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5/28/2018 IEA Caderno Gramsci (Kritsch&Ricupero - Orgs)
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NOTA INTRODUTRIA:
O que pode nos dizer um autor que morreu h 60 anos e escreveu a parte mais importante de sua
obra isolado do mundo, na cela de uma priso? Acrescente-se a essas condies desfavorveis
o fato do autor em questo ser comunista, alm de originrio do que era ento uma das regiesmais pobres de um dos mais atrasados pa ses da Europa Ocidental.
Mas, por mais paradoxal que possa parecer, o fato que Antonio Gramsci continua a inspirar e a
servir como referncia para boa parte do pensamento contemporneo, seja ele - ou no - de
tradio socialista. Mais importante ainda: as circunstncias s quais se fez referncia acima,
contribuem de forma dec isiva para a relevncia do autor.
Comunista, foi ativo intelectual e politicamente num perodo histrico que se definiu pela adeso ou pela rejeio da Revoluo de Outubro - e que s ganha novos contornos com os episdios
de 1989. Mas Gramsci no foi qualquer comunista: foi um comunista italiano. Por isso, teve de se
defrontar com os problemas de um pas que no era nem Oriente nem bem Ocidente, mas um
outro Ocidente, como afirmou no ltimo texto que escreveu antes de ser preso por ordem dos
fascistas.
Desta perspectiva, pde pensar as estratgias polticas mais adequadas a Leste e a Oeste: a
guerra de movimento, ataque frontal fortaleza do inimigo, como se viu na Rssia de 1917 -experincia encerrada no Ocidente em 1848; e a guerra de posio, que obrigava o
revolucionrio a ser paciente, enquanto de sua trincheira procurava estabelecer uma nova
direo intelectual e moral - hegemonia - para a vida de sua sociedade. Mas, como se no
bastasse ser um comunista italiano, Gramsci era ainda um sardo orgulhoso. Pde, desta forma,
enfrentar os problemas de um pas fraturado pelas desigualdades entre Norte prspero e Sul
miservel, que persistiam depois de mais de meio sculo de unificao, e das quais as classes
dominantes de ambas as regies souberam tirar proveito.
A forte presena de algumas destas questes no debate poltico brasileiro atual, e o horizonte
interpretativo por elas fornecido, nos levou a conceber o evento do qual este caderno objeto.
O que nos motivou no foi apenas a realizao de um seminrio comemorativo, mas sobretudo a
discusso a respeito de como o pensamento e as categorias de anlise gramscianas tm sido
utilizadas - e s vezes at reivindicadas. Por isso, pareceu-nos que uma abordagem mais
aprofundada de temas caros ao autor pudesse ser um exerccio intelectualmente instigante.
Para realizar esta tarefa, contamos com a colaborao generosa de conferencistas edebatedores, aos quais agradecemos imensamente. No foi possvel, contudo, incluir nesta
publicao as intervenes e discusses realizadas no bloco que tratou Os Intelectuais, o Poder
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e a Construo da Nao, tal como consta no programa, por absoluta impossibilidade do
palestrante de revisar o material. Mas, resta aos interessados a possibilidade de consultar as fitas
gravadas durante o evento, disponveis ao pblico no arquivo do IEA-USP. No podemos deixar
de mencionar ainda o apoio incondicional dos membros do falecido Grupo de Teoria Poltica do
IEA em todas as atividades desenvolvidas. Porm, a concretizao de todo este trabalho
certamente no teria sido possvel sem a ajuda pronta e entusiasmada de Cludia Regina N.
Pereira, analista de comunicao soc ial do IEA.
Raquel Kritsch.
Bernardo Ricupero.
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1. COERO E CONSENTIMENTO: AS DUAS FACES DA POLTICA
Prof. Dr. O live iros S. Fe rreira
OESP e FFLCH/ USP
Estas anotaes resultam de um curso de Ps-graduao no Departamento de Poltica da
Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo. No , como se
poderia supor, uma apresentao escrita daquilo que foi comunicado aos alunos e deles
recebido. mais e menos. Menos, porque no reproduz o intercmbio de opinies nem sempre
concordantes, muito menos o raciocnio que o ardor da disputa (assim pensamos depois de tudo
acalmado) tornou brilhante. Mais, na medida em que o produto de reflexes que se foram
sedimentando, de revises talvez mais profundas do que fosse desejvel e mesmo conveniente
expor.
Muito delas parecero sem ligao com coisas escritas e publicadas no passado. Ao argir Os 45
cavaleiros hngaros, Celso Lafer disse que eu pretendera fazer um acerto de contas com o
passado. No o entendi, ento. Ao revisitar a Flandres ocupada pelos 45 cavaleiros hngaros
durante alguns meses, creio fazer conscientemente aquele acerto que, possivelmente, poca
da defesa da tese de livre-docncia, fosse presente sem que eu tivesse tido a inteno, portanto
a vontade de faz-lo.
Por que volto aos 45 cavaleiros hngaros? Porque preciso meditar sobre a teoria da
hegemonia que ali se expe. O que requer que se volte Flandres, que no mais pode ser
ocupada. Tentemos o rduo caminho, comeando pelo incio. Ettore Ciccotti l-se em
Gramsci , durante o governo Giolitti de antes de 1914, costumava com freqncia recordar um
episdio da guerra dos Trinta Anos: parece que 45 cavaleiros hngaros se estabeleceram em
Flandres e, como a populao estivesse desarmada e desmoralizada pela longa guerra,
conseguiram por mais de seis meses tiranizar o pas. Na realidade, em qualquer ocasio possvel
que surjam 45 cavaleiros hngaros onde no existe um sistema protetor das populaes inermes,
dispersas, constrangidas ao trabalho para viver e, portanto, sem condies, em momento algum,
de repelir os assaltos, as incurses, as depredaes, os golpes de mo executados por um certo
esprito de sistema e um mnimo de previso estratgica. A quase todos parece impossvel, no
entanto, que uma situao como esta dos 45 cavaleiros hngaros possa-se verificar jamais: e
nesta descrena deve-se ver um documento de inocncia poltica....
Desse texto extremamente rico, conclua eu que o grande nmero se submete aos
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numericamente poucos porque esses ltimos so organizados e situados em posies polticas
as posies que decorrem da maior ou menor probabilidade de ter mais ou menos riqueza,
prestgio e poder que se diriam ser estratgicas. Ora, olhando para trs, no me acanharia em
dizer que a referncia aos 45 cavaleiros hngaros, populao desarmada e desmoralizada pela
longa guerra, essa insistncia na fora associada a posies estratgicas no terreno poltico,
simplesmente representa uma ruptura no corpo da obra que ento submetia argio. Ela
Os 45 cavaleiros hngaros fora toda construda para negar que se pudesse falar em
hegemonia, colocando a fora como elemento dominante. A concluso a que chegava, ento,
lembrando o escrito de Ciccotti, privilegiava a fora. Sem dvida, Gramsci, ao falar do
Centauro maquiavlico, associa (e no poderia deixar de faz-lo) fora e consenso,
autoridade e hegemonia:
Outro ponto a ser fixado e desenvolvido escreve Gramsci no Caderno 13 aquele da
dupla perspectiva na ao poltica e na vida estatal. Vrios graus em que se pode apresentar a
dupla perspectiva, dos mais elementares aos mais complexos, mas que podem reduzir-se
teoricamente a dois graus fundamentais, correspondentes dupla natureza do Centauro
maquiavlico, ferina e humana, da fora e do consenso, da autoridade e da hegemonia, da
violncia e da civilizao, do momento individual e daquele universal (da Igreja e do Estado),
da agitao e da propaganda, da ttica e da estratgia.... No Caderno 8, havia dito: Como
hegemonia significa um determinado sistema de vida moral (concepo da vida etc.), eis que a
histria histria religiosa, segundo o princpio Estado-Igreja do Croce..
O sentido de hegemonia que encontrava em Gramsci e fazia meu, no sabendo ao certo se
era o de Gramsci que assimilava, ou o de Oliveiros S. Ferreira que procurava apresentar como se
de Gramsci fora era totalmente distinto daquele com que conclua o livro de ento,
reproduzindo a histria dos 45 cavaleiros hngaros. A tese era que a hegemonia resultava apenas
do consenso, que se traduzia numa bela expresso: direo intelectual e moral (eu diria, direo
cultural, intelectual e poltica) do processo. Desde os primeiros pargrafos, para no dizer da
introduo dos 45 cavaleiros, eu cuidava de mostrar que exatamente por ser uma proposio
de consenso, a hegemonia no se poderia estabelecer a menos que fosse tomada no sentido de
totalizante (falando em termos politicamente corretos), mas que c laramente totalitrio.
preciso cuidado quando se emprega a palavra consenso. A ao poltica, dos anos 60 em
diante, popularizou o termo, buscando com ele significar o acordo de todos em substituio
regra da maioria. Na verdade, os que levaram a palma nessa porfia contra a maioria queriam
dizer que um e no preciso mais do que um dos membros da associao poltica pode
impedir a ao dela em nome de seu direito de d iscordar: se um discorda, no h consenso eportanto no se decide. O consenso, nesse sentido, substantivo historicamente datado destes
tempos atuais, politicamente corretos, em que a regra da maioria, trao caracterstico das
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democracias, est sendo solapada. Ao estabelecer esse sentido de consenso, buscou-se induzir
os que ouvem ou lem a supor que a divergncia de opinies nunca de tal ordem que no se
possa, cedendo aqui, recuando acol, chegar a um ponto comum que bem pesadas as
coisas, ao fim e ao cabo nada significar para quem cede menos, pois no engaja a sua
vontade numa ao que a maioria teria estabelecido contra seu ponto de vista, mas no
estabeleceu porque ele dissentiu. Essa viso coeva do consenso , na aparncia, a quintessncia
da democracia, pois um apelo a que se respeitem os direitos do um; na essncia, a nova
forma de paralisar as decises da associao poltica quando se est em minoria.
No nesse sentido que consenso se aplica em Gramsci. Seria estranho que um bolchevista
aceitasse, no fragor da luta poltica dos anos 20 e 30, essa estranha idia de que a associao
poltica s se move por consenso; seria pedir que dom Antnio aceitasse que Lenin e Kerenski
poderiam ter resolvido suas divergncias em torno de uma mesa de conferncias, cada um
cedendo um pouco: um, aceitando o cretinismo parlamentar e deixando de lado o projeto de
tomar o Palcio de Inverno, o outro, concordando em que o partido, uma vez no poder, pode e
deve exercer a sua d itadura em nome do proletariado.
