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IGREJA E FAMILIA: A SUBMISSÃO DA MULHER NO FILME “DESMUNDO”
Gustavo Batista Gregio (Universidade Estadual de Maringá)
Resumo O estudo reflete sobre a submissão e exploração da mulher branca no início da “colonização” do Brasil pelos portugueses, a partir da representação fílmica na obra “Desmundo”, lançada em 2002, sob a direção do francês Alain Fresnot, baseada no romance homônimo escrito por Ana Miranda, lançado em 1996. Deste modo, é discutido como a Igreja Católica assumiu papel central no controle da sexualidade e dos desejos femininos, outorgando a figura masculina, seja do pai ou marido, a tutela sobre elas, as quais deveriam ser modelos de “boas mulheres”, submissas as leis da Igreja e ao poder patriarcal, seja na sociedade como no interior da estrutura familiar. Palavras-chave: História; Cinema; Mulher; Igreja; Exploração. Introdução
Na história do Brasil a figura feminina foi concebida e, ao mesmo tempo
contida, especialmente através dos dogmas da Igreja Católica, que ficou
responsável em adaptar os valores e costumes cristãos lusitanos, ditando grande
parte das normas éticas, morais e de comportamento para as famílias e para a
sociedade colonial.
Esses discursos, desde o início, eram disseminados sobre toda a atividade
religiosa desempenhada na Colônia. Nesse sistema civilizador, o sacramento do
matrimônio foi a base concreta de dominação física e simbólica, especialmente para
as mulheres, bem como para “justificar a instalação de um aparelho burocrático e
afirmar o poder da Igreja no Novo Mundo” (DEL PRIORE, 1990, p. 174).
Assim, o arcabouço matrimonial e familiar constituído por pai, mãe e filhos,
correspondia aos preceitos da tradição cristã europeia, indo completamente na
contramão das práticas nativas existentes, uma vez que o modelo familiar indígena
não correspondia aos ideais religiosos eurocêntricos.
Cabe ponderar que um dos costumes que “aterrorizou” os “colonizadores”
cristãos foi a grande liberdade e mobilidade sexual existente entre os indígenas
antes do casamento. Segundo Bauer (2001), as nativas podiam manter relações
sexuais com outros homens sem que provocasse desonra a sua imagem ou a sua
família. Além disso, existiam os núcleos familiares que eram poligâmicos, assim
como comunidades monogâmicas ou poliândricas.
Os indígenas não eram guiados por princípios ou normas do cristianismo, não
existia entre eles a ideia de pecado original para os desvios ou atitudes “imorais”.
Haviam regras básicas que deveriam ser obedecidas em cada grupo, variando de
acordo com cada comunidade. Portanto, esses costumes causaram grande espanto
e horror quando os portugueses guiados pelos preceitos cristãos, entraram em
contato com essas culturas que habitavam o Brasil, “os jesuítas afirmavam que o
Brasil era terra perigosa para os cristãos e que aqui existia um contágio doentio com
o pecado” (BAUER, 2001, p. 118).
Como no início da “colonização” não existiam mulheres brancas na Colônia,
os portugueses começaram a constituir núcleos familiares com as indígenas e as
negras. A Coroa portuguesa preocupada, passou a intervir nessas uniões, buscando
nos ensinamentos cristãos os estímulos necessários para conter a impureza racial e
os matrimônios interraciais. Logo, a Igreja e o Estado entenderam que era
necessário enviar da Europa mulheres para o Brasil, as quais poderiam ser: brancas das classes altas, órfãs pobres, ou até mesmo prostitutas que viessem de Portugal cumprir aqui sua função de reprodutoras biológicas e sociais. Era necessário procriar para garantir a hegemonia branca da Metrópole também na Colônia; era preciso gerar filhas e filhos de sua própria raça e classe (NUNES, 2017, p. 484).
Deste modo, o filme “Desmundo”, representa esse contexto da história
brasileira. O título da obra faz alusão a um “não mundo” ou, fim de mundo, um lugar
de barbárie, sem leis, onde todos os indivíduos são explorados, subjugados e
marginalizados.
Dominação e exploração da mulher
O filme se passa no ano de 1570 e narra a história de jovens órfãs que foram
enviadas de Portugal para se casarem com os exploradores portugueses. Essas
mulheres eram enviadas com o apoio da Igreja Católica. Um detalhe importante é
que são as freiras lusitanas as responsáveis pelo cuidado e vigilância dessas moças
ao saírem do velho continente até o casamento com seus pretendentes na Colônia.
Como ponderado, a Coroa portuguesa objetivava que o matrimônio fosse
entre indivíduos brancos e cristãos, numa tentativa de controlar as relações
interraciais, reduzindo o nascimento de crianças mestiças. Essa conjuntura é
evidenciada na narrativa fílmica e em relatos históricos da época, como nos escritos
do padre Manuel da Nóbrega para o Rei João III no ano de 1550, nos quais o
cardeal retrata as reais condições da colonização, afirmando ser necessário o envio
de mulheres para ajudar na povoação das novas terras: É necessário que venham muitas órfãs e de todas as qualidades até meretrizes, porque há aqui várias qualidades de homens; e os bons e ricos casarão com as órfãs; e deste modo evitarão pecados e aumentará a população no serviço de Deus (LEITE, 1955, p. 79-80).
