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Cindy Sherman. New Photographs (detalhe), 2000

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Ileana Pradilla

32 concinnitas

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2000

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Desafios para a tarefa crítica

ano 6, número 7, dezembro 2004

Desafios para a tarefa crítica

Ileana Pradilla*

Os ensaios “Critical Reflexions”, do teórico de arte belga Thierry de

Duve, e “The Jaundiced Eye. Art Criticism and the fallacies of

Historicism”, do historiador de arte alemão Robert Kudielka, foram

inicialmente apresentados no Seminário Internacional De Baudelaire à

Crítica Contemporânea, organizado por Paulo Reis e Ileana Pradilla Cerón,

em parceria com a Funarte, o Departamento Cultural e o NUCLEAR -

Núcleo de Livres Estudos de Arte e Cultura Contemporânea da UERJ e o

Museu de Arte Contemporânea/MAC-Niterói, em maio de 1999.

Durante cinco dias, o seminário reuniu os críticos e pensadores

da arte Irving Sandler, Jacques Leenhardt, Lorenzo Mammi, Paulo

Sergio Duarte, Robert Kudielka, Ronaldo Brito, Sonia Salsztein e

Thierry De Duve para discutir alguns dos conceitos postulados pelo

fundador da crítica de arte moderna, Charles Baudelaire, e seus

desdobramentos no pensamento crítico contemporâneo.

“Critical Reflexions”, texto escrito em tom quase confessional,

conduz o leitor aos bastidores, por assim dizer, do exercício crítico.

De Duve interroga-se sobre sua forma de aproximação às obras de

arte, discute as motivações que o impelem à escrita e conversa sobre

seu modo de praticar a crítica. Mas, se as reflexões tecidas pelo

teórico belga têm como objetivo inicial a intenção de expor uma

experiência pessoal, elas não se limitam no entanto ao âmbito privado.

O bom humor e a narrativa em primeira pessoa desse ensaio não

deixam de ser uma certa armadilha para discutir, de forma

aparentemente despretensiosa, mas nem por isso pouco profunda, a

natureza da crítica de arte, seu caráter simultaneamente empírico,

empático e reflexivo.

“The Jaundiced Eye”, por sua vez, analisa a permanência do

historicismo, iniciado com o pensamento hegeliano, na crítica de arte

moderna e aponta algumas de suas conseqüências negativas. Discutindo

a obra História do desenvolvimento da arte moderna, do crítico alemão

Julius Meier-Graefe, escrita em 1904, e o conceito de modernismo do

norte-americano Clement Greenberg, nos anos 50, Kudielka busca

demonstrar a inadequação existente entre a crença num processo lógico,

progressista e predeterminado, próprio do historicismo, e os pressupostos

da arte moderna e contemporânea. Para Kudielka, o historicismo, em

sua aspiração a uma totalidade teórica, anula a contradição fundante

da experiência moderna, formulada por Baudelaire, a saber: a

* Ileana Pradilla é mestre em História Social daCultura, pela PUC-Rio. Foi diretora da Divisãode Artes Visuais do Instituto Municipal de Artee Cultura/RioArte, de dezembro de 2001 a julhode 2003. Atuou como curadora de váriasexposições, entre as quais Espaço Lúdico e AArte da Gravura. Organizou os seminários Kantem questão: crítica e estética na Modernidade;De Baudelaire à Crítica Contemporânea; eRupturas Modernas. Foi coordenadora editorialdo livro Fontana/Brasil, Milão: Charta Editores.É co-autora da Coleção Palavra do Artista.

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Ileana Pradilla

34 concinnitas

multiplicidade das manifestações artísticas e a impossibilidade de

subsumir essa diversidade em sistemas e normas.

Sem dúvida, os ensaios de Kudielka e de De Duve diferem significativamente

em tom e na maneira de abordar os problemas que se apresentam ao crítico de

arte. Ambos, entretanto, convergem num aspecto fundamental: para eles a

vivência direta da arte e a consciência da singularidade de cada experiência

são condições de possibilidade para a crítica de arte. A atualidade é o tempo

por excelência de toda obra, e esse apresentar, fazer presente essa experiência,

um dos principais desafios da tarefa crítica.

Cinco anos depois de sua apresentação no Seminário Internacional.

De Baudelaire à Crítica Contemporânea, a publicação desses ensaios

continua sendo de fundamental importância, a meu ver, para instigar o

debate sobre a natureza da crítica de arte, discussão ainda bastante

difusa no Brasil.