Nesse particular, no dizer que a hegemonia um conceito totalitrio e que s pode e s deve ser
entendido dessa forma porque a supremacia de uma concepo do mundo sobre outra ,
no h o que revisitar a Flandres. O que merece reviso, isto sim, pretender que os poucos
mandam no grande nmero por estar em posio estrategicamente superior. Apesar de estar em
posio poltica estrategicamente superior da populao batida pelas intempries da guerra
prolongada, os 45 cavaleiros hngaros no exerceram hegemonia sobre a Flandres e no o
fizeram porque a dominaram apenas pela fora. No relato de Ciccotti no se cuida de direo
intelectual e moral, ou de direo intelectual, cultural e poltica; trata-se to s de dominao
pela fora, do direito do mais forte. O que obriga reconhecer que depois de longas digresses
sobre a importncia de sustentar-se o primado da direo intelectual e moral sobre a fora,
transformando o Centauro maquiavlico num monstro de apenas uma face ou seria uma
fauce? eu acabava afirmando que era a fora que permitia a dominao. Que me perdoe,
hoje, Rousseau, para quem, todos sabemos, a fora nunca criou o Direito.
Ao admitir tal coisa, negada ao longo de toda a dissertao, eu isolava o social do poltico, e
com isso de certa forma negava toda uma quase-batalha intelectual durante a qual havia
procurado desqualificar a expresso Cincia Poltica, buscando substitu-la por outra mais
concorde com a realidade das coisas: Sociologia Poltica. Ao mal interpretar o relato de
Ciccotti, separava claramente Sociologia e Poltica, e com isso talvez tivesse feito a alegria dos
que buscavam afirmar a autonomia do Poltico frente ao Econmico, numa tentativa de superaro marxismo c lssico ou da vulgata.
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Hoje, ao voltar Flandres, pergunto-me se esse corte epistemolgico no seria a rigor a intuio
daquilo que tempos depois a mim se imps como realidade: que a evoluo da tcnica, a
tecnologia dos novos tempos, a informatizao da produo, dos servios, do amor, a dita
globalizao que velha como o sculo XVI no apenas apontavam (escrevia em 82) na
direo da separao entre o social (em sentido amplo) e o poltico, como j davam evidentes
sinais de que a Poltica, especialmente o Governo, hoje arte que se pratica separadamente da
sociedade global na forma em que a entendia a Sociologia clssica. Isso, muito embora os que
exercitam a arte da poltica e de governar possam ser prisioneiros de grupos de interesse que no
mais representam a sociedade, mas partes dela, um microcosmo daquele macrocosmo que
julgvamos ser coerente, ainda que distinto em suas partes constituintes, e sobre o qual o
marxismo e a Sociologia clssica e o bolchevismo e nele, especialmente Trotsky e Gramsci
construiram suas formulaes tericas.
Ao pisar de novo o solo da Flandres, preciso ter a coragem de reconhecer que Silone poderia
ter tido razo ao colocar na boca do Prof. Pickup a frase plena de heterodoxia: O homem o
homem e a sociedade a sociedade. Ou, traduzindo para nosso universo, que o Estado o
Estado e a sociedade no a sociedade, so as mulheres e os homens. O que assaz diferente.
Sobre que materiais constru, naquele ento, a teoria da hegemonia? Antes de responder a essa
questo inquietante, convm deixar claro que no prprio Gramsci poderemos encontrar vises
diferentes do que seja hegemonia. Inclusivamente esta viso, extremamente sugestiva, que
concilia a um tempo fora e persuaso, mas vai muito alm desta dicotomia sobre a qual se
discute tanto: Uma vez que existiam essas condies preliminares, j racionalizadas pelo
desenvolvimento histrico, foi relativamente fcil racionalizar a produo e o trabalho,
combinando habilmente a fora (destruio do sindicalismo operrio de base territorial) com a
persuaso (altos salrios, benefcios soc iais diversos, propaganda ideolgica e poltica habilssima)
e conseguindo centrar toda a vida do pas sobre a produo. A hegemonia nasce da fbrica e
no necessita para exercitar-se seno de uma quantidade mnima de intermedirios profissionais
da poltica e da ideologia (Cad. 22, redao final do que escrevera no C aderno 1).
Voltando atrs. Sobre que materiais constru a teoria da hegemonia? Basicamente, como dito
atrs, sobre o consenso, mas consenso no sentido em que os antigos o definiam: a solidariedade
do todo com as partes e dessas com aquele. Ora, ao longo de todo o trabalho, o que procurava
mostrar eram as dificuldades de alcanar-se essa solidariedade sem a qual a coeso social
no existe da perspectiva dos clssicos numa sociedade polissegmentada complexa (ou de
classes) em que os conflitos interindividuais e a coalescncia ou no dos segmentos so a marca
caracterstica dela, sociedade polissegmentada. Rousseau, precursor da Sociologia como queriaDurkheim, chamava ateno para o fato de que cada um de ns pertence a diferentes grupos
sociais, diversas sociedades particulares, que guardam com seus membros uma relao
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especial: a vontade delas geral em relao a seus membros, mas particular em relao
sociedade global, que tem uma vontade geral: podemos ser bons pais de famlia, sacerdotes
zelosos, bravos soldados... e maus cidados.
Ora, fcil compreender como se pode ser bom pai de famlia e at bravo soldado: somos assim
porque aderimos aos padres de comportamento imperantes no grupo, interiorizamos normas de
conduta vigentes e procuramos fazer que o comportamento real no se afaste muito daquele
prescrito idealmente pelas normas, a fim de fugir s sanes que atingem os que violam essas
mesmas normas. O que de menos fcil compreenso portanto mais difcil de aceitar
emocionalmente e explicar intelectualmente como se pode ser bom cidado,
pertencendo a sociedades particulares, grupos sociais haja ou no referncia terica s classes
sociais, que so inclusivas com relao aos grupos que as compem e por isso mesmo
multifuncionais como queria Gurvitch , cada um desses grupos tendo elaborado na interao
de seus componentes e dele, grupo, com o meio ambiente circundante, sua especial viso do
mundo nem sempre concorde com o padro do bom cidado estabelecido pelos Cdigos.
Sem dvida, existe o temor da sano legal para os atos que contrariem as normas da Ordem
J urdica vigente e o ser bom cidado poderia ser definido como a obedincia s normas,
qualquer que seja o critrio de legitimao delas que adotemos. Mas a solidariedade social,
todos sabemos, no se funda exclusivamente sobre o temor da sano legal ou a expectativa da
recompensa pelo fato de respeitarmos padres abstratos de legalidade. Gramsci via o problema
com clareza e o colocava em termos muito parecidos com os de Rousseau. por isso que,
tambm para ele, ainda que disfarada aqui e ali com as boas intenes bolchevistas, brota a
idia de que o indviduo pertence a vrios grupos, cada qual o solicitando de uma maneira
especial.
Antes de prosseguir, gostaria de assinalar que, na crtica que faz aos bolchevistas, Rodolfo
Mondolfo, que foi professor de Gramsci, v em dom Antonio um dos poucos com estatura de
filsofo. Filsofo ou aprendiz de filsofo, pouco importa, o fato que Gramsci sabia que a vida
moderna se passava numa sociedade de classes, e eu diria que ele no hesitaria em admitir que,
se se podem encontrar fraces de classe na burguesia, seguramente elas tambm existiro no
proletariado. Isso, por um lado. Por outro, dom Antonio no era apenas um marxista, nem um
filsofo ou aprendiz de filsofo; diria que tinha uma viso sociolgica clssica! profunda dos
problemas com os quais se defrontava na sua reflexo no crcere. essa viso sociolgica dos
problemas que explica a lucidez com que encara a oposio entre o Norte e o Sul, a cidade e o
campo, a importncia da composio demogrfica das sociedades europias e da histria que
elas vivenc iaram para explicar o porque do fordismo no ter deitado razes na Europa.
Mais do que essa viso sociolgica, importa ter presente a percepo embora seja um
adversrio da psicanlise freudiana da importncia que para ele tm, na vida das soc iedades,
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as pocas de libertinismo, especialmente o iluminista, e a definio do papel da mulher na
formulao de uma nova concepo do mundo. Este pequeno trecho do caderno 22, redao
final do que se dissera no caderno 1, diz tudo a este respeito: A questo tico-civil mais
importante ligada questo sexual aquela da formao de uma nova personalidade feminina;
enquanto a mulher no tiver atingido no s uma real independncia frente ao homem, mas
tambm um novo modo de conceber a si prpria e sua parte nas relaes sexuais, a questo
sexual permanecer rica de caracteres mrbidos e ser necessrio ser cauteloso em todas as
inovaes legislativas.
Mas voltemos ao que interessa. Socilogo, Gramsci sabia que a sociedade era polissegmentada
complexa. O trecho que citarei em seguida guarda estranhas ressonncias com o Rousseau da
Economia poltica, que mencionei mais ac ima: Acontece sempre que as pessoas pertencem a
mais de uma sociedade particular e amide a sociedades que essencialmente [variante
interlinear: objetivamente] esto em contraste entre si.
J notei em outra parte continua ele que em uma determinada soc iedade ningum
desorganizado e sem partido, mesmo que se entendam organizao e partido em sentido lato, e
no formal. Nesta multiplicidade de sociedades particulares, de carter dplice, natural e
contratual ou voluntrio, uma ou outra prevalesce relativa ou absolutamente, constituindo o
aparato hegemnico de um grupo social sobre o resto da populao (ou sociedade civil), base
do Estado compreendido estreitamente como aparato governativo-coercitivo. Esse texto de
redao nica, no Caderno 6. (inverti a ordem dos pargrafos).
Quando se busca compreender como se estabelece a hegemonia desse grupo social sobre o
resto da populao, -se forosamente levado a considerar um problema que muitas vezes
ignorado nas anlises polticas e, diria mesmo, at nas da boa Sociologia: a lio do Prof.
Pickup, esse estranho personagem de Silone na Escola dos ditadores. No que se possa
sacramentar a afirmao de que o homem o homem e a sociedade a sociedade. Pickup
ter razo, porm, se se pensar que a sociedade (qualquer que seja ela, particular ou global) s
pode existir como ns a pretendemos estudar natural e contratual ou voluntria em funo
da interao dos indivduos que a compem. Durkheim falava na coalescncia dos segmentos
para explicar os diferentes tipos de sociedade global. Gramsci vai mais longe: como o indivduo
pertence a diferentes grupos, da inter-relao entre os indviduos que o grupo se constituir, e
a relao entre o grupo e os indivduos que permitir a cada um de ns escolher sua viso do
mundo. Eu diria que h, nos Cadernos, uma quase insistncia na importncia que tem, para a
anlise terica e para a anlise do que se d na prtica, a compreenso de c omo, considerando
a psicologia individual, se forma a conscincia da pertena a um grupo, alm da compreensodo comportamento do indivduo em relao. Ousaria mesmo dizer que se poderia traduzir muitas
passagens dos Cadernos para a linguagem de Gurvitch: da interao entre os diferentes Eu
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com os Tu e os Ele que resulta o Ns e cada um desses seres singulares uma
individualidade com dupla conscincia, diria Gramsci, a verbal e a real.
