantil.
59
Ainda assim, existem outros trechos do documento municipal que são
similares a partes das DCNEI. Eles tratam da continuidade do processo educativo
sem que haja antecipação do Ensino Fundamental.
Na Proposta Pedagógica de Vinhedo reconhece-se que:
Atualmente em todo o Brasil, tem-se dado especial atenção às discussões sobre como orientar o trabalho desenvolvido junto às crianças de 0 a 3 anos e como assegurar práticas para que ajudem a garantir a continuidade no processo de aprendizagem e desenvolvimento das crianças de 4 e 5 anos, sem, contudo, antecipar os conteúdos que serão trabalhados no Ensino Fundamental (VINHEDO, 2013, p.22).
Similarmente, as DCNEI afirmam que:
Em especial, têm se mostrado prioritárias as discussões sobre como orientar o trabalho junto às crianças de até três anos em creches e como assegurar práticas junto às crianças de quatro e cinco anos que prevejam formas de garantir a continuidade no processo de aprendizagem e desenvolvimento das crianças, sem antecipação de conteúdos que serão trabalhados no Ensino Fundamental (BRASIL, 2009, p.7).
Nos últimos parágrafos da Proposta Pedagógica é apontado um caminho
no qual a Educação Infantil não anteciparia o Ensino Fundamental:
Para que tais práticas sejam asseguradas em nossa rede municipal de ensino infantil, se fez necessário à realização de uma reflexão coletiva com toda equipe pedagógica sobre quem são essas crianças que todos os dias frequentam as nossas escolas e creches de Educação Infantil, e que tipo de infância queremos proporcionar a elas. Pois a prática pedagógica do educador refletirá necessariamente a concepção de criança e infância que ele tem. Neste sentido as diretrizes deram sua contribuição afirmando que a criança deve ser vista como “sujeito histórico de direitos que, nas interações, relações e práticas cotidianas, constrói sua identidade pessoal e coletiva, brinca, imaginam, fantasia, deseja, aprende, observa, experimenta, narra, questiona e constrói sentidos sobre a natureza e a sociedade, produzindo cultura”. Baseados nesta nova concepção de criança, infância e nos princípios Éticos, Políticos e Estéticos afirmados pelas novas Diretrizes Curriculares para a Educação Infantil, buscaremos construir um currículo mais detalhado para nortear as ações dos educadores do município de Vinhedo, observando a importante orientação que as práticas pedagógicas tenham como eixos norteadores as interações e a brincadeira. Embora o brincar não seja algo inato na humanidade, mas resultado de uma aprendizagem social, ele é considerado por muitos pesquisadores e educadores da infância como uma das linguagens expressivas mais importantes para a criança durante o seu desenvolvimento. Através das brincadeiras as crianças exercitam
60
seus saberes, são desafiadas a resolver problemas, entram em contato com diferentes tipos de materiais e espaços que podem explorar e organizar, fazem parcerias e aprendem a resolver os conflitos que surgem, escolhem os papéis que querem desempenhar colocando em jogo o que sabe sobre a cultura a qual pertencem. De forma lúdica e protegida, através do brincar as crianças vão construindo suas aprendizagens, se lançando sobre o mundo dentro de seu próprio ritmo e são afetadas pelo meio culturais, mas também, o reelaboram e o devolvem como uma nova forma de produção de cultura infantil. Já sabemos que a criança aprende através das interações que realiza sobre o meio físico e social, e o maior instrumento que utiliza para isso é o seu próprio corpo que possui sentidos ávidos pela experimentação de diferentes sensações, que se provocadas e estimuladas lhes trarão informações e aprendizagens sobre o mundo e a cultura em que está inserida. Por isso, as práticas de nossos educadores devem estar organizadas considerando a forma que a criança aprende, prevendo no planejamento atividades em que as crianças possam usar o corpo todo e explorar todos os seus sentidos, principalmente através do brincar e das diferentes formas de parcerias que ele possibilita (VINHEDO, 2013, p.22 grifo nosso).
A frase que grifamos mostra uma concepção de infância como algo cedido às
crianças, que não são vistas como atores sociais que vivenciam e experimentam suas
infâncias. No restante do trecho, diferentemente dos analisados anteriormente, o caminho
seria desenvolver práticas pedagógicas que tivessem como eixos norteadores as interações
e as brincadeiras. Essa forma de organizar o currículo leva em consideração as
especificidades da Educação Infantil e rompe com a organização curricular própria do
Ensino Fundamental (divisão em áreas do conhecimento). Observamos, portanto, uma
tentativa do município, nesse último trecho do documento, de aproximação com DCNEI
não apenas no que diz respeito ao conceito de criança, como também no que se refere ao
papel das interações e brincadeiras no processo educativo.
No entanto, o modo como é estruturada a rotina da Educação Infantil
mostra um grande contrassenso em relação às concepções explicitadas no trecho
anterior, sobretudo quando se organiza essa rotina em uma grade curricular onde os
conhecimentos não são articulados e as interações e brincadeiras não atravessam o
currículo de modo integral. Ao contrário, cada componente curricular possui uma
quantidade de horas pré-definidas a serem desenvolvidas ao longo da semana,
como se observa a seguir:
61
Tabela 1: Grade curricular da Educação Infantil de Vinhedo
Fonte: Proposta pedagógica do Município de Vinhedo, p.21
48.
É importante pensarmos no significado da palavra grade. Por definição,
remete a três características: i) separação/ausência de liberdade, na medida em
que se fecha em determinada formatação curricular, impedindo outras formas de
organização, ii) sustentação, uma vez que as determinações previstas sustentam
as práticas pedagógicas e iii) molde, tendo em vista que enquadra e determina o
fazer pedagógico, como um modelo que deve ser seguido, tirando a possibilidade de
criação de professores e crianças.
O currículo como listas de atividades, grades de conteúdo, técnicas e
procedimentos de ensino não é despretensioso e neutro. Para Silva (1999, p.120) “não
existe saber que não seja a expressão de uma vontade de poder. Ao mesmo tempo, não
existe poder que não se utilize do saber, sobretudo de um saber que se expressa como
conhecimento das populações e dos indivíduos submetidos ao poder”.
48
Disponível em https://goo.gl/RTmJFK. Acesso em 26/05/2017.
62
Ao analisarmos uma grade curricular é possível compreender as
concepções de criança, educação, aprendizagem, relação pedagógica, formação
humana e outras, e explicitar as identidades que serão produzidas conforme a
posição política que as determina. A grade curricular tem como princípio organizar,
verificar quais habilidades serão desenvolvidas nas crianças, buscar instrumentos e
procedimentos para atingir e avaliar a aprendizagem dos conteúdos.
Na grade curricular do município de Vinhedo os eixos de trabalho do RCNEI
(“linguagem oral e escrita”, “matemática”, “natureza e sociedade”, “música” e
“movimento”) refletem uma concepção escolarizante do currículo. Há três áreas do
conhecimento (Educação Artística, Educação Física e Inglês) que são lecionadas por
professores com a respectiva formação específica. Por exemplo: a Educação Física
pertence ao eixo de trabalho “movimento”, de acordo com o RCNEI, mas na grade
curricular aparece separada. O brincar é visto como uma área do conhecimento: deve
desenvolver habilidades específicas (com um tempo determinado e uma quantidade de
aulas a serem dadas pelo professor). A brincadeira é tratada como algo separado das
vivências, como se ela não fosse uma experiência cultural e social, esquecendo-se de
que o brincar é um dos eixos centrais da Proposta Pedagógica:
Brincar uma expressão que nasce no corpo e se prolonga em movimentos de “sentido”. Nada é aleatório no repertório das brincadeiras das crianças, pois elas carregam dentro de si uma memória do passado e do futuro. Sua característica de imprevisibilidade, de imaginação, de sonho e também de inocência e alegria, aponta para uma possibilidade nova de construção do humano (PEREIRA, 2013, p.53).
A importância da brincadeira no processo de socialização e educação das
crianças é também discutida por autores como Fernandes (2004), Corsaro (2011) e
Kishimoto (2010). Em sua produção na década de 1940, Fernandes destaca que
“existe uma cultura infantil – uma cultura construída de elementos quase exclusivas
dos imaturos e caracterizado por sua natureza lúdica” (2004, p.246). Para o autor, as
crianças adquirem, em interações, os elementos da cultura infantil, e “esses são
elementos da cultura adulta, incorporados à infantil por um processo de aceitação e
nela mantidos com o correr do tempo” (idem).
Fernandes (2004) nomeia brincadeiras como “papai e mamãe” de brinquedos
infantis ou folguedos. Em sua pesquisa As Trocinhas do Bom Retiro, nota que as crianças
utilizam mais a função social do que características específicas de uma pessoa, ou seja,
63
o ato de brincar de pai, por exemplo, não é a representação de um pai específico, mas a
ação social de um pai na nossa sociedade. Então, os folguedos não são imitação dos
adultos pelas crianças “porque estes folguedos pertencem ao patrimônio cultural do grupo
e já estão suficientemente despersonalizados, pela duração do tempo e pelas transmissões
sucessivas de grupos” (FERNANDES, 2004, p. 249). Ou seja, as crianças, em grupos
infantis, produzem cultura.
Corsaro (2011), um sociólogo da infância contemporâneo, fala sobre o
papel das culturas infantis no processo de educação e participação das crianças, e
assinala que as brincadeiras são um espaço onde elas podem reproduzir e criar
elementos do mundo que habitam. Esse movimento é denominado como reprodução
interpretativa: “o termo reprodução inclui a ideia de que as crianças não se limitam a
internalizar a sociedade e a cultura, mas contribuem ativamente para a produção e
mudança culturais” e o termo interpretativo “abrange aspectos inovadores e criativos
da participação infantil” (CORSARO, 2011, p.31). Por fim, não podemos deixar de
mencionar o debate proposto por Kishimoto, na Consulta Pública Brinquedos e
Brincadeiras na Educação Infantil:
O brincar é uma ação livre, que surge a qualquer hora, iniciada e conduzida pela criança, dá prazer, não exige, como condição, um produto final, relaxa, envolve, ensina regras, linguagens, desenvolve habilidades, e introduz no mundo imaginário(...) É importante porque dá o poder à criança para tomar decisões, expressar sentimentos e valores, conhecer a si, os outros e o mundo, repetir ações prazerosas, partilhar brincadeiras com o outro, expressar sua individualidade e identidade, explorar o mundo dos objetos, das pessoas, da natureza e da cultura para compreendê-lo, usar o corpo, os sentidos, os movimentos, as várias linguagens para experimentar situações que lhe chamam a atenção, solucionar problemas e criar. Mas é no plano da imaginação que o brincar se destaca pela mobilização dos significados. Enfim, sua importância se relaciona com a cultura da infância que coloca a brincadeira como a ferramenta para a criança se expressar, aprender e se desenvolver (KISHIMOTO, 2010, p.1)
Esses autores nos mostram a importância da brincadeira na produção de
cultura infantil. A disputa curricular se materializa na Proposta Pedagógica e na
grade curricular. Ao classificar os conhecimentos como legítimos ou ilegítimos,
apontamos quais saberes serão privilegiados e quais serão descartados; esta
escolha revela que sujeitos queremos formar e qual modelo de sociedade preferimos
(SILVA, 1999). Sendo assim, os documentos curriculares não têm apenas a
64
finalidade de nortear as práticas pedagógicas, mas também a de produzir uma
retórica política no município.
Outro aspecto que merece nossa atenção diz respeito ao lugar dos
bebês. O documento norteador das políticas municipais para a Educação Infantil não
fala especificamente sobre eles49. São atendidos por profissionais sem formação
específica e cujo contrato prevê apenas atividades de “recreação” e “cuidado”. A
Proposta Pedagógica não oferece orientações específicas para esse trabalho, e não
há no município um documento que trate disso.
Ainda que excluídos da Proposta Pedagógica do município, os bebês não
foram excluídos da página Cidade Educadora. Há, no conjunto de dados analisados,
uma parcela significativa de publicações feitas por auxiliares de Educação Infantil
responsáveis por turmas de berçário I e II50. Discutimos no capítulo 3 as postagens
divulgadas na página da Secretaria de Educação.
49
Ainda que citem em alguns trechos a educação das crianças de zero a três anos, não orientam o trabalho com os bebês, como faz com a educação das crianças a partir de dois anos.
50 O grau de escolarização exigido para esta função é Ensino Médio.
66
3.1 Analisando alguns termos
Utilizamos o programa N-Vivo para identificar as publicações específicas
da Educação Infantil51 postadas no Facebook da “Cidade Educadora”. Foram
selecionadas 815 referências. Primeiramente verificamos os 50 termos que ocorrem
com mais frequência nas publicações52:
Tabela 2: Palavras mais usadas nas publicações Palavra Contagem Percentual ponderado
(%)
Crianças 568 1,83
Alunos 277 0,89
Semana 225 0,72
Educação 210 0,67
Atividades 185 0,59
Turma 176 0,57
Projeto 144 0,46
Escola 140 0,45
Municipal 137 0,44
Infantil 136 0,44
Fase 132 0,42
Pequeno 130 0,42
Professora 125 0,40
Auxiliares 123 0,40
Brincadeiras 120 0,39
Maternal 120 0,39
História 94 0,30
Momento 92 0,30
Vinhedo 90 0,29
Festa 89 0,29
Mônica 89 0,29
Pais 88 0,28
Pica 85 0,27
Brincar 80 0,26
Família 80 0,26
Ensino 72 0,23
Polegar 72 0,23
Leitura 70 0,22
Participaram 68 0,22
51
Foram selecionadas as publicações em que aparecem as palavras “C.E.I.”, “C.E.I.s”., “CEI” e “CEIs” e “infantil/infantis”.
52 Nesta busca selecionamos palavras com no mínimo quatro letras. Foram excluídas as que não tinham sentido para pesquisa (“como”, “entre”, “também”, “seus” etc).
67
Equipe 66 0,21
Pedrinho 64 0,21
Diversão 62 0,20
Branca 60 0,19
Alegria 58 0,19
Emília 58 0,19
Neve 58 0,19
Unidades 58 0,19
Mágico 57 0,18
Aula 56 0,18
Amarelo 55 0,18
Anastácia 54 0,17
Berçário 54 0,17
Realizada 52 0,17
Sexta 52 0,17
Feira 51 0,16
Apresentação 50 0,16
Durante 50 0,16
Visconde 49 0,16
Trabalho 49 0,16
Diferentes 48 0,15
Fonte: Elaborado pela autora.
As palavras mais frequentes foram classificadas:
● pessoas: criança(s), aluno(s), professora(s)/e(s), auxiliar(es), equipe(s), família(s) e pai(s)/mãe(s).53
● objetivo da ação pedagógica: educação, ensino, aula, trabalho.
● formas de organização das crianças: berçário, fase, turma e maternal.
● organização curricular: semana, atividade e projeto.
● atividades: brincadeiras, festa, leitura, apresentação e história.
● local das instituições e formas de nomeá-las: Vinhedo, unidades, escola, municipal, infantil).
● marcações do tempo: semana, feira, sexta, durante, momentos.
● sentimentos despertados: diversão e alegria.
● Participaram e Diferentes54 não foram incluídas em nenhuma categoria.
53
Ausência dos termos meninos e meninas mostra a falta de discussão sobre a questão de gênero no município de Vinhedo.
54 A palavra diferente apareceu na maioria das publicações como adjetivo. Por exemplo: diferentes brincadeiras, diferentes hortaliças, diferentes tintas etc. Encontramos duas publicações que utilizaram a frase “tudo bem ser diferente”: uma referia-se ao livro do Todd Parr que tem este nome e, a outra, aparece em uma publicação sobre a Semana da Pessoa com Deficiência.
