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Rodrigo Turin
Identidade e Método em Sílvio Romero e Araripe Júnior:
o caso Gregório de Matos
01/04/03
Rodrigo Turin
Identidade e Método em Sílvio Romero e Araripe Júnior:
o caso Gregório de Matos
Monografia apresentada ao
Departamento de História, Setor de
Ciências Humanas, Letras e Artes da
Universidade Federal do Paraná.
Orientador: Carlos Alberto
Medeiros Lima
01/04/03
i
O meu olhar é nítido como um girassol. Tenho o costume de andar pelas estradas Olhando para a direita e para a esquerda, E de vez equando olhando para trás… E o que vejo a cada momento É aquilo que nunca antes eu tinha visto. Alberto Caeiro
À família e aos amigos, na memória e no devir
Sumário
Agradecimentos i
1. A sátira e o engenho 1
2. Experiência histórica e emergência intelectual 5
2.1 O que somos? 5
2.2 Fragmentação e expectativa: a identidade em devir 14
2.3 Um conceito regulador 25
2.4 Um romantismo oficial: o sentimento de Estado 34
3. Sílvio Romero e Araripe Júnior: as referências da identidade 41
3.1 História 45
3.2 Nação 54
3.3 Crítica 69
4. Conclusão 83
5. Bibliografia 88
1
1. A Sátira e o Ouvidor
Escreve-se a história, mas ela sempre foi escrita do ponto de
vista dos sedentários, e em nome do aparelho unitário de Estado,
pelo menos possível, inclusive quando se fala de nômades.
Deleuze e Guattari - Mille plateaux
Gregório de Matos é uma etiqueta, diz João Adolfo Hansen em seu notável
estudo sobre a obra que referencia e/ou é referenciada por tal nome. Gregório é uma
unidade imaginária e cambiante nos discursos que o compõem contraditoriamente em
uma hierarquia estética, detrminada por uma cadeia de recepções. "Não substancial, é
efeito da leitura dos poemas atribuídos, não sua causa"1.
Gregório é uma etiqueta do modernismo, concretismo, tropicalismo e outros
"ismos" mais que o enxergam como uma experiência de originalidade radical da letra.
É esse Gregório construído pelo olhar estético da modernidade que subjaz no panteão
da literatura brasileira, como referência da identidade nacional, reproduzido nos livros
didáticos e constantemente reciclado em uma interxtualidade promovida pela
emergência de novos literatos ansiosos por conquistar seus espaços.
O objetivo aqui não é, como em Hansen, identificar o horizonte original onde
estava imersa a obra atribuída a Gregório e limpá-la de todas as camadas
modernizantes. Não procuro por à prova a unidade imaginária Gregório de Matos.
Tenciono antes voltar-me sobre duas dessas leituras "modernizantes" e visualizar ali,
na tessitura de ambas as leituras, a figura do autor barroco e os predicados a ele
referidos.
A prática interpretativa, em forma de texto, dos autores aqui analisados, Sílvio
Romero e Araripe Júnior, constitui então uma "camada" dessa cadeia de recepções e
guarda em si preciosos indícios das expectativas desses agentes em um determinado
campo social. A história está no texto, a diacronia na sincronia. As disposições desses
críticos – instituídos enquanto tais – e as tradições com as quais trabalham e se
associam manifestam-se no texto, na encorporação textual de determinada
1 Hansen, João. A. A Sátira e o Engenho. São Paulo: Cia das Letras, 1989. p. 15.
2
experiência histórica. Como atesta Bourdieu, "o que se exprime através do habitus
lingüístico é todo o habitus de classe do qual ele constitui uma dimensão, ou seja, de
fato, a posição ocupada, sincrônica e diacronicamente, na estrutura social"2.
As duas leituras que me proponho aqui a analisar situam-se nas décadas de
1880 e 1890, na cidade do Rio de Janeiro. Neste momento é publicado pela primeira
vez um volume autônomo contendo as poesias que levariam a rubrica de Gregório de
Matos e Guerra3. Esta publicação traz Gregório à cena letrada, possibilitando que ele
ocupasse um lugar na construção da tradição literária nacional. Tal construção é
manifestada em obras como "Gregório de Matos", de Araripe Júnior, publicada em
1893; e "História da Literatura Brasileira", de Sílvio Romero, de 1888.
Gregório de Matos surge para a história nacional e cabe posicioná-lo,
classificá-lo, hierarquizá-lo, definir-lhe o caráter, enfim, a crítica se ocupa de sua
pessoa e obra. Munidos de uma concepção precisa de história, dotada de um claro
sentido teleológico, virtualidade universal que se atualiza na realização da unidade
nacional, Sílvio Romero e Araripe Júnior voltam-se para a obra do poeta baiano. A
matéria, o corpo dessa atualização é o homem e sua produção, produtos do meio e das
raças que os formaram. Revestida por uma roupagem naturalista, essa experiência
histórica se pauta por uma noção de representatividade, a qual é julgada de acordo
com a significância do escritor para a realização do espírito nacional. Mediante o
indivíduo Gregório de Matos e sua obra, Sílvio Romero e Araripe Júnior crêem poder
entrar em contato com a atualização do nacional em seu processo, conflituoso,
ambíguo, mas certo e infalível.
Gregório é logo tomado como parte sintética desse processo. Encarna o caráter
nacional e sua poesia – mediante a qual também se permite visualizar sua vida – canta
o espírito nacional em formação, não só o que era, mas o que viria a ser. "Gregório de
Matos fêz-se nativista sem o saber, declara Araripe, mas achou todas as fórmulas de
nativismo que estão na atualidade em grande voga"4.
Detive-me, assim, para os fins desta monografia, sobre determinadas
expectativas compartilhadas por ambos os autores no que diz respeito à experiência
histórica, à idéia de nação, e à atividade crítica. Tendo escolhido como foco de
2 Bourdieu, Pierre. A economia das trocas lingüísticas. São Paulo: Edusp, 1998.p.71. 3 Obras Poéticas de Gregório de Matos. Por Alfredo do Vale Cabral, Rio de Janeiro 1881. 4 Araripe Jr,, T. A. Op. Cit. p. 377.
3
manifestação dessas expectativas a leitura que os autores realizaram de Gregório de
Matos, procurei detectar como a construção do poeta baiano denuncia os valores a
elas relacionados. Na elaboração do discurso histórico, na projeção de valores
nacionais mediante a literatura e na manifestação destes numa atividade crítica,
pretendi visualizar como se processava nestes autores a busca de uma identidade local
própria, a nacionalidade, simultaneamente à condição de pertencimento internacional.
Os três últimos capítulos, que constituem a terceira parte, são, desse modo, o
corpo principal desta monografia. Através dos tópicos "história", "nação" e "crítica"
pretendi esboçar momentos que condidero cruciais para se entender a experiência
desses agentes de cultura. A concepção histórica moderna, como presente nos autores,
é uma instância última de legitimação e compreensão; é o que dá forma a essa
experiência. A nação, por sua vez, é o objeto por excelência da prática desses
intelectuais, é em sua abordagem que se tornam manifestos os valores privilegiados, o
posicionamento dos autores, os projetos defendidos. E, por fim, a atividade crítica é a
performance reconhecida que procura dar, de fato, existência às coisas. É através da
crítica que os autores aqui analisados se reconhecem e que pretendem fazer valer a sua
legitimidade intelectual em uma intervenção prática na sociedade.
Para reforçar o argumento e melhor situar o leitor, os quatro capítulos que
antecedem as análises propriamente ditas de Sílvio Romero e Araripe Jr. procuram
introduzir o problema do qual esta monografia trata e mapear determinados horizontes
comuns compartilhados pelos críticos.
A leitura que realizei dos autores me levou a inseri-los em um horizonte maior,
que caracteriza, a meu ver, a experiência intelectual moderna. Desse modo, os
capítulos "Fragmentação e totalidade" e "Um conceito regulador" são tentativas de
reconstruir aspectos básicos desse experiência. O objetivo não é, nem de longe,
nivelar as experiências européias e americanas. O que se busca é perceber
determinadas expectativas compartilhadas, presentes e que orientam a produção dos
agentes de cultura. Expectativas como a que se baseia no paradigma hegeliano de
ciência, história e devir, aparecem em contextos diferentes, assumindo sentidos
diferentes.
O capítulo "Um romantismo oficial: o sentimento de Estado" se ocupa de
caracterizar o romantismo brasileiro no que diz respeito aos objetos selecionados para
a construção da nacionalidade aí esboçada, assim como visualizar a natureza da
4
relação estabelecida entre essa produção e as instituições estatais. Estabelecer essas
caraterísticas permite que se compreenda melhor as continuidades e rupturas que
críticos como Sílvio Romero e Araripe Jr. manifestaram em suas obras.
Cabe ainda salientar que, para os objetivos aqui propostos, privilegiei as
semelhanças entre os dois autores. O recorte temporal foi escolhido nesta direção, pois
no período estudado os dois críticos mantinham uma proximidade que, a partir de
meados da década de 1890, tende a dissolver-se. E se privilegiei as semelhanças, o fiz
com o objetivo de reconhecer determinadas disposições comuns a ambos os autores
frente a outras disposições que constituíam o campo social pelo qual transitavam. Não
nego as diferenças entre ambos e sua importância. No entanto, parace-me
metodologicamente mais interessante partir das semelhanças que os autores guardam
em suas ações e estratégias para que se possa reconstruir os espaços possíveis e sua
dinâmica que então se configuravam.
5
2. Experiência histórica e emergência intelectual
2.1 O que somos?
Para o leitor que percorrer a produção literária e crítica desenvolvida no Brasil
durante o século XIX, algo logo chamará a atenção: ao mesmo tempo em que os
escritores procuravam dar uma cor local às suas obras, não se furtavam a estabelecer
elos de ligação com os movimentos artísticos e intelectuais internacionais, bem
entendidos, europeus. Não que tal tensão tenha sido inexistente nos séculos anteriores
e no que o sucedeu. Seja no barroco, no arcadismo ou nos modernismos pós-década
de 1920, a convergência sempre conflituosa entre o reconhecimento da localidade
ibero-americana com focos de identidade de matriz européia fez-se presente, ainda
que de formas diferentes.
A dinâmica de tal relação é bastante problemática e serviu de mote para
gerações de autores. Tentarei nesta monongrafia, como contribuição para o
entendimento dessa relação, através das abordagens que se seguirão, visualizar alguns
momentos desse conflito, privilegiando expectativas específicas – ainda que imersas
em horizontes mais amplos – e o modo como elas se manifestam no trato com
determinados conceitos dentro de um campo de prática intelectual.
Um forte viés interpretativo enxerga esse processo através da marca que certas
características determinantes do mundo ibérico legaram à América. Richard Morse
encontra uma matriz ideológica espanhola que teria conciliado a racionalidade de
Estado moderno com as reivindicações de uma ordem ecumênica mundial, ou de
adaptar os requisitos da vida cristã à tarefa de incorporar os povos não cristãos à
civilização européia. Essa matriz ibérica teria se enraizado profundamente durante a
colonização nas estruturas institucionais e nas práticas sociais, deixando uma marca
indelével nessa sociedade. Os ibero-americanos , assim, seriam partidários da doutrina
e da ordem social, ao contrário dos anglo-americanos, os quais seriam partidários do
pragmatismo. E de tal forma estaria arraigada essa tensão, defende Morse, "entre o
'bem comum' e o cálculo do poder, entre o Estado como um todo orgânico e o Estado
como artifício, entre a política como missão e a política como arte ou ciência" que
6
essa tensão continuaria condicionando o programa político do mundo ibérico em
nosso próprio século5. Assim, se a Inglaterra fez sua escolha política no século XVII,
assumindo um método empírico, uma racionalidade dessacralizada e utilitária e uma
base individualizada e "atomista", o mundo Ibérico, por sua vez, adotou ainda no
século XVI um modelo que prezava pela ordem nacional e social, "tal como era
percebida", caracterizada pela hierarquia. Este modelo holista é que orientaria todo e
qualquer projeto na Ibero-América, e mesmo
A moda do positivismo e do cientificismo nas gerações ibero-
americanas posteriores talvez possa ser melhor compreendida como uma
retomada dessa disposição ibérica do século XVII do que como uma
obediência conveniente e superficial à 'ciência da sociedade' da Europa do
século XIX6
Desse modo, a "utilização" de determinadas correntes teóricas européias se
manifestaria, por assim dizer, como filtrada por essa camada mais profunda da ordem
sócio-cultural ibérica. Mesmo o liberalismo teria se apresentado na ibero-américa
como integrado à dialética ainda mais antiga entre cálculo do poder e bem comum,
entre política como arte ou ciência e Estado como corporativo ou tutelar. Autores
como Joaquim Nabuco, por exemplo, em seus projetos liberais e abolicionistas,
estariam marcados por esse viés. Ricardo Salles, em tese recente sobre Nabuco,
ressalta que, apesar do humanismo ético dos abolicionistas europeus e dos argumentos
da superioridade do trabalho livre estarem presentes, sua "proposta do abolicionismo,
assim como a de Rebouças, de Patrocínio ou de João Clapp, era da edificação de uma
nova sociedade democrática que se realizasse, o mais possível, dentro da ordem"7.
Se existe ou não essa tradição enraizada nas sociedades ibero-americanas, o
fato é que no início do século XIX, com a vinda da família e do aparato imperial para
o Brasil, e principalmente após a Independência, um novo cenário se apresenta. A
novidade vem justamente do processo de consolidação do Brasil como uma unidade
própria que, através da criação de instituições, busca construir um projeto que o
legitime enquanto tal. Ao mesmo tempo em que, graças à manutenção e dinamização
5 Morse, Richard. O espelho de próspero. São Paulo: Cia das letras, 1995, p. 58. 6 Ibid. p. 68. 7 Salles, Ricardo. Joaquim Nabuco. Um pensador do Império. Rio de Janeiro: Topbooks, 2002, p. 124.
7
do território social colonial, definido por seus limites geográficos e pelo tecido social
engendrado pela escravidão e economia coloniais, pôde combinar o impulso
modernizador com a manutenção de uma estrutura social e de poder tradicionais, o
Império procurou também promover um discurso de ruptura e identidade que
colocasse o Brasil, como uma nação própria, ao lado das demais nações modernas
européias. Uma elite letrada ficou responsável por responder uma pergunta que se
torna um imperativo categórico para a consolidação do Brasil como Estado-Nação: o
que somos?
Essa situação denota aquilo que Antônio Cândido chamou de "consciência da
literatura, o registro ou reflexo de suas diretrizes"8. Mas não só para a literatura. A
natureza, a história, a constituição do povo também são contemplados nesse processo
de constituir a nação como um todo. Instituições como a Imprensa Régia, a Biblioteca,
o Real Horto e o Museu Real vêm amparar e impulsionar um projeto de
conscientização da unidade. De fato, a própria possibilidade de se tornar um projeto
oficial a solução da pergunta referida acima nos leva a tecer algumas considerações.
Primeiro, a pecepção de ser – ou dever ser – algo de novo e de específico. Com
a emancipação política do país, o "dever ser" algo de novo e de constituir-se enquanto
tal faz-se necessário. Reflete-se na criação de faculdades de direito que tinham como
meta a elaboração de um código único e desvinculado da tutela colonial. Também na
criação do Instituto Histórico e Geográfico em 1838, centro do projeto de elaboração
da identidade nacional. Assim, em consonância com o movimento internacional de
consolidação dos Estados-Nação9, o Brasil procura afirmar-se nos mesmos princípios.
Toda entidade Nação aparecia como dotada de uma natureza, uma geografia, uma
história, língua e raça próprias. A concepção de nação vê-se individualizada, como
um indivíduo específico em relação aos outros, necessitando, assim, de uma
personalidade e um caráter próprios.
Louis Dumont detecta essa característica como resultado da difilculdade que a
ideologia moderna, essencialmente individualista, tem em dar uma imagem suficiente
8 Cândido, Antonio. Formação da literatura brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981.p. 319. 9 Ver Hobsbawn, Eric J.. Nações e nacionalismos. São Paulo: Paz e Terra, 1990. Essa tendência internacional está estritamente vinculada à reflexão intelectual européia, incitada por expectativas específicas e que forneceram critérios hegemônicos para o contexto do capitalismo, encntrando na nação a forma privilegiada de identidade.
8
da vida social. Buscando em Herder e Fichte as bases dessa aporia, Dumont visualiza
o englobamento do coletivo pelo individual10, afirmando que
Numa pesrpectiva comparativa que enfatiza a ideologia, a nação – a
da Europa ocidental no século XIX – é o grupo sócio-político moderno
correspondente à ideologia do indivíduo. Assim, ela é duas coisas em uma;
por uma parte, uma coleção de indivíduos, por outra, o indivíduo no plano
coletivo, em face de outros indivíduos-nações. 11
Se tomamos então as nações como esse singular coletivo, que define-se, antes
de tudo, por aquilo que ela não é (em relação ao outro), entramos na questão da
alteridade. Desde as viagens do século XVI a América foi objeto privilegiado de
diferentes discursos que versavam sobre a sua alteridade em relação à Europa.
Passando por Montaigne, Hobbes, Locke, Rousseau, Montesquieu, vemos a
formulação de discursos diversos que têm a América como a personificação do outro,
possibilitando que a Europa pensasse a si própria. Como destaca Ventura, o "homem
selvagem e a natureza americana são percebidos de forma ambivalente pelo discurso
europeu, que oscila entre a imagem positiva da felicidade natural e inocente dos
habitantes de clima fértil, e a condenação dos seus costumes bárbaros"12. A América é
tomada como referência para se pensar e legitimar projetos políticos diferentes, seja
do bom selvagem ou da inferioridade do homem americano. Não iremos tratar,
contudo, desses diferentes discursos que se deram durante esses séculos por considerá-
los além de nosso fôlego. Concertar-nos-emos, então, nas formulações desenvolvidas
no oitocentos.
10 Ao se referir a Herder, Dumont afirma:"Em nível global, a tendência holista está aqui limitada por, contida ou, como tenho o costume de dizer, englobada num individualismo que está esvaziado de sua substância nos níveis que para Herder são secundários". p. 128. O individualismo. Uma perspectiva antropológica da ideologoa moderna. São Paulo: Rocco, 2000. Para dumont, esse fenômeno do englobamento significa que uma idéia que cresce em importância e status, adquire a propriedade de englobar o seu contrário, hirarquizando-o, cf. p. 259. 11 Dumont, Louis. Idem.p. 138. Essa reflexão de Dumont sobre sociedades holistas e individualistas é apropriada por Morse para pensar as sociedades ibero e anglo-americanas, respectivamente. Neste caso, o moderno não seria necessariamente individualista, sendo o holismo uma marca presente nas sociedades colonizadas pelo mundo ibérico. Para Dumont, na verdade, as sociedades modernas são caracterizadas por uma interpenetração do holismo e do individualismo, sendo que este último engloba o primeiro. Se pensarmos a incorporação da idéia de nação e seus critérios de formação por parte da América como constituinte dessa relação local-internacional, pode-se presumir a facilidade e força que tal noção adquire aqui. Apesar de, e por isso mesmo, ser uma palavra na boca de poucos.
9
Na primeira metade do século XIX, ao mesmo tempo em que se estruturava o
aparato imperial e tomava-se como meta a formulação reflexiva da unidade nacional,
viajantes europeus vieram reforçar o discursso da alteridade. Como representantes de
missões científicas e/ou culturais, esse viajantes colaboraram, direta ou indiretamente
– alguns deles foram trazidos sob os auspícios do Império –, com o projeto de
consolidação da nacionalidade. Desse modo, o discurso que originariamente foi
produzido pelo olhar europeu sobre a América, o qual pensava a partir da alteridade
desta a sua própria identidade, veio a incorporar-se ao projeto brasileiro. A influência
de Ferdinand Denis, por exemplo, para a consciência literária, ou a de Martius para a
reflexão histórica são incontestáveis.
Assim, os parâmetros que foram sendo estabelecidos pelos agentes culturais
para formular o projeto nacional tem uma origem alheia, refletindo, antes de tudo, a
identidade européia. O projeto imperial brasileiro, querendo inserir-se no conjunto
mais amplo das nações ocidentais, vem adotar as referências de um outro que o vê
como exótico. Os elementos americanos que mais saltaram aos olhos dos europeus, de
acordo com as expectativas deste em relação à sua própria sociedade, foram os
elementos também que orientariam todo um projeto oficial de reconhecimento da
identidade brasileira. Mais do que "idéias fora do lugar", essa situação se mostra mais
específica, pois as idéias em questão estão essencialmente vinculadas ao lugar onde
serão adotadas; são idéias fora do lugar, mas também idéias sobre o lugar. São
formulações discursivas elaboradas em estruturas sociais diversas, mas que versam
sobre o lugar onde são apropriadas. Interesses sociais diferentes, categorias
semelhantes. Determinados valores, elaborados a partir de uma reflexão sobre o outro,
voltam e são aplicados a este.
Ferdinand Denis pensou a influência tropical e dos costumes dos indígenas
sobre a poesia. Essa concepção é enfaticamente adotada por Gonçalves de Magalhães
e toda uma geração. A força e a consciência da influência dos parâmetros europeus
torna-se claro nesse trecho de Magalhães:
Falem por nós todos os viajores, que por estrangeiros não os tacharão de
suspeitos.[…] o coração do Brasileiro, não tendo por ora muito do que se
12 Ventura, Roberto. Estilo Tropical: História cultural e polêmicas literárias no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 2000, p. 22.
10
ensoberbeça quanto às produções das humanas fadigas, que só com o tempo
se acumulam, enche-se de prazer, e palpita de satisfação, lendo as brilhantes
páginas de Langsdorff, Neuwied, Spix et Martius, Saint-Hilaire, Debret, e de
tantos outros viajores que revelam à Europa as belezas da nossa pátria. 13
Essa influência do olhar europeu marcou e foi responsável, portanto, pelo
"persistente exotismo, que eivou a nosso visão de nós mesmos até hoje", como destaca
Antônio Cândido; exotismo diante do qual passamos "a nos encarar como faziam os
estrangeiros, propiciando, nas letras, a exploração do pitoresco no sentido europeu,
como se estivéssemos condenados a exportar produtos tropicais também no terreno da
cultura espititual"14.
A elite responsável pela produção do discurso imperial associava-se, assim, ao
olhar europeu e às suas expectativas. Compartilhava as mesmas bases de legitimação,
como a genealogia histórica e o devir da realização nacional, procurando também os
elementos locais através do olhar estrangeiro. Essa situação levou a que as gerações
futuras criticassem o projeto romântico brasileiro por viver de imitações e estar
disassociado da realidade nacional. Sílvio Romero, em texto de 1882, pergunta se
"Ser-nos-á lícito, como tem sido a outros, falar de nós mesmos?"15. Machado de
Assis, em texto de 1873, declarava que um poeta "não é nacional só porque insere nos
seus versos muitos nomes de flores ou aves do país, o que pode dar uma nacionalidade
de vocabulário e nada mais"16.
Estas críticas, formuladas principalmente a partir da década de 1870, tem
como alvo a incapacidade da elite representante do romantismo oficial de manifestar a
verdadeira identidade nacional, tendo sido mera glosadora das "vulgaridades lusas e
francesas". Não estariam em consonância com o espírito da nação e, por conseguinte,
não poderiam representá-lo, pois "um caráter nacional não se fabrica, nasce
espontaneamente do coração popular, ou melhor: – uma nação é, não se improvisa"17.
13 Magalhães, Gonçalves de. "Discurso sobre a história da literatura do Brasil"(1836). Apud: Ventura, R. Op. Cit, p. 34. Trataremos da influência de Denis na literatura brasileira no subcapítulo 1.4. 14 Cândido, A. Op. Cit. p. 324. 15 Romero, Sílvio. "Introdução à História da Literatura Brasileira". In: Literatura, História e Crítica. Barreto, Luiz Antonio (org). Rio de Janeiro: Imago, 2001. p 123. 16 Assis, Machado. "Instinto de Nacionalidade". In: Obras Completas. São Paulo W.M. Jackson Ed., 1970. p. 144. 17 Romero, Sílvio. "A literatura brasileira e a crítica moderna".In: Ibid. p. 96. Grifo meu. Importante para este estudo destacar essa concepção ontológica da nação que se realiza no tempo para podermos apreender o horizonte no qual Romero está também inserido, e do qual trataremos no próximo capítulo.