Ora, a conscincia real fruto de um processo em que o indivduo e podemos ousar dizer, o
grupo toma conscincia dos reais fatores de poder que produzem sua condio de
subordinao. Essa tomada de conscincia, porm, convm ter presente, quando resulta de um
processo espontneo, que vem de dentro do indivduo ou da prxis grupal, tem como nico
efeito uma paralisia na ao, o indviduo ou o grupo no sabendo se aceita os valores que
internalizou na sua conscincia verbal, os quais tornam a ligar um grupo social determinado, [a
influir] na conduta moral, na direo da vontade, de modo mais ou menos enrgico; ou se, pelo
contrrio, adere queles valores que nascem desse reiterado esforo de aplicar-se realidade e
sofrer dela seus influxos a famosa prxis que se autosubverte to ressaltada por Mondolfo. A
passagem dessa conscincia verbal para a conscincia real pode dar-se, porm, de maneira no
to espontnea e a idia do estrangeiro secular, que Becker popularizou na sua leitura de
von Wiese, extremamente til neste contexto. o estrangeiro secular que leva os cafoni de
Fontamara a chegar idia de fazer um jornal que tem como ttulo Que devemos fazer?. o
estrangeiro sagrado, o membro do Agitprop, quem, na linguagem de Gramsci faz o indivduo
ter conscincia de ser parte de uma determinada fora hegemnica, primeira fase para uma
ulterior e progressiva autoconscincia na qual teoria e prtica finalmente se unificam ainda,
diria eu, que a teoria seja apenas a vulgata.
No me estenderei para no prejudicar a discusso. Mas ressaltarei que so muitos os trechos em
que Gramsci ressalta a necessidade de eliminar os intelectuais dos grupos adversrios pela
fora armada ou pela cooptao a fim de que um grupo possa estabelecer a sua direo
intelectual sobre os intelectuais, que sero os formuladores especializados ele usa a expresso
skilled encarregados de transmitir aos simples a viso do mundo do grupo dirigente.
Ressalto que o importante a reter que Gramsci tem conscincia de que pertencemos a N
sociedades particulares, como diria Rousseau. essa dificuldade de se ter uma viso do mundo
uniforme, vlida e vigente para a sociedade ou os grupos que se deseja dirigir, que torna o
estabelecimento da hegemonia cada vez mais difcil. Sobretudo quando os indivduos e por
que no os grupos? so guiados por aquilo que ele chama de um sentimento quase instintivo
de liberdade, autonomia e poder. Rousseau, sabendo das dificuldades de se estabelecer a
Vontade Geral sobre as sociedades particulares, escreveu que quem viola as regras do contrato
no se beneficia de suas vantagens. No havendo o contrato e sendo a lei estatal mero
instrumento de cuja ao se pode fugir de muitas maneiras, de que modos e maneiras
estabelecer a hegemonia de um grupo sobre intelectuais e desses sobre classes? Especialmenteagora que as frmulas totalitrias esto fora de moda e, mais do que isso, provaram na queda do
Imprio Sovitico que 70 anos de culto ao Partido apenas permitiram que uma parte da massa
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marchasse, ostentando os smbolos do antigo regime, e a Igreja Orotodoxa voltasse triunfante.
Para que haja hegemonia, preciso conquistar as conscincias dos simples, tambm eles
movidos pelo sentimento de autonomia e independncia, e tambm eles membros de
sociedades particulares. Talvez por ter esses problemas em vista que Gramsci deixa entrever
com clareza que sua viso de hegemonia significa o predomnio de um grupo sobre todos os
demais, oferecendo aos membros deles, para que substituam seus antigos valores por novos, uma
perspectiva, uma viso do mundo que seja uma nova religio no sentido de Crocce, sendo
portanto totalitria. E por isso que ele tem como seu adversrio no a burguesia, mas a
Companhia de J esus. porque sabe que, no seu af de proselitismo, a Companhia sac rificava a
F Liturgia; da mesma maneira que sabia que a Igreja Catlica tratava diferentemente, da
perspectiva da liberdade de crtica e de conhecimento, os intelectuais e os simples. A
Companhia, a servio do Papa, era o grupo que instrua os intelectuais; os padres, fossem jesutas
ou seculares ou de quaisquer ordens, cuidariam de trazer os simples para o redil onde
aprenderiam que acima de tudo est Deus, senhor de todas as coisas, depois o prncipe Torlonia,
senhor da Terra, depois os guardas armados do prncipe Torlonia, depois os cachorros, depois eles,
os cafoni.
Muito obrigado.
Prof. Dr. Cc e ro Romo d e A raujoFFLCH/ USP
Minha interveno apenas procurar compreender melhor a anlise do Prof. Oliveiros para que,
no debate talvez, possamos refinar a reviso que ele faz de seu trabalho de livre-docncia.
Ao ler o p a p e r que escreveu para este colquio, no qual o Prof. Oliveiros prope a sua reviso,
fiquei tentado a fazer comparaes com autores que venho estudando mais intensamente nosltimos tempos, e que talvez possam ajudar a situar melhor (ao menos para mim) o debate que
estamos fazendo aqui.
Ao falar de sociedade polissegmentada complexa, o Prof. Oliveiros faz um paralelo entre
Gramsci, Durkheim e o Rousseau da Ec o no m ia Poltic a. Gostaria de fazer mais um paralelo e
lembrar o que o filsofo norte-americano J ohn Rawls recentemente chamou de "o fato do
pluralismo". Os indivduos num complexo polissegmentado pertencem a vrias pequenas
sociedades particulares que, como cita o Prof. Oliveiros, "amide esto essencialmente emcontraste entre si". Ao interagir com diferentes sociedades particulares o indivduo "disputado"
por diferentes concepes de mundo. Mas o que o "fato do pluralismo" em Rawls?
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Grosseiramente falando, a coexistncia numa mesma sociedade de diferentes - e no raro
contraditrias - concepes totais (ou "abrangentes") de mundo, organizadas por sua vez em
diferentes grupos ou pequenas soc iedades particulares.
Logo no comeo de seu ltimo livro, Lib e ra lism o Poltic o(Mxico: Fondo de Cultura, 1995), Rawls
considera duas alternativas ao "fato do pluralismo": ou sua dissoluo pela fora (este o que
chama o fato da opresso), supondo que os indivduos e grupos que abraam diferentes
concepes do mundo considerem seu cultivo um aspecto essencial, inegocivel de suas vidas;
ou sua d issoluo pela converso voluntria de todos a uma s concepo. Curiosamente, para
Rawls, a primeira alternativa plausvel, embora necessariamente instvel e significando, na
prtica, o fim de qualquer forma de democracia liberal. Mas a segunda considerada muito
improvvel, se se preservar nela o ambiente liberal-democrtico. Por qu? Vou c itar o autor:
"A diversidade de doutrinas compreensivas, religiosas, filosficas e morais, que encontramos nas
sociedades democrticas modernas, no constituem uma mera situao histrica que
repentinamente poder terminar; uma caracterstica permanente da cultura pblica da
democracia. Nas condies polticas e sociais que asseguram os direitos e as liberdades bsicas
de instituies livres, uma diversidade de doutrinas compreensivas opostas e inconciliveis surgir
e persistir, se que tal diversidade j no est ocorrendo." (Lib e ra lism o Poltic o, p.57)
O diagnstico de Rawls, portanto, o seguinte: quanto mais desenvolvidas so as instituies
democrticas, menor a chance de que uma concepo de mundo venha a obter predomnio
sobre as demais. Ou ainda: maior a chance de o pluralismo se ampliar. Para que haja a
hegemonia de uma concepo, s mesmo atravs da eliminao forada das instituies
democrticas.
A citao que o Prof. Oliveiros faz de um trecho dos Ca d ernos d o Crc erenos leva de fato a
pensar, contudo, que Gramsci via a segunda alternativa como plausvel e, talvez, como a nica
plausvel. Afinal, como a coeso soc ial, a dominao poltica e, mais amplamente, a hegemonia,
seria possvel se as sociedades estivessem realmente recortadas por concepes de mundo em
choque entre si? No teria necessariamente de existir uma "dominante"? A pergunta me parece
muito pertinente. E ela coloca alguns obstculos sada idealizada por Rawls em sua sociedade
bem-ordenada. O prprio autor o reconhece. Cito-o novamente:
"As lutas mais agudas se do pelos mais altos valores, pelo que mais desejvel: pela religio,
pelas vises filosficas acerca do mundo e da vida, e por diferentes concepes morais do bem.
Deveria parecer-nos extraordinrio, ento, que, estando em to profunda oposio nestesaspectos, a cooperao justa entre os cidados (...) possa ser possvel. Na realidade, a
experinc ia histrica nos sugere que d ificilmente essa cooperao se d." (idem, p.29)
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Todavia, o fato do pluralismo a partir do qual Rawls faz suas reflexes tambm me parece
uma percepo igualmente forte, e se impe a ns como uma realidade incontornvel das
sociedades contemporneas, pelo menos no Ocidente. Ainda que discordemos da resposta
rawlsiana, ainda que a achemos utpica, considero seu ponto de partida bastante razovel.
(Digo isso porque, a despeito das crticas que se faz a Rawls nesse ponto, no acho que a
diversidade e o pluralismo a que ele se refere sejam meras iluses, como se por trs delas operasse
uma silenciosa concepo nica de mundo.)
Como o Prof. Oliveiros salientou, Gramsci tem um olhar de socilogo - e de socilogo clssico.
Como tal, ele est interessado em entender o mecanismo pelo qual concepes de mundo
ascendem, atingem seu apogeu e depois decaem, dando lugar a outras. Como socilogo, a
impresso que temos que Gramsci v essas ascenses e quedas das ideologias como um dado
permanente da condio humana.
Mas Gramsci no foi apenas um observador do mundo. Ele tambm foi um agente da histria, um
intelectual comunista, interessado em cultivar e dar alento a uma certa concepo de mundo.