68
● nomes dos Centros de Educação Infantil: Pequeno Polegar, Turma da Mônica, Visconde de Sabugosa, Tia Anastácia, Pica Pau Amarelo, Mágico de Oz, Emília, Branca de Neve, Pedrinho.
Em relação ao último grupo, nos cabem os seguintes questionamentos:
De onde vêm estes nomes? Por que são estes e não outros? Por que não é o nome
de um líder comunitário? De uma mulher que lutou por creche? Ou de alguém da
história de Vinhedo. Isto nos revela a identidade cultural que se pretende produzir.
Não há uma valorização da história dos cidadãos vinhedenses, das lutas sociais nos
âmbitos municipal e nacional.
Analisamos alguns termos que aparecem na Tabela 2 e estão presentes
na Proposta Pedagógica do município e nas reportagens do site da prefeitura. Estes
termos mostram o posicionamento do município frente aos debates atuais no campo
da Educação Infantil.
Atualmente é possível encontrar na área da Educação Infantil um movimento investigativo em torno das crianças e suas infâncias. Esse esforço de compreensão vem agregar-se a outras contribuições de diferentes áreas do conhecimento na constituição de uma Pedagogia da Educação Infantil (FINCO, 2015, p.236)
Uma Pedagogia da Educação Infantil tem centralidade nas crianças, se
afastando de práticas dos demais níveis de ensino. Sendo assim, alguns termos
achegados à concepção escolar estão sendo evitados e substituídos, como: “aluno”
por “criança”, “ensino” por “educação”, “escola” por “Centro de Educação Infantil”,
“aula” por “interação entre adultos e crianças” etc. Na Tabela 2, podemos observar
este embate nas categorias: pessoas, objetivo da ação pedagógica, local das
instituições e formas de nomeá-las.
Observamos nas publicações que quem frequenta a instituição é
nomeado como crianças e alunos.
69
Gráfico 1: Pessoas
Fonte: Elaborado pela autora.
Observamos que na maioria das vezes se utiliza a palavra “crianças”, mas ainda há um
número significativo de publicações que trazem a palavra “aluno”. No campo da Educação
Infantil as duas expressões não são sinônimas: refletem posições antagônicas.
A passagem da compreensão da criança como simples objeto ou produto da ação do adulto para a de um ator (ou parceiro) de sua própria socialização é, portanto, a grande mudança que se estabelece: a criança não é receptáculo passivo de socialização numa ordem social adulta. Esta releitura crítica do conceito de socialização no quadro estrutural-funcionalista – que leva a considerar a criança como um ator social – também despe de “naturalidade” e desinteresse” a visão moderna de infância (PINTO, 1997) e isto, por sua vez, nos permite compreender o caráter essencialmente político das visões de infância/ crianças nas, porque relacionadas à constituição e manutenção de determinada ordem social (MARCHI, 2010, p.3)
Compreender a criança como ator social é vê-la como um ser ativo que,
ao mesmo tempo em que reproduz cultura, também a produz. A Sociologia da
Infância acredita numa concepção multidimensional, “onde a criança é vista como
um parceiro, um também agente de sua própria formação”, substituindo a concepção
funcionalista da Sociologia da Educação, que compreende “a socialização da
criança como processo vertical de inculcação e transmissão de valores e saberes
aos imaturos visando sua formação em indivíduos plenamente adaptados ao meio
social a que estão destinados” (MARCHI, 2010, p.5).
568
277
125 123 88 80 66
Crianças Alunos Professora Auxiliares Pais Família Equipe
70
A Sociologia da Educação estuda as funções das instituições modernas
de que as crianças participam, a escola e a família. Seus estudos se concentram no
papel de aluno.
O “ofício de aluno” pode ser definido antes de tudo como a “aprendizagem das regras do jogo” escolar. Ser “bom aluno” não é somente assimilar conhecimento, mas também estar disposto a “jogar o jogo” da instituição escolar e estar disposto a exercer um papel que revela tanto conformismo quanto competência. Assimilar o currículo, não somente a formal, mas também o chamado “currículo oculto” (onde se apresenta as regras não explícitas, mas igualmente necessárias da cena pedagógica) é tornar-se um “nativo da cultura escolar”, capaz de desempenhar o “papel de aluno” sem perturbar a ordem institucional nem demandar atenção particular (MARCHI, 2010, p.5)
A Sociologia da Infância move-se para o estudo da criança e do seu modo
de vida, e esses saberes contribuem para constituição da Pedagogia da Educação
Infantil. As DCNEI, em consonância com essa pedagogia, pensam o fazer
pedagógico a partir da criança e suas relações, valorizando o lúdico, as brincadeiras
e as culturas infantis.
A palavra “aluno” é a segunda mais utilizada nas publicações analisadas.
Ao utilizar esse termo, o município continua desconsiderando a especificidade da
Educação Infantil e seus documentos nacionais. Para compreender melhor o
posicionamento da Secretaria da Educação, analisamos uma publicação que é
também parte de uma reportagem publicada no site da prefeitura, de autoria da
Secretaria de Educação.
71
55
Esta publicação mostra os bebês (recém-chegados ao mundo) no ofício
de aluno, começando a tornar-se um “nativo da cultura escolar”: as práticas buscam
seu desenvolvimento motor e neurológico, e os projetos são determinados
unilateralmente pelos adultos. Para Larrosa (2015), a criança ao nascer traz o novo
e o enigmático, rompe com as nossas certezas e inicia um novo tempo, uma
possibilidade de mudança da história; coloca em risco, pois, as estruturas
hegemônicas. A educação muitas vezes tem o objetivo de integrá-la e transformá-la
em cidadã, reduzindo-a ao que já existe, ao invés de recebê-la, acolhê-la, ouvi-la e
estar disposta a se abrir ao novo. Assim
Um currículo para criança pequena exige estar inserido na cultura, na vida das crianças, das famílias, das práticas sociais e culturais, ou seja, é um currículo situado que encaminha para a experiência não na perspectiva do seu resultado, mas naquela que contenha referências para novas experiências, para a busca do sentido e do significado, que considera a dinâmica da sensibilidade do corpo, a observação a constituição de relação de pertencimento, a imaginação, a lucidade, a alegria, a beleza, o raciocínio, o cuidado consigo e com o mundo (BARBOSA e RICHTER, 2015, p.196).
Foi pensando nesta especificidade que, quando esta etapa passou a integrar
55
CIDADE EDUCADORA. Facebook. 14/04/2015. Disponível em https://goo.gl/AVdGPp Acesso em 24/12/2017.
72
a Educação Básica, foi nomeada como Educação Infantil “com a intencionalidade de
diferir do termo ensino que antecedia as etapas Fundamental e Médio” (BARBOSA e
RICHTER, 2015, p.196). No entanto, notamos em várias publicações, reportagens e
na Proposta Pedagógica do Município de Vinhedo, nomeia inadequadamente esta
etapa como Ensino Infantil.
A análise dos modos de nomear a instituição e as atividades revelam a
compreensão que se tem a respeito da Educação. Vejamos no Gráfico 2 a quantidade de
vezes em que os termos “educação”, “ensino”, “aula” e “trabalho” aparecem:
Gráfico 2: Objetivos das ações pedagógicas
Fonte: Elaborado pela autora.
Com 72 ocorrências da palavra “ensino” e 56 da palavra “aula”, nos parece que a
concepção de Educação Infantil ainda apresenta traços de etapas de ensino.
Na história da educação foram muitas denominações usadas para diferenciar instituições educativas: academia, liceu, ginásio, colégio, universidade. Cada uma dessas unidades educacionais apresentam um modo específico de funcionamento. Todas apresentam elementos comuns de “escola”, mas garante suas especificidades que têm relação com a idade, com os modos de aprender, com o tipo de conhecimento a ser transmitido, com o tipo de formação dos profissionais. Garantir esta especificidade na concepção de escola para Educação Infantil é fundamental. (BARBOSA e RICHTER, 2015, p.187).
Mostramos no gráfico abaixo, que ilustra a categoria local das instituições
e formas de nomeá-las, que “escola” aparece 140 vezes:
210
72
56 49
Educação Ensino Aula Trabalho
73
Gráfico 3: Local das instituições e formas de nomeá-las
Fonte: Elaborado pela autora.
“Escola” é a palavra mais mencionada nesta categoria. Mais uma vez o
município se posiciona mais como uma etapa de transmissão do que de vivência de
experiências. Acreditamos que são importantes os termos que utilizamos na
Educação Infantil, pois, ao nos afastarmos dos conceitos que são utilizados para
pensar as outras etapas da Educação, afirmamos as especificidades desta etapa.
Ainda pensando a nomeação, analisamos a categoria formas de
organização das crianças: berçário, fase, turma e maternal. Estes termos carregam
diversas concepções pedagógicas de Educação Infantil.
o Berçário faz referência a berço, que podemos compreender como: i) começo / início / origem, ii) características ligadas à primeira infância, iii) uma pequena cama com grade que protege e embala o bebê. O objeto berço foi muito utilizado nas instituições de Educação Infantil para conter o bebê, no intuito de protegê-lo. A partir de uma pedagogia da Educação Infantil, a intenção é a exploração do espaço pelo bebê e a possibilidade de interação com os objetos, com os adultos e com os outros bebês. Por isso, os berços, que enchiam os espaços e permitiam que os bebês passassem grande parte do dia dentro deles, foram substituídos por colchões (no chão), que permitem sua mobilidade.
o Fase: refere-se a progresso, a crescimento, a um período com características próprias que passará por sucessivas mudanças. No campo da pedagogia está muito ligado ao desenvolvimento infantil (psicologia): a cada fase há uma expectativa de desenvolvimento.
o Maternal: relativo à relação entre mãe e filho. Contém traços de uma
140 137 136
90
58
Escola Municipal Infantil Vinhedo Unidades
74
Educação Infantil voltada exclusivamente para o cuidado, que seria tarefa da mãe (a mulher “naturalmente” preparada para o cuidado das crianças e da família).
o Turma: grupo de pessoas com objetivos comuns e interesses parecidos. Muitas vezes há uma liderança.
Os termos “berçário”, “maternal” e “fase” são usados para agrupar as
crianças em uma seriação anual:
Tabela 3: Agrupamento das crianças nas turmas
Nomenclatura Idade
Berçário I 4 -12 meses
Berçário II 1 ano completo até 31/03
Maternal I 2 anos completos até 31/03
Maternal II 3 anos completos até 31/03
Fase I 4 anos completos até 31/03
Fase II 5 anos completos até 31/03
Fonte: Elaborado pela autora.
As DCNEI visam uma maior interação das crianças de diferentes faixas
etárias, o que não se encaixa na seriação anual realizada no município de Vinhedo.
Maria Carmem Barbosa (2009, p.5) define “bebês como crianças de 0 a 18 meses;
crianças bem pequenas como crianças entre 19 meses e 3 anos e 11 meses;
crianças pequenas como crianças entre 4 anos e 6 anos e 11 meses”. Estas
especificidades podem ser consideradas ao agrupar as crianças em turmas. Alguns
municípios e instituições vêm considerando as discussões dos especialistas da área
e as contribuições das DCNEI e modificaram a forma de organizar as crianças e a
nomenclatura das turmas. No município de Vinhedo, não houve esta discussão e as
nomenclaturas utilizadas estão naturalizadas.
Sabemos que não basta apenas mudar a nomenclatura, é preciso
práticas pedagógicas que condizem com a especificidade dos bebês e das crianças
pequenas. Para mudar a prática é necessário debate e conscientização, mudança
na forma de pensar o currículo e as políticas públicas. Pode haver uma mudança de
postura quando se muda o uso do conceito. Mas será que isso é possível no
contexto atual do município de Vinhedo?
75
3.2 Análise das postagens: modelos de planejamento
Para cumprir com os propósitos desta pesquisa, acreditamos que é essencial
compreender as relações que se estabelecem no âmbito da Educação Infantil. Por isto
analisamos as publicações que apresentam as expressões identificadas em verde,
agrupadas na categoria organização curricular (atividade, semana e projeto).
No Brasil, segundo Ostetto (2013), os modelos de planejamento mais
recorrentes são: “lista de atividades”, “datas comemorativas”, “áreas do desenvolvimento”,
“áreas de conhecimento” e “por tema”. Observamos na Tabela 2 que a organização
curricular das publicações da página Cidade Educadora predominantes são: “semanas
comemorativas”, “atividades” e “projetos”. Os três modelos mais recorrentes foram
definidos a partir do ponto de vista teórico de Ostetto (2013), Abramowicz e Wajshop
(1999), Barbosa (2006 e 2008) e Silva (2010). Vejamos:
Semanas comemorativas
● Repetição anual dos mesmos assuntos;
● Conhecimento superficial, sem aprofundamento das temáticas;
● Pouca criação das crianças e do professor;
● Assunto distante do interesse das crianças;
● Grande parte das datas é escolhida por adultos;
● As datas mantêm a identidade hegemônica do homem branco, heterossexual, europeu e cristão; e
● Incentivo ao consumo e às práticas religiosas dominantes (catolicismo).
Atividades
● Ações fragmentadas e repetitivas, sem continuidade pedagógica;
● Necessidade de ocupar o tempo das crianças, sem um propósito educativo; e
● Pouca relação com a vivência das crianças.
Projetos
● Surgem dos acontecimentos cotidianos nos CEIs;
● Os temas podem ser sugeridos por crianças, professor(a) ou pais;
● Criação e autonomia do professor e das crianças;
● Prática interdisciplinar; e
● Aprofundamento dos assuntos.
Vejamos a seguir como as postagens analisadas remetem a cada um
destes modelos de organização curricular.
76
3.2.1 Semanas comemorativas
Diante da grande ocorrência da palavra “semana”, buscamos
compreender como é significada nas publicações. Primeiramente calculamos o
percentual de publicações em que a palavra aparece:
Gráfico 4: Publicações em que aparece a palavra “semana”
Fonte: Elaborado pela autora.
Aparece em 197 publicações, que categorizamos em três grupos:
I. Informes da Prefeitura: marcam o período de tempo, e têm a função de informar a população sobre eventos que vão ocorrer ou já ocorreram.
II. Atividades nas unidades: também marcam o período de tempo, mas a função deste tipo de publicação é apresentar as ações curriculares desenvolvidas nos CEIs.
III. Semanas comemorativas: período de tempo em que se comemora determinado acontecimento considerado relevante do ponto de vista cultural, histórico, social, etc.
No gráfico abaixo sistematizamos os dados a partir destas categorias:
Gráfico 5: Categorização das publicações com a palavra “semana”
Publicações com a palavra
semana ; 24,17%
Outras publicações ;
75,83%
77
Fonte: Elaborado pela autora.
Como grande parte das publicações (84%) é referente às semanas
comemorativas, categorizamos acontecimentos mais rememorados:
Tabela 4: Semanas comemorativas
Semanas Quantidades
Semana da Criança 50
Semana do Brincar 30
Semana da Pátria ou Cívica 25
Semana da Leitura 21
Semana Especial (férias, voltas aulas, adaptação) 14
Semana da Páscoa 8
Semana do Deficiente 7
Semana do Aniversário de Vinhedo 2
Semana do Trânsito (Maio Amarelo) 2
Semana do Meio Ambiente 1
Semana do Folclore 1
Semana do Carnaval 1
Semana das Mães 1
Semana da água 1
Semana do idoso 1
Soma Acumulada 165
Fonte: Elaborado pela autora.