11
O fato dessas críticas só virem à tona a partir da década de 1870, tendo pois o
romantismo conservado uma hegemonia desde a década de 1830, se deu graças à
configuração social onde o discurso era produzido. As bases institucionais e os
agentes que as ocupavam constituiam uma organicidade com o governo imperial. A
patente cisão que os letrados vão identificar entre a produção historiográfca e literária
e a realidade nacional não causava, até então, nenhuma tensão."O teste da realidade
não parecia importante"18. Só pôde tal cisão tornar-se objeto de crítica e discussão
quando criaram-se as condições mínimas para que isso ocorresse. Não que as
estruturas sociais tenham sofrido grandes modificações e a influência estrangeira
tenha desaparecido. Pelo contrário, a discrepância entre os "dois Brasis" se mantinha
sólida e flagrante. Porém, o aumento da complexificação das possibilidades sociais na
cidade do Rio de Janeiro, a partir da década de 1870, permitiu que a "classe
intermediária" não estivesse limitada exclusivamente pelo clientelismo. Outros
percursos foram abertos e um espaço mínimo de representação pública era
consolidado pelo aumento de periódicos e jornais. Como destaca Sevcenko:
Cria-se assim uma "opinião pública" urbana, sequiosa de juízo e da
orientação dos homens de letras que preenchiam as redações. Os intelectuais,
por sua vez, vendo aumentando o seu poder de ação social, anseiam levá-lo
às últimas consequências. Prezam reiteradamente a difusão da
alfabetização….19
A crítica se estabelecia, o pensamento não precisa mais ser necessariamente oficial
para encontrar meios de difusão e aceitação.
Nenhuma revolução, no entanto, surgiu daí, decorrente desse "bando de idéias
novas". Era evidente que essa generosidade dos intelectuais não convinha aos projetos
das oligarquias e "morreu na reverberação ineficaz da retórica". Araripe, em texto de
1894, declarava que sobre "o Rio de Janeiro paira o sentimento da segurança orgânica
e o da impossibilidade da subversão social"20.
18 Schwarz, Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1977. p. 15. 19 Sevcenko. Nicolau. A literatura como missão. Tensões sociais e criação cultural na primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 95 20 Araripe Jr, Tristão de Alencar. "Movimento literário de 1893. Crepúsculo dos povos". In. Obra Crítica. Vol. II, Rio de Janeiro: Casa Rui barbosa, 1960. p. 108.
12
Mas um campo de legitimação própria se estabelecia. Não eram mais as
instituições oficias que formavam o locus dos debates. Esses intelectuais,
independente de nosso juízo atual sobre a eficácia ou não de seus projetos, se
consideravam, como destaca Sevecenko, não só como agentes de uma possível ação
transformadora, mas também a condição precípua para a sua realização. Partilhavam
ainda as mesmas expectativas – e a maior parte dos "elementos nacionais" – da
geração anterior de construção de uma nacionalidade em devir, englobando as esferas
identitária, social, política e cultural; mas exercitavam sua prática numa relativa
autonomia, com graus de legitimação próprios.
Se, como afirma Morse, a moda do positivismo e do cientificismo pode ser
entendida como algo mais do que mera obediência conveniente à ciência da sociedade
européia, estando em relação também com as estruturas sócio-culturais enraízadas
desde o período colonial, acredito que o intelectual brasileiro, graças mesmo à sua
formação dúbia de referências européias e de uma busca ( e choque ) com a realidade
local, está imerso e compartilha de determinadas expectativas do intelectual ocidental
moderno, tendo estas um papel importante na formação de suas disposições. Tendo
como bases de legitimação última a genealogia histórica e o discurso científico em
busca de uma consolidação de identidade no devir, mediante uma atuação pública
dessa inteligência, a intelectualidade brasileira do final do século XIX, ou melhor,
parte dela (da qual Romero e Araripe fazem parte), destinava às letras e à crítica uma
missão ao mesmo tempo redentora e modernizadora. Afinal, a crença no tempo
moderno, o tempo do progresso, não os incitava ao contrário. O ceticismo coube a
poucos, como Machado21. O "aristocratismo hedonista" a alguns22. Mas também
marcaram essa época os "intelectuais paladinos", na esperança crítica e na busca de
consolidação do todo nacional, jamais desvinculado do mundial. A literatura
brasileira, como destaca Romero,
a de toda a América, deve ser adiantada como filha mais nova da
civilização atual; deve dar a lição de uma literatura que paira muito alto
sobre os prejuízos das raças, embriagada pelo incentivo da liberdade; deve
21 Cf. Morse, R. "As cidades periféricas como arenas culturais: Rússia, Áustria, America Latina". In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol.8, n.16, 1995, p. 205-225. Schwarz, R. Ao vencedor as batatas. Forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo, Duas Cidades, 1977. 22 Cf. Needell, Jefrey. Belle Époque Tropical. São Paulo: Cia das Letras, 1993
13
ser pensadora e democrática, séria e impertubável, viril e fecunda; como a
força de nações novas que se aparelham para representar a terceira fase da
civilização: o mundo américo-europeu, como o chamava o filósofo […]
Cabe- lhe formar a consciência clara de seu futuro, e começar, desde já, a
trabalhar para ele.23
Não perdendo a dimensão estritamente urbana dessa situação, especificamente
o Rio de Janeiro do século XIX, e a sólida estrutura do edifício social que não se via
ameaçada pelas páginas litigiosas de alguns críticos, como bem lembraria o
conselheiro Aires, a luta de determinados agentes em busca de uma "emancipação
intelectual", segundo expressão de Araripe, fez-se presente e ocupou um espaço
importante de representação e reflexão sobre a sociedade brasileira na minguada –
porém existente – esfera de opinião pública. Agentes que compartilhavam as
expectativas de um horizonte maior, a do intelectual ocidental moderno, atuando e
procurando construir novas possibilidades de trajetórias e representação do nacional.
E o que se procura realizar neste estudo é justamente compreender como tais
expectativas orientavam alguns desses intelectuais numa ação legitimada, o que
constituía tal legitimação e como convergiam suas expectativas e critérios
legitimadores na construção de uma identidade nacional como projeto.
23 Romero, Sílvio. "A literatura brasileira e a crítica moderna". In. Op. Cit. p. 68.
14
2.2 Fragmentação e expectativa: a identidade em devir
I
Tenciono analisar aqui algumas características que marcaram a constituição da
consciência de tempo da modernidade e como tal consciência impulsionou uma
intensa reflexão sobre a experiência histórica. A amplitude de tal reflexão fez com que
o conceito de história se transformasse num "conceito regulador", abrangendo as mais
variadas esferas da sociedade. A "História", como singular coletivo, vem denunciar e
clarificar conceitualmente o sentimento que a sociedade européia, na passagem do
século XVIII para o XIX, possuía em relação a si mesma. Noções como "tempos
modernos" ou "novos tempos" procuravam expressar aquilo que Koselleck e
Habermas definiram como "presentificação reflexiva do lugar que nos é próprio a
partir do horizonte da história em sua totalidade"24. A época moderna confere assim
ao passado a qualidade de uma história universal em sua totalidade: o diagnosticar-se
a si mesma enquanto uma época própria está estritamente vinculado à análise das
épocas passadas.
Este processo inicia-se, por assim dizer, em duas frentes que se alimentam
concomitantemente: uma que diz respeito à fragmentação da experiência da
modernidade, e outra que trata da formação moderna do conceito de história. Tal
divisão certamente é arbitrária, justificando-se apenas enquanto modo de explanação
de uma hipótese interpretativa, tendo por fim a compreensão das expectativas de
determinados agentes – os intelectuais. Seguir-se-á assim a seleção de determinados
"momentos" desse processo, que permitam o mapeamento de certas diretrizes, as
quais se apresentam como referências importantes para o plano de estudo.
Uma primeira frente a ser analisada diz respeito assim à noção de
"fragmentação" que a modernidade vem formular a respeito de sua própria
constituição. Tal noção origina-se de uma possibilidade que o próprio classicismo
trouxe a alguns pensadores, como Winckelmam e Lessing, adquirindo sua plena
consciência em autores como Schiller e Schlegel. A antiguidade tomada como o ideal
modelo incitou a percepção e a reflexão sobre a diferença; ou seja, estes escritores, ao
15
se debruçarem sobre o mundo clássico, perceberam o que eles próprios não eram. E o
fator principal que fez despertar tal inquietação foi justamente o modelo de unicidade
ideal que o mundo grego representava, enquanto que a sociedade européia do final do
século XVIII via-se fragmentada graças a um processo de racionalização25. Este
processo adquire uma intensidade especial graças à Revolução Francesa e ao
movimento filosófico alemão, ocasiões nos quais a sensação de ruptura, tanto político-
administrativa quanto filosófica, se tornam mais patentes. Num segundo momento,
inicia-se uma proposta de tomada de consciência da identidade do homem moderno,
daí decorrendo diferentes projetos. Procura-se uma nova possibilidade de totalização,
um novo absolouto, do qual a modernidade possa extrair as diretrizes para que realize
a si mesma enquanto "época histórica". Nostalgia do cristianismo, "mitologia
indireta", uma estética da comunicação, o saber absoluto; estas são algumas das
propostas que serão brevemente analisadas aqui. Como toda seleção textual, esta
também não se dá ao acaso, e a concepção que Hegel procura desenvolver através do
saber absoluto fecha essa primeira frente, pois serve como tônica geral para o século
XIX, somando os fatores "história", "saber"(ciência) e "devir" de forma paradigmática.
O que denominei aqui de segunda frente, refere-se à formação moderna do
conceito de história. Para tal análise tomarei por referência o estudo de Koselleck26,
no qual o historiador alemão procura identificar as mutações semânticas que tal
conceito sofre durante determinados períodos da história ocidental, e como adquire
sua feição moderna a partir do Iluminismo. Trata-se, segundo o autor, de perceber a
constituição de um coletivo singular (colletif singulier) que liga o conjunto de
histórias particulares sob um conceito comum; assim como de uma contaminação
mútua do conceito alemão Geschsichte como complexo "eventual" (événementiel) e
daquele de Histoire, entendido como conhecimento, narrativa e ciência histórica.
Para os fins deste estudo, selecionei alguns tópicos a serem tratados: a história
como singular coletivo, a história como processo, as funções sociais e políticas do
conceito e o julgamento histórico. Estes tópicos dão conta de abarcar as características
24 Habermas, Jürguen. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 10. Em Koselleck, Reinhardt: Vergangene Zukunft, Frankfurt am Main, 1979. 25 Tal como Weber o descreve em Economia e Sociedade, a institucionalização de uma ação econômica e administrativa racional com respeito a fins. Cf. Weber, M. Op.Cit. cap. II, "Categorias sociológicas fundamentais da gestão econômica", p. 37-138. 26 Koselleck, Reinhardt. "Le concept d'histoire" In: L'experiénce de l'histoire. Paris: Gallimar/Seul, 1991.
16
mais significativas da experiência histórica moderna; permitem visualizar como o
conceito de história torna-se um "conceito regulador" – indo de encontro com a
reflexão que busca a totalidade –, a tal ponto que passa a ser, juntamente com a
ciência, a instância última de legitimação. Se, de um lado, a modernidade se vê como
"algo de novo", tendo de realizar-se como época a partir de si mesma; ela também
não pode pensar-se sem esse "outro" que lhe faz frente e que deve ser objeto de
reflexão, assumindo uma forma específica que possa servir de parâmetro para pensar
sua própria identidade assim como servir de instância de legitimação social.
II
17
Por que o indivíduo grego era capaz de representar seu tempo, e
porque não pode ousá-lo o indivíduo moderno? Porque aquele recebia suas
forças da natureza, que tudo une, enquanto este as recebe do entendimento,
que tudo separa.(A educação estética do homem, 1795)
Neste trecho das "Cartas Estéticas" de Schiller tornam-se evidentes alguns
pontos centrais da experiência da modernidade, os quais considero importante levar
em consideração para que se compreenda melhor as expectativas que serão próprias ao
século XIX, assim como os campos possíveis que foram abertos ao conhecimento
histórico e à atividade intelectual – objetos específicos desta monografia. Desse modo,
espero que se justifiquem tais digressões ao leitor que percorrer estas páginas, pois a
delimitação dos sentidos de uma experiência específica muitas vezes requer que
tenhamos uma mínima abrangência do horizonte onde está imersa e ao qual ajuda a
constituir.
O primeiro ponto que se destaca do trecho citado é a contraposição feita em
relação aos gregos: como uma sociedade modelo, eles encarnam o ideal de uma
unidade perdida, a qual os modernos apenas podem contemplar ao voltar-se para os
vestígios que este passado legou. O indivíduo moderno se reconhece como algo de
específico ao se contrapor ao homem grego e, mais, toma consciência da necessidade
de sua autocertificação frente à história; ele vive em sua particularidade e sabe que as
épocas passadas representam uma alteridade incompatível à composição de seu
mundo. O reconhecimento da alteridade do passado gera simultâneamente o anseio da
construção de uma identidade que se fundamente a si mesma.
Outro aspecto que Schiller nos informa diz respeito aos motivos que fomentam
essa contraposição, o que dá ao homem moderno sua especificidade. Para Schiller, os
gregos viviam numa unidade fundada na harmonia de seu viver com a natureza. O
Estado grego possibilitava que cada indivíduo gozasse uma vida independente,
podendo, quando necessário, elevar-se à totalidade. Já o Estado moderno constitui-se
como "uma engenhosa engrenagem cuja vida mecânica, em sua totalidade, é formada
pela composição de infinitas partículas sem vida"27; o dilaceramento que a arte e a
erudição introduziram no homem foi aperfeiçoado e generalizado por um novo
27 Schiller, Friederich. A educação estética do homem numa série de cartas. São Paulo: Iluminuras, 1995, p. 41.
18
espírito de governo. O homem moderno está assim despossuído de totalidade. Isso
deve-se, acusa Schiller, ao espírito especulativo que, ao se empenhar pelas
propriedades inalienáveis do reino das Idéias, teve de tornar-se um estranho no mundo
sensível, "perdendo a matéria em troca da forma". A cisão do indivíduo moderno,
como natureza sensível e racional, faz com que Schiller e seus contemporâneos
buscassem novamente o absoluto, a união entre o eu cognoscente e a natureza, entre a
felicidade e a obrigação. Pois, ele pergunta, deveria "a natureza, através de seus fins,
roubar-nos uma perfeição que a razão, através dos seus, nos prescreve?"28.
Tais indagações de Schiller remetem-nos à filosofia kantiana, referência
obrigatória, então, nessa discussão sobre a cisão do homem moderno e a fragmentação
das atividades humanas enquanto autônomas (ciência, moral e arte). Heine, em seu
livro que tinha como fim elucidar aos franceses a filosofia alemã (e se contrapor à
obra De l'Alemagne de madame de Staël), ao se referir à crítica kantiana, não pôde
deixar que a fina navalha de sua ironia deixasse de tocar o orgulho francês: "Confesso
sinceramente que vocês, franceses, são moderados e dóceis em comparação a nós,
alemães. Puderam no máximo matar um rei que já havia perdido a cabeça antes que
vocês o decapitassem"29. Rousseau decapitou o rei, Kant teria preparado os
sacramentos a um Deus agonizante.
A comparação que Heine tece entre o movimento filosófico alemão e a Revolução
Francesa não deixa de nos informar sobre a intensa sensação de ruptura, presente
então na Europa, que inquietava tais pensadores com relação ao passado. A Crítica da
Razão Pura, apesar de só ter se tornado amplamente difundida no final da década de
1780, iniciou "na Alemanha uma revolução espiritual que possibilita as mais
extraordinárias analogias com a revolução material na França, e que deve ter tanta
importância quanto esta para o pensador mais profundo (…) Nos dois lados do Reno
vemos a mesma ruptura com o passado, recusando-se qualquer reverência à tradição;
assim como todo direito passou a justificar-se aqui na França, assim também todo
pensamento precisa justificar-se na Alemanha"30(grifo meu). A Revolução é um
marco indelével da ruptura da modernidade com o passado, e assim Heine quer
também para a Alemanha um signo de mesma denotação, achando-o acertadamente
28 Ibid. p. 45. 29 Heine, Henrich. Contribuição à história da religião e filosofia na Alemanha. São Paulo: Iluminuras, 1991, p. 89. 30 Idem,p. 86.
19
em Kant; este representando uma ruptura espiritual, o que levaria a Alemanha
posteriormente, no devir, a realizar uma Revolução fundamentada numa base
filosófica sólida e conseqüente.
Kant, no entanto, jamais conceituou a modernidade. Em sua filosofia, os traços
essencias da época se manifestam como num espelho, o sujeito que se dobra sobre si
mesmo enquanto objeto para se compreender como uma imagem especular, de modo
especulativo. Ao fundar a possibilidade do conhecimento objetivo, do discernimento
moral e do juízo estético, a razão crítica assegura suas prórprias faculdades subjetivas
e torna transparente a arquitetônica da razão. Sua filosofia delimita, a partir de pontos
de vista estritamente formais, as esferas culturais de valor enquanto ciência e técnica,
direito e moral, arte e crítica de arte, legitimando-as no interior desses limites31. Tal
constituição de autonomia das faculdades, decorrente da descoberta de que "nada
podemos saber acerca de muitas coisas com as quais antes supúnhamos estar no mais
íntimo contato"32, fez com que o indivíduo que assim se enxergava colocasse a
questão de "saber se o princípio da subjetividade e a estrutura da consciência de si que
lhe é imanente são suficientes como fonte de orientações normativas, se bastam para
'fundar' não apenas a ciência, a moral e a arte, de um modo geral, mas ainda estabilizar
uma formação histórica que se desligou de todos os compromissos históricos"33. De
fato, como atesta Heine, tal "descoberta" kantiana foi, aos olhos de seus
contemporâneos, "deveras desagradável". Tratava-se então de uma tarefa hercúlea a
que os modernos tinham pela frente, qual seja: a de construir, partindo do próprio
espírito da modernidade, uma forma ideal interna que não se limitasse a imitar as
múltiplas manifestações históricas, assim como uma nova forma de relação do sujeito
cognoscente com o mundo; um novo absoluto que possibilitasse à modernidade
constituir-se em uma totalidade própria.
Tal tarefa, sentida conscientemente, foi o mote principal de toda uma geração
de filósofos, artistas e críticos. Aí encontramos diferentes projetos, entre os quais cabe
citar os seguintes: o catolicismo de Chateaubriand, "os motins schlegianos", o projeto
estético de Schiller e, por fim, o saber absoluto de Hegel. Tais projetos representaram
diferentes formas de tentar resolver a expectativa moderna de um novo ideal, e
31 Habermas, Jürguen.Op.Cit. 32 Heine, H.Op.Cit.,p. 93. 33 Habermas, J. Op.Cit. p. 30.
20
exerceram, assumindo cada qual novas especificidades durante o século XIX, um
efeito modelar para o pensamento moderno.
No que diz respeito a Chateaubriand, poderíamos compreendê-lo como uma
reação nostálgica à unidade perdida. Tal unidade é aqui o catolicismo, cujo espírito
define uma moralidade ideal. Nobre católico de antiga linhagem, Chateaubriand
parece tentar restaurar a religião e a dinastia de seus pais. Sua crítica em Le Génie du
Christianisme dirige-se contra o ceticismo e o ateísmo racionalistas do século XVIII e
a Revolução. "Chateubriand procura mostrar-nos que o cristianismo é não somente a
verdadeira religião, como também a religião 'mais poética e mais favorável às
artes'"34. O cristianismo (católico romano) é a fonte da identidade européia e só dela
pode advir o absoluto, a totalidade ideal como modelo de constituição da sociedade.
"Ora, pergunta ele, como se há de admitir que o homem, imperfeito e mortal, possa
por si oferecer-se para reaver um fim perfeito e imortal?"35. O evangelho ensina "a
bem viver, e não a argumentar". Desse modo, Chateaubriand nega a possibilidade da
subjetividade do sujeito cognoscente realizar a totalidade a partir de si mesmo,
precisando para isso da força exterior que só o cristianismo pode oferecer.
Schlegel, em sua fase tardia, também tomará do misticismo cristão elementos
de inspiração para seu projeto estético. No entanto, o que nos interessa aqui é a sua
estética do devir e seus "motins schlegianos", como o denominou Heine. Tais motins
consistiam na sua luta contra os antigos36. Para ele, seguindo a idéia de Schiller sobre
a incompatibilidade da condição do homem moderno com a forma clássica, era
necessário uma verdadeira batalha no campo da artes. A sua atuação crítica tinha
assim um inimigo definido e um objeto a ser construído. No Lyceum, fragmento 11,
declarava ele: "Até agora nada de verdadeiramente hábil, nada que contenha
profundidade, força e destreza, foi escrito contra os antigos, sobretudo contra sua
poesia"37. O peso de tal poesia, representante de um ideal que sufocava a atividade
criadora moderna e sua realização plena na sociedade, tinha de ser anulado ao mesmo
tempo em que se vislumbrava algo de novo. Esse "algo de novo" nos parece bastante
significativo como característica do projeto schlegiano, daí o chamarmos de estética
34 Wellek, Rene. História da crítica moderna. São Paulo: Edusp, 1967, p. 206. 35 Chateaubriand, Rene. O Gênio do Cristianismo. São Paulo: W.M. Jackson Ed., 1949, p. 24. 36 Schlegel, quando jovem, tomava a arte antiga como aquétipo, tal como Goethe, porém, após a leitura do texto "Poesia Ingênua e Sentimental" de Schiller, ele inicia um ardente combate em prol de uma estética própria aos modernos.
21
do devir. Seguindo o caminho da autonomia estética, enquanto intuição, defendia que
daquilo "que os modernos querem é preciso aprender o que a poesia deve vir a ser". A
poesia moderna, mediante a ironia, a auto-consciência, elaboraria uma nova mitologia,
novo signo da identidade moderna como um todo. O que é antigo está feito, o
moderno está para se fazer. "Nos antigos se vê a letra perfeita e acabada de toda a
poesia; nos modernos se pressente o espírito em devir"38. Os olhos deixam de estar
presos ao passado, para voltar-se ao que ainda não se realizou. Esta noção de tempo
demarca uma nova experiência, onde as expectativas do devir servem de orientação
para a atividade estética. Nessa formulação romântica, como bem atesta Jauss em seu
estudo sobre o conceito de "moderno", "se funda a autoconsciência de uma geração
que vive sua modernidade, paradoxalmente, não mais [somente] como oposição às
épocas antigas, mas como dilema em relação ao tempo presente"39.
A arte como poder de reconciliação que aponta para o futuro. Esta idéia está
também presente em Schiller. Já nos referimos a ele e aqui só será salientado mais
uma questão de sua proposta estética. Para o poeta da modernidade, essencialmente
reflexivo, a poesia ingênua ( tal como se constituía na antiguidade) tornou-se
inatingível40. Agora trata-se da arte moderna aspirar ao ideal de uma unidade mediada
com a natureza, diferentemente da antiga, que atingiu sua meta com a beleza da
natureza imitada. A arte, para Schiller e os futuros românticos, "é a forma sensível em
que o absoluto se apreende intuitivamente, enquanto que a religião e a filosofia são
formas mais elevadas, nas quais o absoluto já se representa e se concebe"41.
A arte deve deter também o poder de "sociabilizar o gosto", por assim dizer,
pois ele "conduz o conhecimento para fora do mistério da ciência e o traz para o céu
aberto do senso comum, transformando a propriedade das escolas em bem comum de
toda a sociedade humana"42. Esta estética da comunicação visa uma formação social
específica: a nova sociedade civil. Note-se que é dessa mesma época a composição de
uma efera pública de opinião, da qual o próprio Kant já se referia, onde indivíduos
capazes de pensamento próprio, "depois de terem sacudido de si mesmo o julgo da
37 Schlegel, Friederich. O Dialéto dos Fragmentos. São Paulo: Iluminuras, 1997. 38 Idem. frg.93. 39 Jauss, Hans Robert. "Tradição literária e consciência atual da modernidade". In: Olinto, Heidrun Krieger. Histórias de literatura: as novas teorias alemãs. São Paulo: Ática, 1996, p. 75. 40 Schiller enxerga em Goethe a realização de uma poesia ingênua, mas esta se realiza somente pela artificialidade. 41 Habermas, J. Op. Cit. p. 51.
