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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO FACULDADE DE EDUCAÇÃO IDENTIDADES MUSICAIS DE ALUNAS DE PEDAGOGIA: MÚSICAS, MEMÓRIA E MÍDIA MARIA CECILIA DE ARAUJO RODRIGUES TORRES . Porto Alegre (RS) 2003

IDENTIDADES MUSICAIS DE ALUNAS DE PEDAGOGIA: MÚSICAS ... · universidade federal do rio grande do sul programa de pÓs-graduaÇÃo em educaÇÃo faculdade de educaÇÃo identidades

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

    FACULDADE DE EDUCAO

    IDENTIDADES MUSICAIS DE ALUNAS DE PEDAGOGIA:

    MSICAS, MEMRIA E MDIA

    MARIA CECILIA DE ARAUJO RODRIGUES TORRES

    .

    Porto Alegre (RS) 2003

  • 2

    MARIA CECILIA DE ARAUJO RODRIGUES TORRES

    IDENTIDADES MUSICAIS DE ALUNAS DE PEDAGOGIA:

    MSICAS, MEMRIA E MDIA

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Educao, Linha de Pesquisa Estudos Culturais em Educao, da Faculdade de Educao da Universidade Federal do Rio Grande do Sul para obteno do ttulo de Doutor em Educao. Orientadora: Profa. Dra. Rosa Maria Hessel Silveira

    Porto Alegre (RS) 2003

  • 3

    DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAO-NA-PUBLICAO BIBLIOTECA SETORIAL DE EDUCAO da UFRGS, Porto Alegre. BR-RS T693i Torres, Maria Cecilia de Araujo Rodrigues Identidades musicais de alunas de Pedagogia : msicas, memria e mdia / Maria Cecilia de Araujo Rodrigues Torres. - Porto Alegre : UFRGS, 2003. 194 f. Tese (doutorado) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de Educao. Programa de Ps-Graduao em Educao, Porto Alegre, BR-RS, 2003. Silveira, Rosa Maria Hessel, orient. 1. Identidade musical - Aluno - Graduao - Pedagogia. 2. Estudos culturais. I. Silveira, Rosa Maria Hessel. II. Ttulo. CDU - 78:378.18 ________________________________________________________________ Bibliotecria: Jacira Gil Bernardes - CRB-10/463

  • 4

    MARIA CECILIA DE ARAUJO RODRIGUES TORRES

    IDENTIDADES MUSICAIS DE ALUNAS DE PEDAGOGIA:

    MSICAS, MEMRIA E MDIA

    _________________________________________________________________________

    Profa. Dra. Rosa Maria Hessel Silveira Orientadora PPGEDU/UFRGS

    _________________________________________________________________________

    Prof. Dr. Alfredo da Veiga-Neto PPGEDU/UFRGS

    _________________________________________________________________________

    Profa. Dra. Elisabete Maria Garbin PPGEDU/UFRGS

    _________________________________________________________________________

    Profa. Dra. Jusamara Vieira de Souza PPG/Msica/UFRGS

    _________________________________________________________________________

    Profa. Dra. Beatriz Daudt Fischer PPGEDU/UNISINOS

    _________________________________________________________________________

    Professor Allan Luke University of Queensland/Australia and National Institute of

    Education, Nanyang Technological University, Singapore

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    DEDICATRIA

    Dedico esse trabalho memria de meus pais: minha me Yvonne, que to cedo partiu, mas que sempre esteve to presente em minhas lembranas, compondo com ternura as cenas do cotidiano, e ao meu pai Aluzio, entre outros aspectos que me trazem tanta paz, pela sua paixo em captar imagens e sonorizar cenas, registrando, assim, nossas memrias familiares. Dedico de maneira muito especial aos nossos queridos filhos, Beatriz, Flavio e Paula, que so o maior estmulo para perseguir a busca de metas e ousar na vida. A Marco, incansvel companheiro nesta densa trajetria de vida em comum, pelo seu apoio, incentivo e amor, sempre com uma palavra de estmulo para que me aventurasse por esses caminhos de pesquisa.

  • 6

    AGRADECIMENTOS

    Agradeo, de maneira muito especial, Profa. Dra. Rosa Maria Hessel Silveira, minha competente e amiga orientadora, que me recebeu neste curso e na caminhada de orientao, pontuada por suas observaes criteriosas, consideraes, questionamentos e sugestes de leituras atuais, ora garimpando textos em pginas da internet, ora emprestando seus prprios livros, mas sempre me ouvindo nos momentos de dvidas e me incentivando para que aqui chegasse. /os componentes da banca examinadora do presente estudo: Ao Prof. Dr. Alfredo Veiga-Neto, por sua leitura atenta e pertinente, contribuindo e trazendo sugestes no momento da defesa do projeto. Profa. Dra. Elisabete Maria Garbin, que, com sua determinao, competncia e amizade me incentivou e contagiou para que me aventurasse pelos caminhos dos Estudos Culturais. Profa. Dra. Jusamara Vieira de Souza, por sua amizade, confiana irrestrita e apoio, sem o qual no teria iniciado esta trajetria de pesquisa. Profa. Dra. Beatriz Daudt Fischer, por ter participado da qualificao do projeto e trazido contribuies importantes para o trabalho. Ao Professor Allan Luke e Professora Carmen Luke que, de maneira marcante, me acolheram e me orientaram com competncia e carinho durante o perodo de sanduche doutorado na UQ/AU. Vocs estaro para sempre nas minhas memrias! Ao grupo de alunas entrevistadas, pela disponibilidade e vontade com que participaram dessa pesquisa, possibilitando desta maneira que esse trabalho criasse corpo. Meu carinho e obrigada especial tambm para a professora da disciplina! s queridas amigas e colegas, pessoas especiais, que permearam as minhas lembranas em diferentes momentos da minha vida, cada uma com as suas particularidades, fazendo parte da constituio dessa tese: Leila Bergmann, Maria de Lurdes Wietschky, Lygia Carpena, Graciela Ormezzano, Gldis Kaercher, Letcia Freitas , Suyan Pires, Maria Helena Paes, Maria Isabel Dalla Zen, Lia Scholze. Para vocs o meu carinho! /os querida/os irm/os Glria, Rosa, Adonias e Francisco, pelas lembranas de cumplicidade e carinho. s/aos colegas de orientao, com carinho pelo apoio e sugestes pertinentes, agradeo as contribuies de todos! Ao curso de Ps-Graduao em Educao da UFRGS, em especial coordenadora Dra. Malvina Dorneles e s/aos funcionrias/os Mary, Neuza, Ceclia, Ione, Margarete, Marisa, Eduardo e Douglas, sempre atenciosos e prestativos. s professoras da linha de pesquisa dos Estudos Culturais Marisa Costa, Maria Lucia Wortmann, Ndia G. Souza, Iole Trindade e aos colegas, pelos momentos de aprendizagem e convvio nas aulas, seminrios, cursos e confraternizaes.

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    equipe do NECCSO, em especial s bolsistas Jaqueline, Viviane e Damiana, pelo apoio em todos os momentos. s queridas companheiras e amigas do Grupo de pesquisa do Cotidiano, que carinhosamente convivem comigo h tantos anos.

    s/os colegas e amiga/os do NIUE, no nominada/os por falta de espao, com as quais eu tenho o privilgio de conviver e aprender. Obrigada pelo carinho e incentivo!

    Ao querido grupo de colegas e amigos da FUNDARTE, aqui no nominadas/os aqui por falta de espao, com quem compartilho o espao de trabalho, amizade e aprendizagem. bibliotecria Michele Dias Medeiros, pelo auxlio na reviso bibliogrfica. s colegas e amigas, educadoras musicais e professoras, com as quais tive o privilgio de trabalhar, aprender e trocar experincias ao longo da minha vida profissional, em diferentes espaos. Aos amigos queridos e ex-professores de msica Ermano Soares de S, Theresia de Oliveira e Helder Parente, por todo carinhoso trabalho na minha trajetria musical. Aos alunos e alunas, de diferentes escolas, cursos, instituies, pocas e faixa etria, com os quais convivi e fui tornando-me professora. CAPES, pelo apoio para a realizao do sanduche-doutorado na Austrlia, durante o ano de 2001, atravs da bolsa PDEE. Ao CNPq, pela concesso de auxlio ao Projeto Integrado Textos, Discursos e Identidades em Educao, do qual essa pesquisa faz parte (processo 479123/012). H, ainda, outros, que aqui no foram citados, mas que participaram e contriburam muito para este trabalho. Obrigada a todos vocs!

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    SUMRIO

    INTRODUO 12

    JUSTIFICATIVA 19

    1. Conectando minhas memrias e os tpicos da pesquisa 19

    2. Voltando no tempo: Minhas memrias musicais 20

    CAPTULO I A MDIA NO COTIDIANO DE CRIANAS E

    ADOLESCENTES: O que eu gosto de ouvir? 29

    1. O olhar dos Estudos Culturais sobre a Mdia 29

    2. Discursos da Mdia e Globalizao 40

    CAPTULO II - UM OLHAR SOBRE AS IDENTIDADES 48

    1. Identidades Culturais 51

    2. Msica e Identidades: a msica e sua capacidade interpeladora 53

    3. Identidades de professoras: cenas da sala de aula 58

    4. Identidade e corpo: danando ao som daquela msica 63

    5. Subjetividade e identidade: autores e idias 68

    6. Entre identidades e memrias 71

    CAPTULO III - METODOLOGIA E CAMINHOS DE PESQUISA 74

    1. Entrevistas: vozes e memrias 75

    2. Trabalhando com pesquisa biogrfica 80

    CAPTULO IV APRESENTANDO AS ENTREVISTADAS: QUEM

    SO ELAS? 88

    1. A escolha dos nomes: Yasmin, Capitu ou Fernanda 90

    2. Organizando os mapas, delineando as identidades 91

  • 9

    CAPTULO V - EXPLORANDO E ANALISANDO O MATERIAL 113

    1. Resgatando os sons da infncia: Ah, eu me lembro bastante de meu pai

    ouvindo chorinho... 116

    2. Sons e ritmos da minha adolescncia: A reunio era animada por um.

    toca- discos ou por uma eletrola para discos de vinil 122

    3. A msica nossa de cada dia: as adultas e suas escolhas 130

    4. Lembranas musicais e religiosidade: quando soube que cantar era

    rezar duas vezes ... 136

    5. Cenrios musicais: entre rdios, toca discos, gravadores, fitas,

    walkman e CDs 143

    6. A presena dos discursos musicais da famlia, da escola, dos amigos,

    dos filhos e dos companheiros 148

    7. Qual o meu gosto musical hoje? Sou bastante ecltica 153

    8. Entre memrias musicais e crenas pedaggicas : Ah, tem

    msicas lindas que eu utilizava 156

    9. As msicas como espaos de conflitos e compartilhamento. 163

    10. Reflexes sobre as msicas em suas vidas: silncios e pausas,

    o que queriam contar? 166

    CONSIDERAES FINAIS 169

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 174

    ANEXOS 185

    1. Roteiro bsico da entrevista 186

    2. Termo de consentimento informado 190

    3. Repertrio do CD 193

  • 10

    RESUMO

    O tema principal desta pesquisa conhecer e delinear os diversos aspectos que constituram e constituem as identidades musicais de um grupo de vinte alunas de um curso de Graduao em Pedagogia, atravs das narrativas de si orais e escritas. Nesse sentido, meu objetivo maior foi o de analisar como essas atuais ou futuras professoras se narram e escrevem acerca de suas memrias sob a forma de autobiografias musicais, reconstruindo lembranas das diferentes pocas de suas vidas.