Na Tabela 4 mostramos que há 13 semanas relacionadas a datas
comemorativas, fora as semanas especiais (semana de adaptação, semana de
férias, última semana do ano e outras). Em média, um ano letivo tem 42 semanas,
portanto grande parte das atividades pedagógicas é baseada em atividades
comemorativas. Há comemorações que são mais publicadas, como as semanas da
Semanas comemorativas
84%
Atividades das Unidades
11%
Informes da Prefeitura
5%
78
criança, do brincar, da pátria e da leitura56. Ao buscar essas comemorações no site
da prefeitura descobrimos que são determinadas pela Secretaria de Educação. Por
exemplo, a Semana do Brincar: “as crianças das 19 unidades de Educação Infantil
da Prefeitura de Vinhedo tiveram uma semana diferente. É que a Secretaria de
Educação adotou, já pelo terceiro ano seguido, a semana do brincar”57.
São escolhidas algumas festividades a partir do ponto de vista do adulto e
de uma visão dominante (em especial, dos grupos que detém o poder e a riqueza,
excluindo diversas facetas da história). Nas publicações, na maioria das vezes
aparecem atividades propostas pelas equipes para todas as turmas. Por exemplo:
na semana da Pátria, visita dos cachorros da Guarda Municipal, carimbo nas mãos
das crianças para formar a bandeira do Brasil, confecção de adereços com papel
crepom com as cores azul, verde e amarelo, apreciação do Hino Nacional, chapéu
de jornal de soldado, produção de enfeites em verde e amarelo etc. Ao acabar a
semana é iniciada outra comemoração, e assim por diante. Trata-se, portanto, de
um planejamento por lista de atividades, apesar de ter uma aparência de
continuidade. Concordamos com Ostetto (2013, p.183):
A articulação é aparente justamente porque não amplia o campo de conhecimento para as crianças, uma vez que as datas se fecham-se em si mesmas, funcionando mais como pretexto para desenvolver esta ou aquela atividade ou habilidade.
Esse é um planejamento rudimentar, mas ainda utilizado na Educação
Infantil. É um modelo que está atrelado à repetição de ritos ano a ano (mesmo que
os professores modifiquem as músicas, os desenhos e os presentes, os objetivos e
as comemorações são os mesmos) e as atividades tratam os conhecimentos de
forma superficial e simplória. Para Barbosa (2008, p.40), esse modelo de
planejamento ainda continua sendo realizado porque
a formação de professores ainda é precária no que diz respeito aos conhecimentos específicos que eles precisarão trabalhar com as crianças de educação infantil. Nos cursos de formação de professores, dificilmente os docentes têm experiência na Educação Infantil ou em pesquisas que relacionem a sua área de conhecimento e a infância. Os currículos privilegiam as disciplinas de fundamentos e metodologias de
56
Analisamos as datas comemoradas mais detidamente em 3.3 Análise das postagens sobre atividades comemorativas.
57 VINHEDO, 29/05/2015. Disponível em http://goo.gl/3bISQO. Acesso em 06/06/2017.
79
ensino, que dificilmente agregam uma revisão dos conhecimentos curriculares que podem (ou devem) ser trabalhado mais do que aquilo que vai ser estudado. Assim, em sua prática, os professores ensinam o que há de senso comum, com conhecimentos simplórios, muitas vezes aqueles que adquiriram em sua própria infância, isto é, conhecimento desnaturalizado, fragmentado e óbvio.
No caso da Educação Infantil da rede municipal de Vinhedo, além da
problemática apresentada por Barbosa, também há o incentivo e valorização dessa
forma de organização curricular por parte da Secretaria de Educação.
Constatamos que as datas comemorativas são uma forma recorrente de
organizar o planejamento curricular. No entanto, neste capítulo analisamos apenas
24,17% das publicações, que são as que mobilizam a palavra “semana”. Apresentamos
adiante uma análise mais ampla (ver 3.3 Análise das postagens sobre atividades
comemorativas), contemplando todas as publicações dos anos de 2015 e 2016).
3.2.2 Atividades
A atividade na vida cotidiana é vista como ação, movimento e operação. O
sujeito da atividade é ativo e potente, porém, nas instituições escolares, geralmente as
crianças realizam a mesma atividade, ao mesmo tempo.
Segundo Ostetto (2013) o planejamento por lista de atividades é um
modelo no qual o professor propõe os exercícios que serão desenvolvidos58. De
acordo com a autora, “esse tipo de planejamento é rudimentar, pois não vem
embasado em qualquer princípio educativo explícito. O que define é a necessidade
de ocupar as crianças durante o tempo em que permanecem na instituição”
(OSTETTO, 2013, p. 180). Desconsidera, por exemplo, a relação entre a educação e
a vivência pessoal, que é fundamental para gerar experiências.
Das 815 publicações analisadas, selecionamos as que mobilizam a
palavra “atividade” (são 149 incidências):
58
Por exemplo: segunda-feira, leitura de história, massinha, desenho livre e parque etc. As atividades são repetidas semanalmente.
80
Gráfico 6: Publicações com a palavra “atividade”
Fonte: Elaborado pela autora.
Primeiramente separamos as atividades comemorativas, que visam
comemorar e exploram temas ou acontecimentos. As restantes dividimos em:
atividades de exploração livre com diversos materiais, atividades dirigidas para
ensinar conhecimentos / atitudes específicas e informes da prefeitura à população
sobre atividades que vão ocorrer ou já ocorreram.
Gráfico 7: Função da palavra “atividade” nas publicações
Fonte: Elaborado pela autora.
Publicações com a palavra atividade
18%
Outras publicações
82%
Atividades Comemorativas
38%
Atividades de exploração livre
37%
Atividades dirigidas para
ensinar conhecimento/ati
tude específica 16%
Informes 9%
81
Optamos por analisar apenas as atividades de exploração livre e
atividades dirigidas59. Nas atividades de exploração livre os professores e auxiliares
de Educação Infantil têm objetivos a serem atingidos, mas há a possibilidade de as
crianças criarem e transformarem espaços e materiais. Encontramos atividades
como exploração livre (de jornal, livro, argila e massinha), pintura com guache e
meleca, experimentação e brincadeira com macarrão cozido, teatro de fantoche,
brincadeiras de faz-de-conta e outras.
Para as atividades orientadas, que têm o objetivo de ensinar um conhecimento
ou uma atitude específica, há propostas como: teatro (ensinar as crianças a conviverem),
salada de frutas (ensinar o nome das frutas em inglês), caça-nomes (ensinar a leitura e
escrita de palavras), caixa de resolução de problemas (desenvolver conceitos matemáticos) e
outras. O professor orienta todo o processo para atingir os objetivos propostos, diminuindo os
momentos de criação e exploração das crianças.
Ter na rotina dos CEIs esses dois modelos de atividades é importante:
A programação diária deve contemplar momentos de trabalho orientado e momentos livres, além da higiene da alimentação. O mais adequado é que se possam estabelecer vínculos entre os trabalhos propostos e as brincadeiras das crianças, através da oferta de materiais e espaços comuns, articulados em torno dos projetos desenvolvidos (ABRAMOWICZ E WAJSKOP, 1999, p.14).
Observamos que a maioria das atividades não é vinculada aos projetos
das turmas. Grande parte das publicações que analisamos são sobre atividades
realizadas por auxiliares de Educação Infantil, e nos parece que a maioria não
desenvolve projetos.
Das 149 publicações que têm a palavra “atividade” no corpo do texto, 70 são
referentes a datas comemorativas e informes. As demais, em sua maioria são
pertinentes, porém desvinculadas de um projeto. O planejamento organizado a partir de
lista de atividades envolve ações fragmentadas, repetitivas, sem continuidade pedagógica
e com a necessidade de ocupar o tempo das crianças. No entanto, as propostas partem
de músicas, histórias e brinquedos apreciados por elas.
59
As atividades comemorativas serão analisadas adiante (3.3 Análise das postagens sobre atividades comemorativas).
82
Gráfico 8: Frequência das publicações com a palavra “atividade”
Fonte: Elaborado pela autora.
Neste gráfico mapeamos a frequência destas publicações entre julho/2014 e
dezembro/2016. O perfil no Facebook foi criado no período em que foi oferecido aos
gestores o curso Lideres Brasil, e após a promulgação do decreto 084/2014. Nos dois
primeiros semestres de funcionamento da página houve um maior número de
publicações. Naquele momento havia, por parte da prefeitura, a exigência de que os
gestores publicassem as atividades que ocorriam nas unidades educacionais e que eles
tivessem um perfil no Facebook para curtir essas publicações.
Na Tabela 5 agrupamos as publicações por semestre:
Tabela 5: Frequência das publicações com a palavra “atividade”
Período Quantidade Porcentagem
2º semestre de 2014 37 24,83%
1º semestre de 2015 69 46,31%
2º semestre de 2015 22 14,77%
1º semestre de 2016 7 4,70%
2º semestre de 2016 14 9,40%
Fonte: Elaborado pela autora.
Os dois primeiros semestres, após a implementação, somam um total de
106 publicações, o que representa 71,14% das postagens.
Quando observamos a incidência de publicações (que têm no corpo do
texto a palavra “atividade”), considerando as categorias de análise, a concentração
de publicações é diferente em cada período:
0
2
4
6
8
10
12
14
16
18
20
83
Gráfico 9: Concentração de publicações com a palavra “atividade”
Fonte: Elaborado pela autora.
As atividades comemorativas são mais concentradas nos meses de
abril e maio (em que se comemora o aniversário de Vinhedo, o dia do livro e o dia do
brincar) e em setembro e outubro (em que se dão as comemorações do dia da
Pátria e o dia das crianças). Os informes ocorrem em maior número nas férias, já
que diminuem as publicações nestes meses. Os informes fazem com que a página
permaneça ativa. Nas atividades dirigidas para ensinar conhecimentos/atitudes
específicas, a única regularidade observada é que em janeiro e julho não há
publicações. Estes são os meses de férias dos professores e, mesmo que os auxiliares
de Educação Infantil permaneçam nas creches, não são postadas suas atividades.
Atividade de exploração livre seguiu o fluxo das publicações gerais, com um maior
número nos dois primeiros semestres. Há um empenho da Secretaria da Educação
no momento inicial de criação da página em fazer postagens constantes, mas com o
passar do tempo elas diminuem.
A partir dos dados analisados observamos como fatores externos (como
datas comemorativas, parcerias público / privado e público / não-estatal, imposição
da Secretaria da Educação e outros) influenciam no fazer pedagógico. Há, pois,
pouca autonomia nas ações docentes.
0
2
4
6
8
10
12
Atividades Comemorativas
Atividades de exploração livre
Atividades dirigidas para ensinar conhecimento/atitude específica
Informes
84
3.2.3. Projeto
Pensar o planejamento a partir de um projeto não é algo novo. John
Dewey, no início do século XX (1908), utilizou pela primeira vez essa expressão no
campo educacional. Dewey concebia os programas escolares com mais criatividade,
era contrário à pedagogia tradicional. Sua iniciativa enfrentou dificuldades nos
sistemas nacionais de educação e, por isso, ficaram limitadas a experiências mais
pontuais (BARBOSA, 2008).
Para Barbosa (2008) foi também naquele século que a maioria da
população teve acesso às instituições educacionais, mas com grande número de
evasão, muitas vezes pela falta de sentido das propostas curriculares. Para a autora,
é necessário pensar uma forma de planejamento que considere as experiências dos
sujeitos, e a pedagogia de projetos é uma possibilidade.
Entendemos que o projeto é “um processo criativo para alunos e
professores, possibilitando o estabelecimento de ricas relações entre ensino e
aprendizagem, que certamente não passa por superposição de atividades”
(BARBOSA, 2008, p. 53). Deve ser pensado a partir de
questões relativas às culturas de origem das crianças, da televisão, do rádio, de um circo que chegou à cidade, de uma festa, de um acontecimento individual, da leitura de um livro, da observação de fenômenos naturais... Podem ser trazidos pelos educadoras, pelas crianças e pelos pais... Derivam às vezes de uma situação inesperada, imprevisível e até ocasional! (ABRAMOWICZ E WAJSKOP, p.14, 1999).
Em 88 postagens aparece a palavra “projeto” (10,80% do total), e as
classificamos conforme os seguintes critérios:
● Projetos municipais: de autoria dos membros da secretaria, são executados por eles e também pela direção das instituições e professores.
● Projetos dos CEIs: de autoria da equipe da instituição, são realizados por professores e auxiliares juntamente com as crianças.
● Projetos para as turmas: de autoria do professor responsável.
● Projetos das crianças: pensados e executados pelas crianças.
85
Gráfico 10: Categorização das publicações com a palavra “projeto”
Fonte: Elaborado pela autora.
Apenas uma publicação refere-se ao projeto de uma criança, este registro
da prática descreve a construção de um objeto com peças de montar. Neste cenário
político, jamais um projeto de criança ganharia visibilidade. Não interessa, não cabe,
não responde à demanda e exigência do município. Talvez esse não seja o local
onde estes projetos sejam postados. O facebook da Secretaria da Educação é uma
via de mão dupla: a Secretaria da Educação exige, a comunidade educativa
comprova em troca de seu status. Sendo assim, não se tem status visibilizando a
criança. Vejamos agora os projetos que tem visibilidade no Facebook da Secretaria
da Educação.A maioria das postagens é sobre projetos municipais (48%). No site da
prefeitura há a seção Programas e Projetos da Rede Municipal de Ensino. Na
Educação Infantil, são listados:
Autosserviço da merenda escolar: satisfeitos nas refeições e, consequentemente, incentivá-los a experimentar novos sabores e a optar naturalmente pelos de alto valor nutricional, benéficos à sua saúde. É oferecido às crianças a partir dos 3 anos de idade.
Brincar: incentiva atividades a promoção de atividades que resgatam o desenvolvimento de brincadeiras e jogos da cultura brasileira junto às crianças, ajudando a estimular algo indispensável ao desenvolvimento infantil: o hábito de brincar aliado ao conhecimento. É promovido nos CEIs por meio de parceria com a Fundação Volkswagen, idealizadora da iniciativa. Vinhedo é o único município brasileiro que há mais de cinco anos oferta a iniciativa e que, atualmente, promove a etapa pioneira do projeto, de formação dos educadores no âmbito municipal.
Educanvisa: promovido por meio da parceria com a Agência Nacional de
Projetos Municipais
48%
Projetos dos CEIs 20%
Projetos das Turmas
31%
Projeto da Criança
1%
86
Vigilância Sanitária (Anvisa) e em conjunto com a Secretaria Municipal de Saúde, leva aos alunos ações e estratégias para educação em saúde para transformá-los em agentes multiplicadores do conhecimento, a fim de que disseminem aos seus pais e à comunidade conceitos básicos de saúde e os riscos relacionados ao consumo de medicamento e de alimentos industrializados.
LIBRAS: a Secretaria Municipal de Educação passou a oferecer de forma ampliada, para todos os seus funcionários a capacitação em Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) por meio da equipe de educação especial. A capacitação, que é destinada especialmente aos servidores municipais interessados, habilita seus participantes à compreensão e à utilização deste tipo de língua, comumente utilizada por pessoas com deficiência auditiva e considerada a oficial da comunidade de surdos no Brasil.
Mesas informatizadas: que colaboram no desenvolvimento de diversas habilidades e auxiliam na aprendizagem de conteúdos curriculares de várias áreas do conhecimento. que colaboram no desenvolvimento de diversas habilidades e auxiliam na aprendizagem de conteúdos curriculares de várias áreas do conhecimento.
Município Verde-Azul: alunos passam a participar de atividades de educação ambiental dentro das dez premissas do programa.