Man Ray. Monument a Sade, 1933

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Desafios para a tarefa crítica

ano 6, número 7, dezembro 2004

Reflexões críticas: na cama com Madonna

Thierry De Duve

O autor faz uma reflexão de seu processo de análise e

crítica das obras de arte. Descreve como se dão o

contato e seu diálogo com as obras, assim como propõe

questões a partir desse diálogo. De Duve refere-se à

maneira como o sentimento de afeto por uma

determinada obra influencia sua escolha para objeto

de crítica e, comparando o contato com a obra a uma

relação entre duas pessoas que se tocam, conclui que,

no caso da obra e da crítica, a relação se dá no âmbito

intelectual, quando a obra “toca” o intelecto. Relata,

ainda, como a carga teórica e a subjetividade do crítico

podem influenciar – bem ou mal – a reflexão sobre

determinada obra e mesmo apresentar-se como um

certo narcisismo. Menciona também sua forma de

estruturar o texto (tamanho dos parágrafos, ritmo, etc.)

e, a relação do texto com o leitor.

Crítica de arte, obra de arte, produção de texto

Algo me veio ao entendimento há algum tempo, quando uma

amiga me disse, com um quê de irritação, “Ah, Thierry, você

realmente parece um artista”. Eu fizera algo que um historiador de

arte profissional decente não deveria, e sua exclamação era uma

censura amigável – que tomei como elogio. Apenas mais tarde é

que ponderei a respeito do que teria pretendido dizer, bem como

se, de alguma forma, eu merecia o cumprimento, mesmo não se

tendo ela expressado com essa intenção; além de ter-me dado conta

do quão constrangedor foi o acanhamento que experimentei a

respeito de algo que deveria ter ignorado. De qualquer maneira,

era tarde demais. Não pude esquecer o que ouvi, e a observação

de minha amiga permaneceu comigo, incitando a responder,

provavelmente de forma muito pessoal, a seu convite para refletir

sobre a atividade da crítica de arte: sinto-me obrigado a dissecar o

que faço (ou o que penso fazer – o risco do engano é enorme)

quando exerço a crítica de arte.

Há um tipo de crítico de arte – o crítico-poeta – que pode reivindicar

ser legitimamente um artista, mas esse não sou eu. Jamais chamaria

o que faço de arte ou poesia; nem mesmo propriamente crítica de

arte. Minha escrita é teórica, o que significa que, dela, espero algum

tipo de “verdade” científica ou filosófica. Inevitavelmente, issoRevisão Técnica de Luis Andrade.Tradução Jason Campelo.

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Thierry De Duve

36 concinnitas

significa que, quando me aproximo de um trabalho, eu o faço equipado

– e onerado – com uma combinação de conhecimento e ignorância

inerente aos dispositivos teóricos que construí parcialmente para

mim mesmo ou que aprendi a usar. Meu trabalho está situado dentro

das fronteiras de uma prática que busca explicação, não invenção

nem “poesia” ou “arte”.

O que, então, me incita a escrever sobre uma dada obra ou um

conjunto de obras? Preciso gostar dela, eis o primeiro ponto. Ou,

talvez, não. “Gostar” é muito pouco. “Amar” é termo melhor, apesar

de um pouco oblíquo. O que quero dizer é que preciso sentir que a

obra me chama. Às vezes sou tentado a escrever sobre obras que

odeio, mas que também me chamam. Na maior parte das vezes, por

carência de coragem, não me antagonizo abertamente com o artista

ou com outros críticos. Nunca escrevo sobre obras que me deixam

indiferente, posto que o fato mesmo de escrever sobre esta ou aquela

obra é em si um sinal de que tenho uma forte relação com ela (como

ocorre com a maioria dos críticos, suponho). Porém, até determinar

que uma obra me convide com força suficiente, a ponto de eu lhe

dar muito tempo e energia, existe um processo complexo. Amor à

primeira vista geralmente não vinga, a não ser que seu resultado

não seja só amor à primeira vista. Mais freqüentemente, uma vez

que um nível mínimo é alcançado, as obras que disparam o desejo

de escrever são aquelas que eu realmente não sei se amo ou não, e

das quais extraio uma convicção forte o suficiente de que é isso

precisamente o que me arrasta para elas. Sem ter a percepção de

que a obra quebra o consenso que tenho comigo mesmo, o ímpeto

de escrever é muito fraco.