    O referencial terico que permeou esse trabalho estruturou-se em muitos autores como Allan Luke, Carmen Luke, Simon Frith, Lucy Green, Jorge Larrosa, Stuart Hall, Kathryn Woodward, Douglas Kellner, Brian Roberts, Ivor Goodson e Pat Sikes, Leonor Arfuch, Nstor Garcia Canclini, Lawrence Grossberg, entre outros. O captulo I aborda aspectos da mdia no cotidiano de crianas e adolescentes, incluindo os diferentes estilos musicais. No captulo II, trago alguns olhares sobre o tema das identidades, examinando as identidades culturais, a capacidade interpeladora da msicas, aspectos das identidades de professoras, as relaes entre corpo e identidade e os entrelaamentos entre subjetividade, memrias e identidades. O captulo III aborda a escolha da metodologia e dos caminhos de pesquisa, onde tive a inteno de articular diferentes campos de estudos e abordagens como o dos Estudos Culturais, dos Estudos da Mdia, da Anlise dos Discursos e da Educao Musical. Optei por utilizar entrevistas orais e autobiografias musicais inseridas num campo de trabalho da pesquisa biogrfica e das narrativas de si. No captulo IV, apresento as vinte entrevistadas, alunas de um mesmo Curso de Pedagogia. No captulo V, realizo a anlise das entrevistas e autobiografias, intercalando exemplos com as temticas da infncia, da adolescncia, da vida adulta, das lembranas musicais e religiosidade, dos cenrios e artefatos culturais, dos discursos musicais da famlia, escola e amigos, as memrias musicais e as crenas pedaggicas e a msica como espao de conflitos e compartilhamento. Nas Consideraes Finais, retorno ao amplo material recolhido atravs das narrativas de si orais e escritas, e penso nela, na perspectiva dos Estudos Culturais, como uma condio de possibilidade para algumas articulaes, e quem sabe outros estudos, entre as reas da Educao Musical e da Pedagogia.

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    ABSTRACT

    The main purpose of this study is to find and to delineate the many aspects that constitute the musical identities of a group of female graduation students of a regular course of Pedagogy, through the oral and written narratives of themselves. In this sense, my main objective was to analyze how these present or future schoolteachers narrate and write about their memories in the format of musical autobiographies, reconstructing remembrances of different times of their lives.

    I concentrated in a group of twenty students of a Pedagogy course and I mapped their relations with music of different times and origins, since childhood, adolescence, and until the adult life, according to their discourse. Additionally, I had the intention to analyse the way that these identities were constituted along different moments of life, as well as to understand how are they interrogated and incessantly redefined by multiple discourses presented by musical media.

    The theoretic referential that based this study was structured on many authors. Among them I mention Allan Luke, Carmen Luke, Simon Frith, Lucy Green, Jorge Larrosa, Stuart Hall, Kathryn Woodward, Douglas Kellner, Brian Roberts, Ivor Goodson, Pat Sikes, Leonor Arfuch, Nstor Garcia Canclini, and Lawrence Grossberg.

    Chapter I focuses media aspects in the children and adolescent daily lives, including different musical styles and what I like to hear.

    Chapter II brings some views on Identities, looking at cultural identities, music and

    its capacity of interpellation, and constitution of identities.

    Chapter III is dedicated to discussing methodology choice and research pathways, intending to link different fields and approaches of studying Cultural Studies. I looked, specifically, on strategies utilizing oral interviews and musical autobiographies.

    Chapter IV presents twenty interviewed students, all of them students in the same Pedagogy course and I present twenty maps, organized to allow visualization of their narratives that delineate the music identities of this group.

    Chapter V proceeds on analysis of interviews and autobiographies, intercalating

    examples retrieved from interviews and autobiographical excerpts.

    The Final Considerations bring back to the vast material retrieved from oral and written narratives. I emphasize that this present research study in no manner exhausted this theme, and I think on it in a perspective of Cultural Studies, as one condition of possibility for articulations and other studies in the fields of Music Education and Pedagogy. .

  • 12

    INTRODUO

    Se no conseguir escrever o prefcio, isto significa que no tem ainda idias claras sobre como comear. E, se as tem, porque pode pelo menos suspeitar onde chegar. Com base nessa suspeita, precisamente, que dever rascunhar a introduo, como se tratasse de um resumo do trabalho j feito. No tenha medo de avanar demasiado. Sempre poder alterar seus passos () introduo e ndice sero continuamente reescritos medida que o trabalho progride (Eco, 1977, p.84).

    Esta tese de doutorado apresenta e discute os resultados de pesquisa realizada junto

    a um grupo de alunas de um Curso de Graduao em Pedagogia, no qual busquei investigar

    e analisar a constituio das identidades musicais, atravs de narrativas de si, orais e

    escritas. Ao longo do trabalho, procurei mapear as relaes de tais alunas com as msicas

    de diversas pocas e origens, desde a fase de infncia, de adolescncia, at o momento atual

    da vida adulta, conforme seus discursos. Tive a inteno tambm de procurar analisar o

    modo como essas identidades se constituram e se constituem no decorrer de diferentes

    momentos de vida, assim como entender como elas so interpeladas e incessantemente

    redefinidas pelos mltiplos discursos veiculados pela mdia musical.1

    A escolha deste tema para a tese de doutorado emergiu de muitas questes que ouvi

    formuladas por professoras do ensino fundamental, da rede pblica e privada, em diferentes

    lugares e contextos da regio Sul do Brasil, com as quais convivi e trabalhei como

    educadora musical, em diversas disciplinas, cursos e oficinas com temticas musicais nos

    ltimos cinco anos. Percebi e fui registrando na memria vrias afirmaes e perguntas

    recorrentes, nas vozes dessas professoras, oriundas de cursos de Magistrio e de Pedagogia:

    sries iniciais, em diferentes tempos e espaos, como: Eu no sei cantar, sou desafinada e

    no tenho voz, no sei msica mas gostaria de trabalhar com ela, O que fazer com as

    msicas da mdia? Devo trabalhar com as letras e msicas erotizadas? 2 Em mdia musical, para essa pesquisa de tese, quero englobar as manifestaes musicais veiculadas pelos programas de TV e de rdio, shows, grupos, bandas de rock, gravaes, jingles, videoclipes, trilhas sonoras e CDs.

  • 13

    Simultaneamente, essas mesmas vozes de professoras diziam que as msicas faziam

    e continuavam fazendo parte de suas vidas, atravs de comentrios e exemplos de melodias

    que selecionam e gostam de ouvir, cantar, tocar e danar. Nessas escolhas eu observava a

    presena dos mais diversos estilos musicais: o rock e suas variaes, o rap, a msica

    sertaneja, a chamada msica romntica, o pagode, o samba, as manifestaes musicais

    inseridas na sigla de MPB, a msica nativista, a msica clssica, o ax, dentre outros

    gneros, que esto presentes e so divulgados nos mltiplos discursos miditicos musicais.

    A partir dessas colocaes, estabeleci como um dos tpicos para pesquisa a forma

    como esse grupo de alunas da Pedagogia, muitas delas tambm j atuando como

    professoras do ensino fundamental, relembrava e relatava suas experincias e escolhas

    envolvendo msicas, atravs dos sons e imagens de programas de TV, de cantores e

    artistas, de shows musicais, da audio e consumo de discos e CDs. Nesse sentido, meu

    objetivo maior foi o de analisar como essas atuais ou futuras professoras se narram e

    escrevem acerca de suas memrias sob a forma de autobiografias musicais, reconstruindo

    lembranas das diferentes pocas de suas vidas.

    Larrosa (1996) nos diz que, pelo fato de lembrarmo-nos de um tempo passado que

    est entrelaado s nossas memrias, este seria um tempo narrado que se articula em uma

    histria e participa, pois, da constituio destas identidades.

    Kenski (1997), em um de seus estudos sobre memrias de professoras, ressalta que

    as memrias humanas so constitudas pelos diversos aspectos coletivos e sociais de nossas

    vidas. Desta forma, creio que nas relaes cotidianas no podemos deixar de sentir que as

    chamadas tecnologias velhas ou novas transformam o modo como compreendemos ou

    representamos nossas lembranas.

    Destaco, mais uma vez, que o meu propsito nesta pesquisa de tese foi o de analisar

    e mapear as identidades musicais de um grupo de mulheres e, dessa maneira, organizar suas

    narrativas orais e escritas entrelaando-as aos mltiplos discursos musicais veiculados pela

    mdia, s lembranas da famlia, s prticas religiosas, s lembranas da escola e dos

  • 14

    amigos, s suas crenas e prticas pedaggicas. Essas vozes foram ouvidas em diferentes

    espaos, tempos e foram articuladas a diferentes prticas sociais, culturais e educacionais.

    A respeito dos textos miditicos e do campo dos Estudos Culturais, possvel

    conectar tais temticas com reflexes de Giroux (1995), o qual observa que:

    se ocorreu uma mudana enorme no desenvolvimento e na recepo daquilo que conta como conhecimento, ela tem sido acompanhada por uma compreenso de como definimos e aprendemos uma grande quantidade de textos eletrnicos, auditivos e visuais que se tornaram uma caracterstica determinante da cultura da mdia e da vida cotidiana atual (p.90).

    No enfoque de Fairclough (1995), para a anlise de discursos e textos, os textos no

    precisam ser s lingsticos; qualquer artefato cultural uma gravura, um edifcio, uma

    obra musical pode ser visto como um texto. O autor continua a sua linha de pensamento

    articulando a mdia e o uso de linguagem com outras formas semiticas e enfatiza que a

    televiso o exemplo mais bvio, combinando linguagem com imagens visuais, msica e

    efeitos sonoros.

    Discutir sobre identidades e identidades musicais implica conhecer e analisar os fios

    que tecem e compem as biografias musicais, com as diferentes escolhas e lembranas do

    grupo de mulheres/professoras selecionadas aqui como campo de estudo. Ao mesmo

    tempo, essa discusso implica fazer as articulaes com autores e suas concepes de

    identidades numa perspectiva cultural, considerando, por exemplo, o que Hall (1997), ao se

    posicionar sobre diferenas e identidade, afirma: identidades so construdas atravs das

    diferenas, e no fora das diferenas(p.4).