Programa Prefeito Amigo da Criança (PPAC): com o objetivo de priorizar as crianças e adolescentes de Vinhedo e mobilizar a sociedade para participar e acompanhar políticas públicas com este enfoque, o prefeito Milton Serafim assinou o termo de compromisso PPAC, promovido pela Fundação Abrinq – órgão sem fins lucrativos que ajuda na mobilização da sociedade em questões relacionadas aos direitos da infância e da adolescência. Vinhedo está entre os 183 municípios brasileiros que conquistou o reconhecimento pleno no desenvolvimento de ações focadas ao público infanto-juvenil pelo PPAC. O prêmio, entregue ao prefeito Milton Serafim em 2012, reconheceu Vinhedo entre os municípios que mais avançaram nos últimos anos na garantia dos direitos das crianças e adolescentes.
Programa Sun: instituiu o ensino da língua inglesa a partir dos 3 anos na Rede Municipal de Ensino. Nesta faixa etária o idioma é apresentado de forma lúdica e divertida à criança, para que ela já assimile o conteúdo e para que se familiarize naturalmente com a nova língua. Desde 2012, as crianças dos 3 anos aos 5 anos e 11 meses, atendidos em período integral, passaram a contar com mais uma aula de inglês por semana, ampliando a aprendizagem da língua inglesa nos anos iniciais da Rede Municipal de Ensino.
Saúde do Escolar, Psicologia do Escolar e Atendimento Educacional Especializado: equipe de educação especial se organiza para promover atividades de atenção voltadas a alunos com deficiência ou necessidades especiais de aprendizagem, a fim de colaborar ao seu desenvolvimento global.
Semana de Arte: as crianças da educação infantil, a exemplo de todos os alunos da rede, passam a desenvolver trabalhos de expressão cultural e artísticas baseados em temas sugeridos pela Secretaria Municipal de Educação para exposição especial aberta à população.
Vinhedo Desenvolvendo Ações de Saúde (VIDAS): envolve todos
87
os estudantes matriculados em nas EMs e CEIs e oferece acompanhamento médico, odontológico, nutricional e atendimento oftalmológico de forma gratuita60.
Esse grande número de projetos e programas da Secretaria Municipal de
Educação a serem realizados (obrigatoriamente), juntamente com a obrigatoriedade de
comemorar determinadas datas, nos mostra que a equipe do CEI teria poucos momentos
para desenvolver atividades próprias da comunidade local. Isso é um indício de sua pouca
autonomia para decidir as propostas a serem realizadas, contrariando as DCNEI, que
afirmam que o PPP deve orientar as ações nos CEIs: ele “é um instrumento político por
ampliar possibilidades e garantir determinadas aprendizagens consideradas valiosas em
certo momento histórico” (OLIVEIRA, 2010, p.4).
Categorizamos as postagens referentes aos projetos:
Gráfico 11: Projetos municipais
Fonte: Elaborado pela autora.
Ao comparar os projetos e programas descritos no site da prefeitura e as
publicações no Facebook, observamos que há programas que foram descritos, mas não
há publicações referentes a eles. O Projeto Taekwondo para todos61 (uma publicação) e
60
VINHEDO. Disponível em http://goo.gl/5unnIS. Acesso em 06/06/2017.
61 É um projeto na secretaria de esporte que ensina Taekwondo no turno oposto ao escolar, em 11 instituições escolares. Dentre elas, alguns CEIs, conforme a reportagem “Taekwondo para Todos: Prefeitura cria nova modalidade para projeto social que oferece esporte no contraturno escolar”, publicada no site da prefeitura dia 22/09/2015, disponível https://goo.gl/Varbr, acesso em 28/05/2017.
Quintais da Infância
22%
Educanvisa 19% Mãe
Educadora/Dia da Família/Escola de
Pais 41%
Taekwondo para todos
2%
Mais Educação 2%
Incentivo à leitura 14%
88
Mais Educação62 (uma publicação) não aparecem como projetos da Educação Infantil,
ainda que tenham sido citados nas postagens analisadas.
Projetos Mãe Educadora, Dia da Família e Escola de Pais
Realizamos uma análise conjunta dos três projetos, pois eles têm o objetivo de
aproximar a família da escola. Iniciamos pelos seus nomes: i) Mãe Educadora alude à
mulher, vista como a única responsável pela educação dos filhos, tendo ela um caráter
maternal inato; sugere uma responsabilidade maternal da educação, reforçando o
estereótipo de gênero e ii) Escola de Pais refere-se à necessidade de os responsáveis
aprenderem na escola (espaço institucional) a educar os filhos.
Na reportagem “Prefeitura cria projeto Mãe Educadora para sensibilizar os
responsáveis sobre o compromisso de ser referência na vida das crianças”, o projeto
é apresentado à comunidade:
o programa é desenvolvido nos Centros de Educação Infantil, através de palestra, com a proposta de refletir juntamente com os pais sobre assuntos pertinentes a cada faixa etária. Geralmente são temas importantes e simples, mas que os pais devem conhecer profundamente para auxiliar no aprendizado das crianças, como quantidade e qualidade de tempo com os filhos, ambiente seguro, limites e agressividade das crianças, questões de saúde e higiene, entre outros assuntos63.
O programa Mãe Educadora foi realizado nos CEIs, e as reuniões foram
conduzidas pela equipe gestora ou por palestrantes convidados. Já o projeto Escola
de Pais foi vivenciado em todos os níveis de ensino, com palestras promovidas pela
Secretaria da Educação. O projeto Escola de Pais foi
idealizado pela secretária de Educação, Claudinéia Vendemiatti, tem como objetivo estimular que família e escola caminhem juntas na formação de um cidadão integral. “Compreender a importância das relações afetivas entre as famílias e as crianças em seu processo de desenvolvimento é o principal objetivo para o desenvolvimento deste trabalho. Identificamos como urgente a implantação de um programa de orientação aos pais visando proporcionar as ferramentas necessárias
62
O Projeto Mais Educação é voltado ao Ensino Fundamental, porém aparece nas publicações analisadas porque sua fanfarra se apresentou em um CEI. Mas não são as crianças da Educação Infantil que participam dele.
63 VINHEDO. Disponível em https://goo.gl/eq6m0J. Acesso em 28/05/2017.
89
para o exercício da obrigação de criar, educar e assistir. Ninguém nasce pais suficientemente bons, mas, todos podem se tornar”64
Na primeira parte deste parágrafo aparece seu objetivo: firmar uma parceria
entre a família e a escola para a “formação de um cidadão integral”. Ou seja, propõe uma
relação horizontal (“caminhem juntas”). No trecho grifado, não é isso que aparece. A
relação é vertical, hierarquizada: os pais não saberiam cuidar adequadamente dos filhos
e caberia à escola suprir essa falta, proporcionando-lhes “as ferramentas necessárias
para o exercício da obrigação de criar, educar e assistir”.
Nas 17 publicações sobre projetos (Mãe Educadora, Dia da Família e Escola de
Pais) constatamos que foram realizados encontros para aproximar a família da escola, mas
poucos foram os momentos em que consideraram a cultura da família e houve espaço
para a participação dos pais. Grande parte das ações buscavam orientar os pais sobre
como educar as crianças, como aparece nessa publicação:
65
O trecho “os pais puderam ampliar seus conhecimentos acerca da
educação das crianças” evidencia a ideia de que os pais precisariam da escola para
aprender sobre a educação de seus filhos, mostrando uma superioridade da
instituição escolar. Essas ações propostas pela Secretaria de Educação não visam
compartilhar com as famílias uma relação de parceria. Com o discurso de que os
ajudará a educar os filhos, impõem condutas a serem seguidas.
A relação família / escola proposta pelas DCNEI é de outra ordem.
Segundo Oliveira (2010, p.7) cabe às creches e pré-escolas conhecerem a
comunidade atendida, as culturas diversas que formam esse espaço, “a riqueza das
64
VINHEDO, grifo nosso. Disponível em http://goo.gl/fEq43I. Acesso em 28/05/2017.
65 CIDADE EDUCADORA. Facebook. 21/10/2014. Disponível em http://goo.gl/nrnQmK Acesso em 10/06/2017.
90
contribuições familiares e da comunidade, as crenças e manifestações dessa
comunidade, enfim, os modos de vida das crianças vistas como seres concretos e
situados em espaços geográficos e grupos específicos culturais”. Segundo a autora,
esse princípio reforça a necessidade de estabelecer uma gestão democrática na
Educação Infantil, aberta à participação dos pais na elaboração e acompanhamento
do PPP e nas decisões e ações da instituição. Nas publicações analisadas não há
registros dessa participação.
Projeto Quintais da Infância
O segundo projeto municipal mais mencionado é o Quintais da Infância
(22%). Na reportagem “Projeto ‘Quintais da Infância’ garante formação de profissionais
em projetos que enfocam brincadeiras com alunos do infantil” (30/07/2014)66, a
prefeitura diz que desde o início daquele ano a Secretaria da Educação teria
incorporado o projeto no seu processo pedagógico “para estimular a promoção e o
resgate de brincadeiras lúdicas, expressivas e recreativas como forma vital para o
desenvolvimento sadio e completo dos alunos matriculados na Educação Infantil da
Rede Municipal de Ensino”. Os formadores seriam profissionais da rede municipal
(professores e gestores), capacitados pela Secretaria de Educação. Segundo a
prefeitura, esse projeto beneficiaria todas as crianças que frequentam os CEIs, e
seguiria o mesmo direcionamento do Projeto Brincar.
O Projeto Brincar foi implementado na rede municipal de Vinhedo em 2009.
A Fundação Volkswagen o financiava e o CENPEC oferecia cursos de formação para
gestores, professores e auxiliares até o ano de 2012. Em 2013 capacitou profissionais
da rede municipal para dar continuidade ao projeto. Em 2014 acabou a parceria e o
curso passou a se chamar Quintais da Infância (os temas e a metodologia continuaram
os mesmos). Cabe ressaltar que as duas instituições (Fundação Volkswagen e
CENPEC) assinaram o documento Todos pela Base, defendendo a alfabetização na
Educação Infantil, o que é um contrassenso: o curso oferecido anunciava como objetivo
estimular o brincar e a valorização da infância.
Das nove publicações em que aparece “projeto”, quatro são de autoria da
Secretaria de Educação (duas fazem referência ao curso de formação oferecido na rede
municipal e duas falam sobre a inauguração de quadras poliesportivas). As outras cinco
66
Disponível em https://goo.gl/vh53uY. Acesso em 28/05/2017.
91
são de autoria de equipes dos CEIs e relatam brincadeiras e atividades lúdicas
(modelagem com argila, brincadeiras com barraca e corda, confecção de
brinquedos, músicas, brincadeiras cantadas etc). Essas atividades se alinham às
diretrizes previstas pela Proposta Pedagógica do município, segundo as quais o
brincar e as interações devem ser atividades privilegiadas na Educação Infantil.
Projeto Educanvisa
O terceiro projeto municipal mais mencionado foi o Educanvisa67, com oito
publicações: duas são informes à população escritos pela Secretaria de Educação e as
outras seis são relatos das equipes dos CEIs sobre atividades desenvolvidas:
68
67
“Promovido por meio da parceria com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e em conjunto com a Secretaria Municipal de Saúde, leva aos alunos ações e estratégias para educação em saúde para transformá-los em agentes multiplicadores do conhecimento, a fim de que disseminem aos seus pais e à comunidade conceitos básicos de saúde e os riscos relacionados ao consumo de medicamento e de alimentos industrializados” (VINHEDO. Disponível em http://goo.gl/5unnIS. Acesso em 06/06/2017).
68 CIDADE EDUCADORA. Facebook. 14/04/2015. Disponível em http://goo.gl/75pWcQ Acesso em 10/06/2017.
92
A reportagem apresenta alguns temas desenvolvidos no projeto. Outros
temas também foram trabalhados nos CEIs (por exemplo: noções sobre a promoção
da saúde, hábitos de higiene, cuidado com o meio ambiente, armazenamento de
alimentos, manuseio seguro das embalagens e utensílios e prevenção de acidentes
nos ambientes escolar e doméstico). Esse é um projeto municipal realizado em
todas as unidades escolares e, pela descrição dos temas e dos materiais,
observamos que não está em consonância com as especificidades da Educação
Infantil, tal como o pensado por Barbosa (2008, p.41):
os conteúdos gerais da área da biologia são uma competência dos professores, que precisam saber desses conceitos para fazerem perguntas, oferecerem experiências, contribuírem no desenvolvimento dos projetos e no estabelecimento de relações e não para transmitirem conceitos previamente organizados. As disciplinas, seus conteúdos fundamentais, suas subdivisões são os conteúdos dos professores e não o programa de trabalho dos alunos da educação infantil.
O professor deve dominar conceitos de diversas áreas do conhecimento. Na
Educação Infantil esses saberes deveriam servir para aguçar a curiosidade das crianças,
responder suas questões e propor atividades visando suas descobertas, e não para
transmitir conceitos previamente organizados, como constatamos no Projeto
Educanvisa. O planejamento desse projeto é realizado pela Secretaria da Educação
(temática e atividades) e imposto aos CEIs, o que destoa da proposta de Barbosa
(2008) e das DCNEI (2009): que os projetos surjam das inquietações das crianças e
sejam uma vivência entre elas e o professor.
Projeto incentivo à leitura
Ao ter um primeiro contato com as publicações, parece que a autoria dos
projetos de incentivo à leitura seria das equipes dos CEIs. Esta impressão inicial é
reforçada pelo fato do projeto não estar incluído na seção Programas e Projetos da
Rede Municipal de Ensino. Porém encontramos reportagens que mostram que
também é um projeto municipal. Por exemplo:
“As crianças são orientadas na Rede Municipal de Ensino, muito antes de saberem a ler e a escrever, que o hábito da leitura é importante e pode se tornar muito prazeroso, através da ida à biblioteca da unidade, nas atividades nas rodas de leituras e contação de histórias. Cada unidade monta a sua atividade pedagógica para atrair a atenção dos seus
93
estudantes, de acordo com as premissas do projeto de incentivo à leitura implantado na Rede Municipal de Ensino pela Secretaria de Educação da Prefeitura”, comentou a secretária69.
A secretária da educação, ao dizer que cabe ao professor desenvolver atividades
a partir das premissas do projeto, mostra um controle sobre parte do currículo. As DCNEI se
opõem a essa concepção ao afirmar que o currículo deve ser vivido na relação das
experiências das crianças com o patrimônio cultural, científico, social e histórico. Barbosa
(2008) afirma que, quando se trabalha com projetos, deve-se
Construir um currículo a partir de pistas do cotidiano e de uma visão articulada de conhecimento e sociedade é fundamental. O currículo não deve ser definido previamente, precisando emergir e se elaborado em ação, na relação entre o novo e a tradição. É necessário que se encontre interrogações nos percursos que as crianças fazem. Para tanto, é fundamental “emergi-las” em experiências e vivências complexas que justamente instiguem sua curiosidade (BARBOSA, 2008, p.36).
O projeto, sendo estabelecido pela Secretaria da Educação, não permite
que as atividades sejam elaboradas a partir da relação com os sujeitos. É apenas
um instrumento para desenvolver conteúdos pré-estabelecidos, sem considerar as
vivências culturais das crianças.
Vejamos duas publicações do Projeto de Incentivo à Leitura:
70
69
VINHEDO, grifo nosso. Disponível em http://goo.gl/5Ra387. Acesso em 28/05/2017.