22
menoridade, espalharão ao redor de si o espírito de uma avaliação racional do próprio
valor e da vocação de cada homem em pensar por si mesmo"43. Torna-se uma
obrigação fazer um "uso público da razão" em todas as questões, numa sociedade
onde estão separados o social e o político44. Schiller defende assim a
intersubjetividade que a arte deve incitar, através de seu viés comunicativo (mediante
sentidos), como instrumentos para que os membros de uma comunidade tomem
consciência de si.
"Nossa revolução filosófica está encerrada. Hegel fechou o grande círculo"45.
Heine não deixa dúvidas da importância que a filosofia de Hegel representou nesse
processo de autocertificação da modernidade. Tomando também como pressuposto a
circunstância de que a consciência de tempo se destacou da totalidade da história e o
espírito se alienou de seu si, Hegel procura ter como meta apresentar a razão como
poder unificador.
A filosofia para Hegel deve ganhar a forma de ciência. Só assim ela pode
representar o ser-aí dos momentos de sua época. "Colaborar para que a filosofia se
aproxime da forma da ciência – da meta em que deixe de chamar-se amor ao saber
para ser saber efetivo – é isto o que me proponho"46. Ciência aqui bem entendida
como um saber muito mais amplo do que a ciência que se confundia com o modelo
matemático, o qual Hegel critica.
Hegel, num primeiro momento, vai criticar a filosofia iluminista (Kant e
Fichte) por ter substituído a razão pelo entendimento de modo equivocado, elevando
algo finito a absoluto. Contra Kant, afirma que não "se pode, de modo algum,
considerar como científico o uso daquela forma [triádica], onde a vemos reduzida a
um esquema sem vida, a um verdadeiro fantasma"47 Para ele, tal como em
Chateubriand – mas por motivos diferentes –, não é possível que se reconquiste a
reconciliação somente a partir da relação reflexiva do sujeito cognoscente. Daí a tarefa
42 Schiller,F. Op. Cit. p. 145. 43 Kant, Immanuel. "Resposta à pergunta: O que é Esclarescimento(Aufklärung)?" In: Kant,I. Textos Seletos, São Paulo: Vozes, 1985, p 102. 44 Será retomada essa discussão a respeito da esfera pública ao tratarmos da função social e política do conceito de história. 45 Heine. H. Op.Cit. p. 125. O meu objetivo aqui certamente não é uma exposição sistemática da filosofia de Hegel, tanto por não me sentir capacitado para tal como também pela limitação de espaço e tempo. Assim, procurei apenas enunciar suas principais preocupações e resultados, sendo amparado em grande parte na exegese que Habermas efetua da filosofia hegeliana. 46 Hegel, G.W.F. Fenomenologia do Espírito. São Paulo: Vozes, 1999, p. 23. 47 Ibid.p.48.
23
a qual se propõe realizar: mostar que a razão também pode reunificar de modo
igualmente indispensável aquelas oposições que fragmentavam as relações da vida.
Ao contrário do dogmatismo da filosofia kantiana, que absolutiza a
consciência de si dos homens dotados de entendimento, elaborando a partir daí "falsas
identidades" graças à determinidade objetiva que o homem contempla e projeta para
fora, Hegel procura uma identidade não forçada. São forçadas as identidades do
subjetivo e do objetivo no conhecimento, do infinito e do finito, do singular e do
universal. Ele tenta escapar dessa determinação do subjetivo mediante a visualização
de um sujeito que não precede o processo universal como ser ou intuição intelectual,
mas que subsiste "no processo da relação entre o finito e o infinito e na atividade
devoradora do voltar-a-si"48. O absoluto aí é concebido como processo mediador da
auto-relação que se produz independente de toda condição. Essa auto-relação a partir
da qual o absoluto é concebido é que permite a Hegel afirmar que "o verdadeiro tem
a natureza de eclodir quando chega o seu tempo, e só quando esse tempo chega se
manifesta; por isso nunca se revela cedo demais nem encontra um público
despreparado"49. Assim, a história e a realização do absoluto coincidem num mesmo
processo. A reflexão agora é compreendida como "um momento positivo do
absoluto". Hegel chamará este absoluto de realização do Espírito, que se manifesta de
diversas formas através do sujeito. A arte é "um particular modo de manifestação do
espírito", um meio "de consciencialização das idéias e dos interesses mais nobres do
espírito"50.
Chegei enfim ao que interessa nesta parte do estudo. Delimitei certos
momentos de um processo de reflexão que inaugurou-se a partir da percepção da
ruptura da modernidade em relação ao passado, no qual está caracterizada como
fragmentação, o que impulsionou, por sua vez, uma busca por uma nova totalidade
reguladora, encarnada aqui em Hegel. Neste vê-se concebida uma noção de razão que
ultrapassa as limitações do entendimento do sujeito cognitivo, ao vislumbrar o
absoluto enquanto processo, no qual se manifestam suas formas mediante diferentes
atividades humanas. História e realização do espírito coincidem; a auto-relação do
finito e do infinito caracteriza a dinâmica de tal processo. "Na verdade, o indivíduo
48 Habermas. J. Op. Cit. p. 48. 49 Hegel, G.W.F. Op.Cit.p. 61. 50 Id. O Belo na Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1996, pp. 5, 9.
24
deve vir-a-ser, e também deve fazer, o que lhe for possível; mas não deve exigir muito
dele, já que tampouco pode esperar de si e reclamar para si mesmo"51. Nesta
concepção de Hegel, a História, como singular coletivo, o processo de realização do
espírito, as manifestações de várias singularidades na totalidade, vem de encontro ao
resultado da outra frente de reflexão que nos propusemos a analisar aqui: a
constituição do conceito moderno de história e suas implicações.
2.3 Um conceito regulador
51 Id. Fenomenologia do Espírito. p. 62. Cabe mencionar aqui a leitura que Louis Dumont faz da filosofia hegeliana. Ele encontra em Hegel, mas também em Tocqueville e Comte, uma certa reabilitação dos ideais da Revolução Francesa, no intuito de "recontruir uma teoria política e social que os retomasse sob uma forma viável". Assim, estes autores reabilitariam um certo holismo, enxergando o indivíduo na totalidade, como um ser social. Sem querer entrecruzar as discussões, poderíamos perguntar se esta reação também não vem de encontro com o que estamos propondo aqui, um movimento da fragmentação em busca da totalização; ainda que esta não seja plenamente realizada. Cf. Dumont, Louis. O Individualismo. Uma peerspectiva antropológica da ideologia moderna , Rio de Janeiro: Rocco, 2000. pp. 114-123.
25
O que pretendo aqui é tratar de algumas características da formação da
experiência histórica moderna, visualizando-a mediante a reflexão acerca de seu
conceito e sobre como este orienta uma prática. Bem entendido, esta experiência
histórica é circunscrita por um campo de expectativas e possibilidades bem definidas,
não podendo ser aproximada de outras produções historiográficas que, a risco de
perdermos a perspectiva da especificidade do objeto, somos tentados a enxergar como
momentos de origem de uma prática atemporal.
Portanto, o que deve ser primeiramente analisado neste estudo são as
formulações básicas que constituem o problema moderno da possibilidade da história,
congruentes com as expectativas expostas na seção anterior. Em seguida, a formação
de seu conceito será trabalhada a partir de quatro tópicos: a história como singular
coletivo, a história como processo, as funções sociais e políticas do conceito e, por
fim, o julgamento histórico. Acredito que estes tópicos dão conta das características
mais significativas que o conceito assume em sua configuração moderna,
possibilitando um melhor entendimento das expectativas comprtilhadas pelos
intelectuais.
Cassirer, em 1932, procurou reestabelecer à filosofia iluminista a problemática
histórica. Vingava então a máxima de que o século XVIII era especificamente a-
histórico. Essa idéia, rebatia Cassirer, nada mais seria do que uma palavra de ordem
divulgada pelo romantismo. Segundo sua análise, é justamente no século XVIII que o
problema propriamente filosófico das condições de possibilidade da história, tal como
já questionara antes as condições de possibilidade da física, é formulado. Ao contrário
do que já ocorria com a física, para a história restava todo um trabalho de
fundamentação a se realizar."Assim como a matemática se tornou o protótipo das
ciências exatas, também a história é agora o modelo metodológico a que o século
XVIII conferiu uma nova e profunda compreensão da tarefa universal e da estrutura
específica das ciências humanas"52.
É essa tarefa que Bayle procura resolver. O ponto principal da ciência histórica
seria, antes de tudo, estabelecer fatos perfeitamente seguros. Ele opõe-se ao
racionalismo cartesiano, o qual rejeitava não só o testemunho da experiência como
também todo saber que não fosse rigorosamente demonstrável. Bayle pregava que a
26
história depende de um outro grau de certeza, diferentemente da matemática, mas que
não deixa de ter sua validade. Mas os fatos históricos apresentam-se para ele como um
agregado, um "amontoado monstruoso de escombros". Não possuía a história uma
lógica interna, um sentido que unisse as diversas particularidades.
Tal como em Bayle, para Jablonski as histórias eram o espelho das virtudes e
dos vícios através do qual poder-se-ia aprender aquilo que convém e o que não
convém fazer na sociedade. Para Baumgarten, também as histórias "sont sans aucun
doute la partie la plus instructive, la plus utile, comme la plus réjouissante de
l'érudition"53. As histórias aqui são utilizadas no plural, como uma série de momentos
independentes. Essa concepção de história era comum desde o Maquiavel dos
"Discursos"; já aí ele tratava de momentos históricos como "casos" que poderiam ser
estudados independente da cronologia e do espaço. Os momentos históricos são
"exemplos" que permitem uma aprendizagem moral e política; por isso ele esperava
que de seus discursos os homens pudessem "extrair aquela utilidade pela qual se deve
buscar o conhecimento da história"54.
No entanto, a proximidade que se estabelece na segunda metade do século
XVIII entre história e filosofia, manifestada pela formação paralela dos termos
"filosofia da história" e "história geral", denuncia que esta não foi conceitualizada
senão por uma elaboração reflexiva. Em 1775, Adelung registrava lado a lado os dois
usos:
L'histoire (die Geschichte), plur. et nom. sing. […] Ce qui est
advenu, une chose passé, de même que, dans une autre acception, toute
modification aussi bien active que passive arrivant à une chose. Dans un sens
plus étroit et plus habituel, le mot vise des modifications diverses reliées
entre elles qui, prises ensemble, contituent un certain tout […] Dans cette
acception, on l'emploie souvent comme colletif et sans pluriel, pour plusiers
evénements passés relevant d'une même chose55
52 Cassirer, Ernst. A filosofia do Iluminismo (Auklärung). Campinas: Ed. da Unicamp, 1997, p. 272 53 Baumgarten, S. J. "Allgemeine Welthistorie" Apud: Koselleck, R. Op. Cit. p. 16. 54 Maquievelli, Niccolo. "Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio".In: Pensadores Italianos. Rio de janeiro: W.M. Jackson Ed., 1964. p.97 55 Apud: Kosellek, R. Op. Cit. p. 17.
27
Assim, passa a tratar-se agora do coletivo singular que caracteriza o conjunto de
histórias particulares. Como atesta Koselleck, o termo alemão die Geschichte, tomado
como singular coletivo, implica uma complexidade maior do que aquelas histórias
particulares deixavam presumir. O conceito que vinha a ser formado abre um novo
mundo de experiência, e um indício disso são os enunciados tais como "história em si
e para-si", "a história enquanto tal" e "história geral". A história torna-se assim seu
próprio sujeito, sem necessariamente se reportar a um objeto próprio, como França ou
Inglaterra. Desse modo, a noção de história avança no sentido de se tornar uma
instância última; ela torna-se um agente do destino humano e/ou do progresso da
sociedade.
Da utilização moral da história desenvolve-se, conjuntamente, uma noção de
processo. Isso não quer dizer que a história deixe de prover os homens de uma moral.
Ao contrário, ela vem se transformar agora num "tribunal intégre et terrible", nas
palavras de d'Alambert. Não são mais as histórias particulares que possuem o valor de
exemplos, mas sim a história na totalidade que então é transformada em processo, do
qual o desenvolvimento vem garantir e administrar a justiça. Herder, apesar de
privilegiar as individualidades históricas, não deixa também de conceber "leis naturais
que residem na essência das coisas", "a essência da nossa espécie, a sua finalidade e o
seu destino residem na razão e na justiça"56. Se os homens não podem privilegiar ou
sacrificar determinados aspectos das culturas passadas, devido à sua condição limitada
no tempo e no espaço, isso não quer dizer que a razão e a justiça deixem de
prevalecer. Como diria Schiller, a "história do mundo é o tribunal do mundo"57. Já
vimos como isso assume em Hegel uma dimensão ontológica, a história representando
a dialética dos espíritos particulares dos povos, "o tribunal do mundo".
Esse processo histórico, no entanto, traz à baila a espinhosa questão de como
percebê-lo e defini-lo. Se a história é um processo, é um processo do que e para quê;
qual a sua natureza e seu fim? De um lado, vemos as propostas teológicas, das mais
diversas, da qual Herder faz parte, e que vê o vetor de orientação teleológica na
Providência. De outro, seguindo a proposta racionalista da filosofia Iluminista, abre-se
o debate acerca da veracidade e da razão da história.
56 Herder, J.G.von. "Idéias para a filosofia da história da Humanidade". In: Gardiner, Patrick. Teorias da História. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984, p. 59. 57 Apud: Kosellek, R.Op.Cit.p. 39.
28
Um primeiro ponto gira em torno da manifestação estética, por assim dizer, do
relato histórico. Enquanto o estudo da história tinha como fim uma aprendizagem
moral através de seus exemplos, poesia e história desempenhavam um único papel na
formação do indivíduo. A reserva aristotélica dava, neste caso, supremacia à poesia,
pois esta trataria do possível e do geral, e seria mais eficiente em mostrar o vício e
causar aversão, assim como apresentar as virtudes provocando regozijo. Mas
conforme a veracidade histórica ganha importância ao estar ligada a um complexo
histórico maior, detentor também de uma veracidade superior, a relação entre poesia e
história se redesenha. A hierarquia se inverte. Agora é a arte do romance que se vê
obrigada a tratar da realidade histórica58.E o relato histórico, por sua vez, além de
basear-se na autoridade da pesquisa, deve também ancorar-se num "sistema histórico
universal".Com essa prerrogativa filosófica, a união teleológica da história deve ser
algo mais do que meramente estética, devendo ter como ligação entre os eventos um
fundamento ontológico.
Na busca desse nexo histórico universal, vemos, primeiramente, a prática de
formular hipóteses que permitissem suprir as lacunas factuais, deduzindo o não-
conhecido das coisas conhecidas. Rosseau, por exemplo, nos seu Discurso sobre a
origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, nada mais fez do que uma
história hipotética, na qual as conjecturas apresentam-se como motivos razoáveis, os
mais prováveis que ele poderia tirar da natureza das coisas. Essa construção racional
da história mediante hipóteses, contudo, vem adiquirir necessariamente um satatus
mais elevado. Já vimos como se desenvolveu no período uma crítica à possibilidade
do sujeito cognoscente chegar ao universal, o que levou à busca de uma mediação
intersubjetiva. Dessa crítica, a história, como coletivo singular, deixa de ser
simplesmente resultado da reflexão hipotética subjetiva, assumindo, ela mesma, o
58 Com relação à importância do romance para a experiência histórica moderna, ver Bakhtin, Mikhail. "O romance de educação na história do realismo" In: Estética da Criação Verbal. São Paulo, Martins Fontes, 1997. Bakhtin analisa como está presente em Goethe, em obras como Wilhelm Meister e nas suas Memórias uma nova sensação temporal, a percepção do "movimento visível do tempo histórico, indissociável da ordenação natural de uma localidade e do conjunto dos objetos criados pelo homem, consubstancialmente vinculados a essa ordenação natural"p.251. Ver também como Auerbach identifica nas produções da juventude de Schiller, em Stendhal, Balzac e Zola, o mesmo processo expresso nas seleções dos obetos a serem tratados assim como na forma de tratá-los. O tratamento sério da realidade quotidiana, a ascensão de camadas humanas mais largas e socialmente inferiores, o engarçamento de personagens e acontecimentos quotidianos quaisquer no decurso geral da história contemporânea – estes são, segundo Auerbach, os fundamentos do realismo moderno, e "é natural que a forma ampla e elástica do romance em prosa se impusesse cada vez mais para uma reprodução que abarcava tantos elementos". Auerbach, E. Mimesis. São Paulo: Perspectiva, 1998, pp. 387-470.
29
modo de aparição do Espírito (ou da Razão) que se realiza no desenvolvimento da
história mundial. Même les reserves méthodologiques de l'école historique, diz
Koselleck,
ne peuvent rien opposer au fait que, dans l'histoire, chaque action peut dès
lors être comprise comme une action pour l'histoire, pour une histoire qui
confère un but à toute action et un sens à toute souffrance. La nation comme
véhicule de l'esprit du monde; la politique comme accomplissement d'Idées
ou de tendances, de forces ou de puissances; l'application du droit en tant que
finalité inhérente à tout événements, de la liberté humaine, de l'égalité ou de
l'humanité – vers la fin du XVIII siècle, tous le topoi de la langue politique
et sociale tentent de conceptualiser le contenu de l'"histoire en general"59
A história chega assim a se constituir como um conceito regulador moderno
que, nas palavras de Schlegel, rege o curso e a orientação da cultura moderna. Como
regulador de toda experiência e expectativas possíveis, o conceito de história
tranforma-se numa referência fundamental da linguagem social e política. Tais
reflexões acerca do conceito revestem-se de aparatos institucionais que conferem
autoridade a determinados agentes.
A produção e a reflexão historiográfica concentravam-se, na Europa, nas
universidades. Este locus privilegiado, no entanto, não restringia a utilização da
legitimidade do conceito, que também se aplicava num debate público por meio de
jornais. O percurso, assim, do uso político do conceito se dava, de um lado, com o
revestimento institucional e do discurso acadêmico – fonte principal de legitimação –,
de outro, no uso público por agentes não especializados, voltados para interesses
específicos e estratégias socias. Ambos concentravam em si projetos, os quais se
manifestavam, contudo, de formas diferentes e para públicos diferentes.
Tanto a conquista de uma autonomia científica do discurso histórico como a
constituição de uma sociedade civil burguesa, manifestada numa esfera de opinião
pública, impulsionaram a dinâmica dessa relação. Depois que a história veio a se
tornar um conceito reflexivo, servindo de intermediário entre o futuro e o passado e
sendo capaz de explicar, justificar e legitimar, suas características estratégicas podem
ser percebidas de diferentes maneiras. Os mais diversos agentes a ela se remetem, e
59 Koselleck, R. Op. Cit.p. 47.
30
mais, se vêem obrigados a isso; as nações, os partidos, as seitas e todos os outros
grupos de interesses devem se referir à história "pour autant que la généalogie de leur
propre position leur confère des arguments juridiques dans le champ d'action politique
ou social"60. A história não é de maneira alguma a ciência limitada ao passado, ela
conserva sua atualidade política, pois, nas palavras de Droysen, o que se passa ao
nosso redor, aquilo do qual somos parte, não é nada mais do que o presente da
história, a história do presente.
A sociedade civil que serve de palco para o uso público da história se
compreende como o setor da troca de mercadorias e do trabalho social; a família, com
sua esfera íntima esta aí inserida. Os indivíduos que compõe esses setores, como
pessoas privadas, vêm construir meios de representatividade a fim de servir como
mediação com o político. A esfera pública política, como se organizou em sua
formação, provém da literária; é ela que intermedia, através da opinião pública, o
Estado e as necessidades da sociedade. Esses lugares tendem sempre a organizar a
discussão permanente entre pessoas privadas. Procura-se aí a igualdade de status, a
problematização de setores que até então não eram considerados questionáveis.
Estabelece-se como príncipio o não-fechamento do público. A pretensão dessa espécie
de racionalidade desenvolveu-se contra o política do segredo de Estado, procurando
consolidar a opinião pública como única fonte de legitimação das leis.
Esse modelo, desenvolvido a partir de fins do século XVIII, pode ser bem
compreendido como um modelo iluminista-kantiano. O que se pretende é instaurar
uma opnião pública para racionalizar a política em nome da moral. Estando
políticamente em funcionamento, essa esfera pública torna-se, sob a constituição
republicana, um princípio de organização do Estado liberal de Direito. A própria
legislação se baseia na "vontade do povo" decorrente da razão, pois as leis têm sua
origem e fundamentação na concordância pública do público pensamente.
Essa noção de tribunal da esfera pública onde impera uma razão
desinteressada, no entanto, é logo desmitificada. Hegel, em sua visão da sociedade
civil, diagnostica um conflito de interesses que desacredita, como interesse meramente
particular, o interesse pretensamente comum e universal dos proprietários privados
politicamente pensantes. A publicidade serve aí apenas para a integração da opinião
subjetiva na objetividade que o espírito se deu na figura do Estado.
60 Ibid. p. 70.
31
Marx também acusa as contradições da imagem da opinião pública. Ele trata
ironicamente a esfera pública politicamente ativa – a "independência ideal" de uma
opnião pública de proprietários privados pensantes e que se consideram simplesmente
como seres humanos autônomos. Marx denuncia a opinião pública como falsa
consciência; ela esconde de si mesma o seu verdadeiro caráter de máscara do interesse
de classe burguês. A luta prática dos interesses particulares, que constantemente e de
modo real chocam-se com os interesses coletivos e ilusoriamente tidos como
coletivos, torna necessário o controle e a intervenção prática através do ilusório
interesse geral como Estado.
Através da emancipação da propriedade privada em relação à
comunidade, o Estado adquire uma existência particular, ao lado da esfera da
sociedade civil; mas este Estado não é mais do que a forma de organização
que os burgueses adotam, tanto no interior como no exterior, para a garantia
recíproca de sua propriedade e de seus interesses61
No mesmo palco da opinião pública constituída, coexistem tanto a crítica da
razão interessada, mascarada, de agentes privados como a defesa, realizada por esses
mesmos agentes, da legitimidade de uma racionalidade universal que intermedia as
necessidade comuns perante o Estado. O uso do conceito de história aí também se
insere. A tensão entre razão desinteressada e interessada se vê transportada para
conhecimento histórico, coexistindo também ambas as posições no debate
especializado e público. Um caso geral bem conhecido é o que diz respeito ao debate
do posicionamento de ciência histórica ou como ciência da natureza
(Naturwissenschaft) ou como ciência do espírito (Geistwissenschaft), tendo em
autores como Buckle e Dilthey, respectivamente, seus representantes.