A narrativa fílmica acompanha a trajetória dessas mulheres recém-chegadas
no Brasil, destaque para a personagem Oribela, interpretada pela atriz Simone
Spoladore. A personagem foi forçosamente trazida para se casar com o rico
proprietário de terras e de escravos, Francisco de Albuquerque, interpretado pelo
ator Osmar Prado. Desde sua chegada, a protagonista é violentada, passando por
todo um processo físico e simbólico de “adestramento” de suas ações e desejos.
O casamento retratado no filme, como também descrito nos relatos históricos
entre os séculos XVI ao século XVIII é compreendido como parte fundamental do
povoamento nas capitanias, assim como relevante instrumento de equilíbrio social,
de segurança e de estabilidade econômica. Vale destacar que eram raras as uniões
matrimoniais que aconteciam somente por amor.
A organização familiar era entendida “como palco para uma revolução
silenciosa de comportamentos, fechando em torno da mulher, impondo-lhe apenas e
lentamente o papel de mãe devota e recolhida” (DEL PRIORE, 1990, p. 187). Surge
o modelo ideal de “boa mulher” e de família tradicional, a qual destinava-se
especialmente para as mulheres brancas e mais abastadas da Colônia, “para as
quais se fomentavam as aspirações ao casamento e filhos, cabendo-lhes
desempenhar um papel tradicional e restrito” (SOIHET, 2017, p. 368).
O estereótipo feminino criado no período e representado no filme, era
baseado no modelo de submissão da mulher as vontades do marido e as leis do
Estado e da Igreja. O discurso religioso justificativa que desde a criação de Adão e
Eva, o homem é naturalmente superior a mulher e, desse modo, cabia somente a
ele exercer sua autoridade e poder “Deve o marido como cabeça que é da mulher,
cuidar que esta cumpra os encargos da profissão cristã, que guarde promessa feita
a Deus no batismo, de renunciar as pompas do mundo” (DEL PRIORE, 1990, p.
156).
Considerações Finais
A obra fílmica “Desmundo” pode ser entendida como um registro histórico das
memórias de submissão, exploração e violência sofrida pelas mulheres no início da
nossa história. Elas viviam em ambientes familiares rigorosamente dominadas pelo
poder patriarcal em uma rotina de extrema sujeição, inicialmente a tirania dos pais e
depois substituída pela opressão dos maridos. A Igreja Católica teve papel
fundamental na manutenção desse sistema, visto que delegava aos homens a tutela
e autoridade sobre a mulher.
O matrimônio era muitas vezes precoce e visava, além de conter a liberdade
e os possíveis desejos sexuais das jovens, fortalecer a ideia de submissão sexual da
mulher frente ao homem. Os dogmas cristãos exerciam um forte domínio sobre o
comportamento e a sexualidade feminina. Segundo Del Priore, as uniões
matrimoniais não deveriam ser unicamente por amor, mas por obrigação em garantir
a procriação e a missão divina de luta contra as tentações da carne. Em vez de “tempo de amar”, melhor seria dizer tempo de se unir a alguém. E de se juntar, para sobreviver. Tempo de formar família
através de uma união estável. Pois essa foi a tônica dos casais durante séculos. Entre nós, durante mais de quinhentos anos, os casamentos não se faziam de acordo com a atração sexual recíproca ou a paixão. [...] Entre os mais pobres, o matrimônio ou a ligação consensual era uma forma de organizar o trabalho cotidiano. Não há dúvidas de que o labor incessante e árduo não deixasse muito espaço para a paixão sexual. Sabe-se que, entre casais, as formas de afeição física tradicional – beijos e carícias – eram raridade (DEL PRIORE, 2016, p. 341).
Portanto, a mulher retratada no filme deveria representar o ideal de pureza,
de esposa e de mãe, “ser [...] gentil, amável e bondosa, fundamento do lar e perfeita
mãe para seus filhos” (BAUER, 2001, p. 84). Eram propriedades de seus maridos e
serviam, sobretudo para preservarem a pureza da raça portuguesa, como conservar
a moral cristã na Colônia. O “adestramento” do corpo e da mentalidade feminina no
interior da vida familiar “fazia-se não apenas pela pregação sistemática em favor do
matrimônio e contra os “ilícitos tratos”, mas também pela exigência de uma certa
compostura, de uma atitude que deveria vigorar na vida social (DEL PRIORE, 1990,
p. 153).
Referências BAUER, Carlos. Breve história das mulheres no mundo ocidental. São Paulo: Xamã: Edições Pulsar, 2001. DEL PRIORE, Mary. Ao sul do corpo: condição feminina, maternidade e mentalidades no Brasil Colônia. 1990. Tese (Doutorado em História) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1990. DEL PRIORE, Mary. Histórias da gente brasileira: volume I: Colônia. Rio de Janeiro: LeYa, 2016. LEITE, Serafim. Cartas do Brasil e mais escritos do padre Manuel da Nóbrega. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1955. NUNES, Maria José Rosado. Freiras do Brasil. In. DEL PRIORE, Mary (org.). Histórias das mulheres no Brasil. 10. ed. São Paulo, 2017, p. 482-509. SOIHET, Rachel. Mulheres pobres e violência no Brasil urbano. In. DEL PRIORE, Mary (org.). Histórias das mulheres no Brasil. 10. ed. São Paulo, 2017, p. 362-400.