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IDENTIDADES DE FRONTEIRAS: ESCRITURAS HÍBRIDAS Maria Nazareth Soares FONSECA 1 RESUMO: O trabalho propõe uma discussão sobre imagens da América Latina, construídas por movimentos de nomeação da identidade do continente, e procura esta- belecer a aproximação entre o real maravilhoso, de Alejo Carpentier, as sonoridades criollas da poesia de Nicolas Guillen e a pintura de Wifredo Lam. Essas diferentes visões da cultura latino-americana são associadas às metamorfoses de Caliban, visto como símbolo da "nossa América mestiça", e à energia de Exu, o orixá das encruzilha- das. Todos esses movimentos são considerados processos de resistência à descaracterização, fortalecidos na era das grandes redes de contato do mundo globalizado. PALAVRAS-CHAVE: Identidade cultural; mestiçagem cultural; metamorfose; resistência. Mediante os cruzamentos entre sincretismos, dialógica e polifonia, a identidade nunca é idêntica a si própria. Ela varia constantemente: a viagem é a grande metáfora da identidade, e ao seu fim não voltamos à forma anterior. (Massimo Canevacci) Uma das questões que têm freqüentado os debates dos Estudos Culturais ressalta a mudança de focalização dos estudos latino-americanos que se transferem dos chamados centros hegemônicos para a circulação em "novas avenidas crítico-deológicas", como bem o assinalou Mabel Moraria (1995). Novos mapas de investigação teórica se traçam, procurando alcançar territórios que, de algum modo, pareciam ter ficado à deriva enquanto se discutiam, do exterior, imagens do continente pensado sempre como uma totalidade. Uma das marcas desses novos estudos seria a preocupação com as chamadas identidades localizadas ainda que já integradas à consciência de que, cada vez mais, nos situamos em encruzilhadas em que o local se confronta com o geral. Nesse processo de afirmação de movimentos redefinidos pela globalização, de insistência nos aspectos que configuraram os fenômenos de (des)territorialidade, parece ser pertinente voltar a refletir sobre este processo mesmo de pensar o continente, reafirmando suas particularidades. Talvez assim se possa compreender que muitos dos valores defendidos como padrão de uma especificidade latino-americana continuam a circular, fundando, no entanto, uma nova maneira de estar no mundo. Daí que o mesmo movimento de mundialização, que elimina fronteiras e alarga territórios antes bem demarcados, não consegue evitar que questões localizadas exponham a urgência de uma reestruturação territorial e apontem as fraturas que se expõem no paradigma da era atual. Nesse sentido, atento às complexidades do novo modelo seletivo de 1 Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/Minas Gerais. Itinerários, Araraquara, 15/16:109-120,2000 109

Identidades de Fronteiras

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  • IDENTIDADES DE FRONTEIRAS: ESCRITURAS HBRIDAS

    Maria Nazareth Soares FONSECA 1

    RESUMO: O trabalho prope uma discusso sobre imagens da Amrica Latina, construdas por movimentos de nomeao da identidade do continente, e procura esta-belecer a aproximao entre o real maravilhoso, de Alejo Carpentier, as sonoridades criollas da poesia de Nicolas Guillen e a pintura de Wifredo Lam. Essas diferentes vises da cultura latino-americana so associadas s metamorfoses de Caliban, visto como smbolo da "nossa Amrica mestia", e energia de Exu, o orix das encruzilha-das. Todos esses movimentos so considerados processos de res is tncia descaracterizao, fortalecidos na era das grandes redes de contato do mundo globalizado.

    PALAVRAS-CHAVE: Identidade cultural; mestiagem cultural; metamorfose; resistncia.

    Mediante os cruzamentos entre sincretismos, dialgica e polifonia, a identidade nunca idntica a si prpria. Ela varia constantemente: a viagem a grande metfora da identidade, e ao seu fim no voltamos forma anterior. (Massimo Canevacci)

    Uma das questes que tm freqentado os debates dos Estudos Culturais ressalta a mudana de focalizao dos estudos latino-americanos que se transferem dos chamados centros hegemnicos para a circulao em "novas avenidas crtico-deolgicas", como bem o assinalou Mabel Moraria (1995). Novos mapas de investigao terica se traam, procurando alcanar territrios que, de algum modo, pareciam ter ficado deriva enquanto se discutiam, do exterior, imagens do continente pensado sempre como uma totalidade. Uma das marcas desses novos estudos seria a preocupao com as chamadas identidades localizadas ainda que j integradas conscincia de que, cada vez mais, nos situamos em encruzilhadas em que o local se confronta com o geral.