Fao ento a vocs a seguinte pergunta, e acho que ela pode ajudar a refinar a reviso do Prof.
Oliveiros: como o Gramsci comunista veria o Gramsci socilogo? Fao essa pergunta porque ela
nos permite refletir no s sobre como Gramsci teria pensado a fo rmageral das concepes de
mundo no passado e no presente que o trabalho do socilogo , mas sobre o con tedode
suaconcepo de mundo, de seu socialismo ou de seu materialismo histrico. Em que ela seria
diferente das concepes que o antecederam ou que lhe eram concorrentes? O que ela teria a
propor de melhor? Que possibilidades, que campo de coisas novas ela ofereceria para a
existncia humana que as outras teriam sido incapazes de oferecer? Que razes, afinal, ele teria a
oferecer para pensar que seu socialismo era uma concepo de mundo capaz de disputar a
hegemonia da sociedade com as concorrentes?
No me lembro se Gramsci chegou a trabalhar questes como essas em seus textos. Mas elas
poderiam esclarecer melhor se, ao contrrio do Gramsci socilogo, o Gramsci socialista
vislumbraria a possibilidade de um futuro radicalmente diferente do passado, onde no mais as
concepes totais de mundo dominantes se sucederiam umas s outras inexoravelmente, como
uma lei de ferro. Ser que, neste caso, ele no vislumbraria uma resposta d iferente, indita, para o
problema da soc iedade polissegmentada, que comportasse, por exemplo (como em Rawls), uma
coexistncia estvel e razoavelmente tolerante de diferentes e contraditrias concepes de
mundo? Ou ser que, agora talvez em consonncia com um certo tipo de rac ioc nio sociolgico,
o socialismo de Gramsci no representaria, afinal (pelo menos na forma), uma ruptura radicalcom o passado, desde que seu predomnio ideolgico no seria algo muito diferente, por
exemplo, do predomnio ideolgico do catolicismo no perodo medieval?
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So questes que no esto nada claras para mim, e gostaria que o Prof. Oliveiros as
comentasse.
Uma reflexo complementar aos tpicos acima diz respeito a possveis alternativas, em Gramsci,
ao conceito de "ideologia" ou de "concepo de mundo". At aqui, eu s pude fazer um paralelo
entre o fato do pluralismo de Rawls e a sociedade polissegmentada complexa porque estou
supondo uma convergncia acerca do que queremos dizer quando usamos o termo
concepo de mundo. Acontece que em Rawls o pluralismo possvel e estvel apenas
porque h uma profunda diferena entre ter uma concepo de mundo e ter uma concepo
de justia: a primeira particular a um indivduo ou grupo, e a mais abrangente possvel; a
segunda pode ser comum a toda sociedade e, ao mesmo tempo, bastante restrita, posto que
se trata apenas de uma concepo de cooperao social. Vou ilustrar como entendo essa
diferena com uma experincia pessoal que tive recentemente:
Outro dia me pediram para ler um documento escrito por um advogado, no qual este defendia
certa causa mobilizando uma srie de artigos da Constituio, alm de normas do direito civil e
comercial. O documento me pareceu impecvel. Mas qual no foi minha surpresa ao conhec-lo
pessoalmente, horas depois, e descobrir que se tratava no s de um advogado, mas de um lder
pentecostal! Nada no documento insinuava o menor trao de suas convices religiosas. E foi
sobre isso, e no sobre direito, que acabamos conversando. Ento falou-me abertamente sobre
suas crenas: descreveu-me como a humanidade surgiu sobre a Terra; como ela cresceu a partir
de Ado e Eva e quais eram os propsitos divinos ao cri-los; como um grupo de anjos liderados
por Lcifer se revoltou contra Deus e como o mal surgiu ento no meio dos homens. Tambm me
relatou com grande convico o futuro que nos est reservado, a todos, como o mundo chegar
ao fim e porque neste dia s haver para cada um de ns duas opes (e no trs, como
pensam os catlicos): o cu ou o inferno.
uma pena que nossa conversa no tenha sido suficientemente longa para que tivesse a
chance de lhe fazer uma pergunta que, para mim, crucial: como ele aliava suas convices
religiosas defesa da lei e, em particular, da Constituio brasileira? Como ele encaixava isso
dentro da viso que ele me relatou? Seria uma aliana ocasional ou algo mais slido? Um
casamento por convenincia ou um casamento por amor? Estou inclinado a achar que, nele,
trata-se de algo mais slido.
De qualquer forma, essa conversa circunscreve bem o que estou entendendo aqui por
concepo de mundo: uma viso totalizante da natureza, do homem, da histria. No precisa sers de tipo religioso, como no caso deste advogado, mas tem de ser totalizante. J a concepo
de cooperao social se refere a algo bem mais limitado. Isto , se refere apenas queles
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compromissos polticos e morais que possibilitam um pentecostal entabular uma discusso
pblica, e mesmo um conflito mais ou menos pacfico, com um no-pentecostal: coisas como a
Constituio, as normas do direito etc.
Pois bem. Quero com esse ponto apenas refrasear a questo que apresentei acima: ser que em
Gramsci a hegemonia necessariamente apenas a hegemonia de vises dessa espcie? Ser
que seu nico modelo de hegemonia a do tipo exercido pela Igreja Catlica medieval ou
daquela que seria exercida pelos pentecostais caso eles conquistassem os coraes e mentes
dos que vivem em nossa soc iedade? Afinal: o que impediria Gramsci de pensar que a hegemonia
pode ser, no futuro, a hegemonia no de uma concepo de mundo, mas de uma viso mais
restrita, e portanto mais modesta, algo que envolvesse, apenas e simplesmente, como em Rawls,
os t e rmos, sempre alterveis, da interao poltica e social dos diferentes grupos e indivduos de
uma sociedade pluralista?
Prof. Dr. Leonel Itaussu Almeida Mello
FFLCH/ USP
A noo de hegemonia um dos conceitos-chave no pensamento poltico de Antnio Gramsci.
Embora atribusse a paternidade do conceito a Lnin - que enfatizava na hegemonia o momentoda coero -, Gramsci enriquece-o com uma interpretao original, acrescentando-lhe nova
amplitude ao enfatizar na hegemonia o momento de direo cultural e ideolgica. A
hegemonia , na imagem de Maria-Antonietta Macciocchi, a parte visvel do iceberg sob a qual
se encontra todo o corpo terico-poltico gramsciano. Dito de outra forma, todo o pensamento
poltico de Gramsci (a noo de bloco histrico, a distino entre sociedade civil e sociedade
poltica, o papel do intelectual como funcionrio da superestrutura e a concepo do partido
poltico como o Prncipe Moderno) articula-se-ia em torno do conceito de hegemonia. Embora
no seja a nica, esta seria, pois, sua mais importante contribuio para a teoria marxista.
Para Gramsci, a estrutura a base scio-econmica em que se assenta e pela qual
determinada, em ltima instncia, a superestrutura poltico-ideolgica. A estrutura seria formada
pelo conjunto das foras materiais e do mundo da produo, ou seja, a totalidade das foras
produtivas e as correspondentes relaes de produo. A superestrutura abarcaria duas grandes
esferas: a sociedade civil (ou ideologia) e a sociedade poltica (ou Estado). Podemos distinguir,
afirma Gramsci, dois grandes nveis na superestrutura, o que pode ser designado como
sociedade civil, isto , o conjunto dos organismos, habitualmente chamados internos eprivados, e o da sociedade poltica ou Estado, correspondendo respectivamente funo de
hegemonia que o grupo dirigente exerce sobre o conjunto social e da dominao direta ou
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comando, que se expressa atravs do Estado e do poder jurdico.
O vnculo orgnico e a unidade dialtica entre a estrutura e a superestrutura engendram o bloco
histrico, no qual as foras materiais so o contedo e as ideologias a forma. A sociedade civil
englobaria a extensa rede de funes educativas e ideolgicas; a sociedade poltica - o Estado
em sentido estrito - exerceria o monoplio da fora e da coero. O Estado, agora em sentido
amplo, seria formado pelo conjunto da sociedade civil e da sociedade poltica. Pode-se dizer,
segundo Gramsci, que o Estado a sociedade poltica + a sociedade civil: uma hegemonia
protegida pela coero.
A articulao orgnica do bloco histrico, isto , a ligao entre estrutura e superestrutura, e, no
interior da superestrutura, a ligao entre sociedade civil e sociedade poltica, realizada pelos
intelectuais. Os intelectuais, escreve Gramsci, so os empregados do grupo dominante para
o exerccio das funes subalternas da hegemonia social e do governo poltico. A mais original
contribuio da anlise gramsciana est, portanto, no papel que a sociedade civil desempenha
no seio do b loco histrico. Enquanto Marx pensa a soc iedade c ivil como o conjunto das relaes
econmicas, ou seja, como um momento da estrutura, Gramsci situa a sociedade civil na esfera
da superestrutura ideolgica. esse novo enfoque que possibilita o estudo, em toda a sua
complexidade, da noo de hegemonia.
Para J ean-Marc Piotte, Gramsci inspira-se em Croce e em Lnin para formular o conceito de
hegemonia. De Croce, retira a significao cultural de hegemonia; de Lenin, a significao
poltica. Ainda que identificando a noo de hegemonia com a ditadura do proletariado, o
conceito gramsciano mais amplo que o leninista, pois, como foi dito, engloba o aspecto de
direo cultural e ideolgica. Assim, sociedade civil caberia a funo de hegemonia. E
sociedade poltica, a de dominao. sociedade civil competiria a formao do consenso;
sociedade poltica, o exerccio da coero.
Na noo de hegemonia gramsciana, a classe que monopoliza o poder deve ser a um tempo
dirigente e dominante. Uma classe social dirigente em relao s classes auxiliares ou aliadas,
das quais obtm a adeso ativa, a participao e o consentimento para o exerccio do poder.
Uma classe dominante em relao s classes opositoras, s quais deve neutralizar - quando e se
necessrio - pelo uso da coero. A supremacia de um grupo social, afirma Gramsci,
manisfesta-se de duas maneiras, como dominao e como direo intelectual e moral. Um
grupo social dominante em relao a grupos adversos, que ele busca liquidar ou mesmo
submeter pela fora das armas, e dirigente em relao a grupos que lhe so prximos ou
aliados.
Cabe, pois, distinguir no interior do bloco histrico trs tipos de grupos sociais. Um primeiro,
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formado pela classe fundamental que exerce a funo diretiva do sistema hegemnico; um
segundo, integrado pelas classes auxiliares que, atravs do consenso, ampliam a base social da
hegemonia; e um terceiro, composto pelas classes subalternas que, por serem opositoras, esto
marginalizadas do sistema hegemnico.