    Ao longo desta pesquisa, vrios temas, campos de estudo, conceitos e palavras

    como identidades/identidades musicais, subjetividade, globalizao, discursos e anlise dos

    discursos, narrativas/vozes, memrias, mdia, msicas, estudos culturais, juventude, corpo,

    fs, professoras, habitus, poder, cultura, linguagem, dentre outros, foram discutidos,

    analisados, entrelaados e (re)significados. Minha idia foi a de apresentar um espao

    compartilhado por diferentes autores, idias, concepes, dvidas, reflexes e

  • 15

    aprofundamento terico, espao este que procurarei harmonizar sob os olhares e as

    perspectivas dos Estudos Culturais.

    Desta maneira, cabe aqui citar um primeiro questionamento.

    Ser que possvel falar em identidades e identidades musicais, sem deixar de

    articular questes relacionadas diferena? A literatura nos mostra exemplos de pesquisas

    que enfocam escolhas e gostos diferentes como a de Frith (1996), a respeito da

    constituio das identidades musicais. O autor ressalta em seu trabalho as conexes

    existentes entre msicas e identidades, numa perspectiva de criar possibilidades para que

    diferentes performances2 se possam delinear no cenrio da ps-modernidade.

    Ao final desse trabalho deparei-me com a diversidade das vozes desse grupo de

    mulheres, atravs de suas narrativas, que se foram constituindo, bem como compondo

    como numa pea musical as suas autobiografias musicais. No momento da anlise das

    preferncias e dos gostos musicais, com as escolhas individuais e em grupo, pude perceber

    as ligaes destas com os discursos musicais veiculados pela mdia e entrevi tambm

    fragmentos das histrias de dolos, de entrevistas, de videoclipes, capas de CDs e gravaes

    de shows, dentre os variados artefatos culturais.

    Ao abordar essa temtica dos dolos, senti necessidade de me valer de autores que

    discutem aspectos da cultura juvenil, como Pais (1993), que descreveu tais aspectos, como

    os lugares freqentados pelos diferentes grupos, Garbin (2001), que trabalhou com as

    identidades musicais juvenis e os chats de msica, ou como Hudak (1999), que analisou a

    formao de f-clubes ou comunidades sociais, com a demarcao das identidades musicais

    em torno de interesses e escolhas comuns. Alvermann e Hagood (2000) desenvolveram

    pesquisas com adolescentes na sala de aula, destacando quais so suas escolhas musicais e

    elencando algumas caractersticas comuns aos integrantes desses f clubes. Ao longo do

    seu texto, os autores sugerem uma reflexo por parte dos professores que estejam

    2 Performance, na perpectiva desse trabalho, est ancorada na concepo de Small (1997), para quem um fazer msica diferente dos padres de execuo instrumental e vocal, com um grau de virtuosismo e rigoroso desempenho tcnico.

  • 16

    trabalhando com o tema e destacam questes como: Qual ser a definio para um f-

    clube? Como se pode trabalhar com essa temtica na sala de aula? Qual ser a faixa etria

    representativa desses grupos? De que maneira o/a professor/a poder articular essas

    discusses envolvendo as manifestaes musicais?

    J um outro tema que emergiu em algumas falas e lembranas das entrevistadas foi

    em relao ao poder da linguagem e da chamada antilinguagem como nos exemplos do

    rap, funk e hip-hop com seus discursos de rebeldia e letras que carregam/misturam

    mensagens contra as drogas, violncia, AIDS, misria, evaso, abandono da escola,

    atravessados por outros discursos com palavras, gestos e expresses que ajudam a marcar

    movimentos musicais e delimitar lugares e identidades. Nesse sentido, acredito que as

    diferentes manifestaes musicais e, neste caso, a msica popular, tm produzido estilos e

    obras que geram polmicas e debates, como exemplifica a reportagem do Jornal Folha de

    So Paulo/Folhateen, em que o colunista identificado como Jnior afirma:

    J escrevi e aqui repito: no tenho nada contra os erros de portugus do funk, nem contra sua suposta temtica machista. Se isso fosse feito com alguma competncia esttica e criatividade, nenhum problema. Mas o grau de indigncia mental do funk no Rio , de fato, algo que desafia qualquer definio... O funk3 no vale nada como movimento social, musicalmente no passa de samba enredo disfarado e sua potica, com perdo da palavra, apenas um atestado da lama em que o sistema educacional brasileiro afundou. (Folhateen, 23.04.2001)

    Eis um exemplo de como julgamentos musicais mobilizam e podem desencadear

    representaes sobre padro lingstico, padres estticos, concepes de educao, etc.

    3 Funk uma roupa, um bairro da cidade, o jeito de andar e uma forma de tocar msica (...) ficou conhecida como funk(Vianna, 1988). Surgido nos Estados Unidos em 1968, derivou-se do soul, radicalizando suas propostas iniciais com trilhas sonoras dos movimentos civis em favor de negros americanos. Com ritmos marcados, despontou no Brasil na dcada de 70; no comeo, associado somente a favelas e violncia, atualmente, atravs da cultura eletrnica (porque bailes funks compem-se de toca-discos, DJs e MCs), com suas batidas e ritmo eletrnico, desceu dos morros e tomou conta da programao de rdios e tem acentuada audincia entre jovens, principalmente da periferia urbana (Garbin, 2001, p.83).

  • 17

    Outro aspecto que esteve articulado tanto s narrativas das alunas, quanto s

    lembranas da fase da adolescncia, foram algumas das questes sobre o envolvimento do

    corpo nas suas relaes com a msica, como nos exemplos de alguns estilos musicais desde

    o final da dcada de 80, atravs de danas como a lambada, das coreografias que surgiram

    no incio da dcada de 90 no Brasil, com o lanamento de msicas e grupos de danarinas e

    danarinos e seus movimentos sensuais. So relaes entre msicas, ritmos e expresses

    musicais com e atravs de um corpo.

    Como j enunciei anteriormente, essa pesquisa tambm buscou articular as msicas

    veiculadas pela mdia e as identidades musicais do grupo de alunas entrevistadas,

    analisando aquelas em diferentes pocas e espaos, percebendo as implicaes do local e

    do global nas performances, leituras e releituras. Ao longo do trabalho, algumas questes

    foram se delineando como essa, por exemplo: Ser que todas as entrevistadas so

    interpeladas pelos mesmos discursos e da mesma forma? Em relao a esse tema, minha

    inteno foi a de localizar alguns discursos miditicos numa perspectiva ps-crtica,

    envolvendo as relaes de poder e buscando embasamento em textos de autores como

    Luke, A. (2000), Luke, C. (2000) e Foucault (1999).

    No tive, em momento algum, a pretenso de fazer generalizaes quanto aos

    gostos e s escolhas musicais, tampouco de realizar um trabalho centrado numa cronologia

    histrica fechada, mas busquei situar os diferentes lugares e pocas em que as msicas que

    vieram imbricadas nas narrativas do grupo, foram cantadas e ouvidas. Pretendi, desta

    maneira, fazer ilaes entre certos aspectos dos movimentos musicais representativos de

    cada dcada ou fase e outros aspectos culturais, polticos e econmicos (os estilos musicais

    e os textos/discursos), englobando as formas de cultura, representaes de juventude,

    apropriao e consumo musical. Para tanto, no delimitei um perodo histrico, mas tentei

    ouvir, de forma contextualizada, os fragmentos e partes de melodias trazidas pelas

    entrevistadas.

    evidente que, durante essa pesquisa, surgiram lembranas das msicas populares,

  • 18

    das msicas religiosas, das danas e msicas de CTGs4 e folclricas, dentre muito outros

    estilos, no esgotando as possibilidades de as autonarrativas musicais ficarem restritas a

    um nico estilo ou perodo musical.

    Destaco que, durante este percurso reflexivo, emergiram as minhas prprias

    lembranas musicais junto com minha histria pessoal/profissional e memrias, numa

    trama de fios entre os diversos saberes musicais, numa pluralidade de vozes do cotidiano,

    na riqueza discursiva da polifonia5, numa superposio de sons e acordes. E, mais ainda,

    este foi um tempo em que pude rever algumas incertezas, expectativas e marcar o desejo de

    buscar instigantes e novos caminhos para perceber e (re)significar as identidades musicais

    de um grupo de mulheres.

    4 CTGs so os Centros de Tradies Gachas. O MTG, Movimento Tradicionalista Gacho, define Centro de Tradio Gacha como uma sociedade civil, de fins no econmicos, com nmero ilimitado de scios e estruturada, inclusive quanto ao simbolismo, de acordo com a forma adotada nas origens do movimento tradicionalista gacho, tendo como finalidade a aplicao, em seu mbito associativo e na sua rea de influncia, dos princpios e objetivos, publicados na Carta de Princpios do Movimento Tradicionalista Gacho. Os scios efetivos do sexo masculino so denominados Pees e do feminino Prendas.

    Os CTGs so entidades bastante atuantes no Rio Grande do Sul e em vrios estados brasileiros, para onde houve uma intensa migrao de gachos. Conforme informaes do site www.paginadogaucho.com.br, h em 2003, mais de 450 CTGs no Rio Grande do Sul. As reunies dos Centros de Tradies Gachas so denominadas simbolicamente de Charla Chimarro - Chimarro Festivo - Ronda - Fandango Lida (Obs: Estas informaes sobre as reunies dos CTGs foram extradas do Estatuto do Movimento Tradicionalista Gacho, consolidado em 1993 (Artigos 19, 271, 272, 273, 274, 275 e 277), mesmo site em 8/09/03.

    5 Ver questes sobre a polifonia das vozes na sala de aula em Silveira (2002), no artigo Olha quem est falando agora: a escuta das vozes na educao, no livro Caminhos Investigativos I, organizado por Marisa Costa.

    http://www.paginadogaucho.com.br/
  • 19

    JUSTIFICATIVA

    1. Conectando minhas memrias e os tpicos da pesquisa

    preciso comear a perder a memria, mesmo que a das pequenas coisas, para perceber que a memria que faz nossa vida. Vida sem memria no vida (...) Nossa memria nossa coerncia, nossa razo, nosso sentimento, at mesmo nossa ao (...) (Luis Buuel, apud Sacks, 1998, p.23).

    Abro este captulo com esta citao do cineasta Luis Buuel acerca da memria,

    pois, certamente, na medida em que este trabalho ia se delineando e criando corpo, eu ia

    percebendo o quanto estes tpicos de pesquisa estavam entremeados com minhas

    memrias. Na introduo desta tese, expliquei brevemente quais foram minhas intenes de

    pesquisa e, aqui, destaco ento quais foram meus objetivos principais e as questes que

    nortearam os meus olhares e escutas por estes caminhos investigativos6.