Se, de um lado, e desde Chladenius, é denunciada a condição da representação
da história, da irremediável relatividade da cada julgamento; de outro, sendo
hegemônico em meados do século XIX, existe o conhecimento histórico concebido
como passível de uma objetividade própria. Se, de fato, depois de Chladenius e
Herder os historiadores se vêem confrontados com as perspectivas interpretativas, isso
não quer dizer que ele renunciem à mecanismos que lhes permitam assegurar seu
61 Marx, Karl. Engels, Frederich. A ideologia alemã. São Paulo: Hucitec, 1996, p. 98.
32
conhecimento como objetivo. O modelo científico está ali para isso. Como ambiciona
Stuart Mill, o projeto "consiste em, por meio de um estudo e de uma análise dos fatos
gerais da história, tentar descobrir […] a lei do progresso"62. E, mesmo que o
argumento do método científico não convença, a própria característica e a amplidão
que o conceito de história vem adquirir permitem que esses autores coloquem a sua
objetividade como parte integrante do mesmo movimento histórico. Afinal,
Au même titre (et peut-être davantage) que ces prises de position
liées à cette ancienne controverse, l'ambivalence de l'expression l'"histoire
en tant que telle" (Geschichte selber) a la caractéristique de livrer en même
temps toutes les objections qui peuvent être formulées contre elle63
A história, finalmente, como todo conceito regulador, presta-se a conotações
diferentes de acordo com as posições e os partidos. Há uma delimitação de um espaço
específico que define o conceito na sua acepção moderna, mas esse mesmo espaço
também se constitui como um campo de possibilidades semânticas, que permite aos
agentes que nele transitam uma certa maleabilidade na defesa de posiçõs e legitimação
de ações. A história como singular coletivo, assumindo a feição de um processo
ontológico, tendo nas noções de progresso, razão e nação sua encarnações
privilegiadas, concentra em si uma força semântica comparável às expectativas mais
gritantes da sociedade ocidental do século XIX. Recorrendo ainda a Koseleck,
podemos concluir que
L'"histoire", l'"historique"(das Geschichtliche) sont devenues des
termes convocables à merci qui, en raison de leur champ sémantique
universel et de la possibilité d'en faire um emploi général, peuvent aller
jusqu'à ne plus rien signifier. Mais c'est lá aussi ce qui les rend politiquement
et socialement utilisables. 64
62 Stuart Mill, J. "Elucidações da Ciência da História". In: Gardiner. P. Op. Cit. p. 109. 63 Koselleck. R. Op. Cit. p. 80 64 Ibid. p. 89.
33
2.4 Um romantismo oficial: o sentimento de Estado
Delimitar o que seria o movimento romântico, o romantismo, em sua essência,
mais do que uma tarefa árdua, seria um fracasso anunciado por uma ilusão ontológica.
Não é possível defini-lo encontrando nele caracteres universais, coligindo palavras de
34
ordem, prussupostos filosóficos ou seja lá o que possa dar uma unidade invariável a
um conceito. Subversão – contra o Estado, a tradição, o convencionalismo, etc –,
sentientalismo, nacionalismo, instrospecção, todas essas características podem antes
levar a um engodo do que a uma pretensa verdade apodítica. O romantismo, como
qualquer "movimento" intelectual ou artístico, se manifesta na sua prática contextual,
submetido às expectativas e tensões inerentes às disposições de seus agentes. A
identidade maior, que define internacionalmente o movimento enquanto tal, se dá
justamente pela coação e interesses locais, o que não quer dizer que a ligação seja uma
mera aperência estratégica, pois o agente local invariavelmente se identifica com o
que referencia – como diria Bourdieu, faz parte da illusio. Ou seja, se um escritor cita
Byron, Musset ou Goethe (que não era romântico) em Buenos Aires, Lima, Rio de
Janeiro ou Nova York, estabelecendo um elo de união entre as obras citadas e a sua
própria, isso não quer dizer que ele compartilhe exatamente das mesmas expectativas,
assim como também sua obra não é um mero pastiche. Identidades cruzadas estão aí
presentes, na combinação e hierarquização de diferentes fatores.
O romantismo, como signo que referencia uma certa atitude em relação à arte e
à modernidade, foi usada pela primeira vez por Schlegel65. Já vimos como estes
autores alemães estavam tentando manifestar uma sensação de ruptura com relação ao
passado, procurando ao mesmo tempo uma auto-afirmação. Esse primeiro romantismo
caracteriza-se, antes de tudo, pela ruptura com a tradição, pela subjetividade reflexiva
e por um projeto estético "rebelde" em relação ao Estado Moderno. Na França, apesar
do romantismo só ter de fato se instalado como movimento no final década de 1820,
com o estouro de Victor Hugo, desde Chateaubriand e Madame de Stäel seus
elementos estão presentes, como sentimentalismo, nostalgia, descrição da natureza e
uma subjetividade contemplativa e emocional.
Em cada um destes países (ou regiões), as premissas do movimento foram
moldadas pelos contornos históricos. A Alemanha, como uma região fragmentada em
diversos reinos, assolada culturalmente pelos modelos franceses, incitou seus
pensadores e homens de letras reclamarem seus direitos66. Na França, cuja tradição
65 Cf. Wellek, R. Op. Cit. 66 Goethe, em suas Memórias, recorda que a "época literária em que nasci originou-se da precedente por oposição. A Alemanha, tanto tempo inundada por povos estrangeiros, invadida por outras nações, obrigada a servir-se de idiomas estrangeiros […], não podia em absoluto cultivar o seu". Goethe, J. W. Memórias: poesia e verdade. São Paulo: Hucitec, 1986. Daí a ansia de ruptura na Alemanha ser mais
35
cultural já consolidada permitia uma prática mais tranquila, e reconhecida, por parte
dos letrados, o romantismo se cristaliza essencialmente como belle-lettres.
No Brasil, a consolidação de um movimento romântico se dá de forma muito
específica e marcante. Coincide com a instauração do aparato imperial e é por este
incitado. No Brasil colonial se encontravam apenas algumas escolas elementares,
controladas pelos jesuítas, e algumas academias formadas nos moldes do arcadismo.
Essa situação começa a modificar-se quando D. João VI desembarca no Rio de
Janeiro, fugindo das tropas de Junot, com a intenção de estabelecer instituições que
estruturassem aqui o domínio metropolitano. Como já foi mencionado, é desta época a
fundação de instituições como a Imprensa Régia, a Biblioteca, o Real Horto e o
Museu Real67.
Somando-se a uma elite ilustrada já existente, letrados e cientistas portugueses
começam a preencher esses espaços recém criados. Essa elite ainda tinha como marca
a forte vinculação com os modelos metropolitanos, enxergando o Brasil como uma
extensão da corte portugesa. Tal processo é continuado por D. Pedro; no entanto, com
a declaração de independência, as instituições já existentes e outras que estavam sendo
criadas pelo recém imperador assumem o papel de produzir e consolidar o Brasil
como uma unidade desvinculada politicamente de Portugal. A necessidade de uma
nova identidade faz-se perceber na feitura de uma constituição própria, organizada
pelas faculdades de direito então criadas.
O romantismo brasileiro data deste período e é inviável pensá-lo como fora do
Estado. A identidade nacional é sua meta, o Estado seu ponto de partida. Apresenta-se
como um movimento orgânico, tendo em seus representantes uma elite constituinte do
aparato imperial e compartilhando de seu projeto. "Abrir a cortina do passado, tirar
um Brasil-nação de lá: esta a tarefa indiscutível do escritor romântico"68.
Tarefa que teve como orientação os moldes franceses, principalmente pelo
contato direto de escritores brasileiros que encabeçavam a missão nacionalizadora (e
civilizadora), como Golçalves de Magalhães e Araújo Porto-Alegre, com artistas
cultural do que polítco-administrativa, sendo também o romantismo mais "subversivo". Já na França, o choque da Revolução e a conseqüente Restauração possibilitaram um romantismo mais emotivo, que não passaria de 1848. 67 Schwarcz, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Cia. das Letras, 1993.
36
franceses que vieram para o Brasil. Ao mesmo tempo em que o romantismo francês se
consolidava, esse contato incitava os escritores brasileiros na sua produção.
Clamando por uma literatura nacional derivada das tradições
folclóricas, privilegiando a natureza indomada e enfatizando as
especificidades do passado de cada povo, o romantismo era especialmente
atraente para as gerações brasileiras que testemunharam a consolidação do
novo Império69
Um dos letrados que mais influíram na prática literária brasileira foi Ferdinand
Denis (1788-1846). Ainda jovem, pupilo de Chateaubriand, veio para a América com
o fito de conhecer e descrever a natureza e o povo indígena. Por três anos (1816-1819)
percorreu boa parte do país, conhecendo de perto, entre outros, os Botocudo e os
Machacalis, estudando-os e descrevendo seus hábitos e costumes. Sua obra Résumé de
l'Histoire Littéraire du Brasil teve grande impacto na elite ilustrada brasileira. Nela
estão alguns preceitos que todo literato e historiador da literatura brasileira deveria
seguir.
Primeiramente, como algo de novo, o Brasil deve procurar sua próprias
inspirações:
O Brasil, que sentiu a necessidade de adotar instituições diferentes
das que lhe havia imposto a Europa, o Brasil experimenta já a necessidade de
ir beber inspirações poéticas a uma fonte que verdadeiramente lhe pertença;
e, na sua glória nascente, cedo nos dará as obras-primas desse primeiro
entusiasmo que atesta a juventude de um povo70
Deve, assim, a literatura brasilera alimentar-se a si mesma; deve rejeitar "as
idéias mitológicas devidas às fábulas da Grécia"; deve ter pensamentos novos e
próprios como ela mesma, afinal, "nossa glória literária [francesa] não pode sempre
iluminá-la com um foco que se enfraquece ao atravessar os mares, e destinado a
apagar-se completamente diante das aspirações primitivas de uma nação cheia de
68 Süssekind, Flora. "O escritor como genealogista: A função da literatura e a língua literária no romantismo brasileiro". In: Pizarro, Ana(org). América Latina. Palavra, literatura e cultura. V.2. Campinas: Ed. Unicamp, 1994. p. 454. 69 Needel, Jeffrey D. Belle Époque Tropical. São Paulo: Cia das Letras, 1993.p.212.
37
energia"71. Compartilhando daquela experiência histórica da qual tratei no capítulo
anterior, Denis propunha aos letrados brasileiros a maneira pela qual eles poderiam
caracterizar a especificidade nacional. A literatura serve como uma das manifestações
do espírito nacional, devendo ela ser um meio de realização e conscientização dessa
realidade. Como afirma Jauss:
A nova história das literaturas nacionais entrava numa concorrência
ideal com a história política e pretendia mostrar, pela conexão de todos os
fenômenos literários, como a idéia de individualidade nacional pudera por si
mesma chegar, de princípios quase míticos, à plenitude dp clássico
nacional.72
O elemento que Denis privilegia para o caso brasileiro é a natureza. Costa
Lima sugere que tal proposta deveu-se à repugnâcia que a sociedade colonial causou
no literato francês. Denis choca-se com a cena barroca da sociedade brasileira, na qual
o discurso sério se confundia com a ficção e vice-versa. "Os monges, escreve Denis,
são os diretores e com frequência os atores destas momices, que a meus olhos
ultrapassam todo ridículo. Não se perturbam em rir delas com os estrangeiros, mas as
crêem necessárias para manter seu crédito entre o povo"73. Essa sociedade e sua
configuração essencialmente cênica, hipócrita, causa aversão ao francês. Ele encontra
uma sociedade branca (a elite vinculada à corte), desprovida culturalmente e
religiosamente farsante. E, imbuído da visão predominante em França do bom
selvagem, volta seus olhos para a natureza e os selvagens que nela habitam. A
repugnância que sentiu pela sociedade colonial, assim, teria provocado uma curiosa
seleção, na qual privilegia-se a natureza como meio de autonomização da literatura.
A natureza já era tomada na Europa como um dos elementos principais do
romantismo. O que se diferenciava era o modo como era tratada. No romantismo
alemão, principalmente, a natureza era um estímulo à auto-reflexão, onde os sujeitos
poderiam desenvolver-se e assumir uma postura crítica em relação à sociedade. As
70 Denis, Ferdinand. "Resumo da História Literária do Brasil". In: César, Guilhermino. Historiadores e críticos do romantismo. São Paulo: Edusp, 1978.p. 36. 71 Ibidem. 72 Apud: Costa Lima, Luiz. O controle do Imaginário. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989, p 126. 73 Idem. p.132.
38
condições aqui eram diversas. Ao contrário do caso europeu, não havia tensão e
sentimento de rebeldia entre os letrados brasileiros. Pelo contrário, letrados como
Gonçalves de Magalhães e Araújo Porto Alegre contavam com o estímulo imperial.
"Sem a luta contra a sociedade instutída, o próprio contato com a natureza teria de
assumir um outro rumo, não o de estimular a reflexão, mas o de desenvolver o êxtase
ante sua selvagem maravilha"74. Se não despertava a reflexão, a contemplação da
natureza incitava a melancolia, o culto da tristeza e da saudade. O "ai que saudades" se
torna o sentimento comum entre os românticos brasileiros, assim como o resgate da
figura indígena com o mito da nacionalidade.
No que diz respeito ao discurso histórico, ao mesmo tempo distinto e próximo
ao literário, a proposta de Karl Friederich von Martius marca uma consolidação
paradigmática dos elementos privilegiados para se pensar a formação histórica
brasileira. Elementos que serão adotados pela "historiografia oficial", representada
pelo IHGB.
Na proposta de Von Martius encontra-se um ponto central de análise que
caracteriza-se justamente pela sua força, e a partir da qual se estenderão suas
consequências. Os elementos que interagiram no desenvolvimento do homem foram
vários, mas pode-se verificá-los convergindo nas três raças: "a de côr cobre ou
americana, a branca ou caucasiana, e enfim a preta ou ethiopica"75. É a união destes
elementos que dá à história do Brasil sua particularidade.
Von Martius era um naturalista e, como alemão da primeira metade do século
XIX, não podia estar alheio à influência de um Goethe e de um Schiller. Disso resulta
a utilização de categorias e a orientação de interesses próprios, tais como a busca pela
particularidade de um povo, pelo gênio da história, pela importância atribuída à língua
enquanto manifestação do espírito de um povo ou ainda - o que lembra muito Schiller,
buscar a satisfação "não menos ao coração do que a inteligência".
O que distingue as raças são tanto seus aspectos físicos como os morais. Cada
raça - e as três raças, no Brasil, constituem um povo - apresenta características que lhe
conferem identidade; e cada qual contribuiu de uma maneira particular no
desenvolvimento histórico do Brasil.
74 Idem.p. 134. 75 Von Martius, F. Como se deve escrever a história do Brasil. p. 390.
39
O português, como não poderia deixar de ser, representa o "essencial motor"
que mais influiu no desenvolvimento do Brasil. Isto ainda é pouco, pois na verdade,
segundo Martius, a história do Brasil "será sempre a história de um ramo dos
portugueses", sendo o resto dos elementos material que confere uma peculiar
composição a essa aquarela situada nos Trópicos.
O português é europeu, ainda que periférico, e graças a isso está no vetor da
história. Ele traz em seu espírito as qualidades morais e culturais da civilização
européia, tal como as artes que representam para o "historiador pragmático" um objeto
especial. "Uma tarefa de summo interesse para o historiador pragmático do Brasil será
mostrar como ahi se estabeleceram e desenvolveram as sciencias e artes com o reflexo
da vida européa"76. A configuração do Brasil configura-se assim como uma mimesis
distorcida da sociedade européia.
Mimesis distorcida graças à influência do meio físico mas, principalmente,
dos demais elementos humanos que influíam no processo histórico. Dos índios
Martius terá uma visão modelar, tal como romântico, preocupado em resgatar uma
possível história perdida desses povos. Para ele, "o penível quadro que nos oferece o
atual indígena brasileiro, não é senão o residuum de uma muito antiga, posto que
perdida história".
O único meio de resgatar tal história é resgatar, através da língua, os mitos, as
teogonias e geogonias. Considerando a língua como documento privilegiado para
insvestigação da sociedade indígena, Martius busca uma, quem sabe, pureza e
grandiosidade indígena que sirva, pelo menos, como introdução a uma história do
Brasil. Ao elemento negro foram suficientes dois pequenos parágrafos. Perversa
proporção que será também modelar na historiografia Brasileira do século XIX.
Martius desenvolveu assim a idéia de que a singularidade do Brasil jazia no
cruzamento racial, reafirmando contudo a relação herárquica entre as raças que o
formavam manifestada nas heranças que legaram. Ele combinava, desse modo, as
teorias propriamente européias apontando para a possibilidade do Brasil afirmar sua
especificidade dentro dos moldes daquelas mesmas teorias. Nesse processo de
assimilação e abrasileiramento, imitação e singularização, como bem notou
Süssekind, eses escritores legitimavam um discurso oficializado, produzido por uma
elite estatal. A assimilação por parte de Goncalves de Magalhães das propostas de
40
Denis, assim como a assimilação realizada por Varnhagen de von Martius são casos
representativos desse processo. E a forma com que esse processo se desenvolveu no
romantismo, com uma relativa passividade e "pacificidade" por parte dos autores, se
deveu ao fato de que o "exame do concreto não importava; sobretudo se ele
acrescentaria aspectos que não interessavam ao idílio retórico do texto"77. Não havia
ainda um grau de tensão suficientemente elevado que impulsionasse o combate crítico
e um acirramento do debate sobre os critérios de validade do conhecimento.
3. Sílvio Romero e Araripe Jr: as referências da identidade
I
76 Ibid. p. 402. 77 Costa Lima, Luiz. Op.Cit.p. 143.
41
Como integrantes do que se convencionou chamar de "geração de 1870",
Sílvio Romero e Araripe Júnior compartilhavam certas disposições intelectuais. Em
um ambiente cujas complexidade e possibilidades sociais aumentavam, os intelectuais
se viam impelidos a voltar-se para meios de legitimação variados e exteriores, não
podendo mais se sustentar apenas nos braços institucionais do Império. O romantismo
oficial finalmente perdia a hegemonia e essa "nova geração" assumia – ou procurava
assumir – o papel de refletir acerca da identidade nacional. Começam a deliner-se
especializações profissionais e novas trajetórias sociais se tornam possíveis. A partir
desse período, pode-se dizer que "se essa elite ilustrada não era, em sua maioria,
originária das camadas mais pobres, também não pode ser entendida como totalmente
oriunda ou até mesmo portadora exclusiva dos interesses das classes dominantes"78.
Um processo de diferenciação se institui, e como tal preza por um rompimento com o
passado imediato, com a geração anterior. Mas como Machado de Assis bem notou,
tal geração, ainda que uma "expressão incompleta, difusa, transitiva", apesar de não
tê-lo feito, deveria estar "obrigada a não ver no romantismo um simples interregno,
um brilhante pesadelo, um efeito sem causa, mas alguma coisa mais que, se não deu
tudo o que prometia, deixa quanto basta para legitimá-lo"79.
Alguma coisa, mas não tudo. Se, de um lado, Sílvio Romero e Araripe Jr.
herdaram a legitimidade de objetos da identidade nacional, de outro, recorreram à
eficiência do discurso científico e seu método para "limpar" a roupagem metafísica do
pesamento brasileiro. A identidade nacional também para eles está na história, na
representatividade da brasilidade no tempo. A historicidade da experiência brasileira é
um imperativo e é mister perceber nela a genialidade nacional. "Uma nação, diz
Romero, se define e individualiza quanto mais se afasta, pela história, do caráter
exclusivo das raças que a constituíram" e no "trabalho de diferenciação nacional, o
brasileiro será tanto mais progressivo a autonômico, quanto mais, apropriados os
germens úteis que legaram-lhe as raças que o constituíram, delas afasta-se, formando
um tipo à parte, uma individualidade distinta"(grifo no original)80. Assim, a história é
78 Schwarcz, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. São Paulo. Cia das Letras, 1993.p. 26. 79 Assis, Machado de. "A nova geração". In: Obras completas: Crítica Literária. São Paulo: WM. Jackson Ed. 1953.p. 151. 80 Romero, Sílvio. "A literatura brasileira e a crítica moderna". In: Op. Cit. p. 104.
42
o fundo no qual se atualiza, pela diferenciação, o espírito da nação em sua
individualidade.
Quanto a Gregório de Matos, é ele o documento por onde podemos
apreciar as primeiras modificações sofridas pela língua portuguesa na
América e as primeiras manifestações do espírito nacional, onde predomina a
veia cômica, despertada pelo espetáculo das relações de três povos diversos,
que têm, cada um, certo timbre em chasquear dos outros.81
A figura de Gregório de Matos, como aparece na obra desses autores, é uma
manifestação privilegiada para se perceber suas expectativas. O objeto e a forma como
é expresso são indícios de todo um campo de possibilidades de ação. A construção do
poeta baiano dentro de um discurso herético que procura se instituir enquanto tal
permite detectar os valores que estão em jogo e sua relação com o campo social, pois,
como nos lembra Foucault, "o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas
ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual
nos queremos apoderar"82. A forma e a informação que ela informa, mais do que
simbolizar toda a estrutura social da qual derivam, possibilitam também perceber
interesses e estratégias, os quais o texto, enquanto performance, visa realizar nessa
mesma estrutura social.
Gregório foi objeto de um grande estudo de Araripe Júnior, escrito em 1893,
publicado originalmente no Jornal do Brasil e transformado em livro no ano seguinte.
Diz ele, no prefácio, que "Gregório de Matos é toda poesia do século XVII". Ele se
justifica do fato de seu estudo não ser completo, pois deveria também escrever a
história geral da época. Expressa ainda sua intenção de reuni-lo, posteriormente, "num
estudo hierático e demótico da vida mental brasileira"83, o qual ele nunca realizou.
Este trabalho de Araripe é marcado por sua fase mais naturalista e evolucionista, como
deixa claro logo no início, afirmando que foi orientado pelo evolucionismo
spenceriano e "adestrado nas aplicações de Taine". Araripe, em seu quadro
hierárquico de critérios naturalistas, privilegia o clima em lugar da raça, sendo
Gregório, antes de tudo, fruto do clima tropical.
81 Ibid.p. 107. 82 Foucault, Michel. A ordem do disurso. São Paulo: Loyola, 1996. p. 10. 83 Araripe Jr, T. A. "Gregório de Matos"In: Op. Cit. p. 387.
43
Sílvio Romero aborda o poeta baiano em diversos estudos, mas dá uma ênfase
especial ao sátiro em sua "História da Literatura Brasileira", publicado em 1888. Já em
1882, o crítico havia publicado uma "Introdução à História da Literatura Brasileira"
que seria a base para o posterior estudo, contendo as premissas teóricas e as épocas
literárias que vão até a Escola Mineira, às quais viria juntar-se o período romântico.
Ao contrário de Araripe, Romero conseguiu realizar um estudo de sistematização da
vida mental brasileira, no qual insere Gegório. Tal como em Araripe, para Romero
todo "o movimento literário do Brasil no século XVII deve girar em torno do nome de
Gregório de Matos Guerra"84. Como obra de unidade, o múltiplo no uno, é mister que
se identifique origens, e Gregório vai ser apontado por Romero como o "fundador" de
nossa literatura: "Gregório Guerra é o genuíno iniciador de nossa poesia lírica e de
nossa intuição étnica "85. Romero, diferentemente de Araripe, privilegia a raça em
detrimento do clima. Divergência que serviu como motivo de ferrenhos debates entre
os dois críticos.
Nos ocuparemos aqui de determinadas expectativas compartilhadas por ambos
os autores no que diz respeito à experiência histórica, às idéias de nação, literatura e
crítica. Tendo escolhido como foco de manifestação dessas expectativas a leitura que
os autores realizam de Gregório de Matos, tentaremos detectar como a construção do
poeta baiano denuncia os valores a elas relacionados. Na elaboração do discurso
histórico, na projeção de valores nacionais mediante a literatura e na manifestação
destes numa atividade crítica – esse ato tipicamente mágico –, pretendemos visualizar
como se processa, neste caso específico, aquela tensão referida no cap. 2.1., qual seja
a busca de uma identidade local própria, a nacionalidade, simultaneamente à condição
de pertencimento internacional. Identidade que é construída e legitimada pela adoção
de um método, que não só orienta a seleção e a combinação de elementos da
identidade nacional, como também autoriza a fala desses críticos no campo social.
84 Romero. S. Hstória da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio Ed., 1969, p. 36. 85 Ibid.p.48.
44
3.1 História
Se a literatura brasileira fosse uma tal ou qual descrição do
selvagem, Anchieta a teria fundado; ela, porém, é mais do que isto, e só um
filho do Brasil, e em século mais avançado, a poderia fundar.