Aos intelectuais cabe a funo de cimentar a poltica de alianas, fornecendo a soldadura do
bloco histrico. Primeiro, imprimindo classe fundamental um elevado grau de homogeneidade
e autoconscincia, isto , transformando-a de classe em si em uma classe para si. Em seguida,
assimilando ou suprimindo tanto os intelectuais tradicionais da antiga classe hegemnica quanto
os intelectuais orgnicos das classes auxiliares e subalternas. Por fim, difundindo a ideologia da
classe fundamental no conjunto do organismo social - ou seja, universalizando-a-, de forma a
obter o consenso necessrio ao funcionamento do sistema hegemnico. Enfocado segundo a
tica da classe operria, o partido revolucionrio o intelectual coletivo que, cumprindo as
mesmas funes do intelectual orgnico, desenvolve nela a autoconscincia proletria. Dito de
outra forma, o partido deve forjar um sistema de alianas que articule as classes subalternas em
torno da classe operria, criando a base social necessria formao de um novo bloco
histrico.
Abordando a questo do partido como o centro de sua elaborao terica, Gramsci realiza uma
nova leitura de Maquiavel, repensando e atualizando o mito do Prncipe. Para ele, as tarefas
fundamentais do Prncipe moderno ultrapassam os limites do carisma de um heri individual - o
Condo t t i e ro renascentista - e s podem ser realizadas por um partido poltico, capaz de forjar
uma vontade coletiva nacional-popular e de edificar um novo tipo de Estado. propsito,
escreve: O Prncipe moderno, o mito-prncipe, no pode ser uma pessoal real, um indivduo
concreto; s pode ser um organismo, um elemento de sociedade complexo no qual comece a
concretizar-se uma vontade coletiva reconhecida e afirmada parcialmente em ao. Esse
organismo j foi dado pelo desenvolvimento histrico e o partido poltico; a primeira clula na
qual se resumem os germes de vontade coletiva que tendem a vir a ser universais e totais.
Caberia, pois, ao partido revolucionrio - atravs da aliana entre a classe operria e as demais
classes subalternas - criar um novo sistema hegemnico e assumir a direo da sociedade civil.
Essa seria a condio preliminar e necessria para o enfrentamento final com a classe
antagnica, de forma a arrebatar-lhe o domnio do Estado e organizar as bases de um novo
bloco histrico.
A originalidade do conceito de hegemonia e sua importncia na filosofia da prxis se explicitam
na elaborao de diferentes estratgias para o Oriente (pases semi-industrializados) e o
Ocidente (pases industrializados). Para tanto, Gramsci estabelece a comparao entre a artemilitar e a arte da poltica. Na guerra de movimento, a artilharia abre brechas nas linhas
inimigas, pelas quais irrompe a infantaria e obtm uma vitria imediata e decisiva. Na guerra de
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posio, o equilbrio de foras entre os antagonistas implica uma estratgia de desgaste e a
perspectiva de uma vitria a longo prazo. Na arte da poltica, a guerra de movimento seria o
ataque direto e frontal ao poder, do qual resultaria a conquista imediata do aparelho de Estado.
A guerra de posio designaria, por sua vez, uma luta prolongada pela obteno da
hegemonia na sociedade civil, como condio prvia para o domnio da sociedade poltica. As
crises econmicas, que enfraquecem e desorganizam momentaneamente as foras inimigas,
desempenhariam no plano da poltica o papel da artilharia pesada na arte militar.
Na Rssia de 1917, os bolcheviques conquistaram o poder de assalto e puderam conservar o
domnio do Estado, pois a sociedade poltica al era tudo e a sociedade civil no era nada.
Em outras palavras, o domnio do aparelho de Estado possibilitou classe operria estender em
poucas semanas sua hegemonia ao campesinato e assumir o controle dos centros vitais e dos
pontos estratgicos do pas. No Oriente, escreve Gramsci, o Estado era tudo, a sociedade civil
era primria e gelatinosa; no Ocidente, ao contrrio, existia uma correlao eficaz entre o Estado
e a sociedade civil, e a um tremor do Estado podia ver-se uma robusta estrutura da sociedade
civil. O Estado era apenas a trincheira avanada, atrs da qual existia uma poderosa cadeia de
fortalezas e casamatas (...)
Dessa diferenc iao fundamental entre Oriente e Ocidente - cujos exemplos extremos eram a
Rssia de 1917 e a Itlia de 1922 - Gramsci extrai importantes concluses de ordem estratgica.
Na Itlia, contrariamente ao que sucedera na Rssia, a crise desorganizou a classe operria e
culminou com a vitria do fascismo. Ali, o desenvolvimento do capitalismo industrial conduziu
democrac ia liberal-burguesa e engendrou uma soc iedade c ivil forte, complexa e articulada, que
possua a uma correlao eficaz com o Estado. Como decorrncia dessa correlao eficaz, a
debilidade conjuntural do Estado em 1920-22 foi compensada pelo surgimento, na esfera da
sociedade civil, de grupos para-militares que - apoiados pelos capitalistas, latifundirios e
camadas mdias - garantiram pela fora a sobrevivncia do Estado.
A primazia da sociedade civil sobre o Estado nos pases capitalistas avanados levou Gramsci a
traar para o Ocidente uma estratgia distinta da que fora empregada no Oriente. Dito de
outra forma, no Ocidente a guerra de movimento deveria ceder lugar guerra de posio.
A luta pela conquista de uma hegemonia incontestvel sobre a sociedade civil, a obteno de
um vigoroso apoio das classes subalternas, a formao de uma ampla rede de alianas polticas
e a construo de um novo bloco histrico que oferecesse uma clara alternativa ao bloco
histrico dominante, todas essas condies deveriam necessariamente preceder a conquista do
aparelho de Estado. Em sntese, nos pases capitalistas avanados do Ocidente, onde existia um
equilbrio adequado entre sociedade civil e sociedade poltica, era imprescindvel, para umanova classe que pretendesse ascender ao poder, primeiro, tornar-se dirigente na sociedade civil,
para, depois de conquistada essa direo moral e intelectual, tornar-se finalmente dominante
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no Estado.
Em 1928, quando do julgamento de Gramsci, o representante do Estado fascista lanou sobre o
acusado poltico o seguinte antema: preciso impedir esse crebro de pensar por vinte anos.
Em 1937, aps uma dcada de martrio nas masmorras do fascismo, morria Antnio Gramsci. Em
1997, sessenta anos depois de sua morte, os Ca d ernos d o Crc ere acrescentam uma nova e
grandiosa dimenso estatura de Gramsci como ser humano, personagem histrico, terico
marxista e dirigente poltico da classe operria. Quanto memria de seu verdugo, no ficou
nem poeira daquele esbirro do fascismo, e seu nome perdeu-se para sempre nos esgotos da
Histria. Antnio Gramsci, porm, imortalizado nos Quade rn i , viver pela eternidade ou, para usar
suas prprias palavras, fr ewig.
________________________
Prof. Dr. Oliveiros S. Ferreira- Agradeo as intervenes dos colegas. Bom, primeiro, no fundo, o
que eu pretendi fazer foi simplesmente dizer, voltando Flandres, que extremamente difcil
estabelecer a hegemonia baseando-se simplesmente na fora. Segundo: eu creio que a
comparao levantada aqui entre a Flandres e o Oriente um tanto quanto exagerada.
Encontraremos reflexes especficas sobre o Oriente, em que se apresenta a soc iedade civil como
gelatinosa. At o velho Trotski diria que o capitalismo na Rssia foi uma criao do Estado e que a
sociedade civil no tinha condies para isso. Mas, imaginar que a Flandres fosse gelatinosa por
ter sido destruda pela guerra - a economia destruda pela guerra, a sociedade dilacerada pela
guerra, embora uma guerra prolongada - nos permitiria ousar dizer que os pases que foram
destrudos pela primeira e segunda guerras, estavam na situao da Flandres - o que no
verdade. Creio que a comparar Flandres com o Oriente , digamos, levar o poder um pouco
longe demais.
Em segundo lugar, a referncia ao Palcio de Inverno, recordou-me o livro de um coronel
canadense - que eu li h muito tempo - chamado Go lpe de Estad o .Ele dizia que, se houvesse um
regimento fiel, a revoluo no teria acontecido. De incio, o Leonel tem toda a razo. Agora,
sucede que a guerra civil, que foi at 21, se no me engano, no se deu apenas porque as
potncias ocidentais fizeram a sua interveno: os generais brancos no teriam reduzido o poder
sovitico, em novembro de 18, ao que fra o antigo gro-ducado de Moscou, no fosse a
adeso de massas. De massas que acreditavam na igreja ortodoxa, que acreditavam no czar. O
Gramsci dizia que a revoluo s tinha chegado ao campo quando o primeiro soviete foi criado
no campo, em 1923. Qual era a situao do partido? O partido estava na guerra civil. E guerra
civil e hegemonia realmente no combinam - embora no devssemos deixar de refletir sobre oque Trotski dizia sobre a organizao: sem dvida, foi essencial para que o Exrcito Vermelho
pudesse vencer a guerra civil. Mas se no fossem as idias da revoluo - vamos admitir que seja
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propaganda - a organizao teria sido ineficiente. De maneira que, digamos, no plano das idias,
ns podemos realmente colocar as coisas assim.
Eu ainda chamaria a ateno para uma outra coisa: se lermos com ateno os Cade rnos, no
encontraremos uma definio nica de Gramsci do que seja hegemonia. por isso que eu
questionei, a certa altura, se era o Oliveiros que estava interpretando o Gramsci, ou se o Gramsci
que eu lia era o Gramsci que eu colocava nas minhas palavras. Eu tenho a impresso que foi um
pouco isto: eu pensei um pouco em encontrar apoio no Gramsci. Fui l e encontrei! Mas vejam, a
hegemonia para o G ramsci a um tempo fora e consenso: direo intelectual e moral e, mais
do que isso, a hegemonia funo. O chefe de estado exerce, pela sua funo, a hegemonia - o
que realmente complica qualquer tentativa de se chegar a uma definio precisa do que o
Gramsci pretendia dizer sobre hegemonia.