    - Como se constituem as identidades musicais de um grupo de alunas do Curso de Pedagogia?

    - Quais as lembranas musicais que emergem durante as narrativas orais e escritas deste grupo?

    - Como tais lembranas articulam a ao dos discursos musicais miditicos na constituio e narrao das identidades musicais?

    - Que conexes as alunas que j so professoras delineiam entre suas prticas pedaggicas e determinados aspectos dessa memria musical?

    6 Expresso utilizada por Costa (2002) para ttulos de dois livros (Caminhos Investigativos I e II) organizados pela autora e publicados pela editora DP&A.

  • 20

    Creio que aqui cabe explicitar o porqu da minha escolha por esta temtica dentro

    de um universo de muitas outras opes, escolha na qual tentei fazer algumas articulaes

    com minha trajetria pessoal/profissional.

    Penso que uma necessidade inicial de clarear e definir quais foram, para mim, os

    significados de autobiografia, biografia e identidade musical, desde o incio do projeto at o

    momento de escrita da tese, na tentativa de no perder de vista o contexto do grupo de

    entrevistadas e dessa pesquisa. Entre muitas transcries, leituras e dvidas, busquei

    conceituar e organizar estes termos e temticas atravs da construo ou desenho de um

    mapa ou o que seria, originariamente, uma rvore genealgica7, para retratar e sintetizar

    as narrativas das alunas, pinando caractersticas de suas memrias atravs das msicas,

    dos estilos que ouviam e gostavam, das pessoas e dos fatos que acompanharam essas

    lembranas em diferentes tempos e espaos. Com tais mapas de cada entrevistada j

    esboados, retornei literatura com o propsito de buscar subsdios tericos para analisar

    as recorrncias que saltavam das narrativas atravs das lembranas musicais. Procurei

    perceber as relaes que existiam entre as msicas marcantes das fases infantil,

    adolescente e adulta, bem como as possveis articulaes destas com determinadas

    vivncias, incluindo a as narrativas com as crenas e maneiras de ser uma professora.

    2. Voltando no tempo... minhas memrias musicais

    Recordo das minhas primeiras aulas de violino, com dez anos de idade, ansiosa por tocar no instrumento e ao mesmo tempo encantada com a sonoridade e a leveza do toque da minha professora ao dedilhar as cordas e demonstrar golpes de arcadas... Guardei em minha memria, durante dcadas, a lembrana e imagem de suas mos, com dedos longos executando melodias com preciso e tcnica. Era um exemplo que queria imitar... (Torres, 2003).

    7 Este termo foi sugerido por Allan Luke (2001), para auxiliar nas anlises de narrativas atravs das memrias musicais que constituem as autobiografias desse grupo de alunas/professoras.

  • 21

    Ao parar e tentar relembrar fatos que marcaram minhas memrias musicais para

    escrever este tpico, considero que realizei uma espcie de viagem no tempo, voltando ao

    passado, e procurei ouvir os sons da minha casa, no momento da minha infncia, com meus

    pais, os dois irmos e a irm mais velha tocando piano; os sons das gravaes das bandas

    marciais americanas que meu pai costumava escolher como trilha sonora para seus filmes

    amadores; as escalas musicais durante os longos e algumas vezes exaustivos estudos de

    violino; as canes evanglicas vindas do rdio de pilha da minha av; o som da bateria e

    do conjunto musical de meu irmo ensaiando na varanda; os discos selecionados a vrias

    mos para as festas de famlia; as melodias de grupos como The Mammas and the Pappas

    e The Beatles, as letras das msicas da Jovem Guarda... Era, sem dvida uma casa com

    uma famlia grande, repleta de sons, em que se convivia ou se disputava um espao

    sonoro com msicas numa diversidade de estilos, intrpretes, gostos, volumes e escolhas

    musicais. Diria que esta uma breve descrio ou talvez uma foto do ambiente sonoro

    familiar durante minha infncia e adolescncia, em que as melodias, ritmos e discursos

    musicais tiveram lugar de destaque e, desta maneira, foram compondo minhas memrias

    musicais.

    Paralelamente ao ambiente musical de casa, quando estava com dez anos de idade,

    comecei a estudar violino com uma professora vizinha, pois meus irmos j tocavam piano,

    e, como eu tinha vontade de tocar um instrumento, minha me sugeriu o violino, por gostar

    muito do seu som. Para freqentar as aulas como o instrumento era muito caro consegui

    emprestado um violino antigo, com uma famlia amiga, que estava guardado desde a morte

    de um parente, como herana familiar. No era bem o instrumento que eu havia idealizado,

    mas depois de uma boa limpeza, da troca das cordas, da fixao da alma e de uma

    afinao, eu finalmente comecei as aulas. Toquei e estudei com ele durante oito anos e,

    finalmente aos dezoito anos, ganhei da minha me o to sonhado violino, como presente de

    aniversrio.

    Cabe destacar que, junto com este presente especial, veio o convite para participar

    como violinista, tocando em uma orquestra de cmara junto com minha professora: foi

    minha estria.

  • 22

    Mas se esse era o ambiente musical em casa, quais eram as lembranas musicais da

    escola? L estava a msica na escola soando nas aulas semanais, nos ensaios do coral e

    no grupo de flauta doce lembrada e representada atravs de um repertrio ecltico que

    englobava canes folclricas brasileiras, Negro Spirituals, solfejos e madrigais

    renascentistas. Ao mesmo tempo, tambm gostava de ouvir as batidas marcantes do i-i-i

    e do rock, acompanhando muitos momentos durante a minha adolescncia, para danar e

    embalar os sonhos juvenis, para ouvir e cantar com os Beatles msicas como Yesterday e

    Here comes the sun, Elis Regina e cantores da Jovem Guarda. Em outras ocasies, as

    escolhas eram pelas melodias para rememorar as msicas de protesto e decorar as letras de

    algumas canes apresentadas nos festivais da TV Record e de MPB8. Esta foi uma poca

    que coincidiu com o final do curso clssico no colgio e penso que, tambm, com o fim da

    minha adolescncia, pois era preciso tornar-se adulto. Foi uma fase marcada pela

    necessidade de crescer, de escolher um curso universitrio, de pensar em uma carreira e de

    tentar entrar no mundo do trabalho.

    No momento de optar por um curso universitrio, a escolha veio vinculada ao fato

    de que, por motivos pessoais, precisava trabalhar durante o dia, tendo, portanto de me

    decidir por um curso no turno da noite. O to esperado curso superior de msica era novo

    naquela universidade pblica, estando no seu primeiro ano de funcionamento, e as aulas

    aconteciam durante o dia. Diante dessas circunstncias, minha deciso para fazer vestibular

    foi pela Licenciatura plena e bacharelado no curso de Geografia, na Universidade Federal

    Fluminense, por ser esta uma rea que tambm me atraa, principalmente pelas disciplinas

    que tratavam das questes do homem, seu entorno e o mundo. Acreditei que esta opo

    poderia me permitir conciliar o trabalho durante o dia, a faculdade noite e as aulas de

    violino, os ensaios na orquestra e no grupo de flautas. E assim fiz durante os quatro anos da

    8 Refiro-me aos festivais de msica popular brasileira, no final dos anos 60 e incio durante os anos 70 no Brasil, com muitas composies com letras de protesto contra o governo militar da poca. Zuza Homem de Melllo (2003), em sua obra A era dos festivais uma parbola, descreve que quando se fala em festival de msica popular no Brasil, a idia mesmo de uma competio de canes, a exemplo do que tambm existe em Via del Mar, no Chile e San Remo, na Itlia. No pois uma competio entre grupos, entre bandas ou intrpretes (...) Esse conceito de festival de msica popular ou festival de cano, que se estabeleceu nos anos 60, j existia no Brasil, embora com outro ttulo: eram os concursos de msica carnavalescas promovidos com sucesso na dcada de 30... (2003, p.14).

  • 23

    graduao, correndo entre as provas na faculdade onde levava o violino e, muitas vezes,

    saa mais cedo para tocar nos ensaios.

    Ao terminar a graduao em Geografia, em meio a muita incertezas e buscas, surgiu

    um convite atravs de uma ex-professora de msica, para que eu integrasse o grupo que iria

    trabalhar com educao musical com as novas turmas de educao infantil e sries iniciais,

    na escola onde eu havia estudado por tantos anos. Comeava, assim, a minha trajetria

    como educadora musical.

    Percebi ento, desde que comecei na sala de aula nessa primeira escola

    trabalhando em turmas chamadas de pr-escolares , que busquei manter um dilogo com

    as professoras daquelas turmas e das sries iniciais, sobre as possibilidades de se trabalhar

    com msica na sala de aula e de fazer as articulaes com o currculo. Foi uma

    oportunidade de aprender e compartilhar com tais professoras, de diferentes idades e

    formaes, um leque de experincias nos campos pedaggico e musical. Enfim, creio que

    foi um exerccio necessrio ao lembrar de fatos que entrelaaram minha vida pessoal e

    profissional, como as vozes que ouvi e ouo ao longo destes anos em que atuei como

    professora de msica em escolas de ensino fundamental.

    Durante mais de vinte anos trabalhei com turmas de primeira a oitava srie em trs

    escolas diferentes, sendo uma delas em Niteri (RJ) e as demais em Porto Alegre (RS).

    Combinei vozes com mtodos de educao musical incluindo Gazzi de S9 ,Villa-Lobos,

    Orff e Kodaly com abordagens pedaggicas fundamentadas em Piaget e Montessori e

    mesclei expresses e sotaques regionais. Misturei repertrio e ritmos, construindo e

    (re)construindo minha identidade musical, num exerccio constante de ser interpelada por

    esta diversidade da rea.

    9 O mtodo de Gazzi de S era trabalhado atravs de uma Coletnea de solfejos, que depois foi organizada e ampliada para o livro Musicalizao (1990), FUNARTE/RJ. O mtodo de Villa Lobos a que me refiro o Guia Prtico Estudo Folclrico Musical: 1 volume (Irmos Vitale, 1932). Os mtodos Orff e Kodaly foram trabalhados em aspectos especficos de ritmo, improvisao, composio, ostinato e outros.

  • 24

    Cabe destacar que, nestas trs escolas, a grande maioria das vozes que ouvi eram

    vozes femininas que trabalhavam com as turmas das sries iniciais. Em algumas situaes,

    havia o pedido por uma msica especfica para uma comemorao, ou a sugesto de um

    disco para ser tocado e acompanhado por vozes, outras vezes eram certas dvidas sobre a

    escolha de uma melodia e qual seria a melhor tonalidade e extenso vocal para cantar com

    as crianas. Podia ser tambm uma pergunta sobre que instrumentos usar para acompanhar

    canes, ou algumas sugestes de palavras para adaptar numa letra construda pela turma,

    ou, ainda, a dvida acerca da escolha de uma temtica para articular com determinadas

    melodias. As conversas perpassavam as questes musicais e incluam um repertrio

    variado, passando por discusses sobre atitudes de alunos, condutas a serem seguidas e

    muitos relatos de fatos do cotidiano delas, que revelavam preferncias e escolhas musicais,

    como um preldio para que as identidades musicais se mostrassem e pudessem emergir.