Sílvio Romero
45
A análise que Sílvio Romero e Araripe Júnior fazem do poeta baiano
denuncia, antes de tudo, uma determinada experiência histórica. O voltar-se para o
passado e o como voltar-se são orientados por determinadas expectativas, constituídos
por elementos herdados e moldados por ambições de veracidade específicas. Esses
críticos procuram deter o poder mágico, como o entende Boudieu a partir de Mauss,
de dar existência às coisas. O discurso histórico, como é aí entendido, pela sua
amplitude, procura fundar e legitimar qualquer objeto – e objetivo – social:
identidade, território, moral, religião, política, etc. Mas, para dar existência a um
objeto – objetivo – e conseguir dar legitimidade a ela, se faz necessária a detenção do
poder de impor uma nova visão e uma nova divisão do mundo social. "O mundo
social é também representação e vontade; existir socialmente é também ser percebido,
aliás, percebido como distinto"86. É bom lembrar, ainda, que a luta para deter o poder
de impor a divisão do mundo social se dá também mediante o próprio texto. O texto
detém em si bases próprias de legitimação; caso, por exemplo, da eficácia do discurso
científico que orienta sua formação.
A idéia de história se pauta em ambos os autores por uma noção de
representatividade que é julgada de acordo com sua significância para a realização do
espírito nacional. O fato de Araripe, tal como Romero, afirmar que ninguém como
Gregório "representou tão originalmente o gênio do Brasil inteligente"87, denuncia as
expectativas que a posição do agente enunciador guarda. Uma noção de história como
totalidade – como é o caso, expresso por palavras como "primeiro", "originalmente",
"iniciador", etc. – se organiza mediante uma hierarquização sincrônica e diacrônica,
tendo como foco orientador uma meta qualificada por determinados valores. Pode-se
dizer, assim, juntamente com Ricoeur, que em "função das normas imanentes de uma
cultura, as ações podem ser estimadas ou apreciadas, isto é, julgadas segundo uma
escala de preferência moral"88. Os valores são atrubuídos, por extensão, aos agentes e
à sua produção, sendo tais agentes julgados numa composição total em relação a
outros agentes. Como afirma Costa Lima, na medida em que o julgamento crítico se
cumpria, na crítica literária do século XIX, em função do lugar que o escritor ocupasse
86 Bourdieu, Pierre. A economia das trocas lingüínticas. São Paulo: Edusp, 1998, p. 112. 87 Op.Cit. p. 476. 88 Ricoeur, Paul. Tempo e Narrativa. Tomo I. Campinas: Papirus, 1994. p. 94.
46
no desenvolvimento geral das idéias, vale dizer que, na verdade, o escritor terminaria
sendo apreciado de acordo com sua coincidência ou não com as idéias do crítico89. Em
texto de 1882, Romero não se furta a essa função da crítica, afirmando:
Ora, determinar o lugar que deva na hierarquia dos fatos intelectais
de um povo ocupar um escritor, é traçar um juízo, é julgar a categoria de
idéias que esse escritor personifica, é designar o sentido e o alcance de sua
contribuição para a obra comum das idéias. Se, portanto, corrigir não é mister
da crítica, seu alvo é julgar. 90
Essa concepção de história guarda um nítido sentido teleológico, cabendo ao
historiador determinar seu nexo. Todos os acontecimentos históricos fazem parte de
um complexo maior, o da história enquanto singular coletivo; virtualidade que se
atualiza na concretização da reliadade nacional, representada pelos elementos que lhe
são associados. Porém, segundo esses novos críticos, não basta para o estabelecimento
desse nexo a boa vontade de homens de letras eivados por um sentimentalismo débil.
Faz-se necessário um método que, para se expressar nas palavras de Hegel, deixe de
ser amor ao saber para ser saber efetivo. "A crítica científica deve jogar com os
métodos da ciência; deve induzir e deduzir"91. Acresce-se então à prática intelectual
brasileira a moda do cientificismo, uma "cientificidade difusa e indiscriminada" que
entra justamente pela literatura, e que vai conduzir o modo como esses críticos vão
pensar o Brasil, confrontando-as com os paradoxos e possibilidades da estrutura
social.
A empiria da observação, típica do cientificismo naturalista, é imperativa, mas
não basta. Deve-se dela deduzir leis gerais, abstrair e generalizar. Dessa generalização
e abstração que o método científico é ao mesmo tempo causa e efeito, pode-se realizar
um julgamento justo e conseqüente. Não é suficiente a descrição e a catalogação de
todos os escritores que tiveram a oportunidade de rabiscar alguns versos no decorrer
da história; é preciso diferenciá-los segundo seu caráter e mérito. Se um "crítico
encontra em seu percurso um Gregório de Matos, por exemplo, e um Brito de Lima, e,
como incube-lhe apenas o dever de traçar um processo verbal, os dois baianos
89 Costa Lima, Luiz. Dispersa Demanda. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981. 90 Romero, S. "O naturalismo em Literatura". In. Op.Cit. p. 347. 91 Ibidem.
47
entrarão para a história em pé de igualdade, sem mais distinções, sem mais
julgamento!"92.
Imersos num horizonte comum da experiência histórica moderna, como foi
analisado no capítulo 2.3, esses críticos se apropriam do discurso cientificista e
naturalista que se torna hegemônico na Europa, dando uma nova modelagem a essa
experiência. O paradigma hegeliano de ciência, história e devir é aí circunscrito tanto
por um modelo nomológico quanto por um veio naturalista. Autores como Spencer,
Comte, Buckle, Taine, Haeckel e Stuart Mill são as referências obrigatórias para esse
modelo. Romero e Araripe pretendem escrever uma história naturalista da literatura
brasileira. Buscam encontrar "as leis que presidem e continuam a determinar a
formação do gênio, do espírito, do caráter do povo brasileiro"93. Gregório de Matos é
fruto do "carnaval biológico", segundo expressão de Araripe, por que passava o século
XVII brasileiro, esse século "decisivo". Esse modo de análise possibilitava mais do
que critérios de seleção e combinação analítica, conferindo também aos agentes que
dele se utilizavam uma forte referência de autoridade.
Não me deterei detalhadamente nas especifcidades de cada autor, mas faz-se
necessário ao menos traçar as linhas gerais que qualificam tais modelos cientificistas.
Como destacam alguns historiadores, esses debates que se farão vigentes no século
XIX remontam ao "século das luzes"94, a pensadores como Buffon e De Pauw. No
entanto, me deterei apenas nas características que assumem no oitocentos, definindo-
lhe os traços principais.
A publicação de "A origem das espécies", em 1859, representa um marco
indelével. Seu impacto foi tal que a teoria de Darwin passou a constituir um
paradigma da época, diluindo, inclusive, as disputas entre monogenistas e
poligenistas. Suas máximas logo estavam na boca da maioria dos intelectuais e
orientavam os mais diversos "departamentos" das universidades européias. "Conceitos
como 'competição', 'seleção do mais forte', 'evolução' e 'hereditariedade' passavam a
ser aplicados aos mais variados ramos do conhecimento"95.
92 Ibid. p. 348. 93 Romero, S.Op.Cit. p. 125. 94 Cf. Gerbi, Antonello. O novo mundo: história de uma polêmica; Schwarcz, L.M.Op.Cit.; Ventura, R. Op.Cit. 95 Schwarcz, L.M. Op.Cit.p. 56
48
Essa teoria ganha uma forte representação no pensamento social. O
darwinismo social significou, na Europa, uma legitmação para embasar teorias
conservadoras, aliadas também ao imperialismo europeu, tomando a idéia de seleção
natural como argumento de superioridade e da missão civilizadora européia. Mesmo
as idéia poligenistas encontraram brechas para se afirmarem pensando na "antiguidade
da seleção natural" e na mestiçagem, que produziria degenerescência das raças puras.
Tende-se a encontrar "duas escolas deterministas" influentes: uma que preza
pelo determinismo geográfico, representada por Buckle; e outra que afirma um
determinismo de cunho racial. Essa divisão, contudo, se pode ser efetuada, serve
apenas para delimitar especificidades hierárquicas de elementos causais. Se Araripe,
por exemplo, privilegia o condicionamento da psicologia pela, deve-se lembrar que o
fator racial vem logo atrás numa proximidade que não pode ser desprezada. O mesmo
serve para Romero, no qual algumas vezes a raça – normalmente privilegiada, perde
espaço para o condicionamento geográfico.
Todo esse determinismo biológico, naturalista, segue, todavia, preceitos
nomológicos. Como atesta o próprio Taine, partidário de "um determinismo integral",
"cette cause donnée, elle aparaît, cette cause retirée, elle disparaît"96.
O método moderno, que me esforço por seguir e que começa a
introduzir-se em todas as ciências morais, consiste em considerarem-se as
obras humanas, e em particular as obras de arte, como fatos e resultados de
que é preciso designar os caracteres e procurar as causas; nada mais. Assim,
a ciência não proscreve nem perdoa; constata e explica.97
Esses preceitos nomológicos remetem à física clássica newtoniana, empirista,
mas que deve estabelecer, a partir dos fatos, leis gerais de causa e efeito. Representam
no século XIX essa tendência autores como Comte e Stuart Mill. Comte crê ter
descoberto "uma grande lei fundamental", a lei dos três estados, após um estudo "do
desenvolvimento total da inteligência humana"98. Tal idéia gira em torno de três
conceitos: lei, causa e explicação. É através da relação entre eles que Mill, por
exemplo, defende que a física social deve procurar as "uniformidades de
96 Apud: Schwarcz, L.M.Op.Cit. p. 63. 97 Taine, Hippolyte. Da natureza e produção da obra de arte. Lisboa: Inquérito, s/d.p.17 98 Comte, Auguste. "Curso de filosofia positiva"In: Os pensadores. São Paulo: Abril, 1983. p. 4.
49
coexistência", "que são efeitos de causas, devem ser corolários das leis de causalidade
pelas quais estes fenômenos são de fato determinados"99. Um acontecimento é
explicado quando está vinculado a uma lei e seus antecedentes são chamados de
causas. A idéia que se procura é a de regularidade: sempre que um acontecimento de
tipo A se produzir num determinado local e tempo, pode-se deduzir que um
acontecimento de tipo B tenderá a se realizar em um local e tempo relacionados ao
primeiro acontecimento. Assim, Mill ainda furta-se a um determinismo absoluto. Para
ele, a ciência histórica não permite previsões absolutas, mas apenas condicionais.
Outro autor que conquistou na elaboração desse discurso de modelo científico
grande capital simbólico foi Herbert Spencer. Segundo Heckel, ninguém estabeleceu
melhor as correlações entre o evolucionismo darwiniano e a filosofia do que
Spencer100. Todo seu pensamento social gira em torno de tal correlação, tratando a
sociedade a partir de uma similitude funcional com os organismos. Tal formação
discursiva se apropria do vocabulário biológico e de sua consagração de divisões
funcionais para explicar a evolução social. As fases sucessivas do desenvolvimento de
uma coluna vertebral, por exemplo, servem para ilustrar o processo de diferenciação
social. Ou, como no crescimento orgânico, as sociedades "começam sob a forma de
embriões, têm origem em massas que são extremamente pequenas em comparação
com aquelas que alguns deles chegam por vezes a atingir"101. A convergência desse
modo de classificação científico adquire, então, um status de doxa, fundado tanto por
uma autoridade do agente enunciador quanto pela pré-disposição de um mercado
linguístico.
Pautados por esse referencial metodológico, Romero e Araripe procuraram
definir as causas do efeito Brasil, legitimando, ao mesmo tempo, as divisões do
dircurso científico. A busca pelos fatores constituintes da causa deparava logo e
invariavelente com a idéia da mescla das três raças proposta por Von Martius. Tal
idéia se tornou hegemônica na produção historiográfica nacional, adquirindo o status
de ponto pacífico na reflexão acerca da identidade nacional A especifidade brasileira
não poderia ser procurada fora dessa relação, e cabia então caracterizar a natureza
dessa mistura pelo método científico; daí a crítica de Romero à Martius, cuja proposta
99 Mill, John Stuart. "Elucidações da ciência da história". In: Gardiner, P. Op. Cit. p. 107. 100 Haeckel, Ernst. Origem do homem. Porto: Livraria Chardror de Lello e Irmão, 1908. 101 Spencer, Herbert. "Princípios de sociologia"In: Gardner, Patrick. Op.Cit.
50
seria "puramente descritiva; ela indica os elementos: mas falta-lhe o nexo causal e isto
seria o principal a estabelecer"102.Tudo o que é brasileiro é produto de determinada
combinação temporal da natureza, segue leis fixas e, por conseguinte, é passível de se
visualizar suas posibilidades futuras. Tudo o que é brasileiro é produto da mistura de
raças mas também do clima, estes os dois fatores principais na análise evolucionista.
O capítulo preliminar de uma história da literatura brasileira, quando
a escreverem com rigor científico, deverá ser uma inquirição de como o
clima do país vem atuando sobre as populações nacionais; o segundo deverá
ser uma análise escrupulosa das origens do nosso povo, descrevendo, sem
preconceitos, as raças principais que o constituíram. 103
O método naturalista tende assim a encontrar os fatores que condicionam e
impulsionam o processo histórico, dando a especificidade de caráter para determinada
nação. Natureza e caráter são portanto indissociáveis. Tanto o clima como as
diferentes raças possuem atrelados a si certos valores, e a combinação destes
elementos explica o grau de desenvolvimento das civilizações e seu potencial. Buckle,
a partir dessa constatação, vai explicar o atraso das sociedades americanas e africanas,
nas quais "a natureza conspira para aumentar a influência das faculdades imaginativas
e enfraquecer a razão".
Raça e clima explicam o gênio do povo e do indivíduo. Aí entra a
representatividade como forma de análise, pois para se perceber o efeito que a
combinação de causas naturais produziu, nada melhor que deter-se sobre os
indivivíduos que melhor sintetizaram a brasilidade condicionada no tempo. O
indivíduo é o centro de uma esfera concêntrica, da qual fazem parte a família, a
cidade, a nação, a raça e o meio. Esta concepção, especificamente de Sergi,
antropólogo italiano citado por Araripe, é paradigmática para a visão naturalista. O
indivíduo, como "núcleo indispensável", "força viva", não é passível de ser analisado.
Romero lembra a dificuldade de explicar Lamartine, Hugo, Musset, Balzac, Vigny,
autores tão dessemelhantes mas que, contudo, compartilhavam igualmente a raça, o
meio e o momento. "Assim considerada, ela [a individualidade] escapa ao influxo da
102 Romero. S. Op. Cit. p. 47. 103 Romero, S. Op.Cit. p. 105.
51
crítica, é uma espécie de pressuposto, de substratum irredutível. – Só os três fatores de
Taine é que podem ser submetidos ao exame da história"104. Para expressar essa
complicada relação indivíduo-sociedade, Araripe, em texto de 1887, faz uma longa
citação de Taine, procurando sintetizar esse modo de análise:
Em um grupo humano qualquer, – diz ele, – os indivíduos que
atingem maior autoridade e mais extenso desenvolvimento são aqueles cujas
aptidões e inclinações correspondem melhor às do grupo. O meio moral, do
mesmo modo que o meio físico, atua sobre cada indivíduo por excitações e
repercussões contínuas: este meio faz abortar uns e crescer outros na
proporção exata da concordância ou do desacordo que se manifesta entre si.
Este trabalho surdo constitui uma espécie de escolha que, por uma série de
formações e deformações imperceptíveis, sob o ascendente do meio, produz,
no cenário da história, artistas, filósofos, reformadores religiosos, políticos
capazes de interpretar ou realizar o pensamento de seu tempo e de sua raça,
da mesma maneira que, no cenário da natureza, as espécies de animais e de
plantas as mais capazes de acomodarem-se ao clima e ao solo.105
A seleção natural se encarrega de "filtrar" os indivíduos mais fortes, mais aptos
a sobreviver em determinado ambiente. Essa filtragem natural faz com que esse
indivíduo nos diga, melhor que ninguém, quais são os fatores essenciais na sua
constituição e como a combinação de tais fatores se personifica na psicologia de um
indivíduo que representa o caráter da nação. Gregório é a reação contra elementos aos
quais estava exposto, a sátira seu instrumento de reação, a reação do "forte, sadio e
triunfante, contra o fraco que se arrasta na sua impotência, na sua tristeza"106. Romero,
em sua classificação entre autores primários, secundários e terciários, ao colocar
Gregório entre os primeiros, afirma que ele "indica, pela sátira e pelo cinismo, um
momento psicológico da luta dos três povos que iam constituindo a atual população
do Brasil, e onde começa a consciência nacional a despontar"107.
104 Romero, S. História…. p. 88-9. 105 Aupd: Araripe, Jr. T.A. "Literatura Brasileira". In. Obra Crítica. V.I. Rio de janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1958. p. 492. 106 Araripe Jr. T.A. "Gregório de Matos". p. 390 107 Romero, S. Op. Cit. p. 111.
52
Como bem notou Antonio Cândido, a dificuldade desses autores de focalizar
um autor pode ser vista "como algo ligado à sua concepção de que a parte só tem
sentido no todo, visto a partir das origens, caracterizado pelo jogo dos fatores
condicionantes e encarado, não nos momentos de permanência, mas na trajetória
completa de sua evolução"108. Indo um pouco além, contudo, acredito que essa forma
de análise assume um forte aspecto metonímico. O indivíduo, mais do que ter sentido
no todo, ele representa o todo, e ele é apenas qualificado de acordo com tal
representatividade. Quando esses críticios analisam Gregório de Matos, como efeito
de causas naturais na história, vêem em sua individualidade uma síntese bem acabada
do caráter nacional justamente por ter sido ele um efeito modelar da combinação de
fatores. Todo o processo histórico da formação do país foi necessário para a realização
do poeta baiano. A citação é longa, mas significativa dessa linguagem analítica:
Para este efeito [Gregório] foi preciso, contudo, que um português
atravessasse o Atlântico, como tantos outros aventureiros ou degradados da
mãe pátria, e que tivesse filhos; que a África mandasse ao Brasil os
elementos de que se havia de formar a mestiçagem de alguns de seus estados;
que a Bahia se organizasse com os elementos híbridos que ainda hoje a
caracterizam; que finalmente um branco, inteligentente, genial, formado em
direito, apesar de nascido no Brasil, em universidade portuguesa, contraísse
naquela época um ódio inelutável contra a raça que o produzira, o galego,
contra os mulatos que o feriam à traição, contra os cônegos que engordavam
a contra-gosto seu, contra tudo que aborrecia o seu desfastio e contra a terra
que o alijava por não suportar tamanha indigestão de humour, tamanha
concisão de idéias.109
A parte só pode ser vista como integrante do processo ao mesmo tempo que
ela o representa. A narrativa caminha sempre para um final, um efeito. Na narrativa os
eventos são sempre associados, formando uma rede que os transforma em partes
integrantes de um processo mais amplo. O processo é o passado, o presente e o futuro
potencial. A parte – o indivíduo significante, no caso, Gregório –, mas não só como
parte, mas principalmente enquanto representante do processo em sua totalidade,
108 Cândido,A. "Introdução". In: Sílvio Romero: teoria, crítica e história literária. São Paulo: Edusp, 1978. p. XXVIII.
53
acumula em si a tensão dos três momentos. Esses críticos, ao construírem Gregório,
tendo em vista esse processo, não deixam de nele encontrar, não só o passado, mas
também o presente e o futuro (potencial) – dos críticos, obviamente. Com isso não
quero dizer que eles ignorem o horizonte histórico específico no qual Gregório estaria
inserido, sua especificidade temporal e regional. Mas a experiência histórica que aí se
processa promove invariavelmente uma "fusão de horizontes", entendendo tal
experiência como uma prática voltada para "fora do texto", direcionado à sua estrutura
social. Concordando com a afirmação de Sevcenko, de que a palavra de ordem da
geração da qual esses críticos faziam parte era condenar a sociedade fossilizada do
Império e pregar as grandes reformas redentoras, abolição, república e democracia;
podemos também afirmar que, na construção desse discurso herético, os críticos
tendem a se associar a determinados personagens que representam a afirmação dos
valores que eles procuram instituir como projeto. Gregório, como claramente denuncia
a citação de Araripe, é fruto de todo um processo de formação do Brasil, no
entrecruzamento de diferentes forças exteriores. Todo o passado de "fundação do
Brasil" é condição sine qua non para sua realização enquanto individualidade. E sua
individualidade é o molde mais bem acabado do capricho da natureza na formação do
brasileiro. Nele se fundam os elementos essenciais da brasilidade, o hibridismo (ou
mestiçagem)110 e o clima. Nele o brasileiro já é uma realidade e, por conseguinte, um
modelo – e todo modelo é projeto.
3.2 Nação
Ambos os autores realizam uma contraposição entre Gregório de Matos e
Vieira. Esta contraposição é significativa para exemplificar a tomada de Gregório
como modelo de brasilidade. Eles representam duas forças opostas: uma associada à
colonização portuguesa, a uma ordem eclesiástica, a uma maneira de fazer política; a
109 Araripe Jr. T.A. Op. Cit. p. 390. 110 Estes termos aparecem de forma não muito disciplinada. O possível diferença destes termos e suas implicações serão analisadas posteriormente.
54
outra, por sua vez, representa a crítica de toda a ordem oficial que se estabelecia,
crítica à hipocrisia eclesiástica e portuguesa, o reconhecimento da originalidade
brasileira.
Vieira é um português que viveu no Brasil; simboliza o gênio português com
toda sua arrogância na ação e vacuidade nas idéias, com todos os seus pesadelos
jesuíticos e teológicos; produto de uma religião e de uma sociedade gastas; uma
"espécie de tribuno de roupeta que se ilude e ilude os outros com as próprias frases".
Gregório, por sua vez, é um brasileiro que residiu em Portugal; é a mais
perfeita encarnação do espírito brasileiro, com sua facécia fácil e pronta, seu
despredimento de fórmulas, seu desapego aos grandes, seu riso irônico, sua
superficialidade maleável, seu gênio não capaz de produzir novas doutrinas, mas apto
para desconfiar das pretensões do pedantismo europeu; discípulo de padres que
começa por debicá-los, escarnecer deles e duvidar de sua santidade e sabedoria; um
pândego, um percursor dos boêmios, amante de mulatas, desbragado, inconveniente,
que tem a coragem de atacar bispos e governadores.
Vieira e Gregório são vistos como dois modelos. O primeiro não percebeu "o
advento do elemento novo, do genuíno brasileiro – o mestiço, filho da país", diz
Romero. Vieira "sempre amou o paradoxo, o folhetim eclesiástico", declara Araripe.
Gregório, ao contrário, não só percebeu o mestiço e tratou dele em sua poesia, como
também, e principalmente, encarnou o "mestiçamento moral", a moral brasileira; foi o
mais perfeito fruto dessa sociedade híbrida.
Esses dois modelos, um pela negação, outro pela afirmação, se referem a uma
idéia de nacionalidade. A nação é o carro chefe do pensamento do século XIX. A
invenção retroativa da nacionalidade brasileira111 começa a despontar, como já vimos,
com o romantismo, onde se formulam seus elementos básicos. Mas antes de tratarmos
desses elementos que serviram de referência para a identidade brasileira no século
XIX, e como foram reformulados por Sílvio Romero e Araripe Jr., convém discorrer
sobre as características da própria idéia de nação, como ela se consolidou enquanto
ideologia dos Estados-nação europeus e seu correlato americano112.
111 Cf. Süssekind, Flora. Op. Cit. p. 454. 112 Não se pretende aqui uma discussão pormenorizada do processo de consolidação dos Estados-nação, nem para o caso europeu, nem para o brasileiro. Para esta discussão, remeto aos autores ciatados, pois o que nos interessa aqui – e dada a limitação de espaço e tempo - são determinadas características que acredito importantes para a evolução do argumento.
55
Segundo Hobsbawm, três características marcam a idéia de nação durante o
século XIX: língua, território e etnia. Assumindo pesos diferentes em momentos
diferentes, essas características que comporiam a idéia de nação servem como projeto
ideológico para a consolidação dos Estados-nação europeus. Na verdade, pode-se
dizer que a própria idéia de nação é projeto do Estado. "O Estado não só fazia a nação
mas precisava fazer a nação"113. As unidades políticas que se formavam desde a
Revolução Fancesa, dentro de uma remodelação econômica provocada pela
Revolução Industrial, assim como a constituição da sociedade civil burguesa,
necessitavam de um novo elo de solidariedade."A Revolução, diz Revel, funda uma
nação. Instaura uma nova ordem através de um território cujos pormenores necessita
conhecer para melhor integrar todos os pontos, para melhor associar ao projeto
político e social de que se quer portadora"114. O mesmo vale para os outros Estados,
ainda que dentro de suas particularidades. A territorialização e os correlatos
identitários a ela associados fazem-se necessários na consolidação do Estado burguês.