70 CIDADE EDUCADORA. Facebook. 08/10/2014. Disponível em http://goo.gl/7sBU1r Acesso em 10/06/2017.
94
71
Nessas publicações há três fatores recorrentes: a parceria da família com a
escola, o contato das crianças com os livros e a possibilidade de mostrar a elas um
mundo encantado. Consideramos que a leitura e a escrita devem estar na creche,
assim como estão na vida das crianças, e os projetos analisados privilegiam seu
contato com livros, o que possibilita a reflexão sobre a linguagem. Concordamos
com Abramowicz e Wajskop (1999): as crianças que vivem no meio urbano, ao entrar
nos CEIs, já iniciaram suas aprendizagens em relação à escrita e à leitura. Deste
modo, “as creches devem dar continuidade à aprendizagem em que se criam leitores
e escritores, ampliando o universo cultural das crianças” (idem, p.66). No entanto,
acreditamos que não é necessário um projeto específico, pois a leitura está em todos
os ambientes sociais. Estará presente, provavelmente, nos projetos das turmas, pois
nos livros as crianças encontram respostas para suas perguntas, fazem novos
questionamentos, conhecem histórias etc.
Depois a nossa análise incidiu sobre os projetos dos CEIs, para verificar a
participação de crianças, professores e pais em sua elaboração e vivência. Para
isso, o primeiro passo foi separá-los por temáticas:
71
CIDADE EDUCADORA. Facebook. 18/07/2014. Disponível em http://goo.gl/n5gq5R Acesso em 10/06/2017.
95
Gráfico 12 Projetos dos Centros de Educação Infantil
Fonte: Elaborado pela autora.
Percebemos que alguns projetos parecem ser da equipe do CEI, mas são
réplicas de projetos municipais, seguem a mesma metodologia e objetivos. Por
exemplo, o projeto que têm como temática a orientação dos pais segue a mesma
proposta dos projetos municipais Mãe Educadora, Escola de Pais e Dia da Família.
Os que têm como temática a alimentação saudável mantém as mesmas propostas
do Educanvisa. Esse fato nos mostra que, em alguns casos, mesmo quando a
equipe docente se coloca como autora, na verdade está realizando as atividades
propostas pela Secretaria de Educação.
Na análise dos projetos Profissões e Eleições, identificamos que há uma
relação com uma data comemorativa ou um evento social. Vejamos:
72
72
CIDADE EDUCADORA. Facebook. 13/05/2015. Disponível em http://goo.gl/0hQCxx Acesso em 10/06/2017.
Circo 22%
Eleição 11%
Convivência 22%
cores 5%
Alimentação saudável
11%
Profissão 6%
Incentivo à cultura 17%
Orientação dos pais 6%
96
73
No projeto Profissões, ao mencionar “trabalharam no mês de maio”, é
feita referência ao dia do trabalho (1º de maio), mostrando sua relação com a data
comemorativa. O mesmo ocorre no segundo projeto, que é realizado no momento
em que estão ocorrendo as eleições municipais. Em todas as publicações sobre eles
não há menção de que foram as crianças que deram pistas ou se mostraram
curiosas em relação aos temas.
Quanto aos projetos que têm como temas circo e incentivo à cultura,
foram desenvolvidos cada qual em um CEI durante um longo período, o que
podemos observar na postagem a seguir:
74
73
CIDADE EDUCADORA. Facebook. 21/10/2014. Disponível em http://goo.gl/2TsXfW Acesso em 08/09/2017.
74 CIDADE EDUCADORA. Facebook. 11/12/2015. Disponível em http://goo.gl/Af1ofQ. Acesso em 10/06/2017.
97
Há publicações sobre esse projeto durante todo o ano, relatando
apresentações de artistas, professores e crianças. O mesmo tipo de postagem é
feito sobre o projeto Sexta Cultural:
75
Vimos que esses projetos (Sexta Cultural e O Circo Chegou) foram
elaborados pelas equipes de educadores dos CEIs, e têm como objetivo aproximar
as crianças das manifestações culturais. No entanto, são pautados na ideia de que
cabe à instituição apresentar o universo cultural, sem considerar as culturas das
crianças e suas produções76.
A atividade da criança não se limita à passiva incorporação de elementos da cultura, mas ela afirma sua singularidade atribuindo sentidos a sua experiência através de diferentes linguagens, como meio para seu desenvolvimento em diversos aspectos (afetivo, cognitivos, motores e sociais). Assim a criança busca compreender o mundo e a si mesma, testando de alguma forma as significações que constrói, modificando-as continuamente em cada interação, seja, com outro ser humano, seja com objetos. Em outras palavras, a criança desde pequena não só se apropria de uma cultura, mas o faz de um modo próprio, construindo cultura por sua vez (OLIVEIRA, 2010, p.5).
Entendemos que as culturas das crianças não são consideradas: as
atividades visam ensinar sobre a cultura, e pouco permitem a experiência com a
arte. As crianças se expressam utilizando diversas linguagens, mas por vezes o
ambiente da instituição as enfraquece ao desconsiderar este potencial. Em
consonância com as teorias da Sociologia da Infância, em especial com estudos de
Corsaro (2011, p.15), consideramos que “as crianças são agentes sociais, ativos e
75
CIDADE EDUCADORA. Facebook. 17/04/2015. Disponível em http://goo.gl/I1k6k2 Acesso em 10/06/2017.
76 Esses dois projetos se parecem com o projeto municipal Quintais da Infância, cuja intenção preconizada é a de valorizar as culturas infantis e as múltiplas linguagens das crianças. Porém, muitas inciativas na prática permanecem pautadas no adulto.
98
criativos, que produzem suas próprias e exclusivas culturas infantis, enquanto,
simultaneamente, contribuem para a produção das sociedades adultas”.
Para esse autor a infância é uma categoria social que nunca desaparece,
“embora seus membros mudem continuamente e sua natureza e concepção variem
historicamente” (CORSARO, 2011, p.16). A infância é uma parte da sociedade, e as
crianças são operadoras de suas infâncias desde o nascimento. Corsaro contraria a
concepção de infância como um período exclusivo de preparação para o ingresso na
sociedade. Para os educadores, compreendê-las como atores sociais modifica a
relação estabelecida com elas nos CEIs.
Começamos a compreender o funcionamento do currículo, e partimos
para a análise dos projetos das turmas. Observamos as temáticas recorrentes:
Gráfico 13: Projetos das turmas
Fonte: Elaborado pela autora.
Os projetos que têm como tema a alimentação saudável (incluindo
também postagens sobre o plantio de vegetais, hortas etc), hábitos saudáveis
(incentivam a prática de exercícios físicos) e meio ambiente seguem o mesmo
direcionamento do projeto municipal Educanvisa, ainda que não o mencionem
diretamente. Apesar de ser uma iniciativa da turma, conforme é dito na publicação, é
influenciado pela obrigatoriedade dos profissionais dos CEIs em desenvolver
atividades para apresentar à Secretaria de Educação.
Depois analisamos os projetos de iniciativa das turmas, como os que têm
como temática a convivência (os professores desejavam desenvolver nas crianças
atitudes que contribuíssem para o convívio harmonioso no ambiente social) e os que
Hábitos saudáveis/ Alimentção
saudável 41%
Música 15%
Convivência 7%
Cores 3%
Meio Ambiente 7%
Trânsito 4%
Animais 15%
Artes Plásticas 4%
Poesia 4%
99
têm como temática os animais (por exemplo, relatam a visita da tartaruga, o
nascimento de borboleta e propõem a confecção de tapetes e almofadas com
ilustrações inspiradas em estudos dos animais).
Quando iniciamos as análises das publicações que têm no corpo do texto
a palavra “projeto”, acreditávamos que as publicações relatariam práticas que seriam
desenvolvidas a partir do que nos salienta Barbosa e Richter:
São as crianças, em suas brincadeiras e investigações, que nos apontam os caminhos, as questões, os temas e os conhecimentos de distintas ordens que podem ser por elas compreendidos e compartilhados no coletivo. O professor com se olhar de quem está com as crianças, mas também com os saberes e conhecimentos, realiza a complexa tarefa educacional de possibilitar encontros, de favorecer interações lúdicas, construir tempos e espaços para as experiências das crianças sem nenhuma garantia de que essa possa acontecer (BARBOSA e RICHTER, 2015, p. 195).
Podemos afirmar que a maioria dos projetos não propiciou às crianças
vivências e experiências que instiguem sua curiosidade, pois não partiram de suas
indagações, interesses, falas: são aglomerados de atividades para desenvolver um
conhecimento específico, instituir um comportamento nas crianças e nas famílias,
celebrar datas comemorativas, atender às demandas municipais etc.
Vimos que muitos projetos que pareceram ser de autoria dos educadores são
cópias dos projetos municipais. Por vezes o professor atua como mero executor de projetos
pré-estabelecidos, deslocando seu papel de planejar ações junto com as crianças. O que se
afasta dos princípios das DCNEI, como o exposto na Consulta Pública O currículo na
Educação Infantil: o que propõem as Novas Diretrizes Nacionais?
Elas destacam a necessidade de estruturar e organizar ações educativas com qualidade, articulando com a valorização do papel dos professores que atuam junto às crianças de 0 a 5 anos. Esse são desafios a construir propostas pedagógicas que, no cotidiano de creches e pré-escolas, deem voz às crianças e acolham a forma delas significarem o mundo e a si mesmas (OLIVEIRA, 2010, p.1)
O desafio colocado nas DCNEI “é transcender a prática pedagógica
centrada no professor e trabalhar, sobretudo, a sensibilidade deste para uma
aproximação real da criança, compreendendo-a do ponto de vista dela, e não da do
adulto” (OLIVEIRA, 2010, p.6). Notamos que essa concepção não foi incorporada às
práticas pedagógicas desenvolvidas nos CEIs de Vinhedo: o trabalho permanece
centralizado no adulto.
100
No Gráfico 14 agrupamos os projetos municipais:
Gráfico 14: Projetos municipais
Fonte: Elaborado pela autora.
Gráfico 15: Comparação entre a quantidade projetos municipais e outros projetos
Fonte: Elaborado pela autora.
Grande parte das publicações (61,69%) é sobre projetos municipais
impostos pela Secretaria da Educação. Essa prática difere da construção de uma
Pedagogia da Educação Infantil pensada por autores como Finco (2015), a partir da
proposta de Malaguzzi, em que as crianças devem ter a atenção principal, em que
se deve privilegiar “os projetos e não os conteúdos programáticos; o processo e não
somente o produto final; a observação e documentação dos processos individuais e
dos grupos” (FINCO, 2015, p.230). Podemos notar, a partir dos registros das
práticas, que o município segue o sentido inverso da construção de uma pedagogia
da Educação Infantil. O trabalho é centrado no adulto, ao invés das crianças;
0
5
10
15
20
25
Quintais da Infância Educanvisa Mãe Educadora/Diada Família/Escola de
Pais
Incentivo à leitura
Projetos Municipais Projetos do CEIs Projetos das turmas
61
27
Projetos municipais e projeto com temasrelacionados
Projetos que não se relacionam com osprojetos municipais
101
privilegia os conteúdos programáticos, até nos projetos; o foco está nos resultados e
não nos processos. Para a autora, a Educação Infantil só cumprirá o seu papel
social se respeitar e valorizar a diversidade das crianças. Infelizmente o município
de Vinhedo não vem cumprindo esse papel. Continua tratando as crianças como se
fossem iguais, silenciando suas diferenças individuais. Mas
as diferenças individuais são o ponto de partida e de chegada, pois as crianças percorrem diferentes caminhos em suas aprendizagens, já que cada uma tem seu jeito de aprender. A desigualdade e a diferença estão presentes no mundo, no conhecimento e, portanto, nas crianças. O homogêneo, o igual, o mesmo não existem, por isso são importantes interações entre as crianças. Devemos aceitar, recriar, aprofundar as diferenças, criando outras (ABRAMOWICZ E WAJSKOP, p.14, 1999).
O currículo analisado valoriza a construção de uma mesma identidade,
por isso ela é hegemônica (produz invisibilidade). Exerce uma função estratégica no
processo de regulação moral na constituição dos sujeitos, a partir de uma cultura
homogeneizadora e, por isso, discriminatória e excludente. Para compreender
melhor estes mecanismos, analisamos a seguir os registros publicados nos anos de
2015 e 2016 sobre práticas baseadas em datas comemorativas.
3.3 Análise das postagens sobre atividades comemorativas
A forma como se organiza o cotidiano da Educação Infantil depende de
escolhas curriculares dos professores e das instituições. Depois de analisarmos as
publicações que trazem no corpo do texto as palavras “semana”, “atividade” e
“projeto”, resolvemos fazer uma análise de todas as publicações selecionadas entre
2015 e 201677.
77
Não analisamos as publicações de 2014 pois não teríamos publicações do ano inteiro, já que a página “Cidade Educadora” foi criada em julho de 2014.
102
Gráfico 16: Publicações entre 2015 e 2016
Fonte: Elaborado pela autora.
Constatamos que 41,79% das publicações é sobre datas comemorativas.
Primeiramente verificamos quais são essas datas e sua frequência:
41,79%
52,50%
5,71%
Publicações 2015 e 2016
Datas comemorativas Outras publicações Comentários
103
Tabela 6: Datas comemoradas entre 2015 e 2016
Datas comemorativas Período do ano 2015 2016 TOTAL
Carnaval Fevereiro 7 0 7
Dia da água 22/03 2 0 2
Aniversário de Vinhedo 02/04 13 4 17
Páscoa Abril 9 5 14
Dia Nacional do livro Infantil 18/04 35 3 38
Dia das mães Segundo domingo de maio 3 0 3
Dia da Família (15/05) 14 10 24
Dia do desafio Última quarta-feira de maio 0 4 4
Maio Amarelo Maio 5 1 6
Dia do Brincar 28/05 27 9 36
Dia do Meio Ambiente 05/05 0 1 1
Festa Junina Junho 5 9 14
Folclore 22/08 4 1 5
Semana Nacional do deficiente
21/08 - 28/08 3 2 5
Dia da independência 07/09 17 14 31
Dia da Pipa 1 0 1
Chegada da Primavera 23/09 1 1 2
Dia das crianças 12/10 16 7 23
Halloween 31/10 1 0 1
Datas comemorativas 163 71 234
Fonte: Elaborado pela autora.
Gráfico 17: Datas comemoradas entre 2015 e 2016
Fonte: Elaborado pela autora.