    Poderia citar, ainda, como outros exemplos, as discusses que surgiam a partir das letras de

    msicas selecionadas para se trabalhar acerca de alguns conceitos e preconceitos musicais,

    que permeavam o cotidiano escolar. Tambm tive oportunidade de aprender em vrias

    manifestaes musicais no espao escolar ao cantar, tocar, improvisar ou reler msicas

    com estas professoras num perodo de trabalho e fazer musical conjunto.

    Ainda hoje guardo na memria determinadas perguntas que elas me faziam acerca

    de repertrio, de letras de canes que queriam cantar em festas e de melodias que

    gostariam que eu fizesse o acompanhamento instrumental. Muitas vezes, at pelo fato de

    no ser gacha e de no conhecer muitas manifestaes musicais regionais, respondia para

    elas: No sei esta melodia, mas voc no poderia cant-la para mim? E no era raro ouvir

    as respostas: Eu no sei msica ou Eu no consigo cantar. Mas, obviamente, elas sabiam

    msica e tinham a msica entrelaada sua vida pessoal e profissional.

    Ao resumir essa minha trajetria profissional, pontuo que participei de atividades

    diversas como tocar flauta doce em festas escolares, cantar e reger hinos em comemoraes

    cvicas, construir instrumentos musicais com crianas e suas professoras, reger grupos

    instrumentais de adolescentes, tendo, desta maneira, possibilidade de ampliar as minhas

    escutas e os meus saberes musicais. Considero que tais fatos so parte fundamental na

  • 25

    (re)construo de minhas memrias e minha identidade musical e, portanto, esto inseridos

    nesse captulo com o objetivo de articular aspectos constitutivos da minha prtica como

    educadora musical com a escolha desta temtica para essa tese de doutorado.

    Ao concluir o Mestrado em Educao, em 1995, comecei a atuar como professora

    de msica no terceiro grau, num Curso de Pedagogia licenciatura para as sries iniciais do

    ensino fundamental lecionando a disciplina de Fundamentos e Metodologias da educao

    musical na UNIVATES, em Lajeado/RS. Em maro de 2003, fiz concurso e assumi como

    professora de educao, no Curso de Pedagogia da Arte da FUNDARTE/UERGS10 no

    municpio de Montenegro/RS, onde venho atuando junto aos alunos das qualificaes em

    msica, teatro, artes visuais e dana.

    Creio que, desde a minha estria como docente nos cursos de terceiro grau, estou

    vivendo uma nova fase de minha vida profissional e pessoal, tendo em vista que convivo

    com diversas alunas, algumas tambm j professoras, no s nos cursos de graduao, mas

    em ambientes de cursos de formao continuada, assessorias e seminrios. Atualmente,

    trabalho com msica em diferentes contextos, tais como na educao infantil, na educao

    especial e na formao de professores para atuar com alunos da terceira idade. Tive a

    oportunidade de ouvir vozes e canes, de conviver com professoras de diferentes idades,

    com vivncias culturais diversas, especificamente aqui no Rio Grande do Sul, com suas

    experincias e identidades musicais e, certamente, com muitas idias para dividir comigo.

    Relacionando minhas memrias com meus tpicos de interesse, encontrei em

    Connelly e Candlinin (2000), em um estudo sobre Escritos autobiogrficos e biogrficos,

    um argumento que pertinente ao tema acima exposto. Os autores afirmam que outra

    fonte de dados na investigao de narrativas11 o escrito autobiogrfico e biogrfico

    (p.29). Eles enfatizam que os escritos autobiogrficos podem aparecer sob a forma de

    relatos que narram a vida de professores. Na perspectiva de Bullough e Pinnegar (2001), os 10 O Curso de Pedagogia da Arte funciona na Fundao Municipal de Artes de Montenegro/FUNDARTE, em convnio com a Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS), com as qualificaes em Msica, Dana, Teatro e Artes Visuais. 11 Para mais leituras sobre estudos de narrativas na perspectiva abordada nessa pesquisa de tese, ver Connelly & Clandinin (2000) e Bullough & Pinnegar (2001).

  • 26

    estudos biogrficos e autobiogrficos com professoras envolvem problemas e assuntos

    relacionados ao ser professora, evidenciando uma temtica que vem ganhando espao

    para discusses e anlises.

    Ainda em relao temtica das autonarrativas e a constituio das identidades,

    com as diferentes formas de contar a prpria histria, Larrosa (1999) em sua obra

    Pedagogia Profana, argumenta que:

    O homem se faz ao se desfazer: no h mais do que o risco, o desconhecido que volta a comear. O homem se diz ao se desdizer: no apagar o que acaba de ser dito, para que a pgina continue em branco (...) Exercita-te no escutar. Aprende a ler e escrever de novo. Conta-te a ti mesmo a tua prpria histria. E queima-a logo que a tenhas escrito. No sejas nunca de tal forma que no possas ser tambm de outra maneira. Recorda-te de teu futuro e caminha at a tua infncia. E no perguntes quem s quele que sabe a resposta (...) porque a resposta poderia matar a intensidade da pergunta e o que se agita nessa intensidade. S tu mesmo a pergunta (p.41).

    Acredito que as idias contidas nessa citao de Larrosa devero permear minhas

    anlises dos dados recolhidos atravs das narrativas de si destas professoras e fundamentar

    as discusses envolvendo as autonarrativas. Antes de finalizar esta seo, gostaria de trazer

    o pensamento de Ricoeur (1984), ao ressaltar que nossa prpria existncia no pode ser

    separada do modo pelo qual podemos nos dar conta de ns mesmos. contando nossas

    prprias histrias que damos, a ns mesmos, uma identidade (Apud Larrosa, 1999, p.41).

    Minhas memrias musicais: alguns flashes Anos 50 - Nascimento, infncia intercalada pelos sons das brincadeiras de roda, das

    cantigas de roda, das msicas nas festas da escola, das lembranas de casa.

  • 27

    Anos 60 - Lembrana das professoras de violinos e de aulas nas quais se misturavam prazer

    com muita rigidez, sons de exerccios e escalas interminveis.

    Msica em minha casa, as aulas de piano dos irmos, msica em conjunto com os duetos

    violino/piano.

    Aulas de msica na escola, cantando no coral; aulas de flauta; amigos e diverso.

    Ouvindo, cantando e danando Twist, Rock, msicas dos Beatles, Bob Dylan,

    msicas de protesto, Jovem Guarda.

    Os primeiros acordes na Orquestra de Cmara: entre peas de Mozart, Vivaldi e Bach.

    Grupo Instrumental Fontegara: o prazer de tocar flauta e bandolim, msica em casamentos

    e festas, msica antiga.

    Anos 70 - Incio da trajetria como professora de msica: canes infantis; jogos, msicas

    folclricas brasileiras.

    Os Festivais de msica e o poder da MPB; as letras de protesto, as manifestaes polticas.

    Meu tempo como aluna na Universidade: os shows, os sonhos e os planos: trilha sonora

    com as vozes de Milton Nascimento, Chico Buarque, Cat Stevens, Toquinho, Vinicius de

    Morais, Tom Jobim e outros.

    A msica embalando e acompanhando momentos de profunda tristeza: doena e morte de

    minha me.

    Os sons do casamento: msica com percusso e flautas.

    Nascimento dos filhos: as msicas infantis, as berceuses, as caixinhas de msica.

    Anos 80 - Ouvindo e reaprendendo o repertrio de msicas na sala de aula: escolhas dos

    alunos adolescentes, desafios na profisso.

    Releituras: gosto musical e heavy, rock, rap...

    Conhecendo as msicas dos filhos: entre Queen, Raul Seixas, Paralamas do Sucesso e

    Dance.

    Anos 90 - Msicas Italianas: Albinoni, Vivaldi e canes romnticas.

    Alunos adultos e um novo repertrio: Tangos, Beatles e msicas do momento (mdia).

    Ouvir e perceber o cotidiano e suas msicas.

  • 28

    Msicas da mdia?

    Entrada no mestrado e doutorado: andar por caminhos instigantes.

    Como poderia, aps essa sntese de alguns dados, definir minha identidade musical?

    Seria hbrida, mesclada com vozes de Milton Nascimento e Chico Buarque, Cat Stevens em

    Morning has broken, sons dos Divertimentos de Mozart ou dos Concertos

    Brandenburgueses...? Poderia ser um lbum de retrato com fotos de Niteri e outras de

    Porto Alegre, com paisagens, rvores e sons da Escola de Msica de Fiesole, numa vila

    etrusca na Itlia...? Mas onde esto os sons multiculturais que pude conhecer e ouvir ao

    compartilhar com professores e colegas da School of Education, na University of

    Queensland/Austrlia, durante meu doutorado sanduche? Como falar e, tambm, ouvir

    uma diversidade sonora que engloba melodias cantadas em cantons, ou os cantos das

    mulheres da Papua Nova Guin, passando pelas danas gregas, ou os ritmos dos

    aborgines...? Digo que a minha identidade musical est em constante movimento, aberta e

    observo, tambm, que ela me faz pertencer a diferentes grupos de idade, de profisso, de

    relaes familiares e de amizade e me excluir de outros.

  • 29

    CAPTULO I - A MDIA NO COTIDIANO DE CRIANAS E JOVENS: O que eu

    gosto de assistir?.

    Os meios de comunicao gostam de utilizar imagens de crianas de olhos bem abertos olhando fixamente para a tela da televiso para ilustrar histrias e artigos sobre crianas e televiso (Howard, 1998, p.72).

    1. O olhar dos Estudos Culturais sobre a mdia

    Neste captulo, busco expor e discutir alguns conceitos como os de mdia e msicas,

    sob os olhares dos Estudos Culturais, e os motivos pelos quais trouxe este recorte sobre

    programas de TV e discursos da mdia nos limites dessa tese. Pretendi examinar as

    conexes entre esses assuntos e os meus tpicos de pesquisa no campo musical, discutindo-

    as na perspectiva da ps-modernidade e da cultura, no campo dos Estudos Culturais, pois

    foram aspectos expressivos nas narrativas musicais do grupo de entrevistadas. Concordo

    com Kellner (2001) quando este afirma que:

    H uma cultura veiculada pela mdia cujas imagens, sons e espetculos ajudam a urdir o tecido da vida cotidiana, dominando o tempo de lazer, modelando opinies polticas e comportamentos sociais, e fornecendo o material com que as pessoas forjam sua identidade. (...) A cultura veiculada pela mdia fornece o material que cria as identidades atravs das quais os indivduos se inserem nas sociedades tecnocapitalistas contemporneas, produzindo uma nova forma de cultura global (p.9).