Uma observao ainda sobre o que o Leonel disse: que aps a conquista do poder, o grupo que
o conquistou - ainda que seja uma sociedade Oriental - tende se tornar hegemnico. Tem de se
transformar em dirigente. Isso no ortodoxia: quando vou ao poder, eu j tenho de ser
dirigente. Isso est c laro no Gramsci, se vocs lembrarem da citao. Porque, notemos o seguinte:
os hegemnicos no somos ns, que estamos reunidos aqui nesta sala, no; ns somos os
intelectuais, os instrumentos do grupo hegemnico, quer dizer, o puro Gramsci e as guerras de
posies. Sem dvida alguma, a guerra de posio uma noo gramsciana; mas necessrio
ver, eu creio, bom que se diga, que ao se fixar no poder, esquecemos as transformaes que se
do no seio da sociedade, que alteram as relaes de fora, as relaes de poder. Esquecemos
que os revolucionrios - que entendem dessas coisas muito mais do que ns - tinham essas
transformaes da sociedade em mente. Lnin quis atrasar - e atrasou tanto quanto possvel - a
insurreio, porque ele queria ter a maioria na turma: queria ter uma espcie de legitimidade
popular para tomar o poder. Quer dizer, ele no estava preocupado exclusivamente com o
programa do poder: estava preocupado com a repercusso que isso teria sobre a populao.
Agora a interveno doCcero. Vejam, quando Rousseau fala no pluralismo - se possvel ou no
a coexistncia de concepes do mundo contraditrias, e que o predomnio de uma se dar
pela opresso da outra ou pela converso -, lembro-me de duas coisas: uma o Gramsci, que
citarei logo em seguida; outra o Orwell do 1984, em que o pobre coitado caiu nas mos do
ministrio do amor: o ministrio do amor no queria que ele abjurasse, no queria que ele se
confessasse oprimido. Porque todo mundo sabia que ele se confessaria oprimido: ele queria a
converso dele, se necessrio pela fora - quem leu 1984 sabe que ele se converte,
transformando a sua personalidade: coloquem a minha namorada no meu lugar e no me
torturem.
Mas no Gramsci - eu diria que h uma quase concordncia - acontece sempre que as pessoas
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singulares pertencem a mais de uma sociedade particular. E amide sociedades que
essencialmente esto em contraste - esse pedao eu li. Uma poltica totalitria tende assim: 1) a
obter que membros de um determinado partido - se voc quiser, grupo social - encontrem nesse
s partido todas as satisfaes que antes encontravam em uma multiplicidade de organizaes,
isto , a romper todos os fios que ligam esses membros a organismos culturais estranhos; 2) a
destruir todas as outras organizaes ou a incorpor-las em um sistema no qual o partido seja o
nico regulador. E isto acontece: a) quando o partido dado portador de uma nova cultura - a
se tem as vrias condies sucessivas de algo, uma fase progressiva; b) quando o partido dado
quer impedir que uma ou outra fora portadora de uma nova cultura se torne ela totalitria, e se
tenha uma fase recessiva e reacionria.
A converso vem, como eu tentei demonstrar, pelo estrangeiro secular. E a vem realmente,
como voc observou, porque no apenas um socilogo, mas tambm um observador da
natureza humana. Quer dizer, a preocupao do Gramsci em acentuar o sentimento de
liberdade, autonomia e poder, que nossa prpria, como o embrio de razo que existe no
homem natural de Devane ios, do Disc urso sob ra a d esig ua ld a d e. Esta preocupao uma
preocupao de fato com a condio humana. E esta preocupao com a condio humana
que permite o progresso: se o simples no tivesse esse sentimento de autonomia,
independncia e poder, o homem que o partido enviou a Fontamara no teria conseguido fazer
o jornal. Seria impossvel fazer o jornal, porque todos estariam submetidos velha concepo de
que Deus o senhor de todas as coisas e de que o prncipe est agora em cima da terra.
E antec ipo - misturando as coisas: eu no diria, e no direi, que o Gramsci tem a preocupao de
fazer comparaes com o predomnio catlico na Idade Mdia: ele preocupava-se em ter,
digamos, como ponto de referncia na conquista do simples a Igreja Catlica. E mostrar como
esta Igreja no seu tempo capaz de desenvolver uma pedagogia, uma propaganda para dois
tipos de pessoas: para ns, que somos os intelectuais - e a ns podemos discutir se realmente os
nomes escritos no Mar Morto valem ou no valem, etc., etc.; e uma outra pedagogia para o
simples, para quem essas coisas no valem: o simples tem de ser abordado substituindo-se a
liturgia pela f ... vo a missa todos os dias, respeitam o padre, saem correndo atrs dos
pentecostais, etc. O que no impede tambm que esse princpio de liberdade e autonomia
provoque c ises. E essa preocupao com condio humana - esse dado indemonstrvel, que
difcil para um marxista -, esse dado de que h este sentimento de autonomia, liberdade e poder,
que o leva a afirmar claramente - e a se d a grande crise da hegemonia - que, na sua vida
normal, o simples se diz um simples e se distingue do outro, no porque seja mais inteligente, ou
seja sua percepo mais apurada, ou porque a natureza o fez diferente, mas porque ele percebe
que h algo diverso na fbrica: ele percebe que l h algo d iferente - e se distingue daquele queacha que no h nada de diferente na fbrica.
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A partir desse momento em que ele se distingue, que comea raciocinar fora do quadro
hegemnico que foi imposto, da concepo do mundo que aprendeu quando criana, que
conheceu na escola, que vivenciou nos tribunais, a quando ele comea a descobrir que isso
tem algo de mais profundo do que simplesmente o positivismo legal, autoridade tradicional
paterna e assim por diante. Ele caminha para a distino: diferencia e depois distingue - eu sou
diferente. E a partir do momento em que sou diferente, eu estou em condies de romper. E a ele
faz meno tal ciso. Veja, o dilogo no de surdos, porque, eu diria, vamos imaginar que
no tivesse lido Rousseau e sem ter lido o Gramsci, ele chega mesma concluso. Quer dizer, a
hegemonia, dado o fato da sociedade ser plural, polisegmentada, complexa, de c lasse, etc, tem
de ser estabelecida por um partido que seja totalitrio. E com relao aos valores dessa
hegemonia: essa hegemonia - ele cita vrias vezes - tem o sentido de religio. algo ao qual ns
aderimos emocionalmente. E isto fundamental: e a partir do instante que aderimos
emocionalmente, estamos dispostos a morrer por isso. E se no estivermos dispostos a morrer por
isso, ns no seremos nem hegemnicos, nem hegemoniados. Porque - agora o problema da
soc iedade moderna, tal como eu vejo hoje, e da a tentativa de reviso da Flandres - o n, hoje,
que o pluralismo est chegando a extremos extraordinariamente graves.
E a eu volto outra vez aos clssicos, porque os clssicos j viam tudo, e diviso do trabalho:
Comte j falava na diviso anmica do trabalho, que isto que ns estamos vendo hoje. Uma
diviso anmica do trabalho que produz anomia na sociedade - e quem duvidar da anomia da
soc iedade s precisa ir periferia de So Paulo, para no falar das favelas do Rio de J aneiro: a
anomia se manifesta nos dois estados. Ns temos o estado constitucional, no qual nenhum de ns
acredita: os dois modelos do estado, o judicirio e o legislativo, esto reduzidos a zero. O que
sobra: Luiz Napoleo Bonaparte. Eu lembraria uma c itao, se no me engano de um soc ilogo
da escola francesa, que diz que o nico ponto de convergncia numa sociedade
polissegmentada e complexa o estado. portanto, digamos assim, um acordo sobre os
princpios bsicos o que nos leva a obedecer a lei positiva. E, no instante em que esse estado se
fragmenta - porque seu corpo administrativo se corporativizou e a sociedade tambm -, fica difcil
estabelecer a hegemonia: quem vai ser hegemnico? O juiz? O deputado? Quem?
Bom, quanto questodele imaginar ou no uma sociedade futura, eu diria que ele fala pouco
de uma sociedade futura. evidente que est presente o pensamento dele. Mas ele usa a
expresso soc iedade regulada, que d margem s mais diferentes interpretaes.
Prof. Dr. Ccero Romo de Arajo- Algumas falas aqui me fizeram recordar o Weber, quando fala
que os homens tm sde tanto de bens materiais quanto de bens espirituais. E essa sde - queenvolve dois tipos de mente - me faz vir cabea a questo do surgimento de vrios movimentos
religiosos, no s no Brasil, mas em escala internacional. Ao mesmo tempo que do ponto de vista
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dos sistemas econmicos e polticos parece imperar o niilismo, como se a contrapartida deste
imprio do niilismo nos sistemas econmicos e polticos gerasse, na franja da soc iedade, essa sde
mais intensa ainda de bens espirituais. Agora, o interessante que a nossa sociedade vive um
processo de espraiamento destes sistemas, e particularmente da empresa capitalista no nvel
internacional, que parece conviver perfeitamente com budistas, islmicos, catlicos,
pentecostais, etc.
como se a empresa capitalista hoje pudesse se relacionar com tudo, sem ter necessariamente
de converter o budista, o catlico, ou o pentecostal: tudo se passa como se houvesse entre eles
uma relao completamente assptica. E, por outro lado, esses crentes convivem com os frutos
dos resultados tecnolgicos e com a produo da empresa capitalista, sem se contaminar. O
islmico do Afeganisto poder usar um mssil de ltima gerao sem se contaminar com isso. Eu
fico perplexo diante desta questo. Por outro lado, percebo que nos comentrios do Prof.
Oliveiros, e mesmo do Leonel, ao contrrio do que acontece em Rawls, h uma viso bastante
pessimista em relao segmentao. Talvez por isso o Prof. Oliveiros use a palavra
polissegmentada, e no pluralista - ponha a nfase no termo polissegmentado, e no no
pluralismo. O pluralismo parece ter uma conotao mais positiva, enquanto polissegmentado tem
uma conotao mais ameaadora, de algo terrvel que pode estar amea ando a estabilidade
do sistema poltico. Parece-me que esta viso esconde um certo pessimismo.
Prof. Dr. Oliveiros S. Ferreira- Eu, por ex., sou pessimista. Bom, duas ou trs observaes rpidas. Eu
lembraria Rousseau: um rei imbecil pode at governar as pessoas. Mas s se conquista as pessoas
quando se conquista os seus coraes. Voc levanta um problema srio, que o da, digamos
assim, sede de bens espirituais e materiais que coexistem. Eu duvido que um religioso abdique de
bens materiais - a no ser que seja um trapista, um aceta. A sede de bens materiais me parece
hoje mais importante: ela se alastra com uma rapidez que ns no conseguimos imaginar:
falamos em islo, em catolicismo, mas nos esquecemos do orientalismo, que est abraando por
esse pas, do sincretismo religioso que j se espalhou por todas as camadas sociais. E a est uma
coisa curiosssima: isso a prova que as organizaes faliram - organizaes tais como Igrejas
Catlicas, Protestantes - tradicionais -, faliram como apelo, porque so organizaes que talvez
no queiram ficar na organizao.