104
Agrupamos as datas comemorativas por temáticas:
I. Manifestações culturais: festas e datas religiosas (carnaval, festa junina, páscoa, folclore, primavera e Halloween);
II. Espírito nacional: aniversário de Vinhedo e dia da Independência e Formação de cidadãos conscientes: dia da água, do desafio, maio amarelo, dia do meio ambiente, dia do desafio e semana nacional do deficiente;
III. Atividades fundamentais na Educação Infantil: dia do brincar, dia do livro infantil e dia da pipa; e
IV. Comemorações referentes aos membros da família: dia das mães, dia da família, dia da criança;
3.3.1 Manifestações culturais: festas e datas religiosas
Referem-se aos diferentes costumes de uma sociedade, dentre os quais
podemos citar: vestimentas, culinária, religiões, danças, músicas etc. A cultura não é
algo fixo e determinado, mas uma produção. Estamos sempre em formação cultural,
“não é uma questão do que as tradições fazem de nós, mas daquilo que nós
fazemos das nossas tradições” (HALL, 2003, p.44). As manifestações culturais
apresentam traços da formação histórica da população:
Nossas sociedades são compostas não de um, mas de muitos povos. Suas origens não são únicas, mas diversas. Aqueles aos quais originalmente a terra pertencia, em geral, pereceram há muito tempo — dizimados pelo trabalho pesado e a doença. A terra não pode ser "sagrada", pois foi "violada" — não vazia, mas esvaziada. Todos que estão aqui pertenciam originalmente a outro lugar. Longe de constituir uma continuidade com os nossos passados, nossa relação com essa história está marcada pelas rupturas mais aterradoras, violentas e abruptas. Em vez de um pacto de associação civil lentamente desenvolvido, tão central ao discurso liberal da modernidade ocidental, nossa "associação civil" foi inaugurada por um ato de vontade imperial. O que denominamos Caribe renasceu de dentro da violência e através dela. A via para a nossa modernidade está marcada pela conquista, expropriação, genocídio, escravidão, pelo sistema de engenho e pela longa tutela da dependência colonial. Não e de surpreender que na famosa gravura de Van Der Straet que mostra o encontro da Europa com a América (c. 1600), Américo Vespúcio e a figura masculina dominante, cercado pela insígnia do poder, da ciência, do conhecimento e da religião: e a "América" e, como sempre, alegorizada como uma mulher, nua, numa rede, rodeada pelos emblemas de uma — ainda não violada — paisagem exótica (HALL, 2003, p. 31).
105
Hall trata da formação populacional da sociedade caribenha, mas refere-se a
toda a América Latina. A partir da formação populacional diaspórica brasileira
analisamos os registros das práticas, pensando inicialmente as publicações
relacionadas com a religião: páscoa (14 publicações), festa junina (14 publicações) e
carnaval (7 publicações). Percebemos que as datas que são comemoradas endossam
a hegemonia dos dogmas católicos / cristãos, apesar do nosso povo ter sido originado
por diferentes povos: indígena, africano e europeu, principalmente. Os rituais
encontrados nos relatos das práticas são da religião do colonizador. Não há qualquer
referência aos ensinamentos professados pelos espíritas (2% da população - 3,8
milhões de brasileiros) ou por participantes da Umbanda e do Candomblé (0,3 % da
população – 570 mil habitantes), por exemplo, que, segundo o IBGE 201078, formam no
Brasil um número significativo de pessoas. Como nos afirma Hall (2003) a identidade
cultural na diáspora deve ser pensada como uma questão histórica. No entanto, fica
nítido com a análise dos registros das práticas, que há relações assimétricas de poder,
em que a escola privilegia uma religião em detrimento das outras. Para Hall (2003, p 31)
há uma relação de transculturação
grupos subordinados ou marginais selecionam e inventam a partir dos materiais a eles transmitidos pela cultura metropolitana dominante”. É um processo da “zona de contato”, um termo que invoca “a co-presença espacial e temporal dos sujeitos anteriormente isolados por disjunturas geográficas e históricas (...) cujas trajetórias agora se cruzam. Essa perspectiva é dialógica, já que é tão interessada em como o colonizado produz o colonizador quanto vice-versa: a “co-presença, interação, entrosamento das compreensões e práticas, frequentemente [no caso caribenho, devemos dizer sempre] no interior de relação de poder radicalmente assimétrica.
Essas relações de transculturação aparecem claramente nas festas e
manifestações culturais brasileiras, e verificamos como isso ocorre a partir dos
registros das práticas. O carnaval, por exemplo, apesar de fazer parte do calendário
católico (uma festividade que marca o início da quaresma), é uma festa do povo
brasileiro. Esta data é comemorada em todo país, sendo que em cada localidade
prevalece um tipo característico. As publicações são relatos das equipes gestoras
dos bailes de carnaval que aconteceram nos CEIs.
78
IBEGE, 29/06/2012. Disponível em https://goo.gl/JFqGHh, acesso em 29/05/2018.
106
Na páscoa as publicações registram atividades voltadas para o consumo de
ovos de chocolate e apresentação do coelhinho da páscoa como um símbolo, através de
brincadeiras e atividades que desenvolvem habilidades, conhecimentos e diversão.
79
Há publicações que se aprofundam no caráter religioso:
80
Essas atividades trazem, ainda que superficialmente, a concepção
católica de Deus, de pecado, ressureição e morte. Estas comemorações e
atividades não poderiam ocorrer na escola pública: a CF/1988 determina que as
instituições escolares públicas devem ser laicas, ou seja, a religião não deve ser
referência para sustentação de valores, visões de mundo, comportamentos ou
atitudes, embora possam ser estudadas em sua relação com a história e a sociedade.
A festa junina é também uma manifestação popular, que homenageia três
santos católicos: São João, São Pedro e Santo Antônio. Mas esta festividade
também tem relação com a colheita do milho. Os registros mostram que festas
juninas acontecem nos CEIs: a maioria são externas (abertas para toda a
comunidade no final de semana), mas há também internas (normalmente em horário
79
SECRETARIA DE EDUCAÇÃO DE VINHEDO, Facebook. 05/04/2016. Disponível em https://goo.gl/Tndx2e acesso em 12/02/2018.
80 SECRETARIA DE EDUCAÇÃO DE VINHEDO, Facebook. 07/09/2014. Disponível em acesso https://goo.gl/3gTME o em 12/02/2018.
107
de funcionamento da instituição, em que participam as crianças e os funcionários e,
em alguns casos, os pais são convidados).
A festa da primavera também é uma festa externa com bingo, dança,
brincadeiras, comidas e bebidas. Os registros das práticas mostram que acontecem
nos CEIs, com a participação da comunidade. Essa festividade é uma homenagem à
estação das flores, e tem origem nos povos gregos, celtas e outros.
As comemorações que analisamos até aqui têm origem europeia. As
publicações que visavam comemorar o mês do folclore trouxeram mais elementos
da cultura brasileira: as publicações na maioria das vezes referem-se aos
personagens do Sítio do Pica-Pau Amarelo (de Monteiro Lobato), brinquedos e
brincadeiras tradicionais do nosso país. Vejamos, por exemplo:
81
Não encontramos registros que explorem características das diversas
populações que habitam o nosso país. O Halloween não é uma manifestação cultural
brasileira, mas encontramos uma publicação referente a esta data. Acreditamos que
os educadores a comemoram influenciados pela globalização. Segundo Hall (2003,
p.59)
Existem as forças dominantes de homogeneização cultural, pelas quais, por causa de sua ascendência no mercado cultural e de seu domínio do capital, dos "fluxos" cultural e tecnológico, a cultura ocidental, mais especificamente, a cultura americana, ameaça subjugar todas as que aparecem, impondo uma mesmice cultural homogeneizante — o que tem sido chamado de "McDonald-inação" ou "Nike-zação" de tudo. Seus efeitos podem ser vistos em todo o mundo, inclusive na vida popular do Caribe. Mas bem junto a isso estão os processes que vagarosa e sutilmente estão descentrando os modelos ocidentais, levando a uma disseminação da diferença cultural em todo o globo.
81
CIDADE EDUCADORA. Facebook. 03/09/2015. Disponível em https://goo.gl/wuC4P. Acesso em 10/06/2017.
108
Percebemos, pois, que o currículo não emerge das crianças e não a
enxerga; parte dos adultos e está intimamente ligado às identidades culturais que se
pretende produzir.
3.3.2 Espírito nacional e formação de cidadãos conscientes
Encontramos 31 publicações referentes ao dia da Independência do Brasil
e 17 sobre o aniversário de Vinhedo. Engendram um discurso que visa transformar
desde cedo os indivíduos em um povo, sendo que o
intuito é forjar ou construir uma forma unificada de identificação a partir das muitas diferenças de classe, gênero, região, religião ou localidade, que na verdade atravessam a nação (HALL, 1992; BHABHA, 1990). Para tanto, esses discursos devem incrustar profundamente e enredar o chamado estado "cívico" sem cultura, para formar uma densa trama de significados, tradições e valores culturais que venham a representar a nação. E somente dentro da cultura e da representação que a identificação com esta "comunidade imaginada" pode ser construída. (HALL, 2003, p.78)
Este discurso apaga/silencia as diferenças: produz UMA identidade do povo,
transformando determinado conjunto de características culturais em algo natural.
Para compreender efeitos das atividades da semana da pátria,
selecionamos inicialmente três publicações (dos anos de 2014, 2015 e 2016):
82
82
SECRETARIA DE EDUCAÇÃO DE VINHEDO. Facebook. 04/09/2014. Disponível em https://goo.gl/AmLM7T. Acesso em 12/02/2018. Chamamos a atenção para o trecho: “os alunos do CEI Saci Pererê se encantaram com as demonstrações de obediência e de proteção realizada pelos cães da guarda”. Lembramos que “obediência” vem do latim e que ob- quer dizer “estar diante de”, e que a raiz da palavra é di- que vem da palavra “deus”, “dei”. Obedecer é prestar reverência
109
83
84
Em comemoração ao Dia da Independência do Brasil, celebrado em 7 de setembro, a Prefeitura, por meio da Secretaria de Educação, está programando a Semana da Pátria nas unidades de ensino. O objetivo é proporcionar aos mais de 10 mil alunos matriculados na Rede Municipal de Educação a oportunidade de vivenciarem o real sentido cívico da data, uma das mais importantes do país. Seguindo os moldes das atividades desenvolvidas no ano passado, na semana que antecede a data, de 1 a 5 de setembro, os alunos irão desenvolver, dentro da própria unidade, diversas atividades voltadas ao exercício da cidadania. Para o prefeito Jaime Cruz, a proposta da Semana da Pátria é repetir o sucesso da atividade realizada no ano passado nas próprias unidades de ensino, que envolveu alunos, educadores e familiares e foi muito elogiada por conseguir resgatar o real significado da data. “Queremos valorizar e conservar o sentimento de patriotismo em nossos alunos, desenvolvendo o real conceito de cidadania”, disse o prefeito Jaime Cruz (Prefeitura prepara atividades cívicas na Rede Municipal de Ensino em comemoração à Semana da Pátria85.
A Guarda Municipal, as cores da bandeira, o desfile, o hino nacional, a fanfarra,
a segurança municipal, o sentido cívico, o exercício da cidadania, a valorização e
conservação do sentimento de patriotismo etc são as marcas deste discurso que tem o
incondicionalmente. É um belo exemplo - o cão - para as crianças aprenderem o que é obediência e como se deve ser obediente. Esse é o espírito patriótico que a semana quer valorizar.
83 SECRETARIA DE EDUCAÇÃO DE VINHEDO. Facebook. 04/09/2014. Disponível em https://goo.gl/AmLM7T. Acesso em 12/02/2018.
84 SECRETARIA DE EDUCAÇÃO. Facebook. 06/09/2014. Disponível em https://goo.gl/1MvCuJ. Acesso em 12/02/2018.
85 VINHEDO, 27/08/2014. Disponível em https://goo.gl/T3WYz4. Acesso em 13/02/2018).
110
poder de transformar o indivíduo em um povo. Esses discursos geram identidades
homogeneizadas e padronizadas. Segundo Oliveira e Abramowicz (2013) a “pedagogia do
povo”, por um lado, diminui o caráter político e público da instituição educacional e, por
outro, a aproxima do privado, fraterno e doméstico. A relação fraternal supõe uma relação
na qual o outro é reduzido a uma cópia de si. “Esta é uma pedagogia baseada na produção
de um povo, na qual predomina a ideia de homogeneidade e unidade, gerando a
transformação do ‘outro’ no ‘mesmo’, visando à ‘paz’ e à construção da nação” (OLIVEIRA
e ABRAMOWICZ, 2013, p.158). Neste modelo, quem escapa do “padrão” busca se
adaptar ou se conforma com a exclusão.
A educação é uma possiblidade de romper com as identidades fixas e
hegemônicas, mas para isto temos que repensar o modelo predominante nas
instituições educacionais: atualmente são lugares onde se pratica educação
maioritária (pedagogia do povo).
As expressões maioritárias e minoritárias não são contrárias, mas têm
intenções diferentes. A primeira conserva valores sociais, impõe regras e condutas. A
segunda é a “educação menor, nômade, para além de todo estriamento produzido
pelo aparelho de Estado que toma a educação em sua maioridade” (GALLO e
FIGUEIREDO, 2015, p.45). Uma educação menor não fixa identidades hegemônicas,
mas permite ao sujeito a subversão das identidades existentes.
Pensar uma educação menor é importante para romper com a concepção
cristalizada de governamento do corpo e da mente, que adapta a criança ao saber e
aos valores da sociedade. É a possibilidade de realizar uma micropolítica ao nível da
creche e da pré-escola, para “recusar fazer ‘cristalizar’ a criança muito cedo em
indivíduo tipificado, em modelo personológico estereotipado” (GUATTARI, 1987,
p.54).
Concordamos com Oliveira e Abramowicz (2013, p.158):
É preciso pensar a educação, a criança e a infância a partir de outras bases; bases estas pensadas a partir das diferenças. Essa infância, que tentamos o tempo todo capturar, resiste e nos escapa, em um movimento incessante de se reinventar. Uma “educação para a multidão” na educação infantil, visando a essa produção das diferenças, dar-se-ia a partir do “devir-criança”, que se contrapõe à ideia molar/majoritária de “povo”, mas que estaria aberta aos fluxos, em suas formas plurais, que devenha outra coisa, por ser minoritária e por ter a possibilidade de escapar aos códigos instituídos, à máquina de sobrecodificação e as organizações binárias.
111
Constamos que a semana da pátria é um instrumento de governamentalidade e
produção de um povo. Percebemos isso também nas publicações relacionadas ao
aniversário da cidade, que é comemorado no dia 02/04. Vejamos:
86
No aniversário de Vinhedo, comemorado em abril, os alunos das escolas municipais são estimulados a desenvolver o Projeto “Aniversário de Vinhedo”, onde pesquisam a história da cidade, os primeiros moradores e os pontos turísticos. O Projeto é feito de forma interdisciplinar e todos os professores da Unidade trabalham em conjunto. Ao iniciar o Projeto deste ano, no final de março, os alunos da escola municipal Darci Ana Dêgelo Brisk começaram a pesquisar alguns personagens ilustres da cidade e ao conhecerem a história do Prefeito Jaime Cruz, perceberam que ela era bastante inspiradora: um menino pobre que batalhou e conseguiu ser prefeito de uma cidade. A partir daí, os alunos decidiram montar um livro em homenagem ao prefeito, reunindo recortes, fotografias e textos dos principais momentos da sua vida, além de acrescentar poemas, acrósticos e desenhos que os próprios alunos escreveram para homenageá-lo87.
Na comemoração do aniversário de Vinhedo as atividades também
trazem elementos que transformam os indivíduos em um povo. São trabalhadas três
temáticas: i) ato cívico: hino, bandeira, ii) conhecimento dos pontos turísticos e das
personalidades históricas da cidade e iii) ritos de uma festa de aniversário. Estas
comemorações naturalizam a cultura hegemônica, visando produzir identidades
culturais únicas. É uma pedagogia que busca a produção do povo.
Ainda dentro desta perspectiva de produzir “povo”, ao invés de multidão,
alguns ensinamentos são “inseridos num determinado modelo hegemônico de
produção de hábito e de condutas, cujo objetivo é a produção de pessoas e indivíduos
que se constituam em povo” (ABRAMOWICZ, LEVCOVITZ e RODRIGUES, 2009,
86
CIDADE EDUCADORA. Facebook. 06/04/2015. Disponível em https://goo.gl/ovJEbF. Acesso em 12/03/2018.