    As relaes entre a cultura da mdia e os discursos musicais entendidos nos

    limites dessa pesquisa como as mltiplas manifestaes musicais que englobam as letras

    das msicas, as melodias, as trilhas sonoras, as propagandas e jingles, os shows de rock

    emergiram em muitas falas e foram permeando o texto. Com essa sinalizao fui buscar

    subsdios para proceder esta anlise em autores como Hall (1997) e Costa (2000), por

    exemplo, que discutem a centralidade dos artefatos culturais e suas imbricaes com as

  • 30

    escolhas e preferncias. Costa destaca que, na perspectiva de Hall, os Estudos Culturais

    auxiliaram a compreender que a mdia tem uma funo na constituio das coisas que ela

    reflete (Costa, 2000, p.73).

    Situando e delineando o campo de atuao dos Estudos Culturais e os seus espaos

    de pesquisa articulados a diferentes culturas, destaco as idias de Costa (2000) ao pontuar

    que eles esto para alm das fronteiras disciplinares e que poderiam ser descritos como:

    Saberes nmades, que migram de uma disciplina para outra, de uma cultura para outra, que percorrem pases, grupos, prticas, tradies, e que no so capturados pelas cartografias consagradas que tm ordenado a produo do pensamento humano eis uma descrio que parece provisoriamente adequada para me referir ao ethos contingente do que tem sido denominado de Estudos Culturais, ou Cultural Studies, em sua verso contempornea (Costa, 2000, p.13).

    Na viso de autores como Nelson, Treichler e Grossberg (1995), os Estudos

    Culturais no garantem nenhuma metodologia distinta como sua, e podem ser descritos

    como tipicamente interpretativos e avaliativos em suas metodologias, rejeitando a

    equao exclusiva de cultura com alta cultura e argumentam que todas as formas de

    produo cultural precisam ser estudadas em relao a outras prticas culturais. Os autores

    prosseguem em suas anlises e destacam ainda, que, desta forma, os Estudos Culturais

    comprometem-se com o estudo de todas as artes, crenas, instituies e prticas

    comunicativas de uma sociedade (p. 13).

    Grossberg (1992), na sua obra sobre jovens e rock, trabalha com a idia de

    diversidade, que muitas vezes somente aceita de uma forma ritualstica; entende o autor

    que ela muito mais aceita, porque ela a verdadeira prtica dos Estudos Culturais. Ele

    argumenta que, em todo o momento, as prticas dos Estudos Culturais esto articuladas ao

    hibridismo, pois so plenas de mltiplas influncias, e que desta maneira, cada uma delas

    uma trajetria em andamento atravessando diferentes projetos tericos e polticos,

    envolvendo mltiplas prticas e locais (p.17).

  • 31

    Em outro olhar, tambm na inteno de situar o campo dos Estudos Culturais e suas

    abordagens de pesquisa, enfoco a opinio de Johnson (1999), para quem:

    Precisamos de histrias dos Estudos Culturais que analisem os dilemas recorrentes e dem perspectivas aos nossos projetos atuais. Mas a idia de tradio tambm funciona de um modo mais mtico, para produzir uma identidade coletiva e um sentimento compartilhado de propsito. Para mim, boa parte das fortes continuidades da tradio dos Estudos Culturais est contida no termo singular cultura, que continua til no como uma categoria rigorosa, mas como espcie de sntese de uma histria(1999, p.20).

    A seguir apresento uma breve reviso de literatura focalizada em autores envolvidos

    em estudos da mdia e Estudos Culturais, que enriqueceram minhas leituras, sendo que,

    atravs delas, pude conhecer diferentes opinies e abordagens relacionadas ao tema. Dentre

    os vrios autores que pesquisam questes relacionadas aos discursos musicais, mdia e

    Estudos Culturais, destaco Buckingham e Sefton-Green (1998), os quais discutem

    preferncias musicais de jovens e estudos da mdia, pontuando que, nesta perspectiva:

    Mdia e Estudos Culturais so reas em crescente expanso no currculo em todos os nveis da educao, no apenas em pases falantes da lngua inglesa, mas em muitas outras partes do mundo. Os Estudos Culturais trouxeram uma radical contribuio para os estudos de educao, particularmente enfatizando o conhecimento popular e as dinmicas da poltica da cultura de lazer dos jovens (p.3)12.

    Fisherkellerm (2000), em consonncia com muitos outros, ressalta que a televiso,

    nas ltimas dcadas, deve ser considerada como um sistemtico e poderoso meio de

    comunicao em todo o mundo. A autora comenta que os adolescentes assistem a TV para

    compartilhar os programas com seus amigos, com o grupo de adolescentes, com seus

    gostos e suas escolhas, fazendo piadas, cantando e danando juntos e utilizando um

    material (sonoro) apropriado da TV. (p.597). Ela conecta, ainda, os discursos da TV a uma

    srie de eventos sociais e demonstraes culturais e morais envolvendo ideologias e

    julgamentos principalmente na produo de significados na vida de adolescentes e

    crianas.

    12 Esta e outras tradues de Buckingham e Sefton-Green, do original em ingls, so de responsabilidade minha.

  • 32

    J na anlise de Russel (1999) sobre os textos e signos da TV, a autora ressalta o

    lugar de poder (da TV) na sociedade ocidental, como uma forma de comunicao de massa,

    e a possibilidade de mudarmos ou variarmos o que estamos assistindo, passando por

    diversos textos televisivos, como canes, brincadeiras, notcias e filmes. Para Russel, a

    televiso ao mesmo tempo uma parte e um produto da moderna maneira cotidiana de

    viver, influenciada e influenciando sociedades. (p.92) Considero pertinente articular o

    argumento da autora com a abordagem de Sarlo (1997), pois essa analisa aspectos

    especficos relacionados ao consumo da TV, como o zapping e conseqentes possibilidades

    de assistir a mltiplas imagens e discursos em uma frao de segundos. Sarlo tambm

    examina o poder que a TV tem de transformar qualquer coisa em assunto e matria para a

    mdia, observando que a sntese aleatria do zapping provoca o encontro, ainda que muito

    fugaz, entre um aposentado e um videoclipe, entre um programa para o lar e um homem em

    busca de um show internacional de gols, entre um metaleiro e um pastor eletrnico (p.80).

    Outro aspecto que considero pertinente para compor este captulo refere-se

    questo da audincia de programas na TV, por crianas e jovens. A audincia geralmente

    interpretada como relacionada ou com a interao ou com a submisso. Essa perspectiva da

    interao vem questionar certos posicionamentos que defendem a audincia como passiva.

    Assim, h pesquisadores que argumentam que a audincia no tem nada de passiva, sendo

    bastante ativa e interativa, variando de acordo com as caractersticas de cada pblico. Nesta

    perspectiva Fischer (1997), em sua anlise de programas de televiso, recepo e

    juventude, enfatiza que:

    Produto da mdia e pblico receptor, tecnologia e sujeito, vida privada e vida pblica, experincias cotidianas e imagens interplanetrias, cultura popular e cultura erudita so pares hoje mesclados de tal forma que se torna necessrio no mais falar de categorias estanques como emissor e receptor, em relao a um determinado meio, como lembra Martin-Barbero, mas sim em produtores, criaes e pblicos especficos, vistos em relao a determinadas necessidades e a determinados problemas culturais e sociais (p.61).

  • 33

    A autora entrelaa essas idias com uma viso pedaggica da mdia, destacando que

    o que assistir TV atinge, alm dos diferentes programas, tambm os apresentadores e

    entrevistados, atores e pblico, com maneiras de identificao entre a TV e o pblico.

    Fischer ressalta o fato de que essa pedagogia da mdia no apenas veicula idias e notcias,

    mas tambm produtora de formas especializadas de comunicao e produo de

    consumidores (p.67), considerando, desta maneira, as possibilidades de a haver uma

    pedagogia distinta. Ressalto, aqui, que aspectos desta pedagogia da mdia emergiram

    atravs das memrias das entrevistadas, ao relatarem que aprendiam msica com e nos

    programas de TV para um pblico infanto-juvenil.

    Em sua obra Televiso e Educao, Fischer tambm observa que um ponto que

    merece destaque refere-se aos aspectos diferenciados e diversificados de fruir e pensar a

    TV, assim como as articulaes com a sala de aula e a escola, enfatizando os modos de

    consumir e assistir:

    Dado que a televiso nos alcana em todo o tempo e em toda a parte, dado que nenhuma faixa etria, nenhum campo de atuao, nenhuma classe de renda fica imune a ela, dado que a maior parte da populao brasileira no tem acesso regular a outras fontes de informao, alm do rdio e da TV, no sei que outra realidade contempornea mereceria, mais do que essa, um tratamento de prioridade educacional (Fischer, 2001, p.113).

    Ainda com relao s questes de preferncias na TV e a constituio das

    identidades musicais nas culturas juvenis, considero pertinente abordar certos aspectos

    considerados negativos e positivos da TV, analisando as discusses articuladas com alta

    cultura e baixa cultura. No discurso de Adorno, a cultura popular vista como um tipo de

    cultura de massa e est imbricada ao conceito de indstria cultural. Para Silva (2000),

    indstria cultural uma expresso cunhada por Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, na

    obra Dialtica do esclarecimento (1947), referindo-se s formas culturais cuja produo,

    distribuio e consumo, sob as condies do capitalismo avanado, obedecem a lgicas e

    funes similares s da produo, distribuio e consumo de qualquer outro produto

    industrial. Adorno e Horkheimer davam como exemplo, sobretudo, o rdio e o cinema,

    mas, em escritos posteriores, Adorno, a quem se deve o desenvolvimento do conceito,

    inclua tambm, entre outros meios, a televiso, as revistas em quadrinhos e a imprensa

  • 34

    popular. A teorizao feita por Adorno com base no conceito de indstria cultural tem

    sido criticada, entre outros pontos, por seu pretenso elitismo, ao contrapor a passividade do

    consumidor, estimulada pelos produtos culturais mercantilizados, reflexo e ao

    autnomas que seriam possibilitadas pela grande arte (Silva, 2000, p.70-71).

    Encontrei artigos e pesquisas que argumentam sobre esse assunto e focalizam como

    as crianas e adolescentes, em diversos lugares, cidades, pases, com diferentes linguagens

    e culturas, assistem e comentam esse material miditico composto por programas,

    desenhos, filmes, novelas, shows e comerciais. Cito dentre eles Giroux (1995), Lurat

    (1998), Steinberg e Kincheloe (2001) e Fischer (2001).