Esse primeiro passo é intuitivo, sem vontade, sem guarda, um

gesto de rendição à obra. Não obstante, ele é, ao mesmo tempo,

completamente consciente e reflexivo. Quando analiso uma obra,

tento agir sem fingir que meu gosto é despido de preconceitos; ao

contrário, mantenho os preconceitos de meu gosto em xeque

adicionando-lhes outro preconceito: meu gosto por obras que me

compelem a ir contra a má vontade do meu gosto. Podem me chamar

de formalista perverso, se quiserem. Prefiro afirmar que a ética,

aqui, entra em jogo. Os preconceitos são totalmente instintivos e

impregnados por tendências de todos os tipos, e as minhas incluem

preconceitos que controlam os outros. O lance ético é o de confiar

em todos eles, sem salvaguarda exterior.

Estabelecendo assim que sou definitivamente atraído por dada

obra, é necessário preencher uma segunda exigência antes que eu

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Reflexões críticas: na cama com Madonna

ano 6, número 7, dezembro 2004

decida iniciar a escrita a seu respeito. Devo sentir que ela vai me

ensinar alguma coisa teórica. A arte contemporânea está cheia de

obras com conteúdo explicitamente teórico; essas geralmente me

aborrecem demais. Essas obras são prontamente entendidas desde

que se conheça o código certo. Elas geram facilmente consenso entre

pessoas que falam o jargão correto, e, com mais freqüência,

sustentam a reivindicação de seus criadores a uma posição de prestígio

junto à academia ou ao mercado. No que me diz respeito, entendê-

las à primeira vista já é com elas entediar-se, porque simplesmente

ilustram alguma teoria existente – não importando quão sofisticada

ou interessante essa teoria seja. Interesso-me apenas por obras que

não entendo, incluindo-se aí obras de que não gosto e que até mesmo

odeio. O interesse, em arte, é distinto do amor por arte; porém,

quando há amor, ele inclui o interesse. Eis por que o fato de não

saber se gosto ou não de tal obra e definir que “conseqüentemente”

sou para ela atraído tem tudo a ver com o não saber o que a obra

significa e com definir que “conseqüentemente” ela deve ser

significante. Nem todas as obras que escapam ao meu entendimento

realizam esse feito, é claro. Há aquelas que são simplesmente

estúpidas e sem sentido; as que me tornam desesperadamente

estúpido ou cego; ou ainda aquelas as quais sinto serem de real

interesse para outras pessoas, mas que não conseguem disparar em

mim o tipo de excitação que necessito para escrever.

A sensação de não entender uma obra não é suficiente; o que

importa para mim é uma certa quantidade de enigma, de perplexidade,

que coloca o intelecto em movimento. Clamo alegremente aqui a

palavra “qualidade”, junto com todas as suas aporias. “Qualidade” é

algo que vem de dentro de você e, portanto, é meramente subjetiva,

apesar de se atribuir essa qualidade à obra com a qual se lida como

se fosse algo objetivo. Chamei isso de excitação há um minuto, e sei

disso quando a sinto, mas não posso transferir a você a compreensão

do que seja isso, apesar de presumir que você já o saiba por si

mesmo; eu teria que lhe mostrar uma obra que considere excitante e

lhe perguntar se você a sente da mesma forma. Mesmo que você

respondesse sim, tanto você quanto eu poderíamos falar a respeito

de experiências um tanto diferentes. Enfatizo esse ponto porque

quero deixar claro que, mesmo quando analiso a arte por curiosidade

intelectual, o despertar dessa curiosidade é, por si, estético. Para

mim é mesmo a experiência estética, aquilo que mais valorizo, o que

me faz seguir; é a sensação de que a obra contém conhecimento que

desconheço.

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Thierry De Duve

38 concinnitas

A sensação e sua qualidade são altamente pessoais, contudo, a

suposição é de que a obra – digo a obra, e não o artista – “sabe”

algo que não sei ainda, e minha tarefa é desenterrar e tornar explícito

o pensamento teórico que nela segue implicitamente. É claro, devo

conceber que objetos não pensam e que qualquer reflexão que eu

apreenda da obra deve ser atribuída ao artista ou a mim. Então,

falando não apenas metodológica como também eticamente, de

qualquer modo, não é assim que procedo. A obra é o terreno da

reflexão – essa é minha norma prática, como também meu postulado.

Sem esse postulado, o pensamento em questão não seria estético, e

deve sê-lo se o objeto sob escrutínio for uma obra de arte.

Longe de garantir objetividade de minha leitura, esse postulado

a deixa vulnerável a meus preconceitos. Novamente, o lance ético é

o de confiar: é melhor admitir que você não é universal e que sua

habilidade em propor questões é limitada, provisória, e algumas

vezes completamente circunstancial. Ainda mais, como intelectual,

se você não confia nas questões que se propõe, é melhor desistir.