E, s para concluir, no que se refere a essa busca de bens espirituais - j que voc falou na
derrota de Cristo -, eu lembraria So Paulo, que foi quem triunfou pela organizao. Na primeira
epstola a Timteo - eu guardo de memria porque acho fantstica -, So Paulo dizia que o
dinheiro no mal: o mal a cobia do dinheiro. E o que ns estamos vivendo hoje a cobiado dinheiro. por isso que o mal est instalado. E lembraria, s para encerrar, que Satans no
um rebelde. Satans, como est no velho testamento, um princpio no criado, ele anda e
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conversa com Deus quando quer.
Eu agradeo a colaborao e os comentrios dos companheiros. Desculpem se me excedi um
pouco.
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2.A CONSTRUO DA HEGEMONIA NO BRASIL: UMA VISO
GRAMSCIANA
Prof. Dr. Luis Werne c k Via nna
IUPERJ
Olha, agradeo sinceramente o convite para estar aqui, e particularmente por poder participar
dessa mesa com pessoas que me so to caras, embora tenha estado acostumado a conviver
com elas num espao extra acadmico. Mas enfim, foi a sorte que nos ps nesse latifndio, de
estarmos hoje todos vivendo o mundo da institucionalizao, da cincia dentro da universidade. tudo diferente do que a gente queria, mas - vai ver! - tudo exatamente igual ao que a gente
merecia.
Vou tentar fazer uma interveno tranqila e descansada, procurando estabelecer um dilogo,
uma conversa, sem a menor tentativa de convencer, de persuadir. Trata-se basicamente de
conduzir a uma problematizao.
Estou convencido a mim mesmo, posso convencer! - de que h um problema de interpretaodo Brasil. O melhor exemplo disso foi dado numa entrevista recente revista Veja do Presidente
da Repblica, colega nosso, que formulou um projeto de governo, um projeto para o Brasil, com
base numa interpretao do Brasil. Nesse sentido, est havendo uma enorme articulao entre
vida pblica e universidade. Essa articulao diz respeito a quem o melhor portador de uma
interpretao do Brasil, sendo capaz, a partir desta interpretao, de solidarizar uma aliana
larga, no sentido de realizar ou viabilizar suas intenes, consumar seus projetos e suas
motivaes. Essa disputa vem de longe e penso que a raiz de tudo isso est no Imprio, que um
perodo que precisamos conhecer melhor para que possamos entender o que somos.
no nascer do Estado-nao brasileiro que se estabelece a natureza mais profunda dos partidos
que aqui se apresentam. Qual a controvrsia que os divide? H vrias controvrsias. A
centralidade na questo da poltica, do Estado, a perspectiva dos liberais. Para eles, na raiz dos
nossos erros, na herana dos nossos males, estaria a transmisso do Estado patrimonial portugus,
que teria, na linguagem do R. Faoro, atravessado o oceano. Do outro lado, h a nfase numa
sociologia - especialmente numa sociologia agrria - de uma percepo do patrimonialismo a
partir da prpria sociabilidade, em oposio queles que o entendem a partir da configuraoda histria. Esse o partido de Oliveira Vianna, o partido de Florestan Fernandes e sobretudo de
um clssico da sociologia brasileira, para mim clssico entre os clssicos, apesar de todos os
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problemas que tem, que o livro de Maria Slvia Carvalho Franco, Hom en s Livres na O rd em
Escravocrata.
Temos vivido esta controvrsia por algum tempo, sendo que formulamos projetos, a partir das
interpretaes do Brasil que tomam expresso dentro desses dois blocos, valorizando a nossa
tradio ou a desqualificado. Basicamente o dilema se apresenta entre continuidade de um lado
e descontinuidade do outro. Um bom exemplo dessa antiga oposio est na srie de
controvrsias, de 1944, entre Roberto Simonsen e Eugnio Gudin, a respeito de se o pas teria
vocao industrial ou agrria. Mas voltando entrevista presidencial, j que a mencionei no bom
sentido, anoto que a vai clara meno descontinuidade.
O partido liberal o partido da descontinuidade entre ns. o partido que identifica l na nossa
origem um elemento de despotismo, de orientalismo. Lembro, por exemplo, que para estudar a
distncia que contrapunha o Estado sociedade civil no Imprio, Simon Schwartzman, em Base s
d o A ut o rita rism o Bra sile iro, chega a fazer uma citao do estudo de Karl Wittfogel consagrado ao
despotismo oriental. Esta tambm a identificao que faz Tavares Bastos da natureza de nosso
Estado, como sendo um Estado oriental.
De outro lado, o Florestan mostra que o Estado nascido aqui no incio do sculo XIX tem um
componente liberal, onde o liberalismo no uma idia fora do lugar. Possui, ao contrrio, um
elemento revolucionrio, que atua ao longo do Imprio, e ajuda a produzir a complexificao e a
diferenciao da vida social, muito especialmente, no que se refere sua dimenso mercantil.
Este tambm o Estado de Maria Silvia C. Franco, particularmente no captulo em que estuda a
administrao pblica em Guaratinguet. Ali ela demonstra como o que havia de novo - a
tentativa de criar uma ordem racional-legal - derivava do Centro. Assim se estabelece uma
perspectiva oposta a de R. Faoro no uso do modelo weberiano: no curso da modernizao, a
ordem privada vai se apropriando da administrao pblica e da administrao da justia.
Mas por qu o primado de uma ou outra interpretao? Por que este pas no se arruma? No
consegue se alinhar com a sua prpria histria e no consegue formular um projeto de devir
apenas a partir da fsica dos seus interesses, embora um dos partidos, o partido da
descontinuidade, defenda a prevalncia desta dimenso, da fsica dos interesses? Quando
Raymundo Faoro discute o Estado Novo, na pg. 725 do penltimo captulo do segundo volume
de Os Dono s d o Pode r, coloca juntamente em seu panteo da malaisebrasileira, J os Bonifcio,
Dom Pedro II e Getlio Vargas. H claramente a a explicitao de um ponto: de que o interesse
deve deslocar a metafsica.
Nesse sentido, venho trabalhando h algum tempo, procurando elucidar, pelo menos para mim,
essas questes que tm uma incidncia to poderosa na vida republicana. de se notar que
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quem redigiu o discurso de posse de Fernando Collor de Mello tenha sido J os Guilherme
Merquior, trabalhando em cima de Os donos do pod e rcomo livro-texto. E a referncia central,
organizadora de toda a interpretao da j referida entrevista do Presidente Fernando Henrique,
est na categoria de patrimonialismo. Mas por que vale a pena sovacar tambm o eixo da
continuidade e nisso a procurar desvendar o que seja esta Ibria brasileira?
Penso que a categoria revoluo passiva em Gramsci seja muito fecunda para estabelecer os
termos de uma discusso. Tenho mesmo procurado sugerir a natureza precoce e singular da
revoluo passiva no Brasil e na Amrica Ibrica de maneira geral. Vale a pena,
consequentemente, escrutinarmos as condies em que esse processo se deu e procurarmos
tambm trazer o tema do Risorgimento, tal como trabalhado por Gramsci, no sentido de nos
ajudar a arrumar essa questo.
Por outro lado, se pode dizer que a Amrica, tanto a do Norte como a do Sul, filha das
revolues nacional-libertadoras. O primeiro marco das revolues nacional-libertadoras da
Amrica do Norte, antes, portanto, de 1789. A Amrica chega, assim, tambm a participar do
debate europeu, na medida em que a Revoluo Americana confirmava A Riq ue za d a s Na e s,
de Adam Smith, e favorecia a emergncia das idias libertrias revolucionrias na Frana do final
dos anos 80. A Revoluo Americana , portanto, anterior Restaurao e faz parte do
movimento de conformao do que havia de mais novo no mundo no seu momento.
No entanto, no nosso caso, no caso da Amrica Ibrica, o processo se singulariza. Em primeiro
lugar, porque com a Restaurao pegamos o ciclo declinante do liberalismo, do ponto de vista
poltico; e de outro lado, porque na medida em que esse subcontinente se libera do domnio
ibrico, ele tambm confirma e consagra a expanso inglesa. Ento ns somos filhos desse
momento em que, em sua forma pura, o liberalismo poltico perde mpeto, na sua capac idade de
universalizao. Mas, por outro lado, o liberalismo econmico se torna dominante e vai viver uma
trajetria de afirmao mundial.
S que neste contexto ns, brasileiros, nos particularizamos ainda mais, porque nossa revoluo
nacional-libertadora foi abortada devido transmigrao. E a transmigrao um episdio de
uma luta europia envolvendo a Frana e a Inglaterra, na poca do domnio dos exrcitos de
Napoleo, em que a nossa famlia real foge da revoluo. Ironicamente, foge de uma revoluo
l para fazer uma outra revoluo aqui. Mas com isso o que se frustra? O processo que vinha se
acumulando desde antes da Inconfidncia, que era um processo nativista, que tendia a fazer
com que o nosso caso reiterasse o que ocorreu na Amrica Hispnica em geral, de nos prmos
em armas, com nossos caudilhos, os nossos jacobinos, nossa massa ignara, a ral sem direitos ...
Mas, ainda mais srio, do ponto de vista da contextualizao, do avano da ordem burguesa no
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mundo: ns fazemos parte deste momento to plido, to sem cor, do ponto de vista da sua
expressividade poltica - e to poderoso no que se refere sua expressividade econmica -, que
o da expanso da Inglaterra, do incio da hegemonia britnica sob a forma moderna de
mercados abertos, de circulao de mercadorias, da Revoluo Industrial.
Ento, como pode se dar essa revoluo nacional-libertadora frustrada, realizada por um homem
que viveu 40 anos no contexto europeu, J os Bonifc io, e pelo prncipe herdeiro de Portugal, que
institui uma monarquia constitucional, correspondente ao que queriam alguns setores, digamos,
mais liberais? verdade que chegamos a uma constituinte. verdade que chegamos
explicitao de uma constituio; verdade que nosso Estado nasce do contexto da
explicitao de uma ordem racional-legal - o Cdigo Penal de 1830, elaborado por Bernardo
Pereira Vasconcelos, um liberal com formao de scholar;e todo ele, como se sabe, informado
pela obra de J eremy Bentham. Outro exemplo dessa atitude nosso Cdigo de Processo Civil,
que de 1832.