    J Hilt (2001), em texto que analisa a situao da TV americana como professora,

    argumenta sobre determinadas pesquisas americanas que ainda no documentam o que se

    considera como danos e benefcios destes programas de TV destinados a um pblico

    especfico de crianas e, considerando a existncia de financiamentos e doaes para a

    produo e veiculao de programas nas TV pblicas, questiona-se:

    Para onde vai isso? Vrios pontos precisam ser analisados. As pesquisas no documentam claramente os benefcios ou danos dos programas educativos infantis. O que sabemos sobre a interao e os efeitos da televiso no pblico muito jovem? Quem assiste a esses programas? Por quanto tempo? Qual o efeito a curto e longo prazo psicolgica, social, econmica e filosoficamente? (p.127)

    Hilt chama ainda a ateno para os programas infantis educativos e questiona a

    respeito de eles serem assistidos e vistos como corretos e, tambm, considerados por um

    grande pblico televisivo como educacionais. Por isso mesmo, segundo ela, esses

    programas so bons para as crianas e para a sociedade, e cita exemplos da programao

    da TV americana, como Vila Ssamo e Barney e sua famlia. Creio que algumas destas

    perguntas feitas pela autora no tm uma nica resposta e, talvez, no devessem ser feitas,

    mas decidi inseri-las nesse trabalho, como um tpico para desencadear dvidas e reflexes

    acerca do tema da TV como professora, j que trabalho numa abordagem de conhecer os

    discursos musicais veiculados pela mdia, dentre elas a televisiva.

  • 35

    No que se refere audincia e ao consumo de TV por jovens, Marafioti (1998)

    analisa programas para um pblico juvenil na Argentina, em que aparecem programas com

    a estrutura de jogos televisivos.13 O autor destaca a funo niveladora desempenhada

    pela TV, ao possibilitar que diferentes classes sociais tenham acesso a universos culturais

    que seriam considerados inacessveis, e ressalta que

    A sociedade midiatizada se apresenta como modelo de transparncia, de lucidez. Tudo pode ser mostrado, iluminado. Tudo est ao alcance de quem liga a televiso e chega aos lugares mais inslitos e distantes. Sem dvida, essa mesma sociedade a mais opaca (p.316-317).

    A impresso de transparncia, idia inspirada por Vattimo, viria justamente desse

    pretenso poder, que a TV teria, de tudo mostrar. Entretanto, Marafioti questiona essa

    transparncia na medida em que a TV seleciona o qu e como mostrar.

    Fiske (1997), apostando em diferentes estratgias de audincia/consumo, focaliza

    pontos da anlise cultural e explica que o texto televisivo um potencial de significados.

    Esses significados so ativados por diferentes leitores em suas diferentes situaes sociais.

    O autor prossegue em suas investigaes e analisa questes ligadas intertextualidade,

    ressaltando que comentrios sobre programas de televiso, revistas de fs, publicaes de

    bate-papos so exemplos de outros tipos significativos de intertextualidade.(p.142)

    Observa-se, assim, que os textos televisivos se situam numa rede de outros textos que lhes

    conferem significados, credibilidade (ou no) e valores.

    No campo de pesquisa dos Estudos Culturais em Educao pode-se encontrar vrios

    trabalhos, dissertaes de mestrado e teses que abordam e discutem a temtica da mdia

    articulada anlise de artefatos culturais, a questes de audincia, a discursos veiculados

    em programas, filmes, videogames, a representaes em anncios e em livros didticos,

    mdia e fabricao de identidades sociais, como os de Costa (2000), Garbin (2001), que

    13 O autor traz exemplos de jogos televisivos na Argentina, citando o programa Feliz Domingo, que mescla o saber enciclopdico e de memorizao com um conhecimento muito mais rpido, no qual destreza e habilidade sempre so as condies para uma melhor participao. Os jogos propostos sempre esto estruturados sobre uma base de grupo e nunca individual, e os jovens representam equipes por colgios, com a novidade de professores tambm estarem competindo nestes jogos de pergunta/resposta. Marafioti comenta que h uma crtica em relao aos professores que, muitas vezes, tm dificuldades em acertar as perguntas trazidas pelo programa e consideradas bem elementares (p.313).

  • 36

    discute identidades musicais juvenis a partir de chats de msica na internet; Hilt (2001),

    Provenzo Jr (2001) e Bergmann (2002), que analisou a presena da mdia nos livros

    didticos de Lngua Portuguesa. Cito tambm os trabalhos de Santos (2002) e Amaral

    (1997), que pesquisaram e analisaram diferentes vdeos e campanhas publicitrias

    veiculados pela TV.

    Ainda com relao a determinados aspectos relacionadas aos discursos veiculados

    pela mdia e suas articulaes com as identidades musicais na vida de jovens, Valdivia e

    Bettivia (1999) descrevem experincias relacionadas com o papel da mdia e msica

    popular, examinando as preferncias musicais dos adolescentes e afirmando que:

    Certamente o lugar proeminente da msica popular na vida de adolescentes um fato conhecido por quase todas as indstrias da mdia. No apenas a indstria do rock and roll que tem como alvo o grupo de adolescentes; o fenmeno da MTV foi construdo com a premissa de que o consumo de msica por adolescentes era lucrativo o suficiente para fazer uma competio vivel no ambiente cotidiano atual (p.432).

    Ao buscar os entrelaamentos que existem entre as msicas e a TV, senti

    necessidade de organizar alguns tpicos para buscar respond-los (ou no) no decorrer da

    anlise das narrativas orais e escritas. O meu foco principal, a partir do que as alunas

    trouxeram, era o de analisar como a msica chega na TV e que tipos de msicas a chegam;

    quais os repertrios veiculados nos diversos programas musicais da TV, qual era o espao

    ocupado pela msica em outras programaes que no musicais, como eram selecionadas

    as msicas para os programas televisivos infantis.

    Na rea da educao musical j existem pesquisas que envolvem estas temticas.

    Ouvir, cantar e aprender msicas veiculadas pelos programas de TV, atravs das trilhas

    sonoras das novelas e minissries, chegam s aulas de instrumento, como relatam as

    pesquisas realizadas por Torres (2001), envolvendo alunos nas aulas de flauta doce e a

    seleo de repertrio. Tambm o trabalho de mestrado de Ramos (2002) enfoca como a

    msica e a televiso esto presentes no cotidiano de um grupo de crianas de 9 a 10 anos.

    Ramos situa e contextualiza o local de sua pesquisa, num dos momentos de observao e

    reconhecimento, referindo-se ao consumo cultural das famlias destas crianas e

  • 37

    descrevendo uma cena do bairro com a multiplicidade de msicas, canais de TV e estaes

    de rdio, que se transformam em uma sonorizao vinda das diversas casas:

    Enquanto isso, ouve-se um amplo repertrio de msicas vindas das residncias. So gneros variados, desde o pagode, passando pelo samba e Marisa Monte. No se sabe exatamente de qual janela sai a msica, no entanto, ela participa ativamente do cotidiano da Vila Castelo. O que se ouve de msica nessa Vila vem principalmente da televiso e do rdio. Sem dinheiro e sem lazer, escutam e vem o que esses meios de comunicao oferecem, possibilitando-lhes o domnio da programao televisiva e radiofnica (Ramos, 2002, p.59).

    A citada autora enfatiza que este grupo de crianas gosta de ver televiso para estar

    com a msica, pois elas (as crianas) destacam que assistem TV por causa dos bons

    canais que s tem msica ou pelo fato de aprenderem msica com a televiso.

    Tambm a educadora musical Del Ben (2000), em seu artigo Ouvir-ver msica:

    novos modos de vivenciar e falar sobre msica, relata como desenvolveu um trabalho com

    alunos adolescentes relacionando imagem/som aos novos modos de ouvir-ver as

    diferentes msicas veiculadas pela mdia. Ela chama a nossa ateno para o fato de que:

    Os meios de comunicao, mais que estabelecer e divulgar significados e convenes musicais, parecem estar influenciando tambm os modos de compreender e falar sobre msica. possvel que ao recorrer a imagens com som e movimento, a cena de novelas e a filmes, ou a seus prprios enredos ou histrias, os alunos estejam reproduzindo no s associaes ou convenes musicais estabelecidas e divulgadas nos meios de comunicao, principalmente na televiso, mas tambm a forma como a msica veiculada (Del Ben, 2000, p.102).

    Ainda na rea da educao musical, nas discusses de Souza (1999) acerca das

    msicas da mdia, a autora enfatiza a idia, j presente em outras pesquisas e artigos, de que

    existem muitas controvrsias, suspeitas e temores sobre a influncia da mdia chamada

    muitas vezes de efeitos malficos da mdia. Souza complementa suas idias destacando

    que a concepo de efeitos malficos se origina no apenas em conceitos ultrapassados e

    antigos, mas tambm demonstram uma discusso pouco desenvolvida em relao s

    competncias miditicas dos alunos ao trabalharem com essas novas tecnologias. (p. 3)

  • 38

    Para auxiliar na reflexo sobre esta temtica, busquei a abordagem de Luke (1999),

    que examina alguns estudos das linguagens da mdia, focalizados numa perspectiva de

    anlise e crtica, os quais tm como ponto principal questes culturais e sociais, que

    envolvem a educao, as relaes de trabalho, as prticas sociais, a construo da cidadania

    e a interao com os discursos veiculados pela mdia em diferentes espaos e contextos

    culturais. A autora afirma que a

    leitura crtica da mdia, por isso, deve ser uma parte fundamental de uma educao para um cidado responsvel numa idade onde no s entretenimento e lazer, mas tambm trabalho, educao e relaes sociais so vivenciadas cada vez mais eletronicamente e densamente mediadas pela superposio de smbolos visuais, simblico-icnicos e de sentido multicultural (p.626).

    Articulada com este argumento de Luke proponho uma reflexo acerca desse tema

    vislumbrando, quem sabe, possibilidades de se trabalhar com os mltiplos textos veiculados

    pela mdia numa viso crtica. Considero tambm pertinente fazer ligaes entre a

    proposio de Luke e o pensamento de Kellner (2001)14 em relao s leituras crticas da

    mdia.

    Ao longo desse trabalho, outros autores e artigos foram sendo conhecidos, lidos e

    includos nessa reviso, como possibilidades de auxiliar/justificar meus caminhos de

    pesquisa.

    Assim, mltiplas linguagens, como eu defino, mais do que ler, escrever, falar e ouvir; mltiplas linguagens envolvem as prticas nas quais esses processos esto apoiados. Baseado nas perspectivas scio culturais defino ler, escrever, falar e ouvir como ferramentas de engajamento e com sentido nas prticas sociais (Moje, 1996, p.175).

    Quando Moje (1996), nesta citao acima, conceitua mltiplas linguagens como

    14 Kellner sugere que o ensino de um alfabetismo crtico em relao mdia um excelente meio de fazer com que os/as estudantes falem sobre a cultura e experincia, para articular e discutir opresso e a dominao cultural (...) Finalmente, o estudo da mdia e da cultura do consumo vincula a experincia individual com a poltica pblica e a linguagem (p.127).