    Nesse processo de afirmao de movimentos redefinidos pela globalizao, de insistncia nos aspectos que configuraram os fenmenos de (des)territorialidade, parece ser pertinente voltar a refletir sobre este processo mesmo de pensar o continente, reafirmando suas particularidades. Talvez assim se possa compreender que muitos dos valores defendidos como padro de uma especificidade latino-americana continuam a circular, fundando, no entanto, uma nova maneira de estar no mundo. Da que o mesmo movimento de mundializao, que elimina fronteiras e alarga territrios antes bem demarcados, no consegue evitar que questes localizadas exponham a urgncia de uma reestruturao territorial e apontem as fraturas que se expem no paradigma da era atual. Nesse sentido, atento s complexidades do novo modelo seletivo de

    1 Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais - PUC/Minas Gerais.

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    incorporao/excluso de reas, Pablo Ciccollela chama a ateno para o fato de que o fenmeno da globalizao deve ser pensado como plural, ainda que aspire a construir redes mundializadas:

    ...este proceso de transformacin acelerada (globalizacin-modernizacin via integracin) no es homogneo, sino que estaria produciendo una nueva fragmentacin social-territorial, donde aparecen regiones, sectores sociales y sectores productivos que se modernizan, que se incorporan al sistema mundializado de relaciones econmicas y culturales, que en trminos reales se integran con economias vecinas; y regiones, sectores sociales y productivos que quedan excludos de este processo. (Ciccolella, 1997, p.60)

    Desse modo, o mesmo movimento que visa a edificar a nation-ness globalizada n o pode impedir que as identidades emergentes e os novos movimentos de cunho social intensif iquem os confl i tos do mundo em que vivemos, impulsionando processos de r e d e f i n i o de fronteiras e uma nova terr i torial idade para os f e n m e n o s s c i o - c u l t u r a i s . E certo que as macro-identidades, de alguma forma, e sga ram-se nas malhas da g loba l izao , mesmo que o f i m das barreiras ao l ivre c o m r c i o n o modif ique o ca r te r nacional da propriedade das empresas transnacionais (Lahorgue, 1997). Paralelamente, um movimento de a f i r m a o de micro identidades se afirma em busca da re func iona l i zao de lugares e da redef in io de e s p a o s . Sobre esse processo, interessante lembrar que M i c h e l Foucault, j na d c a d a de oitenta, referia-se s heterotipias, aos e s p a o s h e t e r o g n e o s de l o c a l i z a e s e r e l a e s , e destacava o papel dos m i c r o e s p a o s , v is tos como uma espacia l idade efetivamente v iv ida e socialmente criada, na c o n c r e t i z a o de mecanismos de v i g i l n c i a e poder discipl inar (Apud Soya, 1993). Ou mesmo perceber os movimentos que se afirmam em regies f ronteir ias como as zonas de c o m r c i o entre duas margens, duas reg ies , dois pa ses ou nos processos de rev i t a l i zao de movimentos de feio ident i tr ia que se c o n s t r e m no l imiar entre o privado e o p b l i c o . E o caso bem particular da a f l unc i a de q u e s t e s localizadas no e s p a o dos media onde se exibem os problemas particulares, sem nenhuma profundidade, sem nenhuma re f l exo . Somos cada vez mais prisioneiros dos mecanismos da velocidade que nos impede de d is t inguir o que e o que n o . Na tela de T V ou na p g i n a do j o rna l as imagens cada vez mais perdem a in t ens idade , pois n o p r o v o c a m nem espanto nem grande in teresse (Sarlo,1997).