A idéia de nação vem, assim, se tornar a nova religião cívica dos Estados. Ela
Oferecia um elemento de agregação que ligava todos os cidadãos ao
Estado, um modo de trazer o Estado-nação diretamente a cada um dos
cidadãos e um contrapeso aos que apelavam para outras lealdades acima da
lealdade ao Estado – para a religião, para a nacionalidade ou etnia não
identificadas com o Estado, e talvez, acima de tudo, para a classe115
Seguindo as idéias de Hobsbawm, Ricardo Salles propõe a noção de um
"espaço narrativo imperial". As nações teriam surgido de um interespaço comum,
dentro do processo de formação do capitalismo a da expansão ocidental que se davam
a partir do centro europeu. Elas foram necessidades políticas desse processo
imperialista. Desse modo, não foram "a civilização e as nações européias que criaram
seu império mundial, mas foi este império que deu origem a essa civilização e a essas
113 Hobsbawm, Eric. J. A era dos impérios. São Paulo: Paz e Terra, 1988.p.212. 114 Cf. Revel, Jacques. A invenção da sociedade. Lisboa: Difel, 1989, caps. IV e V. Cf. também Foucault, Michel. "A governamentalidade", IN: Microfísica do poder, Rio de Janeiro: Graal, 1979. Para Foucault, "desde o século XVIII três movimentos – governo, população, economia política – constituem um conjunto que ainda não foi desmembrado. 115 Idem.p. 212.
56
nações"116. Elas se tornam as entidades políticas, individualizadas, que atuariam na
esfera econômica internacional representando a população enquanto sociedade civil,
defendendo seus interesses numa suposta estrutura cindida entre interesses privados e
política pública117.
A necessidade de uma identidade única dessa sociedade civil, na verdade
fragmentada em diversos interesses, representada como uma entidade política é que
deu impulso ao sentimento de nação. Através de uma delimitação territorial, de uma
normatização da língua e do desvelamento de uma unidade histórica e/ou étnica, os
Estados – enquanto campo burocrático, palco de lutas pelo controle do capital e do
poder de redistribuição dos recursos públicos118 – procuraram legitimar-se em sua
representatividade e formar uma coesão na população que suplantasse fragmentações
de outros tipos. Para isso, a alfabetização em massa e uma mínima escolaridade
faziam-se essenciais para esses países cujo contingente populacional urbano
representava um perigo potencial. Após as revoltas de 1848 fez-se mais preemente
essa política de coesão nacional, somada, obviamente, com meios de reorganização
urbana e de aparatos de repressão119.
A busca de critérios objetivos da identidade nacional, como a língua, o
território, a raça, constituem o objeto de representações mentais e materiais. Detendo
um aparato institucional de controle e propagação de tais representações, o Estado
procura deter o controle do poder de enunciação da nacionalidade, suplantando e
contraolando as demais tentativas afirmativas. O Estado, assim, pretende-se o centro
propagador e o referencial da cadeia de solidariedade que é a nação. Como destaca
Bourdieu,
As lutas em torno da identidade étnica ou regional, quer dizer, em
torno de propriedades (estigmas ou emblemas) ligadas à origem através do
lugar de origem, bem como as demais marcas que lhe são correlatas, como,
por exemplo, o sotaque, constituem um caso particular das lutas entre
classificações, lutas pelo monopólio do poder de fazer ver e de fazer crer, de
116 Salles, Ricardo. Op.Cit. p. 70. 117 Cf. Habermas, Jürguen. L'espace publique. Paris, Payot, 1978. A crítica dessa suposta cisão se faz presente em autores como Hegel, Marx e Nietzsche, que denunciam a razão interessada que se mascara de Razão de Estado. Cf. cap. 2.2. 118 Cf. Bourdieu, P. "De la maison du roi à la raison d'État". In: Actes de la recherche en sciences sociales Paris, 118, Juin, 1977.
57
fazer conhecer e de fazer reconhecer, de impor a definição legítima das
divisões do mundo social e, por essa via, de fazer e desfazer grupos.120
Os estados europeus do século XIX encontraram mais dificuldades nessa luta
pelo monopólio de enunciação. Se, de um lado, as maiores mudanças que
possibilitaram a receptividade potencial aos apelos nacionais foram a democratização
da política e a criação de um Estado administrativo moderno121, de outro, pode-se
dizer que essas mudanças também possibilitaram a veiculação e a tentativa de
afirmação de identidades diversas e divergentes às do Estado. Os conflitos sociais,
especialmente urbanos, se fizeram ecoar por vários países. A esfera pública,
juntamente com a escola o maior instrumento de veiculação da nacionalidade, dava
com uma mão e tirava com a outra. Folhetins e libelos eram meios de organização de
outras solidariedades, ligadas a reivindicações socais e políticas. O grau de
instabilidade aí se fazia intenso e as lutas pela normatização do nacional acirradas.
Já no caso brasileiro algo diverso ocorreu. O desembarque da dinastia
Bragança na Bahia trouxe duas primeiras conseqüências da transmigração: a abertura
dos portos, na busca de suprir as necessidades da corte, e a instauração de um centro
de poder, em torno do qual as capitanias estariam vinculadas. A transmigração
mantém cindidas metropóle e colônia. A corte, como destaca Faoro,
está diante de sua maior tarefa, dentro da fluida realidade americana:
criar um Estado e suscitar as bases econômicas da nação. Sob o império de
sua estrutura secular, amoldada ao sistema absoluto de governo, lançará
sobre a colônia uma pesada túnica, fio a fio costurada, capaz de disciplinar a
seiva espontânea, mantido o divórcio entre a camada dominante e a nação
dominada, tímida, relutantemente submissa. 122
Essa estrutura "secular" de administração vai ser continuada, porém
reformulada, após a independência, tendo um maior realce na busca pela construção
da nação como algo independente. Após a "carapaça" trasmigrada, incapaz de digerir a
extensão americana, ser sufocada, verifica-se uma constante que vai exercer grande
119 Ver Oehler, Dolf. O velho mundo desce aos infernos. São Paulo: Cia das Letras, 1999. 120 Boudieu, P. Economia das trocas lingüisticas. p. 108. 121 Cf. Hobsbawm, E.J. Nações e nacionalismo desde 1780. São Paulo: Paz e Terra, 1991.
58
influência no projeto estatal brasileiro. Essa constante é estruturada na propriedade
agrária, que entra em conflito com a cúpula burocrática voltada ao comércio urbano e
internacional – comércio de raízes portuguesas. Aliada ao liberalismo, "visível nos
demagogos letrados, entrelaçada pelos padres cultos, pelos leitores dos enciclopedistas
e pelos admiradores da emancipação norte-americana"123, fundamental na articulação
de um discurso empenhado na construção da nação, essa estrutura agrária promoverá
as idéias que darão nas lutas de 1822.
Na reorganização política do país independente, a elite procura manter a
igualdade sem a democracia, o liberalismo fora da soberania popular. Para figuras
como Benjamin Constant, a soberania – se de soberania se tratava – seria a nacional,
"que pressupõe um complexo de grupos e tradições, de comunidades e de
continuidade histórica, e não a popular, que cria e abate os reis"124. Desse modo, situa-
se no poder moderador a chave para toda a organização política, entregue ao
imperador, chefe da nação e seu primeiro representante, a quem cumpre velar sobre a
manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos demais poderes políticos.
Esse processo interno de consolidação do Estado brasileiro, apesar de ter se
dado dentro de sua particularidade, ou seja, não como uma simples cópia de modelos
europeus, mas como tentativa de organização política em situação periférica; apesar
dessa especificidade, para os letrados e para a própria elite administrativa era
importante estabelecer laços de pertencimentos políticos e culturais, em termos
civilizatórios, com a tradição ocidental européia. Buscavam, assim, seguindo a idéia
de Salles, integrar-se ao espaço narrativo imperial. Procurava-se uma coexistência
entre a estrutura agrária e escravocrata com os aparatos estatais e ideológicos ligados
àquele espaço. Portanto,
A construção de um aparato estatal com uma ampla base territorial
configurada na nova nação, por um lado, se escorou na existência da
economia escravista em sua conexão com a economia-mundo e, por outro,
contribuiu para o desenvolvimento desta última num quadro internacional em
que as formas pré-capitalistas de produção entravam em declínio.
122 Faoro, Raymundo. Os donos do poder. V. I. Porto Alegre: Globo, 1975. p. 249. 123 Idem. 261. 124 Idem.p. 281.
59
E como parte desse esforço de pertencimento, a própria identidade nacional foi
pensada a partir de critérios produzidos pelo discurso europeu. Apropriados por uma
elite que buscava dar coesão à própria classe, esses critérios foram sendo incorporados
de diferentes formas, com ênfase para os discursos histórico e literário. Já vimos como
os elementos da identidade nacional foram, em grande parte, propiciados pelos textos
de autores como Ferdinand Denis e Von Martius. O território, a língua, o indianismo,
a natureza e, por fim, a mistura de raças são os temas determinantes dessa identidade
nacional; e as formas privilegiadas de encará-los, a história e a literatua125.
Tanto a história como a literatura eram práticas vistas como
"instrumentalidade para a compreensão do presente e encaminhamento do futuro,
princípios tão caros também àqueles que no Brasil se lançaram à tarefa de escrever
uma história nacional"126. E no Brasil as pessoas que foram incubidas de tal tarefa o
foram pelo Estado, e mesmo faziam parte dele. Havia uma relação orgânica entre
esses agentes e a estrutura imperial, e nada melhor que os "rituais" do IHGB para
confirmar essa configuração127.
Tudo isso ocorria, então, numa "esfera pública", se assim a podemos chamar,
estritamente conexa ao Estado imperial, tendo na figura de D. Pedro II seu patrono.
No momento, porém, que a complexificação social permite outras trajetórias sociais
na cidade do Rio de Janeiro, na medida em que uma nova geração – que procura se
ver como tal – compartilha determinidas referências e projetos, ainda que incertos e
transitórios, estabelece-se uma dinâmica de luta pela enunciação da nacionalidade.
"Divulgavam-se idéias filosóficas e científicas, como o naturalismo, o positivismo e o
evolucionismo, que traziam a crença no progresso e na evolução, tornando possível a
crítica à ordem estabelecida"128. Os critérios que os românticos estabeleceram para se
pensar o nacional são julgados e culpados. No palco de uma opnião pública não mais
orgânica, cujos veículos não estavam mais estritamente vinculados ao Estado, onde
125 Interessante frisar que a maior parte da produção do IHGB centrava-se na problemática indígena, em descrições de viagens com fins de conhecer o território, e no debate da história regional, ocupando tais temas cerca de 73% da produção da Revista. 126 Guimarães, Manuel L. Salgado. Op. Cit. p. 12. 127 Cf. Callari, Cláudia Regina. "Os Institutos Históricos: do patronato de D. Pedro II à construção de Tiradentes". In: Revista Brasileira de História. São Paulo, v.21, n. 40, pp.59-83. 2001."Como no Antigo Regime, em que a etiqueta sobrevivia mal à ausência do monarca, o IHGB estabeleceu uma íntima relação com a Monarquia: sem o soberano não havia espetáculo". p. 63-4. 128 Ventura, R. "Um Brasil mestiço: raça e cultura da monarquia à República". In: Mota, Carlos Guilherme. Viagem Incompleta: a experiência brasileira. Formação: histórias. São Paulo: Ed. Senac, 2000.p. 337.
60
jovens escritores e bacharéis procuravam conquistar novos espaços e trajetórias, a
enunciação da nacionalidade e dos projetos políticos a ela ligados conduziam o
debate. Toda enunciação requer agora meios legitimadores próprios, capazes de
garantir a veracidade do enunciado, de refletir a realidade nacional e, também, de
apoiar um projeto político para a nação. A história do Brasil, setencia Romero,
não é, conforme se julgava antigamente e era repetido pelos
entusiastas lusos, a história exclusiva dos portugueses na América. Não é
também, como o quis supor de passagem o romantismo, a história dos tupis,
ou, segundo o sonho de alguns representantes do africanismo entre nós, a dos
negros no Novo Mundo.129
Esses elementos não representam a especificidade brasileira; remetem a identidades
outras, que não são nossas. A nação brasileira não é representada pelo luso, pelo
africano ou pelo indígena – Vieira, Anchieta e os românticos estavam enganados.
Contemplar o clima e a natureza também não pode fornecer nada além de "um
nacionalismo de vocabulário", como disse Machado. Mas então, o que vem a ser o
brasileiro? É, responde o mesmo Romero, a "formação de um tipo novo". E os
critérios principais para percebê-lo, como já vimos, são as conexões causais que a
mistura de raças e o clima exercem na psicologia do indíviduo, representante do todo.
A história do Brasil é, para Romero
É antes a história da formação de um tipo novo pela ação de cinco
fatores, formação sextiária em que predomina a mestiçagem. Todo brasileiro
é um mestiço, quando não no sangue, nas idéias. Os operários deste fato
inicial hão sido o português, o negro, o índio, o meio físico e a imitaçãpo
estrangeira.130
A natureza para os românticos, respaldados nas prescrições de Denis e outros,
era a abundância vegetal e da fauna. Vemos, nas representações iconográficas desse
período, a configuração do indivíduo que é obsedado pelo vigor da natureza
129 Romero, S. Op. Cit. p. 124. 130 Romero, S. Op. Cit. p. 124.
61
tropical131. Na poesia, o nacional é o cantar contemplativo das palmeiras e sabiás. Mas
nada disso tem legitimidade para esses novos críticos. Agora, a natureza é uma causa
essencial na formação psicológica do povo brasileiro, ela interfere e rege a sua
atuação, seus costumes, moral, enfim, toda a estruturação sócio-culural.
Os índios já eram uma demonstração disso. O clima, assim como a raça, os
tornava o que eram. "As raças americanas são um produto do meio americano",
afirmava Romero, "eram nômades, caçadores; estavam no grau de atraso do homem
geológico"132. Esse clima tropical, de calor e umidade, gerava "um certo abatimento
intelectual, uma superficialidade inquieta, uma irritabilidade, um nevrosismo, um
hepatismo que se revela nas letras"133. Apesar de referenciar tais características ao
clima, Romero critica autores como Buckle por imaginarem o clima tropical como
uma região de furacões, terremotos, cataclismos, vulcões e outras coisas mais. Assim,
se o clima gera "um certo abatimento", isso não quer dizer que ele condene
peremptoriamente o homem. Afinal, "o exterior do país é risonho, as montanhas
reduzidas e poéticas". O homem americano não é o europeu, detentor da razão fria,
temperada, mas também não está condenado a viver em ocas e ser esmagado pela
imponência da natureza. Isso, obviamente, graças à ciência e indústria, que têm o
poder de neutralizar as influências deprimentes do mundo exterior. Por isso dizia
Romero que a "poesia e a ciência têm aí diante um problema a solver e dirigir". De
acordo com o desenvolvimento da sociedade que nos trópicos vai se instalando,
medido pelo critério civilizatório europeu, a influência do clima tende a diminuir.
De qualquer modo o clima foi um fator causal crucial na formação do
brasileiro, independente de sua influência futura. Se o clima tende a exercer menor
influência a partir de um certo nível civilizatório instalado, deve-se lembrar que nos
momentos de fundação, ou fermentação da brasilidade ele deixou marcas indeléveis.
Araripe fundamenta toda sua teoria da obnubilação brasílica neste ponto. Para ele,
este fenômeno que consiste na transformação por que passava o colono ao atravessar o
Atlântico é essencial para a compreensão dos elementos brasileiros, os quais se
formaram nos dois primeiros séculos. O clima tropical tendia a afetar o homem
civilizado, tornando-o mais selvagem, afetando-o moralmente.
131 Cf. Sallas, Ana Luisa Fayet. Ciência do homem e sentimento da natureza: viajantes alemães no Brasil do século XIX. Tese de doutorado apresentada ao PGHIS- UFPR, 1997. 132 Romero. S. Op.Cit. p. 150. 133 Idem. p. 136.
62
Dominados pela rudez do meio, entontecidos pela natureza tropical,
abraçados com a terra, todos eles se transformavam quase em selvagens; e se
um núcleo forte de colonos, renovado para contínuas viagens, não os sustinha
na luta, raro era que não acabassem pintando o corpo de jenipapo e urucu e
adotando idéias, costumes e até as brutalidades dos indígenas.134
Esse fenômeno aconteceu a Hans Staden, Soares Moreno, Anchieta, entre outros.
Ninguém, no entanto, pode ilustrar melhor essa transformação do que Gregório de
Matos; este, chegando à América após sua estada em Portugal, adquiriu "uma nova
alma". Pisar na Bahia, "nas areias de sua terra foi o mesmo que libertar-se,
desintoxicar-se e restituir a si o gênio perdido em Portugal"135. O meio brasileiro e o
genius loci por ele produzido, a Bahia, exerceram no poeta uma renovação. Encontrou
o poeta uma terra onde o clima, se não criou as raças que constituíam a população,
com certeza as modificou, provocando, mediante esse meio lúbrico e sedativo, um
mestiçamento não só físico, mas também moral. Essa influência do meio na
constituição da moralidade nacional também é lembrada por Romero:
Ora o meio tem sua exigências atrozes; o resultado vinha a ser que os
filhos do senhor de engenho eram decerto limpos de tez; mas, gostando
muito de ir às senzalas a conversar e brincar com os moleques, as pretas e as
caboclas velhas, saíam no fim de contas uns portuguesitos, é verdade, mas
uns tais, que distavam dos pais, como a água do vinho, pela intuição e pela
face moral.136
O clima e o meio produzido, assim, não podem ser pensados sem o seu
correlato moral. Eles importam na medida que afetam o homem em seu modo de vida
e em sua constituição física; é por isso que devem ser levados em consideração por
qualquer um que queira desvelar a especificidade brasileira. As raças afetam-se umas
às outras, o clima e o meio influem sobre todas. A moral associada ao clima tropical,
convergindo com as morais associadas às diferentes raças e às suas misturas, dá a
134 Araripe. Jr. T.A. Op.Cit.p. 402. 135 Araripe Jr, T. A. Op. Cit. p. 407. 136 Romero. S. "Introdução…". Op. Cit. p. 221.
63
conformação de um ambiente moral único. Assim, como procura destacar Araripe, foi
"nesse ninho de volúpia [que] gerou-se uma raça de mestiços, eloqüente, ressonante,
apaixonada e um tanto cheia de paradoxos nos costumes, a qual, mestiça no sangue,
por sua vez encarregou-se de mestiçar as idéias, os sentimentos e até a política dos
brancos dominanadores da terra"137.
Entra em cena, então, a constituição desse tipo social nacional que é criado no
século XVII, o século de Gregório, sob o clima tropical. O poeta baiano canta e
satiriza esse carnaval biológico, a formação do mestiço e os tipos que o formaram: os
reinóis, os índios, os negros em seus papeís sociais: os padres, os escravos, os
senhores, os políticos. Através de sua poesia, segundo os críticos, pode-se visualizar
todos os personagens que habitavam a Bahia, o seu cotidiano, seus vícios, enfim, vê-
se o processo de formação da população brasileira cantado em suas sátiras. Gregório
viveu esse processo, "foi mais do povo", reagiu a todos os elementos que o cercavam e
pôde pintar com sagacidade o celeiro que era a Bahia para a formação do povo
brasileiro em sua esfera mais íntima. Celeiro que Araripe descreve de uma maneira tal
que é impossível não pensarmos nos posteriores escritos de um sociólogo
pernambucano.
Aí formou-se a iaiàzinha e embalada na coxa aveludada aprendeu a
ser dengosa e a nada fazer. Nesse colo macio lhe ensinaram a ser
supersticiosa, ao som das cantigas africanas e reminiscências fetichistas. Foi
nessa escola também que a menina brasileira aprendeu a ser dissimulada e a
enfeitiçar os outros com a sua indolência tropical. À negra africana
igualmente deve-se a criação do petulante e do vicioso ioiô. Com ela ensaiou-
se o adolescente nas primeiras batalhas do amor. Até o próprio sinhô velho
deixou-se seduzir pelas suas cautelosas e discretíssimas carícias, que a sinhá
da sala deixava enxergar talvez preocupada com os múltiplos serviços que a
preta lhe prestava, condimentando os acepipes e instruindo-a com a riqueza
da culinária da contra costa.138
A formação psicológica do brasileiro se dá no contato, na fusão moral de raças
sob o tempero do clima. O tipo social privilegiado nessa formação do povo brasileiro
137 Araripe Jr. T.A. Op. cit. p. 412. 138 Idem. p. 412.
64
é o mestiço. Está nele a originalidade nacional, o produto dos fatores condicionantes,
clima e raças. "O mestiço é o produto fisiológico, étnico e histórico do Brasil. É a
forma nova de nossa diferenciação nacional", diz Romero139. Como elemento da
diferenciação nacional, o mestiço é o meio de concretização da virtualidade nacional.
Ele é formado pela mistura de cinco elementos: o português, o negro, o índio, o meio
e a imitação estrangeira. Através dessa formação o Brasil deixaria de ser uma
fragmentação de indentidades diversas para se realizar como unidade mediante o
mestiço. É por isso que Romero o chama de um "agente transformador", que por sua
vez já é transformação. Mediante ele o Brasil não terá apenas uma unidade étnica –
apesar do branqueamento ser um projeto – como também uma unidade moral. Como
destaca Ventura, pela mestiçagem moral, exemplificada na citação acima, "seria
possível formar uma perspectiva crítica e seletiva diante do influxo externo e superar
o 'mimetismo' cultural e a imitação do estrangeiro"140.
Desse modo, o mestiçamento não é um fim, mas um meio. O mestiçamento é
um canal pelo qual pode-se construir a brasilidade, identificar-se uma unidade
original, não só física, mas moral. Assim, etnicamente resolvido, o brasileiro resolve-
se moralmente e espiritualmente em relação à Europa. Qualquer produto europeu,
sejam idéias ou pessoas, para contribuir para a brasilidade, passa necessariamente por
esse caldo de hibridismo. Mesmo o naturalismo e o cientificismo no Brasil adquirem
uma feição nova, mais maleável.141 É por isso que Romero defende a posição do
mestiço como a condição da vitória do branco, "fortificando-lhe o sangue para
habilitá-lo aos rigores de nosso clima". Araripe, por exemplo, afirma que foi a mulata
quem introduziu, ou guiou Gregório ao espírito brasileiro. "O ambiente brasileiro,
pois, diz ele, devia colhê-lo por meios indiretos, e o veículo dessa captação foi a
mestiça, a mulata da Bahia". Assim, é mediante o mestiço que o poeta bainano, a
melhor encarnação do nacional, se realiza. O mestiçamento o introduz nesse carnaval
biológico, nessa sociedade híbrida física e moralmente.
O mestiço é a adaptação humana aos trópicos e, como fruto de três diferentes
raças, é o meio através do qual se faz viável a instauração de uma sociedade dotada de
uma especificidade, mas que também compartilha o espaço civilizatório ocidental. O
139 Romero, S. "Introdução…"p. 156. 140 Ventura, R. Op.Cit. p. 48. 141 Araripe Jr. T.A. "Raul Pompéia, O Ateneu e o roaance psicológico". In: Op.Cit. V.2.
65
mestiço serve assim de meio de adaptação também do branco ao trópico. A condição
do elemento civilizatório é o branco, mas que não pode deixar de ser afetado pelo
mestiçamento. "O mestiço, diz Romero, que é a genuína formação histórica brasileira,
ficará só diante do branco puro, com o qual se há de confundir"142. Mediante o
mestiço, mais apto ao meio, o elemento branco poderá instaurar a civilização. Mas ao
fazê-lo, estará também misturado ao índio, ao negro e ao mestiço, herdando de cada
um características morais específicas, que constituem justamente esse elemento
original que denominam brasilidade.