  • 39

    ler, escrever, falar e ouvir, fao um questionamento sobre a possibilidade de se fazer uma

    correlao entre esses termos e a constituio de nossas identidades musicais. Para ilustrar

    meu ponto de vista e as mltiplas relaes com a msica, trago a argumentao de Green

    (2000), que enfatiza que muito freqentemente a msica funcionalmente amarrada a uma

    forma de mdia como um filme, um programa de televiso, um vdeo clipe ou uma

    propaganda (p.89).

    Minhas expectativas eram de que, ao investigar as autobiografias musicais desse

    grupo de alunas que, na sua grande maioria, viveu a infncia a partir dos anos 60 fase

    esta que coincide com as dcadas em que a televiso brasileira assumiu um extraordinrio

    papel na vida do pas e no cotidiano de cada um, pudesse me defrontar com exemplos de

    questes de escolhas musicais relacionadas aos vrios discursos musicais veiculados por

    programas e artistas do mundo televisivo.

    Penso esta pesquisa de tese, na perspectiva dos Estudos Culturais, como uma

    condio de possibilidade para algumas articulaes entre as reas da Educao Musical e

    da Pedagogia, na tentativa de conhecer e mapear aspectos das identidades musicais de um

    grupo de alunas de Pedagogia/professoras do ensino fundamental e, desta forma, poder

    perceber tambm os entrelaamentos com suas crenas e propostas pedaggicas.

    Luke (2000), em um de seus estudos relacionados aos discursos e textos miditicos

    na vida de jovens, destaca a relevncia dos textos musicais nas representaes miditicas e

    enfatiza que:

    Estudos da mdia focalizam a desconstruo crtica dos textos da mdia tanto impressos como imagens em revistas populares, programas de TV e anncios, filmes, e outras formas de representao miditica (...) Seria uma forma menos comum de estudos da mdia, com foco nos estudos culturais e no estudo de juventudes, cultura popular e textos da mdia (exemplos, msicas, novelas, grupos do Barney ou grupos de brincadeiras de Sesame Street). (Luke, 2000, p.425).

  • 40

    Entendo que esse trabalho teve oportunidade de ser enriquecido tambm com a

    anlise de letras das msicas e outros textos miditicos que foram surgindo como

    referncias nas entrevistas que realizei, como por exemplo os anncios e jingles e os

    significados a eles atribudos pelas entrevistadas em suas narrativas orais e escritas. Neste

    sentido, busquei-me valer, como fonte de inspirao, de outras anlises j feitas, como as de

    Luke (2000), Parker (1999), Sarlo (2001), Curran, Morley e Walkerdine (1998), Fatala

    (1998) e Steinberg e Kincheloe (2001), como um referencial de leitura que auxiliasse no

    momento de ler e analisar as entrevistas e as autobiografias.

    .

    2. Discursos da Mdia e Globalizao

    Na vida contempornea, quase todo tipo de msica uma arte da mdia. At mesmo um msico de rua numa esquina est sujeito a estar tocando msicas que as pessoas ouvem no rdio, CD, televiso ou outro tipo de equipamento da mdia () Ainda h uma tendncia de pensar que a msica clssica autnoma e separada das preocupaes da vida cotidiana e, por contraste, que a msica popular socialmente determinada e amarrada ao mercado de consumo de massa. Mas quase toda msica tanto contribui para quanto sobrevive em virtude do mercado comercial (Green, 2000, p.89).

    Este texto de Green (2000) focaliza a msica como uma arte da mdia,

    mencionando msica popular e clssica, entrelaando contextos e cotidiano, e chamando a

    ateno para o componente de mercado presente em quase todos os eventos musicais da

    atualidade.

    Na inteno de relacionar os assuntos de diversidade e pluralismo com os discursos

    musicais da mdia, proponho refletir sobre os diferentes caminhos que se tem para analisar

    os discursos musicais produzidos e divulgados pela mdia, como por exemplo, programas

    de TV, novelas, shows, bandas e seus CDs, e videoclipes.

  • 41

    Como podemos pensar a questo da globalizao e de suas articulaes entre

    msicas e o cotidiano?

    A globalizao vive no corao da cultura moderna; prticas culturais vivem no corao da globalizao () Esta no uma afirmao temerria: isto no dizer que globalizao o nico determinante de experincias culturais modernas, nem que a cultura por si s a chave conceitual que abre as dinmicas internas da globalizao (Tomlinson, 1999, p.1).

    Articulo esta citao de Tomlinson, no que se refere globalizao e as prticas

    culturais, com as idias de Bauman (1998), em sua obra Globalizao as conseqncias

    humanas, na qual o autor pontua que a globalizao no diz respeito ao que todos ns, ou

    pelo menos os mais talentosos e empreendedores, desejamos ou esperamos fazer. Diz

    respeito ao que est acontecendo a todos ns. Bauman destaca ainda a idia de

    globalizao referindo-se s foras annimas de von Wright operando na vasta terra de

    ningum e, desta forma, fora do alcance da capacidade de desgnio e ao de quem quer

    que seja em particular(p.67-68).

    Bauman prossegue em sua discusso sobre globalizao, vista como um fenmeno

    de carter indisciplinado e indeterminado, ressaltando que:

    Esse carter, inseparvel da imagem da globalizao, coloca-a radicalmente parte de outra idia que aparentemente substitui, a da universalizao, outrora constitutiva do discurso moderno sobre as questes mundiais mas agora cada em desuso e raramente mencionada, talvez mesmo no geral esquecida, exceto pelos filsofos (Bauman, 1999, p.67).

    Ampliando o rol de autores que se dedicam aos estudos acerca da globalizao e

    seus efeitos, destaco tambm os trabalhos de Luke e Luke (2000), Canclini (1998) e

    Tomlinson (1999), dentre outros. Na viso de Canclini, que defende a idia de que h

    vrios tipos de globalizao, ns somos globalizados de diversas formas e com diferentes

    significados.

    A partir destas afirmaes, examinei as possveis conexes entre diversidades do

    local e efeitos da globalizao, atravs das manifestaes musicais miditicas, com minhas

  • 42

    questes de pesquisa. Para Featherstone (1990), a discusso de cultura global envolvendo a

    diversidade relevante e o autor chama a ateno para a variedade de respostas para o

    processo de globalizao e claramente sugere que h pouca perspectiva de uma cultura

    global unificada, ao invs de culturas globais no popular (p.10).

    Outro enfoque que selecionei para os tpicos de globalizao e localizao, com a

    anlise das diferenas e das fragmentaes, vem de Friedman (1990), que trabalha com

    aspectos de etnicidade e observa que uma fragmentao tnica e cultural e a

    homogeneizao dos tempos modernos, a ela articulada, no devem ser vistas como

    dois argumentos, duas vises opostas do que est acontecendo no mundo hoje, mas duas

    tendncias constitutivas da realidade global (p.311).

    Friedman (1990) prossegue em sua discusso sobre globalizao, relacionando

    conceitos e idias como difuso, diversidade e multiplicidade e propicia, desta maneira,

    condies para o surgimento e crescimento de identidades locais. Na viso do autor estas

    identidades locais seriam entrelaadas, no sentido de serem mescladas e justapostas nos

    campos sociais e culturais, e se constituem em circunstncias diversas. Valho-me das idias

    de Friedman que me auxiliaram para conhecer os diversos estilos e msicas que foram

    lembrados pelas entrevistadas.

    Acredito que as manifestaes das culturas juvenis e musicais so negociadas e

    desta maneira espalham-se com mltiplas articulaes. Bennett (2000), em sua pesquisa

    com jovens e opes musicais, examina estes aspectos e afirma que:

    As relaes estabelecidas globalmente entre cultura jovem e msica popular atraram muita ateno, tambm de pesquisadores do meio acadmico; relatos de culturas jovens e msica popular so um grande foco de interesse em uma variedade de assuntos incluindo Sociologia, Estudos Culturais e Estudos da Mdia (p.1).

  • 43

    Bennett aprofunda suas anlises a respeito das escolhas musicais dos jovens no

    mundo miditico, destacando o significado de local15 e localismo, e envolvendo o

    campo da globalizao. O autor aponta imbricaes das manifestaes miditicas com o

    processo de globalizao, ao ressaltar o seu interesse em registrar aspectos e manifestaes

    culturais de cada localidade (dos diferentes locais) e as relaes decorrentes do processo de

    globalizao, percebidos e vividos de maneira diferenciada como por exemplo as bandas

    de rock no Japo ou grupos de danarinas executando coreografias de ritmos caribenhos na

    Austrlia - nas vrias naes do mundo. Ao longo do trabalho procurei articular esta viso

    de Bennett com os diversos estilos musicais que foram emergindo nas respostas das alunas

    em suas narrativas orais e escritas.

    Dentro da temtica do global e local, um outro aspecto que considero central na

    discusso de Tomlinson (1999) - em seu artigo Globalization and Culture -, est na sua

    argumentao de que a globalizao promove muito mais mobilidade fsica do que

    anteriormente, mas a chave para este impacto cultural est nas prprias transformaes das

    localidades (p.29). O autor ressalta que as culturas locais vo se apropriando e at

    modificando estes impactos veiculados pela globalizao, seja via programas de TV, shows

    de bandas de rock, CDs, videoclipes, sites de msica na internet, consumo de artefatos e

    outros eventos culturais. A combinao entre mobilidade e localismo est visvel em muitos

    exemplos musicais, atravs de vrios pases, como as mltiplas performances, interpretao

    e apropriaes do rock and roll, do reggae, do hip hop e de outros estilos musicais, num

    processo de hibridizao de repertrios e manifestaes culturais.

    Na obra de Ortiz (2000) Mundializao e Cultura, o autor analisa caractersticas de

    uma cultura que se mundializou, com seus dilemas de individualidade e multides, de

    15 Para ler mais sobre estes termos, ver Bennett (2000), em Popular Music and Youth Culture-Music, Identity and Place, London: Macmillan Press. O autor trabalha com a concepo de identidade local e espaos urbanos, trazendo exemplos de bandas de rock que fazem msica em contextos locais e analisa as relaes entre estas atividades musicais locais e os micro espaos sociais onde elas acontecem. Finnegan (1998), em estudo sobre o entorno polimusical dos diferentes contextos, destaca o local como fonte de atividades musicais e, por isso, importante entendermos que o local como um contexto polimusical.

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    aspectos locais e globais, destacando que a contemporaneidade corresponde a uma

    civiliza cuja territorialidade se globalizou. O autor chama a ateno para o fato de que

    Isto no significa, porm, que o trao comum seja sinnimo de homogeneidade. Sublinho este aspecto porque o debate cultural muitas vezes identifica, de maneira imprpria, essas duas dimenses. Desde sua or