Importar-se com suas próprias dúvidas é o que o prepara exatamente

para os encontros com as obras de arte em si. Quando elas aparecem,

ocorre um lampejo de reconhecimento, às vezes imediato, mais

freqüentemente adiado, nachträglich. E o que você reconhece, sem

“conhecer”, é o seu ponto obscuro momentâneo. Nunca analisei uma

obra de arte ou um conjunto de obras, ou, por esse motivo, um

fenômeno cultural sem ter uma questão teórica em mente –

geralmente tendo a ver com alguma transformação histórica da noção

de arte. Por outro lado, essas questões, apesar de moldadas pelas

preocupações que divido com minha comunidade intelectual, nunca

são empurradas sobre mim, vindas de algum paraíso teórico, e sim

oferecidas por obras individuais. É nisso que encontro a “prova” de

que não estou errando por completo.

Uma vez que decidi que amo uma obra o suficiente e sinto que

ela “sabe” algo que desejo muito conhecer, estou pronto para começar.

O que acontece é um diálogo: envio questões teóricas à obra, e ela

responde ou não. O modo como responde ou não à pergunta me faz

prosseguir em minha linha de questionamento ou, então, a mudar a

base, seja refinando as hipóteses com as quais estou trabalhando,

seja abandonando-as, convocando certas referências e dispensando

outras. Essa é a parte recreativa do meu trabalho, a hora do jogo

‘Verdade ou Desafio’, o momento em que estou realmente na cama

com Madonna (o jogo Truth or Dare [Verdade ou Desafio] foi distribuído

na Europa com o título In Bed with Madonna). É um caso amoroso e

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Reflexões críticas: na cama com Madonna

ano 6, número 7, dezembro 2004

uma luta, uma relação1 incessante com a obra. E, como em uma

relação, trata-se principalmente de tocar e ser tocado. Quero dizer

que, se você não é impelido pela obra, nada acontece, você não é

incitado teoricamente. Você ondula através dos movimentos do ato

de amor teórico, mas permanece entorpecido; talvez simule prazer,

mas sua escrita é insípida. Se a obra mexe com você, toca-o, então

toda a questão teórica que você dirija a ela é como uma carícia, sob

a qual ela treme ou se arrepia, revela ou retrai, e logo se aprende

quais questões tocam o ponto G, quais machucam ou são meramente

irritantes. Chega de lirismo – se os amantes e amantes de arte

desse mundo ainda estão comigo, então consegui me fazer entender,

mesmo que não se divirtam tanto com carícias teóricas vindas a

partir de obras de arte, ou com as próprias, como eu.

O objetivo não é reivindicar o direito às minhas pequenas

perversões, e sim transportar uma sensação sobre a qual falo ao

mesmo tempo direta e metaforicamente. Eu disse “diálogo” e depois

“relação”. Disse “trata-se principalmente de tocar e ser tocado”. Agora

acrescento: “trata-se principalmente de falar e ser falado”. “Tocar” e

“falar” são igualmente metáforas no que tange às nossas relações

com as coisas. Mas, como todos podem perceber a partir da visão –

com certa perplexidade filosófica – de um readymade ou de um Brillo

Box de Andy Warhol, obras de arte não são meras coisas. Elas

realmente tocam e falam (eis por que, incidentalmente, todas as

culturas tendem a tratar suas próprias obras de arte, pelo menos,

como semi-seres vivos, semipessoas; e por que a desfiguração de

uma obra de arte é sempre vista como um ato bárbaro). A “irrealidade”

do diálogo/relação entre obra e crítico, então, não é a distância

convencional entre realidade e metáfora; tem mais a ver com o fato

de que só pela interação entre diálogo e relação é que realmente

tenho acesso à alteridade e ao afastamento; em outras palavras, à

obra, na medida em que não a entendo. Essa interação pode ser

descrita como um diálogo de segundo grau ou uma relação em

afastamento, mas essas imagens são enganadoras, pois sugerem

um plano de metalinguagem onde diálogo e relação são mantidos

em separado. De fato, é o falar que efetua o tocar e vice-versa. É

isso que faz da crítica de arte uma atividade tão estranha, singular

e cheia de riscos.