Essa formação é recente e inédita. Para apreendê-la deve-se olhar para as
tradições e costumes populares. É no popular que se situa a essência dessa formação, a
brasilidade em seu estado puro. Ela reflete as contribuições das três raças, a
predominância da tradição ocidental pelo português, as lendas e fantasias dos negros e
indígenas. Gregório, por isso, se faz novamente uma fonte preciosa para a apreensão
do nacional. Sua poesia, retrato de sua vida, é essencialmente popular. Sua influência,
inclusive, não se deu nos salões letrados da colônia e do império, mas "se produziu na
massa popular pela reprodução automática, pela imitação contínua do seu modo de
poetar"143. Com a viola embaixo do braço, Gregório percorria os engenhos de
Recôncavo tocando o lundu, esse ancestral da modinha e do samba, que caía tão bem
à forma de sua poesia. Ele popularizou também a linguagem, adotando em sua poesia
as transformações oferecidas pelos indígenas e africanos. Daí também a diferenciação
na maneira brasileira de manejar a língua:
Gregório de Matos usou também de uma língua sua. As liberdades
lexicológicas e sintáticas que vão hoje penetrando no idioma português, em
ameaça flagrante de transformá-lo em língua brasileira, encontram-se quase
todas nos versos nacionais do autor do "Marinícolas". O seu vocabulário
rico, variado, cheio de termos tropicais, contém dois terços, pelo menos, dos
vocábulos de origem africana e tupi, que foram coligidos no dicionário de
Morais.144
142 Romero, S. Op. Cit. 130. 143 Araripe Jr. T.A. Op. Cit. p. 474. 144 Idem. p. 476.
66
É através das criações populares que se pode divisar o caráter nacional, ou seja, os
produtos que o clima e a mistura de raças legou à nacionalidade brasileira. Gregório é
um espírito culto, educado em Portugal, que se fez popular, assim como se fez
nativista. Daí toda sua moralidade destacada pelos críticos, moralidade tipicamente
popular e nacional: a facécia fácil, seu despredimento de fórmulas, seu desapego aos
grandes, seu riso irônico, sua superficialidade maleável, seu gênio não capaz de
produzir novas doutrinas, mas apto para desconfiar das pretensões do pedantismo
europeu; discípulo de padres que começa por debicá-los, escarnecer deles e duvidar de
sua santidade e sabedoria, que tem a coragem de atacar bispos e governadores.
Voltamos, assim, à contraposição Vieira-Matos: "Vieira às agudezas antepôs a
seriedade política e a diplomacia, e daí passou a ser hipócrita, cético, ladino; Matos
propôs à veia cômica, família, amigos e dignidade pessoal, demoliu o sossego e criou
o inferno na própria vida social"145. Ao atacar bispos e governadores, Gregório foi
condenado socialmente. Seu nativismo e abolicionismo avant-la-lettre não poderia
encontrar na Bahia do século XVII os canais de recepção apropriados. Araripe se
referencia a ele como um fauno, que saía pela Bahia a apontar os vícios de todos, e
graças aos seus versos poder-se-ia "estabelecer a filiação dos vícios nacionais, para
melhor conhecê-los e eliminá-los". Gregório de Matos era o fauno tropical por
excelência.
Fauno em toda a parte que aparecia, na política, nas artes, na praça
pública, no fôro, na vida particular, a sensação que Matos produzia era a
mesma que o deus Silvano produzia nos pastores da Arcádia, quando o
caprípede, roçando os chavelhos nos gravetos das árvores, quebrando com o
pé fendido as palhas secas, despertava os habitantes do fundo dos bosques,
lançava a inquietação em sua almas com um olhar revesso, e perseguia as
náiades e pastoras com a sua lascívia endiabrada146
Segundo Romero, ser "brasileiro é sê-lo no âmago do espírito, com todos os
nossos defeitos e todas as virtudes". Ele diz isso ao final da seção do livro na qual
analisa Gregório. Romero, tal como Araripe, não pinta um Gregório modelo de retidão
e moral. Afinal, como ele poderia sê-lo, fruto de três raças não muito privilegiadas e
145 Idem. p. 471.
67
de um clima inebriante? Encarnando os vícios e as virtudes da brasilidade, Gregório
de Matos convergiu em si os elementos da especificidade brasileira. "O seu brasileiro,
diz Romero, não era o caboclo, nem o negro, nem o luso; era o filho do país, capaz de
ridicularizar as pretensões separatistas das três raças"147. Gregório é o elemento
branco que é cooptado pelo mestiçamento à brasilidade, e, como tal, representa a
condição da instauração de um aparato civilizatório, de moldes europeus, numa
sociedade tropical de formação étnica específica.
Como modelo, Gregório encarna os valores do processo conflituoso de
construção da identidade nacional. Na busca de incorporar tipos raciais considerados
cientificamente inferiores, de identificar na mescla desses tipos a originalidade
nacional, onde o mestiçamento moral caracterizaria o tipo brasileiro, esses críticos
procuravam, através de métodos que os legitimassem dentro de uma tradição
civilizatória européia, enunciar um projeto de Estado-nação, e o faziam na construção
de uma opnião pública que pudesse reconhecer tal enunciado como legítimo.
O abolicionismo, a República e a democracia são as metas que orientam tal
produção. Faz-se a crítrica a toda ordem vigente, eclesiástica, agrária, símbolos de
uma sociedade fossilizada. Para essa geração da qual Sílvio Romero e Araripe Júnior
faziam parte, o Império e toda sua estrutura administrativa como sua produção
intelectual e cultural eram sinônimos de uma degradação que impedia a razão crítica –
a razão da opnião pública aos moldes de Kant – de estabelecer os rumos da nação. "O
poder moderardor consolidou a poesia indiana", dizia Romero, e agora se fazia
necessário desfazer essas ilusões. Era mister reformar uma sociedade que, tal como
Vieira, possuia arrogância na ação e vacuidade nas idéias, compartilhava ainda
pesadelos jesuíticos e teológicos; cujos políticos pareciam tribunos de roupeta que se
iludiam e iludiam os outros com as próprias frases148.
A atividade crítica era a forma de atuação através da qual esses intelectuais
acreditavam poder consolidar um outro projeto, propor uma nova visão e divisão do
social mediante uma leitura desse social. A subversão política pressupõe uma
subversão cognitiva, uma conversão da visão de mundo; e o discurso herético
pretende contribuir "praticamente para a realidade do que anuncia pelo fato de
146 Araripe Jr. T.A. Op.Cit. p. 404. 147 Romero, S. Op. Cit. p. 231. 148 Ver adinte a crítica de Araripe ao parlamentarismo, a partir de uma sárira de Gregório.
68
enunciá-lo, de prevê-lo e de fazê-lo prever; por torná-lo concebível e sobretudo crível,
criando assim a representação e a vontade coletivas em codições de contribuir para
produzi-lo"149. Era essa a intenção do discurso crítico produzido, desse "bando de
idéias novas". Para esses críticos, "só a crítica, a tão desdenhada crítica, nos pode
preparar um futuro melhor"150. Esta expectativa de, através de uma linguagem
autorizada, legitimar um projeto social do devir, intelectuais como Sílvio Romero e
Araripe Jr. compartilhavam de corpo e alma com seus pares europeus. Transmigravam
tais expectativas para a estrutura social brasileira do império, guardando a crença na
possibilidade efetiva de transformação do social mediante a visão desse social.
Expectativas frustadas ou não, como vai ser o caso da imensa frustração que a
República vai causar151, o fato é que tais projetos estavam em jogo e procuravam
firmar-se na relação mútua de legitimidade do anunciante e do enunciado.
3.3. Crítica
Queimada veja eu a terra Onde o torpe idiotismo Chama aos entendidos néscios E aos néscios entendidos
Sílvio Romero e Araripe Jr. são atraídos pelo caráter crítico do poeta baiano.
Gregório usava de sua sátira como forma de denunciar, zombar, desmascarar
publicamete seus adversários, os vícios da Bahia, os desmandos dos políticos, a
hipocrisia dos clérigos. Seu espírito crítico não poupava ninguém, do rei à mulata
todos eram alvos potenciais de suas sátiras. Não é pelo seu trabalho lírico que
149 Bourdieu, P. Op.Cit. p. 118. 150 Romero, S. "A literatura brasileira…"In: Op.Cit. p. 39. 151 Não se tratada essa frustração aqui. Para isso, remeto à obra de Nicolau Sevcenko, Op.Cit., Ricardo Salles, Op.Cit., e José Murilo de Carvalho Carvalho, Op. Cit e Os bestializados. O Rio de janeiro e a
69
Gregório é apreciado. Ainda que dê mostras de um belo lirismo, como lembra
Romero, o que o transforma em um fator nacional é seu lado humorístico, através do
qual exerce sua crítica.
Araripe dedica toda uma seção de seu estudo sobre Gregório a fim de discorrer
acerca das características da sátira enquanto forma literária. Para ele, inclusive, antes
de ser um fenômeno literário, a sátira "é um fenômeno fisiológico". Ele procura
detectar quais as ligações que o gênero satírico guarda com as funções fisiológicas,
mais precisamente como pode ser compreendido como uma função de sobrevivência
no processo de seleção do mais forte. Iniciado nas lições de Taine, Araripe enxerga a
arte como função biológica, reação ao meio.
A sátira, assim, seria a
Irritação do mais forte, sadio e triunfante, contra o fraco que se
arrasta na sua impotência, na sua tristeza, intanguido pelo aleijão, a sátira,
em sua expressão mais pura, não passa de malignidade produzida pela
exuberância vital, momentâneamente desviada do eixo sobre o qual giram
todos os fenômenos da vida universal152.
Ela é diferenciada do riso, o qual seria a válvula por onde se dão as descargas do
excesso de vida. A sátira começa a manifestar-se desde o irracional e ascende até o
social, onde destacam-se os sentimentos maus sobre os benignos. "A sátira é a
malignidade traduzida em estilo poético"153; é, segundo Comte, a sistematização do
espírito destruidor. Araripe afirma que é um erro comparar Gregório a Rabelais. O
riso gaulês de Rabelais, segundo o crítico, não feria senão a epiderme da humanidade.
O verdadeiro satírico, como Aristófanes e Diógenes, tem como alvo os costumes, é
um psicólogo à rebours. A sátira é um reagente da decomposição social, e Gregório de
Matos "era a sátira personificada".
Imagine-se o selvagem debatendo-se entre as arestas da sociedade e
da moral que o tentam deter e que o comprimem e ter-se-á a imegem fiel do
república que não foi. São Paulo: Cia das Letras, 1987.; Needell, Jeffrey D. . Belle Époque Tropical. São Paulo: Cia das Letras, 1993. 152 Araripe, Jr. T.A. Op. Cit. p. 390. 153 Idem. p.391.
70
satírico da espécie que eu figuro, do Gregório de Matos que a crônica, os
documentos e as respectivas obras me revelam154
Ele exemplifica essa reação satírica lembrando que Gregório acreditava em
Deus e que compôs belos lirismos religiosos. No entanto, logo que se deparava com
um clérigo pelas ruas da Bahia "esta dulcíssima unção de cristão converso desaparecia
completamente". A animalidade o assoberbava e de pronto soltava uma sátira sem se
importar se desrespeitaria a coisas reputadas santas. E isso acontecia não só em
relação ao clérigos, mas, segundo Romero, "Gregório era um acérrimo inimigo, tanto
de governadores e juízes déspotas, como de bispos e cônegos aparvalhados"155. Como
já foi mencionado, pela poesia de Gregório os críticos acreditavam poder visualizar
todo o mundo social da Bahia do século XVII. Os principais tipos sociais ali estavam
retratados em seus vícios e virtudes; os padres, as mulatas, os políticos, os reinóis, os
índios. Gregório teria denunciado a presunção das três raças, e, como ambos os
autores mencionam, remetendo ao próprio Vieira, "mais se deve às sátiras de Matos
do que aos sermões de Vieira".
Esse entusiamo pelo caráter crítico, pelo questionamento da ordem não é
gratuito. Como já foi visto, esses críticos tendem a atribuir valores a determinados
agentes históricos, aproximando-se de uns e afastando-se de outros. O juízo crítico é
essencial na prática desses intelectuais; é através dele que se pode desintegrar tanto os
floreios retóricos na literatura como as estruturas fósseis da política. A prática de uma
crítica judiciosa é que permite que uma nação esteja na corrente da história. Cada
escritor ocupa o lugar que merece no panteão literário de acordo com sua contribuição
para a evolução da idéia em sua totalidade. Gregório é exemplo disso, e os críticos que
analisamos aqui o tomam como exemplo estando voltados justamente para uma
composição social na qual procuravam validar o mérito de suas próprias idéias para a
história brasileira. Nessa intenção, faz-se necessário sobrepujar e desqualificar o que
veio antes, a geração ou movimento anterior.
Essa dinâmica é própria da experiência intelectual moderna, na qual assiste-se
uma contínua e necessária "revolução permanente", onde esses agentes especializados
procuram legitimar seus discursos e projetos deslegitimando o antecessor. Bourdieu
154 Idem. p. 396. 155 Romero, S. "Introdução…"In: Op.Cit.p. 229.
71
nos ajuda a pensar essa dinâmica ao identificar, analisando o caso francês, uma série
de disposições que orientariam as ações desses agentes. Essas interações internas de
um determinado grupo especializado (críticos, p. ex), assim como as interações desse
grupo com o espaço maior da estrutura social, formam uma rede de relações objetivas,
as quais os agentes não se podem furtar na busca por uma posição dominante.
Os críticos mais "jovens" estruturalmente, menos avançados no processo de
legitimação, fazem de seus predecessores mais velhos tudo que define a "velharia"
poética, crítica, filosófica, assim como procuram distanciar-se de todas as marcas de
envelhecimento social, como sinais de consagração interna (academia, p.ex.) ou
externa (sucesso).156O caso que analisamos aqui, segundo o argumento, poder-se-ia
ver como um estágio de conformação de tal dinâmica, sendo que para ela se instaurar
é imperativo um certo grau de tensão social. Essa tensão o Rio de Janeiro começa a
experimentar em meados do oitocentos e críticos como Sílvio Romero e Araripe Jr.
ajudam a configurá-la identificando-se como uma geração própria e reivindicando seu
espaço em oposição ao "estado" anterior. Apresenta-se, assim, uma certa homologia
entre os espaços breasileiro e europeu, respeitadas as especificidades, no que se
relaciona às expectativas e práticas de agentes que se autodenominam intelectuais.
Seguem determinados princípios que procurarei desenvolver brevemente para que
possa retornar ao caso dos dois críticos aqui analisados.
As classificações, função da prática de homens de ciências e intelectuais,
requerem agentes revestidos de legitimidade, e o peso que estes agentes terão no
espaço social, como lembra Bourdieu, depende de seu capital simbólico, isto é, do
reconhecimento, institucionalizado ou não, que recebem de um grupo157. Ao estruturar
as percepções que os agentes sociais têm do mundo social, a classificação contribui
para constituir a estrutura desse mundo, de uma maneira tanto mais profunda quanto
mais amplamente reconhecida. Classificar é um agir específico dentro de um espaço
social que se constitui de ( e é construído por) possibilidades de ação.
Se, de um lado, classificar é um ato arbitrário, sendo que não existe uma
relação direta e natural entre o objeto e seu nome, de outro, quando abordado em uma
historicidade específica, a classificação orienta-se por determinadas regras. A forma e
o seu conteúdo dependem da relação entre um habitus e um mercado definido por um
156 Cf. Bourdieu, P. As regras da arte. Sãpo Paulo: Cia das Letras, 1996. 157 Bourdieu, Pierre. A economia das trocas lingüísticas. Edusp: São Paulo, 1998.
72
nível de tensão mais ou menos elevado. Um agente que incorpora as possibilidades
dadas que regem as interações específicas do campo onde se insere, e o campo
propriamente dito, com suas relações objetivas formadas e renovadas justamente pela
ação guiada pelas disposições dos agentes. Desse modo a "forma, e a informação que
ela informa, ambas condensam e simbolizam toda a estrutura da relação social da qual
derivam sua existência e sua eficiência.158"
Pode-se mapear essas regras identificando um espaço restrito nas sociedades
modernas ocupado por agentes que se autodenominam "intelectuais". O espaço
ocupado por estes agentes de produção cultural insere-se, por sua vez, numa posição
dominada, temporalmente, no seio do campo do poder: princípio de hierarquização
externa. Mas também se processa um outro princípio, o de hierarquização interna, que
é definido pelo grau de consagração específica: o reconhecimento por seus pares.
Resulta dessa estrutura dupla de tensão a luta pelo monopólio da legitimidade.
E dada a tendência desse espaço específico de produção cultural conquistar uma
autonomia própria nas sociedades modernas, em que são reconhecidos critérios
particulares de legitimação e ação, ocorre também que se constitua uma
"institucionalização da revolução permanente"159 como modo de transformação
legítima dos campos de produção cultural, em que as "vanguardas" se sucedem umas
às outras; o que se poderia chamar, também, como ja o fizemos acima, de "luta pela
verdade".
As classificações alimentam o discurso ao mesmo tempo em que são por estes
elaboradas. Esta relação caracteriza uma complementaridade dinâmica, na medida em
que ambos se realizam na e pela língua. As classificações, ao serem organizadas na
"tessitura"160 do texto, são realmente instauradas, alimentando, por sua vez, outras
combinações e seleções. Esse processo só se realiza na expectativa de um
alocutário161, requerendo assim a presença, implícita ou explícita, do outro, que possa
reconhecer e dar legitimidade à ação discursiva.
158 Bourdieu. P. Ibid. p. 68. 159 Bourdieu, Pierre. As regras da arte. Cia das Letras: São Paulo,p. 248. 160 Ricoeur, Paul. Tempo e narrativa Tomo I. Campinas: Papirus, 1994. Com relação à importância desses dois aspectos da linguagem, seleção e combinação, remeto ao artigo de Roman Jakobson, "Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia", In: Lingüística e Comunicação. São Pulo: Cultrix,s/d., assim como ao livro de Wolfgang Iser sobre a estruturação do texto ficcional, O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. V.I e V.II, Ed.34, 1996 e 1999. 161 Benveniste, Émile. Problemas de lingüística geral II. São Paulo: POntes, 1989. Especificamente: "A linguagem e a experiência humana"e "O aparelho formal da enunciação".
73
Assim, reconhecendo o ambiente onde esses pensadores estavam imersos e
suas possibilidades de ação, podemos apreender melhor as categorias privilegiadas em
seus discursos. Ao construir uma tradição e organizá-la na narrativa, as ações dos
personagens dentro de uma intriga revelam, acima de tudo, valores que serão postos
em julgamento. A história como "mestra da vida" serve para fornecer os modelos que
contemplem as expectativas dos agentes produtores.
Na construção, portanto, da tradição literária brasileira, em seus autores e
escolas, processa-se um ato de juízo que não deixa de ser consciente por parte do
crítico. Sílvio Romero, por exemplo, já atentava para essa característica :
"Ora, determinar o lugar que deva na hierarquia dos fatos intelectuais
de um povo ocupar um escritor, é traçar um juízo, é julgar a categoria de
idéias que o escritor personifica, é designar o sentido e o alcance de sua
contribuição para a obra comum das idéias. Se, portanto, corrigir não é mister
da crítica, seu alvo é julgar"162.
Pois bem, o crítico, ao olhar para o texto – e para a pessoa do escritor – estará
atualizando suas expectativas nas possibilidades e limitações semânticas.
Na apropriação dos textos creditados a Gregório de Matos, por exemplo, cujas
características barrocas oferecem ao crítico inúmeras dobras, lacunas que cabem ao
crítico preencher, tornar-se-ão visíveis elementos valorativos privilegiados.
Acreditamos que tais textos serviram – e servem – como uma estrutura aberta
propícia à ativação do imaginário. Pensamos aqui nas considerações sobre uma
antropologia literária de Wolfgang Iser163. Para este, o imaginário é como uma
instância que precisa ser mobilizada por algo externo para que se torne presente. Tanto
o imaginário quanto o fictício não possuem definições ontológicas, pois só podemos
apreendê-los mediante uma descrição operacional das suas manifestações contextuais.
Mais do que uma faculdade, o imaginário seria algo próximo ao substrato da pré-
compreensão do mundo e da ação, no sentido que Gadamer lhe dá164. Iser privilegia a
162 Romero, Sílvio. "O naturalismo em Literatura" In: Literatura, História e Crítia. Rio de Janeiro: Imago, 2001. p. 347. 163Iser, W. O fictício e o Imaginário: perspectivas de uma antropologia literária. Rio de Janeiro: EdUerj, 1996. 164 Gadamer, H-G. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis: Vozes, 1999. A meu ver, a grande constribuição da hermenêutica às ciências humanas se encontra
74
obra literária enquanto o "algo externo" ativador, pois esta, no seu abrir espaços de
jogo de acordo com sua estrutura, pressiona o imaginário a assumir uma forma. Num
processo de "democratização da mímesis", Iser só concebe a realização da obra como
evento quando esta é ativada num determinado horizonte. A estrutura da obra exige a
entrada do leitor, não para que este fique preso aos seus sentidos, mas para que possa
explorar as possibilidades das lacunas semânticas com suas expectativas. O leitor, no
caso aqui o crítico, preenche tais lacunas seguindo as expectativas próprias de sua
posição social. Daí a poesia de Gregória se tornar um emblema que congrega as
disposições guardadas pelos críticos. Recorrendo novamente à Bourdieu, pode-se
dizer que "a eficácia mágica que a poesia freqüentemente se atribui encontra seu
princípio nessa espécie de acordo quase corporal que confere às palavras, e às sua
conotações, o poder de fazer descobrir experiências enterradas nas dobras do
corpo".165
Quando estes autores chegaram ao Rio de Janeiro, durante a década de 1880,
encontraram uma configuração social que se caracterizava, no meio cultural, pela
sedimentação de um romantismo que sustentava uma hegemonia desde a década de
trinta. Tal romantismo, como já vimos, ancorado pelo apoio imperial, materializado
no espaço do IHGB, vinha desenvolvendo um claro projeto de reconhecimento da
identidade nacional – palavra de ordem entre os letrados brasileiros.
No decorrer desse projeto, fêz-se necessária a seleção de objetos a serem
estudados; e para isso o próprio romantismo europeu dava as premissas a serem
seguidas, quais sejam: a observação da natureza, a caracterização do gênio do povo
justamente nestas categorias que Apel denomina "semi-transcendentais". Cf. Apel, Kerl-Otto. Transformação da Filosofia.Filosofia analítica, semiótica. hermenêutica.São Paulo: Loyola, 2000. Mediante uma retomada da crítica transcendental sobre a experiência cientificista que se fundamenta pela própria estrutura cartesiano-kantiana, a hermenêutica encontra instâncias outras a priori como a "pré-estrutura (Vorstruktur) transcendental da compreensão", pela tematização, por ex., da linguagem, que condicionam a possibilidade e a validade do conhecimento em uma comunidade de comunicação. Isso não implica necessariamente que a hermenêutica se transforme em algo que alimente a si mesma. Isso seria jogar o bebê com a água de banho. E na busca da própria hermenêutica de um critério, ou como diz Levi, "um sentido global", parace-me interessante pensar a partir das propostas de Habermas e Apel a possibilidade de um "progresso" no acordo mútuo entre os seres humanos, assim como no auto-entendimento (nas palavras de Hegel, o saber que sabe a si mesmo). E, desse modo, a dialética que se estabelece entre a projeção de uma comunidade ideal e a verificação de comunidades ideais de comunicação deve ser vista pela "reconstituição dialética da história social". "O caráter dialético da objetivação histórica da sociedade, diz Apel, como comunidade real de comunicação, que ora se postula, baseia-se no fato de que é possível ter apenas a história em vista, como dimensão do desdobramento objetivo da contradição entre as comunidades real e ideal de comunicação, e ao mesmo tempo como dimensão da possível dissolução dessa mesma contradição."p. 76. 165 Bourdieu, P. As Regras da Arte. p. 335.