    E com a inteno de refletir sobre a diferena cultural mais do que reconhecer a diversidade do continente latino-americano que o presente trabalho procura retomar alguns textos considerados fundantes da identidade do continente, buscando inseri-los em percursos mais amplos, abertos por novos i t inerr ios t raados na poca atual. A proposta mapear algumas p rodues - ter icas ,

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    artsticas, culturais - significativas em momentos decisivos do processo de busca da identidade latino-americana e com elas refletir sobre as novas identidades culturais que se configuram por encontros, choques e t rans ies . Com alguns textos revisitam-se pontos de vista e espaos em t r ans fo rmao e indaga-se sobre processos de descarac te r i zao /ca ra te r i zao de novas identidades que se efetivam no mundo atual, quando se acirram os conflitos inevi tveis no aparato dos Estados-nacionais. A o se repensar a di ferena cultural pelo vis dos atuais processos de t rans formao dos espaos , toma-se a impureza como significante de entrecruzamentos e inter-relacionamentos que explici tam os atuais "e spaos vivenciais de hibridao cultural" bem caracterizados por Ciccolella, quando reflete sobre as mu taes da economia capitalista tal como se mostra no momento atual (Ciccolella, 1997, p.62).

    Um trao dessa impureza, todavia, j se mostra na pintura do cubano Wifredo Lam, no entrecruzamento das heranas advindas de sua identidade "criolla" e de sua formao europia, perceptvel, em muitos de seus quadros, no forte apelo linguagem surrealista. Nessa encruzilhada poss vel perceberem-se diversos elementos da ritualidade atvica de ascendncia africana, vivida na pequena aldeia cubana onde nascera o pintor, sob a tutela de curanderos y sacerdotes de la santera, para compor outros dilogos, novas transgresses. Deixando aflorar, em sua pintura, o componente africano, este ganha outra dimenso e ultrapassa tanto os estratos populares negros cubanos, como a ruptura surrealista de que freqentemente se vale. E sobretudo por explorar as metamorfoses e os hibridismos to peculiares cultura latino-americana que os quadros de Lam criam, como observa Fernando Ortiz, "un nuevo gnero", o da "naturaleza viva", muito claro em criaes como "La Jungla"(fig.01), com seus seres hbridos nos quais a separao entre o vegetal, o animal e o humano mostra-se dissolvida, deixando aflorar o repertrio das tradies culturais de origem africana. Lam transfere para seus quadros a re tr ica da proliferao tpica do real maravilhoso, visto por Alejo Carpentier como um recurso esttico capaz de reproduzir a especificidade da cultura americana e de salientar os seus contrastes com relao Europa. O conceito em Carpentier procura identificar a profuso de elementos dspares, prprios de culturas heterogneas, e o potencial de prodgios que se fazem refrao lgica cartesiana. Essas mesclas podem ser certamente encontradas em vr ios quadros de Lam, quando mergulham na diversidade americana e dissolvem os traos rgidos, inadequados figurao do real maravilhoso, para apreender as pulsaes da natureza, vista como um espao de concretudes msticas e mitolgicas. Por essa via muitos quadros do pintor cubano fazem-se "narrativas da identidade hbrida americana" porque neles esto em interao - no distanciados mas interrelacionados - diferentes significantes culturais.

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    Figura 1. Wifredo Lam. La jungia, 1942-1944 (detalhe).

    U m contraponto aos painis hbridos de Lam poderia ser buscado no "ralisme merveilleux" haitiano, visto por Jacques Stphen Alxis como uma esttica intuitiva, assumida pelo povo para apreender a realidade, filtrada j por tendncias prprias s culturas americanas. Ainda que essas tendncias apontem para a in teno de (re)nomear espaos do Novo Mundo a partir da diferena que os constitui, cada uma delas enfatiza significantes mltiplos e feies plurais, pois o ideologema buscado sem dvida o da mest iagem.

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    O mesmo ideologema configuraria a "expresso americana", de Lezama Lima, principalmente quando o terico cubano acentua, no barroco americano, as feies ndia e negride, vendo-as enquanto reterritorializao de traos culturais trazidos pelos colonizadores ou como uma apetncia diablico-simblica, conforme expresso de Irlemar Chiampi (1998, p.7). Tambm as sonoras criaes da poesia afro-cubana de Nicolas Guillen, evidentes em poemas de Motivos de son (1930) e em outros de Sngoro cosongo (1931) feitos com a recolha de elementos do substrato africano j transculturados na ilha de Cuba, para explorar as potencialidades sonoras da l ngua oral. Vejam-se os versos de "Negro bembn": "Po qu te pone tan brabo,/ cuando te disen negro bembn,/si tiene la boa santa,/negro benbn" e outros construdos com a apropriao de ritmos e sonoridades prprios s camadas populares em Cuba, para ressaltar o legado musical advindo das t rad ies africanas, em processo de t ransformao, todavia. Por isso seus "versos mulatos" produzem-se com os significantes que entram na composio tnica de Cuba, pensada j como metonmia da Amrica mestia, da "nuestra Amrica mestiza", como bem denominou Jos Marti , para acentuar as transformaes, as mutaes culturais hbridas do continente.