Nesses casos, v-se que o que est a o Estado tentando criar sobre a sociedade uma ordem
racional-legal, embora num contexto de latifndio, de escravido. particularmente na questo
agrria, como nota precisamente Florestan Fernandes, em A Revo luo Burg ue sa no Brasil, que se
estabelece a re sta urao que define esse processo. A restaurao da estrutura da economia
colonial, por meio da qual o Estado emergente estabelece a sua relao com o mundo, se
inscreve no contexto internac ional, no mercado mundial, nas relaes internacionais.
Acentuando ainda mais essas tendncias liberais, a luta contra o poder moderador, contra o
Conselho de Estado, a idia de uma monarquia constitucional, a descentralizao, etc, so idias
que assumem particular importncia na dcada de 30, depois do 7 de abril, da abdicao de D.
Pedro I. Esse momento pode ser interpretado como uma tentativa de se viver uma experincia
americana. Se se toma o Ensaio sobre Direito Administrat ivo, do Visconde de Uruguai, que
pertence ao outro partido - especialmente o captulo dedicado centralizao -, um dos autores
mais citados Tocqueville e seu A De m oc ra c ia na Amric a. E Tocqueville citado de forma no
s abundante, mas muito generosa em relao sua produo. Um ponto que se estabelece
de que ns somos out ros, porque na idia da continuidade est presente a idia de que temos
uma distintividade. E a pode-se lembrar de dois autores que fazem parte do nosso imaginrio e
que ajudam muito a evocar essa tradio: Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro.
Agora o que foi o perodo dos anos 30? Um perodo de ressurgimento daquilo que ficou
obstaculizado, porque a nossa revoluo nacional-libertadora se frustrou. Mas qual foi o contexto
que acabou por se formar durante a Regncia? Anarquia, guerra civil, ameaa de separatismo,etc. No penso, porm, que este o momento em que a Ibria, mais uma vez como presena
nefasta sobre a nossa histria, se materializa para nos aviltar. Acredito que este foi o momento da
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construo pragmtica brasileira, do nosso iberismo: a construo da nossa Ibria. Mas uma
Ibria que faz referncia tambm Inglaterra e aos EUA. A Amrica, como grande desiderato,
um lugar para onde se deve ir; mas a Amrica como uma impossibilidade, por estarmos num
contexto muito perverso para a instituio de um processo com este tipo de orientao.
No entanto, qual era a alternativa liberal? Digamos que entre unidade e liberdade se deva ficar
com a dimenso da liberdade. Agora, qual era o preo de vivenciar a dimenso da liberdade
naquela circunstncia? Era o da revoluo agrria, anti-escravista, jacobina e popular -
concebido isso como um processo de revoluo permanente. A memria dos nossos liberais no
consulta, porm, esta hora decisiva, esta hora determinante, porque esto convencidos de que a
este Estado que recebemos como herana cabe a responsabilidade pelos nossos padecimentos,
pelos nossos males, como dizia Tavares Bastos. E contra isso que eles se voltam. Mas para libertar
o qu? Simplesmente: o indivduo, a fsica dos interesses.
Quem entendeu isso magnificamente bem foi Oliveira Vianna, no primeiro volume dePop ulae s
M e rid iona is d o Bra sil,quando deu graas a Deus pelo fato de que os liberais no tivessem feito
interpelaes democrticas no mundo agrrio. Porque com a habilidade militar do sertanejo, a
habilidade militar do caudilho e com aquilo que poderia ser feito com o matuto do Centro-Sul, se
teria armado uma revoluo democrtica nesse Pas - a construo dele -, que teria
comprometido a grande obra da unidade nacional. A interpretao liberal, portanto, se tem
fixado no plano da poltica, da reforma poltica, da reforma das instituies polticas, como
prvias para a mudana do pas. Historicamente, se tem mantida desatenta, ao largo da
sociologia brasileira, especialmente da sociologia agrria brasileira. Penso que isto representa
uma hipoteca da interpretao liberal que faz com que ela perca muito da sua capac idade de
persuaso.
Entendo, assim, que esses anos 30 foram como um momento decisivo - hora em que as opes
estratgicas determinantes para o futuro do pas se apresentaram de forma mais clara. A partir
da forma tomadas certas decises na dcada de quarenta, especialmente com a lei de
interpretao do Ato Adicional, que devolveram a preponderncia do Centro sobre a
sociedade, afirmando uma clara primazia do pblico sobre o privado entre ns. A questo
fundamental do momento ser: unidade ou secesso. Insisto que um liberal poderia
perfeitamente abrir mo da un i dadeapostando no partido da l iberdade, mas o preo d isso era a
revoluo permanente.
Com isso se abre o perodo do Segundo Reinado, com uma marca que acredito no uma
transferncia direta de fora, mas uma opo estratgica interna - o que no quer dizer que nohaja comunicao com a cultura pombalina, ibrica.
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Vive-se nessa situa o por quase 50 anos. At que com a proclamao da repblica, ou melhor,
com o governo Prudente de Moraes, o pas muda de orientao. Mas a que preo?
Fundamentalmente com a privatizao do pblico. O mundo dos interesses emerge, com So
Paulo conseguindo instituir os seus interesses como interesses dominantes a serem universalizados
pelo Estado. A poltica do Convnio de Taubat, de 1906, expressa muito isso e j foi estudada
suficientemente por Celso Furtado e tantos outros. Mas, por outro lado, este liberalismo foi
tambm incapaz de dar encaminhamento satisfatrio emergente questo social brasileira que
vinha ganhando fora com a industrializao.
Conhecemos o caldo de cultura complicado que esteve presente nos anos 20 desse sculo. E de
como 1930, com esse personagem contnuo a Pombal, J os Bonifc io, D. Pedro II, que foi
Getlio Vargas: restaura-se o patrimonialismo, a prevalncia da administrao, do direito
administrativo, das concepes administrativas - com a correspondente linguagem de denncia
por parte de seus detratores, sobre os cartrios, o estamento burocrtico, a desqualificao da
esfera pblica. Paradoxalmente, contudo, a Revoluo de 1930 foi capaz de universalizar sua
proposta. O que foi possvel, em primeiro lugar, porque foi-se capaz de direcionar a mudana de
eixo do pas, no sentido da industrializao, e sobretudo da questo social, com o
estabelecimento da legislao social. Isto, apesar da organizao corporativa dos sindicatos. Mas
o mais importante que o sindicalismo, os trabalhadores urbanos, foram trazidos, a partir da, para
o interior da coleo das pessoas com direito nesse pas.
Um outro momento complicado de confronto entre os partidos da descontinuidade e da
continuidade o final dos anos 50. Este um momento que ope o ISEB USP, ou eixo ISEB-PCB
versus USP. A USP apresenta uma outra leitura do Brasil: pensava a poltica no pela poltica, pelo
Estado, mas pela sociedade, em que se procura emancipar o interesse da poltica. O que
aparece, por exemplo, no tema do populismo no Franc isco Weffort, nosso colega, e tambm no
tema do nacional-desenvolvimentismo em Florestan - em ambos significando mudanas que
confirmavam o processo de dominao. A idia bsica por trs dessa interpretao de que a
modernizao conduzida pelo Estado no trazia consigo o aumento da autonomia dos setores
subordinados da sociedade. Dessa forma, a soluo imaginada de que era necessrio criar
uma situao quase de limpeza social, em que a estrutura de classe pudesse se manifestar em
toda a sua integridade, sem conhecer os obstculos, os entraves, as intromisses da esfera
poltica que abastardariam a constituio de uma boa identidade classista.
A fsica dos interesses recebe, portanto, atravs da USP, este reforo. No toa, em So Paulo
que surgem o PSDB e o PT. Da crtica ao Estado sai o PSDB. Da crtica a uma situao de vida
popular, trabalhadora, contaminada pela poltica do Estado, sai o PT. Mas tanto um como o outrodefendem a idia de que preciso exercer essa descontaminao, criando uma estrutura de
classe perfeita, europia.
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Na outra ponta aparecem o ISEB e o PCB. Essa ponta trabalha em que direo? Na direo da
continuidade. E pela primeira vez no PCB, com a Declarao de Maro de 1958, afirma-se a
revoluo passiva como um cenrio propcio para o avano da luta popular, das conquistas
sociais e da democracia no Brasil. A revoluo passiva aparece, portanto, no como um
programa, mas como um critrio de interpretao. Ningum ingnuo de desconhecer os limites
da anlise feita no interior desse eixo, na perspectiva do ISEB, e do PC B, especialmente com a sua
crena de que na polarizao atraso-modernidade estaria contida a possibilidade quase
mecnica de superao de um plo pelo outro. Mesmo assim, foi um momento, eu diria, de
reconhecimento por parte da esquerda brasileira do processo fundo e surdo que vinha se
desenvolvendo no pas.
O golpe de 64 enlouqueceu esse quadro, mas por pouco tempo, porque logo em seguida as
foras sociais e polticas tenderam ao alinhamento no sentido do caminho da continuidade. E
assim se buscou a transio poltica do autoritarismo para a democracia. No foi um processo
fcil: havia quem indicasse o caminho da ruptura. Mas em muito pouco tempo estas propostas
estavam entregues ao reino da pura fabulao e vivemos a transio - claro que por 15 anos -
com uma lgica dominada pela disputa de hegemonia que envolve a interpretao sobre o
Brasil.
Mas como completar o Brasil? Orden-lo, segundo os valores do mercado, garantir o ensino
elementar para todos, uma universidade de elite bem treinada, uma estrutura de classes
educada, disposta em torno dos seus interesses destitudos de metafsica recriando o capitalismo
a partir de um expurgo societrio de sua histria e tradies? Diria que a transio esteve por
muito pouco para se definir por este caminho. E o que a tirou dele e abriu novos rumos
surpreendentes, inesperados, foi um ator ignorado h cinco sculos na histria do Brasil: a ral dos
homens sem direitos vivendo sobre estatuto da dependncia pessoal no campo brasileiro, os
trabalhadores sem terra. Foram eles que, contornando essa armao, trouxeram ao cenrio
novos interesses e uma nova metafsica, inclusive associados como esto a uma velha instituio
ibrica, os jesutas, portadores da idia de comunidade e de solidariedade social.
Realizar, portanto, de um ato, o projeto da descontinuidade - como tentou Collor com a reforma
do Estado, como vem fazendo este governo - no sentido de estabelecer uma nova relao entre
pblico-privado, poltica e economia, Estado e sociedade civil, se no se tornou