87 VINHEDO, 20/05/2015. Disponível em https://goo.gl/PqwLeR. Acesso em 13/02/2018.
112
p.181). Isto pode ser observado em algumas comemorações, que têm em comum a
formação de cidadãos conscientes (Dia da Água, Maio Amarelo, Dia do Meio Ambiente,
Dia do Desafio e Semana Nacional do Deficiente).
O cidadão consciente é aquele que compreende a sua importância no
mundo que habita, por isso é cumpridor de seus deveres, conhece e usufrui de seus
direitos. Para manter esta lógica é necessário que as escolas formem cidadãos
conscientes, que i) entendam a importância de preservar a natureza e o mundo em
que vive, economizando bens naturais (Dia da água e Dia do Meio Ambiente), ii)
respeitem as pessoas (Semana Nacional do Deficiente), iii) tenham bons hábitos
alimentares e cultivem a boa forma física (Dia do Desafio) e iv) sejam bons
motoristas e respeitem o trânsito (Maio Amarelo).
É, porém, necessário quebrar a ordem binária (história/natureza,
homem/mulher, branco/negro, homossexual/heterossexual, corpo/alma etc) “para ver a
potência de algo novo, mas libertário e quem sabe ‘mais saudável’ – em oposição à
saúde dominante que elegeu determinadas concepções de força física, beleza, cor e
sexualidade como padrão de saúde –, tanto para o indivíduo quanto para as relações que
quisesse estabelecer” (ABRAMOWICZ, LEVCOVITZ e RODRIGUES, 2009, p.191). A
educação deve estar aberta para fluxos, para diferentes formas de expressão, deve ser
uma educação minoritária que escape dos códigos instituídos.
Observamos, ao analisar estas comemorações, que não há a mesma
imposição da Secretaria da Educação em todas as datas. Há um número elevado de
publicações referentes ao dia da Independência e aniversário de Vinhedo e em todos os
anos analisados há registros destas práticas. A maioria das publicações é dos CEIs, e há
o envolvimento da Secretaria de Educação. Estas comemorações fazem parte de
eventos municipais que abrangem outras secretarias. Com isto, podemos afirmar que a
Secretaria da Educação determina a realização de atividades, muitas vezes distantes das
ações e das temáticas desenvolvidas nas instituições.
Quanto às comemorações referentes à formação de cidadãos conscientes,
constatamos que a Semana Municipal do Deficiente e Maio Amarelo têm um número
menor de publicações do que as das comemorações do Espírito Nacional, mas têm
relação com eventos ou campanhas municipais. Já o dia da água, do meio ambiente e do
desafio são iniciativas isoladas do professor ou do CEI.
113
3.3.3 Atividades fundamentais na Educação Infantil
Nas DCNEI (2009) há a seguinte orientação: “as práticas pedagógicas
que compõem a proposta curricular da Educação Infantil devem ter como eixos
norteadores as interações, a brincadeira e a garantia de experiência” (BRASIL,
2009, p.25). Para Fochi (2015 apud BONDIOLI e MONTOVANI, 1998), há três
princípios da didática importantes para garantir experiências: a ludicidade, a
continuidade e a significação.
A palavra ludicidade vem do latim ludus, significa jogo, imitação e
exercício. “O papel da ludicidade na reflexão sobre os campos de experiência como
um jeito de favorecer a criança ao exercício criador” (FOCHI, 2015, p.225). A criança
na Educação Infantil precisa de espaço para o engenho, criatividade e inventividade.
Mas é preciso ter tempo, por isso o segundo princípio é a continuidade: frequência,
constância, continuação, persistência ou prosseguimento das ações da criança para
explorar o mundo.
A continuidade é um princípio didático fundamental para a experiência:
deve garantir que as crianças tenham tempo para permanecer em seus percursos
de investigação, disponibilizar materiais suficientes e variados para que elas possam
criar em um espaço de referência, com a possibilidade de atuarem em conjunto, mas
sem a necessidade de todas realizarem a mesma atividade. Em pequenos grupos as
crianças conseguem participar mais ativamente, se expressar melhor, criar com mais
tranquilidade e autonomia.
Para compreender o terceiro princípio didático, a significação, é
importante entendermos que “é experiência aquilo que ‘nos passa’, ou que nos toca,
ou que nos acontece, e ao nos passar nos forma e nos transforma” (LARROSA, p.26,
2002). Ou seja, a experiência tem significados pessoais, ela é uma vivência
significativa para o sujeito e não mera transmissão de informações. Segundo Fochi
(2015, p.227) a significação envolve “(I) a autoria, não são tomados de algum lugar
pronto, mas construídos a partir da experiência de cada sujeito no mundo, (II) a
eleição, já que conhecer é esse estado contínuo de eleger algo (...) e (III) a
provisoriedade, pois os significados produzidos não são rígidos”.
A organização curricular que estamos analisando não é lúdica (como
possibilidade de criação), não tem continuidade (com tempo e espaço para as
crianças construírem seus percursos) e não tem significação (com autoria do sujeito
114
e vivência pessoal). Na organização curricular por datas comemorativas até a leitura
e as brincadeiras, que são atividades diárias na Educação Infantil, são realizadas em
uma data específica.
Há um número elevado de publicações sobre a Semana do Brincar e a
Semana da Leitura. Por isso, investigamos o que é realizado durante estas
comemorações. A Semana do Brincar ocorre na última semana do mês de maio.
Segundo reportagem no site da Prefeitura, em 2015 “as crianças das 19 unidades de
Educação Infantil da Prefeitura de Vinhedo tiveram uma semana diferente. É que a
Secretaria de Educação adotou, já pelo terceiro ano seguido, a semana do brincar”88.
As atividades descritas nesta reportagem são brincadeiras que deveriam
ocorrer diariamente nos CEIs. Será que as brincadeiras não fazem parte do currículo
do CEIs? Ou será que ocorrem cotidianamente, mas ganham visibilidade apenas
neste período pela necessidade da Secretaria da Educação de comemorar a data?
Se as brincadeiras são um eixo do currículo, por que a necessidade de uma semana
para comemorar o brincar? Co-memorar é lembrar juntos, se brincamos todos os
dias com as crianças é porque não nos esquecemos disso. Não é preciso uma
semana para comemorar.
Essa semana a Prefeitura de Vinhedo, por meio da Secretaria de Educação, está realizando atividades alusivas à Semana Mundial do Brincar, organizada pela Aliança pela Infância do Brasil, destinadas aos quase 3 mil alunos da Educação Infantil. A intenção é intensificar, mobilizar as crianças, os funcionários, as famílias e a comunidade no sentido do resgate e a importância do ato de brincar, preservando e estimulando algumas brincadeiras antigas que fazem sucesso até hoje com a garotada89.
A Semana Mundial do Brincar é organizada pela Aliança pela Infância,
uma organização internacional. Em seu site é dito que suas ações visam que as
crianças vivam em plenitude a infância. A atuação dos membros dessa rede é
voluntária. A Aliança pela Infância orienta que as ações realizadas durante a
semana devam ser documentadas (com vídeos, textos, fotos) e enviadas para o site.
Portanto, uma organização internacional influencia o currículo dos CEIs.
88
VINHEDO. Disponível em https://goo.gl/3bISQO. Acesso em 11/10/17
89VINHEDO. Disponível em https://goo.gl/FqqSnJ. Acesso em 11/10/2017.
115
A Semana da Leitura, por sua vez, faz parte da programação de
aniversário do município de Vinhedo e, segundo reportagem no site da prefeitura,
“tem o intuito de contribuir para a formação crítica e cultural da população através do
estímulo a leitura”90. Novamente há uma imposição da Secretaria de Educação para
que todos os CEIs realizem as mesmas atividades no mesmo período, com objetivos
e finalidades determinados por órgãos externos.
As escolas municipais da Prefeitura de Vinhedo estão repletas de atividades especiais que fazem parte da programação da Semana de Incentivo à Leitura, em parceria com a Secretaria Municipal de Cultura e Turismo. Durante toda a semana, os alunos das várias faixas etárias estão participando de programações pedagógicas lúdicas variadas, incluindo contações de histórias, degustação de receitas e muito mais91.
Para que práticas pedagógicas tenham como eixo norteador as brincadeiras,
as interações e a garantia de experiências, não é possível um currículo baseado em
datas comemorativas com tempo, temática, proposta e objetivo determinados
unicamente pelos adultos, mesmo que as atividades sejam próprias para a faixa etária.
Porque o currículo precisa ser flexível, “exige enxergar a criança pequena possuidora
de muitas potencialidades, surpreendentes competências, co-construtora do
conhecimento e identidade através do relacionamento com outras crianças no coletivo
infantil e produtoras de cultura” (FINCO, 2015, p.234).
Nestas duas comemorações também ficou explícito que a escolha não é do
docente ou da comunidade escolar: é determinada pela Secretaria da Educação para
atender aos interesses da prefeitura, de organizações, de fundações etc.
3.3.4 Comemorações referentes aos membros da família
A educação tradicionalmente é vista como um espaço de substituição da
família. Contudo essa percepção vem sendo questionada inclusive na própria
legislação, que define que a escola e a família desempenham papeis complementares na
educação das crianças. A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos
princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o
90
VINHEDO. Disponível em: https://goo.gl/9MEdgX. Acesso em 04/03/2018.
91 VINHEDO. Disponível em https://goo.gl/oKnnqT. Acesso 04/03/2018.
116
pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e
sua qualificação para o trabalho (Art. 2º da LDB, 1998, p.13).
Nesse sentido, investe-se em um discurso que pretende aproximar escola
e família. As comemorações do dia das crianças, das mães e dos pais em geral são
momentos privilegiados no currículo escolar para essa integração e tentativa de
“aproximação”. Contudo as mudanças na estrutura familiar na contemporaneidade
têm feito com que as escolas precisem repensar o que representa comemorar o dia
das mães ou o dia dos pais, quando muitas crianças vivem em estruturas familiares
monoparentais (só com a mãe ou só com o pai) ou, ainda, vivem com os avós ou
são filhos de casais homossexuais, por exemplo. Na nossa sociedade não se pode
mais pensar em uma estrutura familiar única, mas em famílias, para que se possa
representar a diversidade de relações presentes atualmente. Dias (2005, p. 210)
define família como
um grupo aparentado responsável principalmente pela socialização de suas crianças e pela satisfação de necessidades básicas. Ela consiste em um aglomerado de pessoas relacionadas entre si pelo sangue, casamento, aliança ou adoção, vivendo juntas ou não, por um período de tempo indefinido.
Diante desta realidade social cabe aos professores refletirem a respeito
do dia dos pais e dia das mães, antes de submeter à criança uma comemoração que
pode não fazer parte da vida dela:
A escola não deve se render à tradição e insistir em fazer festas para comemorar essas datas, pois a realidade da criança é outra. O trabalho nesse sentido deve existir, ou seja, deve-se mostrar que existem diferentes tipos de família, que nem esse nem aquele tipo é certo; porém, continuar com uma tradição que não condiz com uma realidade atual é fechar os olhos para as mudanças (VASCONCELOS ,1989, p.79).
É preciso, pois, identificar qual é o tipo de família das crianças e adaptar as
comemorações ao mundo vivido por elas. Nesse sentido, começa a ser comum em
diversas instituições de Educação Infantil substituir o dia das mães e o dia dos pais por
festas de comemoração do “dia da família”, em data definida pela escola.
Os CEIs comemoravam anualmente o dia das mães e dos pais com
apresentações, eventos, presentes, cartões etc. No entanto, a prefeitura instituiu, a partir
do ano de 2014, que o encontro da família ocorresse no mês de maio. Segundo a
117
reportagem, este evento foi “criado para proporcionar momentos de integração entre
educadores, familiares e alunos”92. Diz o prefeito: “é de extrema importância a
participação dos familiares e o acompanhamento da vida escolar dos alunos, e isso tem
de ser incentivado”93. A Secretaria da Educação “desenvolveu o 1º Encontro da Família,
evento que superou a expectativa e reuniu mais de 20 mil pessoas”94.
Nas 24 publicações analisadas observamos que os encontros são
momentos de confraternização entre as crianças, os pais e os funcionários dos
CEIs. São organizadas brincadeiras, atividades culturais, oficinas, caminhadas,
lanches coletivos etc. A maioria dos CEIs substituiu o dia das mães e dos pais por
este encontro, mas identificamos três publicações referentes ao dia das mães. Em
duas, os CEIs produziram um livro de receitas com a participação das crianças e, a
outra, relata brincadeiras entre mães e crianças.
A comemoração da semana das crianças está mais próxima da discussão
que já fizemos das atividades fundamentais para Educação Infantil do que a dos
membros da família, pois o objetivo dos CEIs é realizar atividades que as crianças
gostem de vivenciar. Encontramos nos registros das práticas atividades artísticas
(teatro, contação de história, show de mágica, espetáculo circense), momentos de
brincadeiras (festa à fantasia, bicicleta, cama elástica, balão pula-pula e piscina de
bolinha, brinquedos confeccionados com sucatas), oferta de alimentos (picolé e
pipoca).
Estas atividades são apreciadas pelas crianças, mas é pertinente serem
realizadas em uma data específica? Ao tratá-las como atividades especiais, nos
parece que passam a ser de outra ordem. As atividades artísticas e as brincadeiras
não são atividades fundamentais na Educação Infantil? Elas não poderiam
acontecer no decorrer de todo o ano?
Esta é uma comemoração que rendeu muitas publicações. Será que a
Secretaria de Educação gosta de dar visibilidade para atividades lúdicas e artísticas
porque compreende sua importância para as crianças ou porque legalmente estas
atividades devem ser privilegiadas?
92
VINHEDO. Disponível em https://goo.gl/K5VGat. Acesso em 17/03/2018.
93VINHEDO. Disponível em https://goo.gl/K5VGat. Acesso em 17/03/2018.
94 VINHEDO. Disponível em https://goo.gl/e8vR4v Acesso em 17/03/2018.
118
3.4 Identidades culturais: o dito e o não-dito
Investigamos algumas questões: quais experiências as crianças
vivenciaram ao realizarem atividades pautadas em datas comemorativas? Quais são
as aprendizagens significativas? Que representatividade a cultura e os valores das
crianças têm em um CEI? Quais os objetivos dos professores ao definir os
conteúdos selecionados? Quais os critérios utilizados? Que interesse há por trás dos
temas/datas abordados? Quais ações são realizadas para envolver as crianças em
momentos que valorizem suas identidades? O que está presente (e o que está ausente)
no currículo organizado por datas comemorativas? Este trabalho possibilita a
reflexão da comunidade escolar?
Notamos que algumas datas se repetem ano a ano, assim como as
atividades propostas e as ações realizadas em cada comemoração. Também
observamos o não-dito: as datas comemorativas que não foram publicadas na página
da Cidade Educadora como, por exemplo, 08/03 (Dia Internacional das Mulheres),
25/11 (Dia Internacional da Não-Violência Contra a Mulher) e 20/11 (Dia da Consciência
Negra). Não acreditamos em um planejamento baseado em datas comemorativas. No
entanto, no currículo analisado, grande parte das interações acontecem a partir das
datas comemorativas. Perguntamos: por que comemorações referentes à luta e à cultura
das minorias não foram encontradas nos dados analisados?
É fundamental que temas que desconstroem a identidade hegemônica
estejam presentes nos CEIs não em uma data específica, mas no decorrer do ano
letivo. No entanto, para que as crianças tenham experiência com a temática, é
necessário adentrar as discussões. Por exemplo, propor no dia 08/03 que as crianças
pintem uma flor e levem para mãe não adentra a discussão sobre as lutas das
mulheres ao longo da história e sobre a desigualdade de gênero ainda tão presente
em nossa sociedade.
Qual seria o caminho para tratar desta temática com crianças pequenas?