    Uma discusso mais recente da mest iagem cultural foi encaminhada por Jos Fernandes Retamar, quando retoma a figura do Caliban, criada por Shakespeare para nomear o escravo selvagem e deformado em The Tempest (1611). Essa figura disforme, em diversas releituras da pea, passa a simbolizar o mundo americano e, principalmente, os movimentos em defesa de traos de sua diferena cultural. O corpo deformado de Caliban, em criaes de autores como Renan, {Caliban, 1878), Jean Guhenno, {Caliban habla, de 1928), ou na identificao, feita pelo argentino Anibal Ponce, de Caliban com as massas sofridas do continente latino-americano, transita entre verses que degradam ou supervalorizam a diferena, pensando-a sempre em comparao com a Europa.

    importante, nesse sentido, rever, j sem as paixes polticas que marcaram a sua publicao, o texto Psychologie de la colonisation, de Octave Mannoni, escrito em 1950. Nessa obra, Mannoni salienta o que chama de disposies neurticas inconscientes que induzem o dependente a se adequar imagem que dele faz o opressor. Ao cunhar a expresso "Complexo de Prspero" e nomear com ela o desejo do dominado de se submeter ao poder do dominador, Mannoni acaba por patologicizar as relaes colonizador/colonizado e alocar, no colonizado, o que poderia ser definido como um grmen de inferioridade. Essa viso determinista rechaada por Frantz Fanon no clebre "Du prtendu complexe de dpendance du colonis" (1952) e tambm, de maneira indireta, pela reflexo atual de Homi Bhabha (1990), quando explicita os processos de produo do discurso colonial e os aparatos que legitimam esse discurso, acentuando o carter de recusa de diferenas raciais/culturais/histricas desse discurso.

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    Noutra direo, fortalecendo-se a identificao da mestiagem cultural pelos traos de Caliban, o livro Los placeres dei exlio, de 1960, de George Lamming, destaca alguns movimentos de afirmao da identidade calibanesca da Amrica. O traado da identidade americana pelas feies de Caliban assume os pressupostos da negritude com a pea Une tempte; adaptationpour un thtre ngre, de Aim Csaire, escrita em 1969, a qual traz para a cena a figura de um Caliban negro e insere, na histria criada por Shakespeare, a figura de Exu, atribuindo a esse orix a energia advinda dos negros marrons, que constmram com seus atos uma forma de resistncia opresso colonial, na histria das Antilhas francesas. Essa energia prpria de um Caliban-Exu pode ser percebida no texto de Jos Fernandez Retamar, "Caliban", publicado na Revista Casa de las Amricas, de 1971. Retomando diversos movimentos de afirmao da identidade do continente, Retamar reafirma com a figura de Caliban as expresses culturais que expressam modos de ser do continente e, ao mesmo tempo, faz da personagem emblema da transgresso que desloca o ato de Prspero - que deu a palavra e um nome a Caliban - e o silenciamento imposto expresso natural do escravo. Assim Caliban, como j apontaram vrios crticos, falou antes mesmo de ganhar de Prspero o direito palavra pois sempre se mostrou resistente ao controle que o dominador lhe imps.

    Pode-se dizer, portanto, que em todos esses textos onde se discute a questo identitria tal como se mostra em diferentes reflexes produzidas na Amrica Latina, delineia-se j uma viso em que limites e fronteiras mostram-se esgarados por significantes de culturas comps i tas , detalhadas em mosaico. Tomados como indicadores de transgresso, ainda que se quisessem fixados numa tradio, viabilizam interaes e ressemantizam traados de uma ordem consolidada em pontos fixos. A potica da Relao (1990), de Edouard Glissant, da Martinica, retoma esses pontos numa construo em rede, rizomtica, para aludir s interrelaes culturais. A metfora do rizoma, em seu pensamento minimiza a idia de enraizamento porque acentua os deslocamentos em direo ao outro, as ligaes, os contatos intra e interculturais: " com a imagem do rizoma que se pode descrever a identidade, que no se relaciona com raiz, mas com a relao" (Glissant, 1990, p.31).