75
em suas diversas manifestações (literatura, música, folclore) e a descrição do
desenvolvimento do espírito nacional.
Enquanto projeto oficial, o romantismo brasileiro pôde desvincular-se do teor
crítico do primeiro romantismo alemão, por exemplo, o que possibilitou sua longa
permanência dentro dos ambientes da elite166. Desde Magalhães, passando por
Gonçalves Dias, Azevedo, Alencar, Porto Alegre, Luis Delfino, entre tantos outros, o
romantismo permaneceu como domínio necessário na busca por capital cultural. Era o
modelo que configurava o discurso dominante na sociedade carioca e que cabia aos
novos críticos desqualificar.
Como participantes de um movimento que tinha como palavras de ordem o
abolicionismo, a democracia e a república, esses críticos deviam relocar os elementos
da nacionalidade num projeto próprio. A pergunta inicial que José Murilo de Carvalho
formula no início de seu livro sobre o imaginário republicano, qual seja se não "teria
havido, como acontece quase sempre, tentativas de legitimação que o justificassem, se
não perante a totalidade da população, pelo menos diante dos setores politicamente
mobilizados?"167, pode receber uma resposta clara e afirmativa. De fato, a dissolução
de representações consolidadas e a afirmação de outras requeria a busca de novas
bases de legitimação.
Formulações em processo no solo europeu de filosofias de cunho cientificista,
sejam elas comtianas, darwinistas, spencerianas, ocorriam desde o início do século
XIX e ganhavam domínio hegemônico em sua segunda metade. A hegemonia
conquistada na Europa representava, por extensão, a legitimidade fundamentada para
toda uma nova geração nos Trópicos. Geração de letrados que se apropriou da
eficiência simbólica do discurso científico:
Ao consagrar em estado de divisões e da visão das divisões, o efeito
simbólico exercido pelo discurso científico é tanto mais inevitável quanto,
em meio às lutas simbólicas pelo conhecimento e pelo reconhecimento, os
chamados critérios "objetivos" (os mesmos conhecidos pelos eruditos) são
166 Cf. Costa Lima, Luiz. O controle do imaginário. Razão e imaginação no ocidente. São Paulo: Brasiliense, 1984. O autor analisa como o caráter essencialmente reflexivo do romatismo alemão de Schlegel assume nos trópicos um caráter puramente contemplativo, sendo a natureza não mais um elemento de reflexão do sujeito cognoscente, mas um objeto cotemplativo e melancólco. 167 Carvalho, José Murilo. A formação das almas. O imaginário da República no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1990. p.9.
76
utilizados como armas: eles designam os traços sobre os quais pode fundar-se
a ação simbólica de mobilização com vistas a produzir a unidade real ou a
crença nessa unidade (tanto no seio do próprio grupo como junto aos
demais)168
Assim, esse grupo que ficou conhecido como "geração de 1870" trouxe ao seu
discurso esse poder legitimador, encontrando, no entanto, resistências por parte de
outros grupos constituídos em suas tradições. Na forma de uma "subversão herética",
o grupo extrapola a possibilidade de mudar o mundo social modificando a
representação desse mundo, opondo um projeto, um programa à visão comum pré-
estabelecida. O reconhecimento da nova posição que é posta, por parte das instituições
representantes da geração consagrada, é um componente necessário e constituinte
dessa tensão. O IHGB, por exemplo, viu com reticências a invasão dessas correntes
cientificistas. Dentro de seus domínios, "criticou-se abertamente o positivismo,
chegando o Instituto a cogitar da possibilidade de difundir algumas obras que
pudessem fazer frente a essa corrente, traduzindo-as e vendendo-as a preço mais
acessível"169. A distinção das posições é reconhecida não só pelo "opositor" mas
também pelo "oponente". É essa distinção que dá a existência social ao grupo. Daí a
necessidade de afirmarem-se contra a geração anterior, seu anti-romantismo, por mais
que seus temas em parte coincidissem. Romero assim caracteriza o momento da
inteligência brasileira até a chegada da nova geração:
A vida espiritual brasileira é pobre e mesquinha, desconceituada e
banal para quem sabe pensar sob à luz de novos princípios. – Aferida pelo
moderno método de comparação, inaugurado há muitos anos nas literaturas
européias, ostenta-se caprichosamente estéril. À força de desprezarmos a
corrente de nossa própria história e pormo-nos fora do curso das idéias livres,
eis-nos chegados ao ponto de não passarmos de ínfimos glosadores das
vulgaridades lusas e francesas; eis-nos dando o espetáculo de um povo que
não pensa e produz por si.170
168 Bourdieu, Pierre. A economia das trocas lingüísticas. Edusp:São Paulo, 1998.p. 113 169 Callari, Cláudia Regina. Op.Cit. p. 75. 170 Romero, Sílvio. "A literatura brasileira e a crítica moderna". In: Op. Cit. p. 40.
77
Araripe também se refera ao romantismo, o movimento anterior, como algo que, sob
as palmeiras ,"embalado nos sonhos da jurema, o Brasil julgava-se um gigante, um
portento, um numa, quando tudo estava a demonstrar que esse sonho não era mais do
que uma prostração de deliqüescente e um sintoma de idiotia".171
É no espírito crítico, independente, que esses letrados encontram maior
semelhança às suas prórias imagens. A crítica, a denúncia, o desvelamento de
interesses nocivos à nação são os elementos que estes intelectuais do final do
oitocentos associam à essência de sua prática. Araripe lembra a seus leitores que
Gregório não se entregou à "influência obnubilante de todas as idéias e gostos antigos
e manias eróticas contraídas nas margens do Mondego, sem que primeiro atrevassasse
uma fase de guerra crua e despiedada contra tudo quanto na colônia lhe lembrava a
vida de Lisboa". O mesmo jogo de palavras com o nome do sátiro faz Romero,
afirmando que Gregório era de Guerra. Gregório, para o crítico, era um acérrimo
inimigo, tanto dos governadores e juízes déspotas, como de bispos e cônegos
aparvalhados".
Este ver-se a si mesmo no outro, que tanto caracterizava a historiografia, não
passava despercebido aos seus autores, ainda que necessitassem das idéias de
neutralidade e objetividade. Sílvio Romero, principalmente, já alertava e assumia essa
condição do crítico de emitir juízos. A adoção do método cientificista, por mais que
servisse de instrumento heurístico legitimado na apreensão de determinada realidade,
não poderia possibilitar ao crítico fugir das expectativas e interesses do ambiente onde
estava imerso. Desse modo podemos compreender melhor o incessante "resvalo para o
subjetivismo", lembrado por Ventura, que tanto marcava esses críticos, apesar de suas
intenções de neutralidade axiológica.172Mas entendo esse subjetivismo não como
liberdades ou caprichos conscientes do ego, mas sim por aquilo que venho
denominando, via Bourdieu, de disposição. E a disposição desses autores se configura
por um campo de possibilidades passível de ser mapeado. No mesmo sentido, cito
Romero:
A mesma ciência, em toda a sua gravidade, em toda a sua aparência
sombria e inquebrantável, seria uma coisa frívola, seria um luxo de ociosos,
171 Araripe Jr. T.A. "Sílvio Romero polemista". In: Op.Cit. V.1 p. 324. 172 Ventura, R. Op.Cit. p. 101.
78
uma pedanteria de abstratos, se ela não pudesse interessar, não pudesse
melhorar as sociedades humanas. (…) O observador, qualquer que ele seja,
sábio ou romancista, deve ter uma filosofia, deve ter uma intuição do mundo
e da humanidade capaz de dar um sentido às suas pesquisas, capaz de
fornecer-lhe um ideal de progresso e de libertação.173
É pautado nessa posição que Romero vai direcionar sua críticas a dois autores que me
parecem bastante significativos para perceber essas disposições às quais me refiro:
Luís Delfino e Machado de Assis. O primeiro ocupa hoje um lugar escondido na
plêiade literária brasileira, o segundo é seu mais célebre representante. No entanto,
para Romero ambos situavam-se no mesmo patamar, pois, compartilhando das
velhacarias de uma geração condenada, não poderiam contribuir para o pensamento
brasileiro.
Ambos os autores representam para Romero a decadência patente do
movimento romântico. O "sr, Machado de Assis, diz Romero, é um desses tipos de
transição, criaturas infelizes, pouco ajudados pela natureza, que não representam, não
podem representar um papel mais ou menos sailente no desenvolvimento intelectual
de um povo"174. Ele é assim um tipo de transição, agarrado ainda às concepções e
vícios de um movimento acabado que se quer atual, denominando-se realista. Como
tal, ele já não pode desenvolver um trabalho literário condizente com as necessidades
da nação, mas apenas uma mistura de estilos degradante que evidencia sua falta de
idéias. "Meio clássico e meio romântico, precisando de ambos os lutadores,
prendendo-se a um pelo monomania do lusismo da língua, e a outro pelos arremedos
imaginativos, conservou-se o amigo e o imitador dos dois inimigos!… Isto é colocar a
mão sobre a ferida intelectual do Homem"175. Designa assim Machado como
representante de um grupo de letrados que perdeu o compasso com a realidade
brasileira, dependente ainda de concepções românticas e de uma elite ultrapassada que
se quer também intelectual. "Sem convições políticas, literárias ou filosóficas, não é,
nunca foi um lutador. Esse auxiliar de todos os ministérios, esse rábula de todas as
idéias, é, quando muito, o conselheiro da comodidade letrada".176Machado é
173 Romero, Sílvio. "O naturalismo em literatura". In: Op. Cit. p. 353. 174 Idem. p. 358. 175 Romero, S. Op.Cit. p. 359. 176 Idem. p. 360.
79
identificado por Romero como um arrivista das letras, que tem como única orientação
a conquista de um espaço dentro de uma elite ignorante e incompetente. Luís Delfino
recebe as mesmas críticas, nunca foi um lutador e não apresenta em absoluto idéias; a
única coisa que o distingue de Machado é que ele não precisou galgar as escadarias da
elite letrada carioca, sendo como era "o único poeta rico em todo o Brasil".
Para finalizar este capítulo, e ilustar mais uma vez esse preenchimento de
lacunas (possibilidades) semânticas com as expectativas guardadas pelo crítico, se
mostra interessante apresentar a leitura que Araripe Jr. fez de uma poesia de Gregório
de Matos e o grau de convergência que o crítico encontra com a sua situação
contemporânea. Araripe era um ferrenho presidencialista e possuía um grande ranço
em relação ao parlamentarismo, que considerava uma das piores mazelas para a
política brasileira. Na leitura da sátira, ele vai encontrar mais uma crítica avant-la-
lettre de Gregório, pois este reconheceu no ambiente baiano o perigo potencial do
parlamentarismo:
É verdade que em 1681 ninguém podia pensar em vida parlamentar,
nem muito menos na sua expressão de decadência: mas não menos certo
parece que , embora sem orgãos legais, essa função viciosa se ensaiava na
índole de uma nação e na educação de um grupo177
A sátira se chama "Os gatos", que Gregório teria escrito "como alegoria para
fustigar 'os ladrões da República'". A cena se passa em um telhado de Nize, onde
ocorre uma reunião de gatos ao cair da noite. Há toda uma organização nessa reunião,
e o deão, gato macilento e de cara chata, preside a sessão, estando os demais em boa
ordem. O silêncio reina, não se escuta nem um miau. Até que um "gatinho reinol"
pede a palavra mas não consegue exercê-la, pois um outro gatinho, "muito entendido
em regimentos" a toma para si. Depois de ter se apresentado, narra suas mazelas e faz
um pedido ao parlamento:
Eu sou gato virtuoso Que a puro jejum sou magro:
Não como por não ter quê,
177 Araripe Jr. T.A. "Gregório de Matos". In: Op.Cit.p. 466.
80
Não furto por não ter quando.
E como sobra isto hoje Para me terem por santo,
Venho pedir que me ponham No calendário dos gatos.
Seguem-se a este gato tantos outros narrando suas mazelas e fazendo requerimentos
semelhantes; exibições pessoais e retaliações mesquinhas. No entanto, apesar de todo
o falatório, "não se sabe com que fim se reúne tão venerando cabido; os seus membros
miam, tornam a miar, sem que chegem a provar o que com tais parlendas tem de
comum a República". Mas então um tiro de bacamarte é troado no ar, disparado por
um soldado malfazejo. "Susto geral; decompõe-se a audiência, e cada qual, aos saltos
e aos pinchos, pelo vento fora, vai, de telhado em telhado, procurando seu
esconderijo"178. Após alguns minutos, depois da correria geral, os gatos começam a se
lembrar de olhar para trás, analisar a situação, e aos poucos, mediante uma contra-
senha, "miau aqui, miau ali", aos poucos vão se reunindo. "Quem os dissolvera?",
provavelmente um desalmado, "que não compreeendia as sutilezas da palavra". Se
reuniriam novamente? Um gato mui prudente logo aconselha:
Cada qual para a sua cabana
Que hoje de boa escapamos
Outros, no entanto, insistem na reunião. Mas logo começa a chover e rapidamente
voltam a dissipar-se,
Porque de água fria
Há medo gato escaldado
Toda essa cena salta aos olhos de Araripe como uma visão apurada e crítica
dos vícios do parlamentarismo. "Não sei que melhor pintura se poderia hoje fazer do
parlamentarismo transacto", diz o crítico. O capadocismo fermentado no tempo de
Gregório, e presente ainda na política brasileira, é que permite, segundo Araripe, uma
aproximação tão clara. Segundo ele, não há um só dos aludidos na sátira que não
recorde um parlamentar do segundo império. Daí aquela vacuidade de idéias,
manifestada num palavrório verborrágico por "gatos macilentos" que só pensam em
conseguir colocar seus nomes no "calendário dos gatos". E Gregório profetizou
81
(profecia retrospectiva de Araripe, na verdade) toda essa estrutura política imperial , a
qual o crítico também nutre desgosto, com todos os detalhes.
Gregório profetizou-o; e deve-se dizer até que antecipou a história de
nossa primeira constituição nos dois fatos culminantes, um acidental e outro
permanente. A constituiete de 1822 sabemos que se deixou dissolver por um
soldado malfazejo, embora rei, mas amigo das armas e cavaleiro. No segundo
império tivemos muitas ocasiões de verificar efeitos dos chuviscos imperiais,
– as chamadas dissoluções para consulta da nação.179
Dessa forma poesia barroca de Gregório da Matos serviu, assim outros textos
que compunham a tradição litarária brasileira, como um meio semântico através do
qual Sílvio Romero e Araripe Júnior puderam realizar suas expectativas, atribuindo e
encontrando valores, na realização de uma leitura crítica. Como agentes autorizados –
na conquista dessa autorização – para praticar tal leitura, esses críticos a faziam
direcionando-se à uma dupla legitimação. De um lado, legitimando-se a si próprios
enquanto intelectuais, mediante a adoção de métodos e a construção de espaços
especializados; de outro, legitimando, também mediante esses métodos e espaços, a
projeção de uma idéia de nacionalidade e a afirmação dos projetos políticos a ela
vinculados, quais sejam, democracia, abolicionismo e república.
178 Idem. p. 469.
82
4. Conclusão:
"o mundo, apesar de sua variedade e de sua aparente desordem, tem constantemente uma certa coerência em todas as suas partes" Goethe
Para encerrar o argumento desenvolvido nesta monografia tecerei algumas
considerações que creio poderem contribuir para a questão inicialmente colocada.
Apoiado na leitura tripartite realizada acima da obra de Araripe Júnior e Sílvio
Romero, onde priviligiei a experiência histórica, a construção da nacionalidade e a
atividade crítica, procurarei problematizar um pouco a proposta de Morse – e não
refutá-la – no que diz respeito ao estudo da atividade intelectual na cidade do Rio de
Janeiro durante o século XIX. Problematizá-la no sentido de possibilitar a
compreensão das expectativas que orientavam a prática destes intelectuais, sem
reduzi-las a uma disposição coletiva e invariável.
179 Araripe Jr. T.A. Op.Cit. p. 469.
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Recapitulemos assim a proposta de Morse à qual me refiro. Segundo este
brasilianista, as sociedades ibero-americanas foram formadas assumindo um forte
caráter holista que teria se enraizado profundamente durante a colonização nas
estruturas institucionais e práticas sociais. As sociedades ibero-americanas, dessa
forma, teriam uma configuração própria onde se destacariam a doutrina e a ordem
social. Essa estruturação essencialmente hierárquia estaria de tal forma arraigada à
sociedade ibero-americana, que ela condicionaria ainda hoje o pensamento e os
projetos políticos nessa sociedade. Morse sugere ainda – e aí entra a discussão a que
me proponho contribuir – que a moda do positivismo e do cientificismo que se deu no
século XIX pode ser melhor compreendida como uma retomada dessa disposição
ibérica do século XVII do que como uma obediência conveniente e superficial à
ciência européia.
Morse, a meu ver, enxerga corretamente a especificidade dos processos
americanos. Dando grande importância à questão da tradição180, ele concebe os
processos de formulação de identidade americana dentro das configurações próprias a
essa sociedade, recusando entendê-los como simples cópias da "periferia" em relação
ao "centro". Essas formulações procuravam responder assim a questões e expectativas
internas. O que, contudo, me parece um pouco precipitado (precipitação talvez
necessária à proposta de Morse, a qual visa uma síntese, a construção de um modelo
que, como nos lembra Lévi-Strauss, não se confunde com a realidade empírica), é
nivelar um campo de tensões que se fez, segundo minha análise, bastante presente na
atividade intelectual brasileira do final do oitocentos. A leitura que me propus realizar
aqui dos dois críticos me leva a discordar da afirmação de que:
Se os latino americanos do fin-de-siècle se preocuparam com o
arcaísmo e a entropia, isto se deveu, podemos supor, ao fato de eles não
enxergarem promessas redentoras de origem popular e nativa nem poderem
antecipar com certeza como suas sociedades urbanas modernas
reproduziriam uma dinâmica da mudança.181
180 Cf. Velho, Otávio. "O espelho de Morse e outros espelhos". Estudos Históricos. Rio de janeiro, vol.2,n.3,1989.p.94-101. 181 Morse, Richard. "As cidades periféricas como arenas culturais: Rússia, Áustria, América Latina." Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol.8, n.16, 1995, p. 217.
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Pelo corte que optei, circunscrevendo a produção de Sílvio Romero e Araripe
Júnior entre o começo da década de 1880 até meados de 1890, creio poder afirmar que
estes críticos procuravam não só antecipar as formas como suas sociedades poderiam
re-produzir uma dinâmica da mudança, como também enxergavam (e precisavam
enxergar, no caso do intelectuais como os aqui analisados) promessas redentoras de
origem popular (bem entendido, não o popular como agente politicamente ativo da
mudança, mas sim como objeto a partir do qual se constitui a identidade nacional;
orientação necessária para a validade de projetos políticos). Os debates e propostas
sobre quais seriam as formas governamentais mais eficientes para colocar o Brasil na
corrente da história, e principalmente a elaboração discursiva da identidade brasileira
como projeto, pautada na formação da miscigenação como meio de realização do
nacional nos moldes civilizatórios modernos, europeus, eram focos privilegiados na
prática crítica desses intelectuais.
Isso não quer dizer, no entanto, que posso inverter a afirmação de Morse. Pois,
ao contrário do brasilianista, o qual transita em suas análises com uma concepção de
ideologia – que ele próprio aproxima à dos frankfurtianos –, me vejo mais tentado
metodologicamente a seccionar essa concepção totalizadora voltando-me para as
ações interessadas dos indivíduos analisados em um contexto tensional. Desse modo,
parace-me mais profícuo reconhecer e reconstruir diferentes disposições presentes em
um espaço comum do que subsumir essas diferenças em uma suposta disposição
totalizadora à qual os agentes estariam condicionados. Não nego a disposição
detectada por Morse; pelo contrário, condidero-a de grande importância e validade,
mas como constituiente de um contexto no qual outras possibilidades estão e
procuram se consolidar.
Entender a apropriação das teorias cientificistas por parte dos intelectuais
brasileiros como uma retomada da disposição ibérica, leva a pensarmos a sociedade
como uma estrutura estruturada, e não como uma estrutura estruturante. Ou seja,
corre-se o risco de negligenciar o caráter tensional próprio ao ambiente urbano onde
os agentes de cultura estavam imersos, o campo de possibilidades caracterizado pela
construção de trajetórias sociais fundadas na conquista de legitimidade. O uso de
teorias cientificistas estaria assim nivelado a um substrato comum que perpassaria
toda diversidade.
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Se, de outro modo, procura-se entender o uso dessas teorias, não pela tomada
de uma disposição ideológica comum, mas mediante a apreensão das lógicas e da
construção dessas lógicas de legitimação da ação, nas diferentes formas em que se
apresenta no social, creio que podemos nos aproximar de uma maneira mais segura
das experiências próprias dos agentes estudados.
Procurei orientar-me neste sentido na análise da produção de Romero e
Araripe. Tendando me esquivar tanto do enquadramento dos críticos em uma
disposição ideológica única, quanto de um afrouxamento da atividade crítica, onde as
posições e ambigüidades estariam reduzidas aos caprichos dos egos, utilizei-me de
alguns instrumentos heurísticos que me permitissem identificar, através da ação (em
forma de texto), determinadas características das disposições específicas dos dois
críticos aqui analisados. Disposições que só podem ser entendidas mediante outras,
pois configuram e são configuradas pelas lógicas relacionais próprias ao campo da
atividade específica (e na intersecção deste campo com outros).
Assim, o problema que foi colocado no início desta monografia, qual seja: a
convergência da necessidade de se identificar a identidade local, nacional, com a
prática de se vincular a focos identitários de matrizes européias, pode ser melhor
entendido. Esse jogo de diferenciação e pertencimento se deu de formas diferentes não
só ao longo de uma temporalidade, marcada por movimentos como o modernismo,
mas também sincronicamente, como estratégias de agentes na busca por capital
simbólico.
Como já foi salientado nos capítulos anteriores, as experiências histórica e
intelectual modernas, assumindo seu caráter reflexivo e servindo como modelo de
legitimação de ações sociais, desenvolveu-se tendo em seu bojo uma tensão peculiar.
Ao mesmo tempo em que se buscava através da prática intelectual uma verdade,
baseada em procedimentos que configuravam a história como um campo de saber
específico, tendo, inclusive, a Universidade - no caso brasileiro as Academias e
Institutos - como seu locus privilegiado, não subtraiu-se daí o reconhecimento de um
posicionamento consciente (relativamente consciente, pensemos aí na noção de
habitus: a internalização das lógicas relacionais) do pesquisador em relação a
interesses. Tal tensão é instrumentalizada e realizada na prática do intelectual. Não lhe
escapa em nenhum momento; nem no trato com os documentos, nem na
"compreensão" de tais documentos e, muito menos, na escrita: exteriorização
86
semântica de uma tomada de consciência. E o desempenho dessa proposta de tomada
de consciência realiza-se por completo no grau aceitação por parte de um público
(especializado e não especializado) ao qual é voltada. A busca da convergência de
uma "verdade", fruto da pesquisa histórica, com os interesses e necessidades práticas
da sociedade, e dos agentes de cultura, busca expressa já na pergunta de Schiller (O
que é a história universal? E com que finalidade a estudamos?), revela-se assim como
um móbil fundamental da experiência intelectual moderna.
O problema colocado pode assim receber uma tentativa de resposta. O
processo de diferenciação e pertencimento, como presente nos autores aqui analisados,
está vinculado a um duplo processo de legitimação que tem como fim a conquista de
capital simbólico (a aceitação dos agentes enquanto autorizados e do enunciado como
válido). A adoção de métodos cientificistas, e sua aplicação sobre a questão nacional e
seus dilemas, permitia – ou pelo menos procurava permitir – que esses autores se
legitimassem enquanto intelectuais autorizados, tendo por referência a prática
intelectual européia; assim como também legitimavam o próprio enunciado enquanto
projeto válido de visão do social. Desse modo, a leitura do social é uma prática
interessada, não no setido maquiavélico do termo, no qual os fins e os meios são
desproporcionais. Aqui, ao contrário, a crença nos meios é o que legitima a meta
desejada.
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