Uma possibilidade seria realizar diariamente atividades com profundidade como, por
exemplo, problematizando contos de fadas tradicionais. Poderíamos ler histórias em
que as mulheres têm direitos iguais, são heroínas, personagens principais, que vivem
aventuras. É importante também problematizar e aguçar as crianças para utilizar
todos os brinquedos, questionando a divisão social entre brinquedos de meninas e
meninos. Estas são algumas práticas na Educação Infantil que ajudam a refletir sobre
119
as relações de gênero na sociedade. Pintar a flor e levar para a mãe tem três funções:
gastar o tempo pedagógico, continuar endossando a ideia de que as mulheres são
frágeis e que é preciso comemorar porque já conquistaram tudo a que tinham direito.
Mesmo sem a intenção do docente, essas práticas continuam privilegiando a cultura
dos grupos dominantes, silenciando, estereotipando, minimizando os demais grupos.
Não encontramos publicações referentes à questão racial nos dados
analisados, apesar da lei 10.639/2003, sancionada pelo governo Lula em março de 2003,
ter alterado a LDB95: em seu artigo 79-B passou a determinar que “o calendário escolar
incluirá o dia 20 de novembro como o Dia Nacional da Consciência Negra”.
O Dia Nacional da Consciência Negra foi criado em 2003, no Brasil, e
instituído em âmbito nacional pela lei nº 12.519, de 10 de novembro de 2011. A data
foi escolhida por marcar o dia da morte de Zumbi dos Palmares em 1695. Sendo
assim, remete à resistência do negro contra a escravidão e visa refletir sobre a
inserção do negro na sociedade brasileira e combater práticas racistas.
No município de Vinhedo a data não está incluída no calendário de
feriados do município, mas segundo a reportagem “Prefeitura e Câmara resgatam
Consciência Negra em Vinhedo”96 foram sancionadas duas leis municipais, pelo
prefeito Milton Serafim, que instituem a Semana da Consciência Negra (lei
2399/1999) e o Dia da Consciência Negra (lei 2394/1999). Procurando ações
voltadas ao cumprimento destas leis, encontramos no site atividades e
programações realizadas pela prefeitura nos anos de 2009, 2012, 2015 e 2016.
No ano de 2009, segundo reportagem97
, a programação da Semana da
Consciência Negra previa sessão solene para homenagear cidadãos que se
destacaram na defesa e integração social da comunidade negra de Vinhedo, a
apresentação da Corporação Musical Campineira dos Homens de Cor,
apresentações de hip hop e capoeira de alunos do projeto Oficinas Culturais,
apresentação de dança afro-brasileira pelos alunos do Ensino Fundamental II da
95
Lei 9394/96, que tornou obrigatória a inclusão do ensino da história da África e da cultura afro-brasileira nos currículos dos estabelecimentos de ensino público ou particulares e estabeleceu as Diretrizes Curriculares para sua implementação. Essa lei é resultado da luta do Movimento Negro brasileiro, uma medida afirmativa frente ao racismo. O referido movimento acredita que os estabelecimentos de ensino são instituições que podem construir uma imagem positiva dos afro-brasileiros (GOMES, 2013, p.68).
96 VINHEDO. Disponível em https://goo.gl/abEMHr. Acesso em 15/04/2018
97 VINHEDO. Disponível em https://goo.gl/abEMHr. Acesso em 15/04/2018
120
Rede Municipal de Ensino e samba de roda. Ainda segundo a reportagem, as
atividades seriam realizadas pelas Secretarias de Educação, Cultura e Turismo.
No ano de 2012 uma reportagem98 mostra que a ação para comemorar o
Dia Nacional da Consciência Negra foi uma palestra realizada pela pedagoga Fátima
Aparecida Jesus da Silva, sobre a sua avó Dona Aurora Bueno Sudário, uma cidadã
vinhedense que se dedicou a preservar os costumes da cultura afro-brasileira no
município. Esta palestra foi ofertada aos professores de História e Geografia da
Rede Municipal de Ensino.
Segundo reportagens, para a comemoração da Consciência Negra nos anos
de 201599
e 2016100
foram realizadas atividades organizadas pela Secretaria de Cultura e
Turismo, como rodas musicais, apresentações, vivências e exposições (anexo 2 e anexo
3).
No Facebook Cidade Educadora e o site da prefeitura, observamos que ações
da Secretaria da Educação nesta data são quase invisíveis. Na Educação Infantil não
encontramos nenhuma publicação. Por que esta comemoração não tem visibilidade? Por
que as ações da Secretaria da Cultura e Turismo não são levadas para as unidades
educacionais, como ocorrem em outras datas? Concluímos que há negligência por parte
da Secretaria da Educação na implementação da lei 10.639/2003. Segundo Gomes (2013,
p.69), a resistência das Secretarias de Educação
está relacionada com a presença de um imaginário social peculiar sobre a questão do negro no Brasil, alicerçado no mito da democracia racial. A crença apriorística que a sociedade brasileira é um exemplo de democracia e inclusão racial e cultural faz com que a demanda do trato pedagógico e político da questão racial seja vista com desconfiança pelos brasileiros e brasileiras, de maneira geral, e por muitos educadores, educadoras e formadores de políticas educacionais, de forma particular.
Conhecer a história da África e da cultura afro-brasileira contribui para superar a
visão do africano como selvagem e o preconceito naturalizado em nossa sociedade.
Buscamos uma educação que proporcione uma diversidade etnicorracial, reconheça a
98
VINHEDO. Disponível em https://goo.gl/rE1LzF. Acesso em 15/04/2018
99 VINHEDO. Disponível em https://goo.gl/jK8x2N. Acesso em 15/04/2018
100 VINHEDO. Disponível em https://goo.gl/J2h1AE.Acesso em 15/04/2018
121
riqueza da diversidade e que ajude a superar a construção da subjetividade do povo
brasileiro, em que a população negra por vezes é tratada como inferior à branca.
Na Educação Infantil é fundamental que a lei 10.639/2003 seja respeitada:
estudos mostram que o racismo nesta etapa se mostra de modo distinto das demais. No
Ensino Fundamental e Médio se dá pelo baixo rendimento das crianças negras, e na
Educação infantil acontece nas relações corporais do cotidiano.
Nas brincadeiras na Educação Infantil, esse racismo aparece quando as crianças negras são as empregadas domésticas, quando as crianças brancas temem ou não gostam de dar as mãos para as negras, etc. O racismo aparece na Educação Infantil, na faixa etária entre 0 e 2 anos, quando os bebês negros são menos “paparicados” pelos professores do que os bebês brancos. Ou seja, o racismo, na pequena infância, incide diretamente sobre o corpo, na maneira pela qual é construído, acariciado ou repugnado (OLIVEIRA e
ABRAMOWICZ, 2010, p. 222).
Para superar o racismo das/nas instituições educacionais é necessário
desfazer a mentalidade racista e discriminadora secular, superando o etnocentrismo europeu, reestruturando relações etnicorraciais e sociais, desalienando processos pedagógicos. Diálogos com estudiosos que analisam, criticam estas realidades e fazem propostas, bem como com grupos do Movimento Negro, presentes nas diferentes regiões e Estados, assim como em inúmeras cidades, são imprescindíveis para que se vençam discrepâncias entre o que se sabe e a realidade, se compreendam concepções e ações, uns dos outros, se elabore projeto comum de combate ao racismo e discriminações. Temos, pois, pedagogias de combate ao racismo e a discriminações por criar (Diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de História e cultura afro-brasileira e africana, 2004, p. 15).
Os saberes trabalhados nas datas comemorativas são julgamentos
etnocêntricos de uma cultura dominante, por isso algumas culturas não têm visibilidade
no calendário municipal. Observamos também que não é apresentado o caráter histórico
da comemoração, as atividades não levam as crianças a refletirem, apenas a perpetuar a
identidade hegemônica. Essa forma de comemorar silencia a desigualdade social e
mantém a ideia de que teríamos todos as mesmas oportunidades.
As publicações são dispositivos pedagógicos para a ação do docente,
ditando um fazer que promove uma experiência unitária de subjetivação, que
necessitaria ser realizada por cada professor para ser considerado “normal” ou
122
“eficiente” conforme padrões comparativos. O docente se reconhece como tal, em
seu autogoverno, naturalizando escolhas nem sempre emancipatórias.
Como o docente conseguiria escapar desta grande maquinaria política? Já
que esta relação é de mão dupla: o município impõe e as equipes dos CEIs
comprovam. Isto não significa que não há resistência, mas que os registros das
práticas que analisamos não dá visibilidade para as práticas de resistência, pois,
evidentemente, não há interesse, por parte das instituições, de divulgá-las quando
ocorrem.
123
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo mostrou que práticas pedagógicas afetam a produção de
identidades culturais. Ao decompor as relações de poder presentes no currículo,
desvendamos a visão de sociedade expressa e entendemos como os sujeitos
participam delas e as (re)produzem.
Demos visibilidade às articulações e desencontros entre o currículo
prescrito e os registros de um suposto currículo vivido ao analisarmos materiais
produzidos pelo poder público: documentos curriculares municipais (proposta
pedagógica e grade curricular), registros de práticas vivenciadas nos CEIs e
legitimados/impostos pela Secretaria de Educação (publicações do Facebook
Cidade Educadora) e reportagens sobre o currículo (textos publicados no site oficial
da prefeitura de Vinhedo).
Se, por um lado, entendemos que essa estratégia de divulgação dos
registros das práticas vividas pelas crianças nos CEIs visa comprovar a
implementação do currículo prescrito, por outro lado, ela também nos revela
elementos do currículo vivido que não aparecem nas prescrições. A organização
curricular a partir de semanas comemorativas é apenas um exemplo disso. Essa
organização curricular não se faz presente no currículo prescrito, mas se evidencia
nos registros divulgados. A ausência de registros de práticas que atendam às
exigências das leis 10.639/03 e 11.645/08, também é um exemplo de como o
currículo vivido, e/ou registrado, se distancia do currículo prescrito. O registro das
práticas não se confunde com o currículo vivido, mas oferece diversos indícios para
que possamos discuti-lo.
Discutimos também a forma de gerir a instituição pública, o que tem
influenciado no currículo. Por exemplo, observamos que a Secretaria de Educação
implementou políticas públicas no município baseadas em uma gestão educacional
empresarial, ao invés de democrática. Vimos nos dados analisados como o
município interage com políticas recentes, mantendo a lógica de mercado, e
percebemos que organizações, fundações, empresas e outras instituições
influenciam o currículo da Educação Infantil de Vinhedo.
Analisando documentos municipais, constatamos uma tentativa de aproximação
com as DCNEI, ao considerar o conceito de criança e o papel das interações e brincadeiras
no processo educativo. No entanto, o modo como o documento estrutura a rotina da
Educação Infantil mostra um grande contrassenso em relação a essas diretrizes: organiza a
124
rotina com conhecimentos desarticulados e as interações e brincadeiras não atravessam o
currículo de modo integral. Cada componente curricular (área de conhecimento, eixo de
trabalho e brincar como disciplina) possui uma quantidade de horas pré-definidas a serem
desenvolvidas ao longo da semana.
Sobre os registros das práticas, mostramos que a organização curricular
predominante é estruturada por atividades baseadas em datas comemorativas e
projetos pedagógicos propostos pela Secretaria de Educação. Mostramos que a
instituição impõe a realização de atividades nos CEIs, desconsiderando o PPP da
unidade e suas especificidades. Muitas vezes as atividades são muito distantes das
ações e das temáticas desenvolvidas nos CEIs, desvinculando-se do trabalho
pedagógico local.
Constatamos que são comemoradas as mesmas datas, com as mesmas
atividades ano a ano. Grande parte é determinada pela Secretaria da Educação, o que
pudemos observar nas reportagens do site oficial da Prefeitura. Vimos que o conhecimento
trabalhado é superficial, com pouco espaço para a criatividade das crianças e distante de
seus interesses. Em relação às temáticas das datas escolhidas: mantêm como centro a
identidade do homem, branco, heterossexual, europeu e cristão. E incentiva o consumo e
práticas religiosas dominantes. Ou seja, as datas comemoradas afirmam identidades
hegemônicas e apagam/silenciam outras culturas.
Observamos que grande parte das publicações que se referem a projetos
têm relação com os projetos municipais impostos pela Secretaria da Educação;
impedem, pois, a autonomia docente e o protagonismo das crianças. Vimos que
muitos pareciam ser de autoria dos educadores, mas são cópias de projetos
municipais: seguem os mesmos objetivos e metodologia. Desta forma, grande parte
dos projetos não propicia às crianças vivências e experiências que instiguem sua
curiosidade, pois não partiram das suas inquietações, interesses, falas: são
aglomerados de atividades que visam desenvolver um conhecimento específico,
instituir um comportamento nas crianças e nas famílias, celebrar datas
comemorativas etc. O trabalho é centrado no adulto, ao invés das crianças, e
privilegia conteúdos programáticos, focando em resultados e não em processos. A
criança fica invisibilizada, apagada, nestas práticas orientadas pelo currículo.
Frequentemente sua cultura não é considerada: as atividades visam ensinar
sobre a cultura dominante e pouco permitem a experiência com a arte. As crianças se
expressam utilizando diversas linguagens, mas por vezes o ambiente da instituição as
125
enfraquece ao desconsiderar este potencial. Acreditamos que a Educação Infantil só
cumprirá o seu papel social se respeitar e valorizar a diversidade das crianças: suas
linguagens, formas de expressão, modo de estar no mundo etc.
As práticas curriculares analisadas mostram que o currículo da Educação
Infantil de Vinhedo (re)produz uma identidade hegemônica, cristalizando-a cada vez mais
em nossa sociedade. Para isto se romper, é fundamental que temas como gênero,
sexualidade, relações etnicorraciais, diferentes formas de famílias etc estejam presentes no
currículo dos CEIs, e que seja preservada a laicidade na escola pública.
Ao escrever o projeto para produzir esta dissertação, parecia-nos que havia
uma antecipação da escolarização (realização de práticas do Ensino Fundamental),
fragmentação do currículo em áreas do conhecimento (como português, matemática,
artes etc.) e falta de autonomia dos docentes (a Secretaria de Educação determina
unilateralmente práticas curriculares cotidianas fundamentais dos CEIs). Havia, portanto,
uma discrepância entre as práticas cotidianas e as DCNEI. Após as análises concluímos
que a antecipação da escolarização e fragmentação do currículo em áreas do
conhecimento aparecem de modo superficial nos dados investigados. Isso não significa
que tais práticas não ocorram nos CEIs, mas não são publicadas no Facebook da
Secretaria da Educação. A falta de autonomia curricular fica evidente com a
obrigatoriedade dos CEIs de realizar projetos da Secretaria de Educação e comemorar
datas impostas pelo poder público.
É fundamental romper com este currículo centrado em datas
comemorativas e buscar uma relação menos hierárquica com a Secretaria de
Educação. Nesse sentido, gostaríamos que esta pesquisa tivesse visibilidade, para
conscientizar os professores sobre a falta de autonomia docente. Além disso, é
importante que seja realizada a meta 13 do PME: “criar Diretrizes Curriculares para
Rede de Ensino Municipal até o terceiro ano de vigência deste PME”101. No dia
23/06/2018 o plano completou três anos, mas ainda não foi realizado nenhum esforço
para atingi-la. Também é importante o fortalecimento do PPP das instituições com a
participação de pais, funcionários, professores, gestores e a comunidade.
101
VINHEDO. Disponível em https://goo.gl/QVMuN4. Acesso em 01/05/2018
126
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