    Muitos dos textos referidos at aqui e que de algum modo foram entendidos apenas enquanto valorizao das origens culturais do continente americano podem ser relidos a partir de uma abordagem mais propcia interlocuo, percepo de identidades de fronteiras que circunscrevem uma espacialidade multilingue, multirracial, multi-histrica. Essa inteno fica evidente no romance Texaco (1992), do martinicano Patrick Chamoiseau, quando procura apreender as manifestaes culturais como um sistema em rede, em que vrios pontos indiciam o trnsito, os deslizamentos. interessante perceberem-se os deslocamentos como marcadores da "sintaxe crole" do romance, e como desconstruo dos pontos caractersticos dos sistemas de compartimentao herdados do colonialismo. Por outro lado, mescladas so tambm as expresses de alguns remanescentes de quilombos, no Brasil, em que a tradio, recuperada por rituais que procuram reestabelecer

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    a ordem dos ancestrais, tambm atravessada por injunes do mundo atual que impe s consagraes do grupo uma coreografia de espetculo para propiciar o consumo esperado pelos turistas. Esses movimentos inter-relacionais so percebidos por Nestor Canclini (1996) como prprios das culturas hbridas, nas quais a "a identidade, mesmo em amplos setores populares, poliglota, multi-tica, migrante, feita de elementos mesclados de vrias culturas" (p.142).

    Talvez por isso seja pertinente retomar alguns dos movimentos aqui nomeados para apreend-los em novas formas de interao produzidas pelo mundo globalizado, nas quais Caliban, em transformao constante, expe uma identidade mutante que corporifica esforos de manuteno de alianas de grupos: Caliban transmudando-se em Exu, metaforiza a fora que resiste completa descaracterizao. Muito dessa energia de Exu traduz esforos de manuteno da identidade de grupo e persiste em vrias comunidades de negros, emergentes quilombos contemporneos, que, no Brasil, vm sendo estudados por pesquisadores brasileiros e estrangeiros empenhados em melhor conhecer os processos de transmutao cultural aqui desenvolvidos. Sirva de referncia a pesquisa intensa realizada na comunidade dos Arturos, de Minas Gerais, definida pelos estudiosos Edimilson de Almeida Pereira e Nbia Pereira de Magalhes Gomes como aqueles que resistem cultivando o legado dos antecessores (1988, p.13), para no perderem inteiramente a tradio. Os estudiosos, na introduo do livro que dissemina a longa pesquisa realizada por eles, chamam a ateno para a dupla condio dos habitantes da Comunidades dos Arturos que, sendo mineiros e brasileiros, vo se transformando em assalariados, pois muitos j trabalham nas indstrias da regio de Contagem, na grande Belo Horizonte, em Minas Gerais. Os habitantes da Comunidade esforam-se por manter viva "a moral ligada aos interesses do grupo familiar" (p.13), sem acreditar, todavia que possam se manter imunes s assimilaes e transformaes. Algumas tradies cultivadas por essa Comunidade, como o ritual de capina ou o Joo do Mato, a celebrao do Camdombe , a Libertao, e a festa de Nossa Senhora do Rosrio so adaptadas aos tempos novos que foram a abertura a inovaes e transformaes. Mesmo a presena constante entre eles de visitantes e pesquisadores expe as tradies ao risco de se transformarem em espetculo para os consumidores que afluem comunidade, desconhecendo os mandamentos do sagrado que a se ritualiza.

    E possvel pensar esta fora que impulsiona os movimentos de resistncia descaracterizao como integrada aos movimentos de Exu, tomado aqui como um princpio dinmico da tenso que caracteriza os modos de insero da herana africana no continente latino-americano e particularmente no Brasil, mesmo quando acuada por mudanas inevi tveis e vivendo de forma aguda a tenso entre preservao e transformao. A esse movimento de transmutao se refere o antroplogo Edimilson de Almeida Pereira (1998), quando analisa as transformaes impostas s comunidades tradicionais como a dos Arturos, em Minas Gerais, para salientar o que nelas se mostra como um quadro de inter-relaes culturais, como mecanismos que compatibilizam a vivncia do tradicional com os hbitos ditado pela era do consumismo desenfreado.

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    interessante observar que por essas rotas migrantes Exu reassume as metamorfoses, pe rcep t ve i s nas f iguraes de plantas e animais em quadros de Wifredo Lam ou mesmo nas linhas retas de esculturas de Emanoel Ara jo que, ao relerem o barroco, traduzem a insp i r ao africana da cultura brasileira ( f ig . 2) . E o horror vacui, t o presente nos romances de Carpentier, e x p e - s e nos o ra t r ios de Ronaldo Rego quando rompem com a t r ad i o ca t l i ca para registrar a p r e s e n a dos deuses do p a n t e o africano na cultura do pa s ( f ig .3) . E nos detalhes da linguagem pls t i ca dos anjos negros de M a u r n i o Ara jo ( f ig . 4), herdeiros de Alejadinho e de Manuel da Costa Ata de , e t a m b m imersos na realidade p lu r i tn ica do Brasi l .

    Figura 2. Emanoel Arajo. Ritoexu, 1986.

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    Todas essas formas de transgresses j prenunciadas nos versos negros de Guillen, nos quadros de Lam, na tenso entre o real maravilhoso de Carpentier e o devir "p lu tn i co" de Lezama Lima, e mais recentemente nos in te rcmbios e hibridaes caractersticos dos tempos de mundial izao cultural, so expresses calibanescas que, assumindo a energia de Exu, funcionam como metforas da "encruzilhada semitica das culturas negras nas Amr icas" (Martins, 1995, p.56).

    Torna-se necessrio considerar que a recuperao de textos e manifestaes que expressam o desejo de definio da identidade pluritnica do continente latino-americano pode fazer avanar a reflexo sobre os processos de transculturao, de c r i o u l i z a o - como defendem os t e r i cos das Ant i lhas - e descrever uma espacialidade de fronteiras provisr ias , flutuantes, que intenta recontar outros processos de significao, uma histria que ficou soterrada pela preponderncia dos nobres relatos de culturas pensadas como uma totalidade.

    Essa indagao, ao se situar no processo atual de novas configuraes territoriais, nos processos de circulao dos bens simblicos vistos como mercadoria com preo dado pelo mercado, poder nos informar sobre os modos como se reinstala a questo da identidade em culturas que tm de enfrentar a precariedade de suas fronteiras e as transformaes inevitveis de seus valores e tradies.

    Resta saber se essas reflexes que procuram fazer da impureza o significante das "feies dcteis e maleveis" das culturas e dos bens produzidos por elas, podero dialogar com os chamados discursos fundadores da identidade latino-americana e com eles repensar os modos como as feies localizadas integram-se aos novos cenrios propostos e impostos pela globalizao

    FONSECA, M . N. S. F. L'Identits de frontires: critures hybrides. Itinerrios, Araraquara, n.15/16, p. 109-120,2000.

    RESUME: Cet article propose une discussion sur les images de l'Amrique Latine que les diffrentes manifestations de la qute d'identit du continent ont construites. On y essaie d'tablir des rapports entre le rel merveilleux d'Alejo Carpentier, les sonorits croles de la posie de Nicolas Guilln et la peinture de Wifredo Lam. Ces visions de la culture de l'Amrique Latine sont associes aux mtamorphoses de Caliban, symbole de "notre Amrique mtisse" et l'nergie de Exu, l'orishas des carrefours. Tous ces mouvements sont considrs des procs de rsistance contre la perte d'identit surtout l'poque de la mondialisation.

    MOTS-CL: Identit culturelle; mtissage culturel; mtamorphose; rsistance.

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    Crditos das ilustraes

    Figura 1 - La jungia - quadro de Wifredo Lam (Cuba).

    Figura 2 - Ritoexu - escultura de Emanoel Arajo (Brasil).

    Figura 3 - Oratrio - composio em madeira policromada de Ronaldo Rgo (Brasil).

    Figura 4 - Anjos negros - esculturas em madeiras de Maurino Arajo (Brasil).

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