O primeiro risco a ser superado é o do extraordinário prazer

narcisístico da atividade. Afinal de contas, a obra é um algo, então

quando envio uma pergunta para ela, estou na verdade falando comigo

mesmo; e quando ela responde, estou de fato ouvindo a mim mesmo

1 No original inglês, a palavra usada é intercourse,cuja significação abrange não só relação emseu sentido lato, como também comunicação,correspondência, comércio e, num sentido maisintrínseco, mas ao qual o autor com certeza fazalusão, relação sexual. (NT)

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Thierry De Duve

40 concinnitas

decifrando mensagens de origem incerta; e, quando a obra me toca,

estou flertando com minha própria emoção. Isso não é romantismo,

é fato – um fato embaraçoso, concordo, mas que é muito mais

interessante reconhecer do que negar, porque a partir daí pode-se

observar a crítica de arte como algo que envolve constante reflexividade

autoconsciente no que se faz. A reflexão crítica não é um metadiscurso

dentro de seu exercício, é imanente a ele. Você deve estar

constantemente precavido contra a identificação e projeção excessivas:

pois não vai querer se perder dentro da obra ou tomá-la como refém.

Aqui, mais uma vez, a ética entra em cena: você deve saber que não

pode possuir uma obra de arte nem mais, nem menos do que pode

possuir uma pessoa; deve respeitar sua alteridade, cuidar de evitar

assimilá-la para si ou nela projetar-se desinibidamente. A dificuldade

reside no fato de que a salvaguarda definitiva contra o risco de

mergulhar em seus próprios sentimentos está nos seus próprios

sentimentos, e está em suas mãos traçar a linha entre legítimo

narcisismo e autocomplacência.

Teoria, uma estrutura teórica, um grupo de hipóteses partilhadas,

uma linguagem teórica comum: essas são, é claro, outras proteções,

e são nas que mais confio – ou pelo menos mais conscientemente.

Mas nesse campo vários riscos novos surgem, sendo o principal, pelo

menos para mim, o da superinterpretação. Como já disse, quando

interpreto uma obra, analiso-a tendo em mente uma questão teórica.

Fui honesto apenas em parte, quando disse que era a própria obra

que oferecia a questão; seria mais fiel a minha experiência admitir

que, mais freqüentemente do que se pensa, a questão é incitada

pela teoria. Apesar de minha norma prática ou meu postulado ser o

de que, qualquer que seja o pensamento teórico que a obra provoque,

ele deve estar na obra, obviamente trago comigo muita teoria. Trago-

a dos livros que já li, dos anos de estudo, do meu próprio trabalho

anterior, de qualquer jeito – uma carga dos diabos. A teoria é pesada,

e esse é o problema. Ela carrega o peso de todas as pessoas

importantes que você cita ou de quem está no fundo de sua cabeça

quando você escreve; é onerada com os sedimentos do pensamento

delas. Tem autoridade, e a autoridade pode ser facilmente usada

para dar poderes a você mesmo, intimidar o leitor e, finalmente,

silenciar a obra. O risco da superinterpretação é o de, ao emprestar

à obra a autoridade da teoria, acabar por esmagar essa mesma obra

sob o poder da teoria. As obras de arte mantêm-se frágeis frente a

uma questão teórica, mas não por ser intrinsecamente frágeis demais

para uma confrontação – ao contrário, quanto melhor a arte, mais

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Reflexões críticas: na cama com Madonna

ano 6, número 7, dezembro 2004

questões teóricas ela evoca –, mas porque elas não respondem a

essas questões na linguagem da teoria. A tradução é necessária. Os

problemas da tradução e da traduzibilidade colocam o dedo direto

na ferida. É aqui que todas as dificuldades e riscos da crítica de

arte, como as vejo, estão combinadas.

Elas começam exatamente com a primeira questão que preciso

fazer a mim: como sei que uma dada obra evoca uma dada questão

teórica e que não estou simplesmente trazendo minha obsessão atual

para essa mesma obra? Não há como saber isso por fatos. Percebo

isso, sinto, vou a isso intuitivamente – de que outro modo? O risco

de um auto-engano e de narcisismo nesse momento é iminente. O

problema não é o da subjetividade contra a objetividade, e sim que

o único caminho para a objetividade de uma teoria é um controle

subjetivo do uso subjetivo da teoria. Simplesmente, não tenho mais

ninguém à mão para manter minha subjetividade em xeque, pelo

menos todos os teóricos que cito e cuja autoridade evoco. Pois

preocupar-se com a teoria de arte (oposta à “teoria” aplicada na

arte) é pedir às obras de arte que igualmente validem ou invalidem

uma hipótese teórica. Como na ciência, você precisa sempre estar

disposto a abandonar uma teoria, mudá-la, fazê-la andar. Como em

arte, contudo, você produz uma teoria em seu próprio nome, assume

uma responsabilidade pessoal pelo pensamento teórico, cuja produção,

todavia, você atribui às obras sobre as quais escreve. Assim, o que

pessoalmente chamo de teoria (mas que teimosamente recuso-me a

chamar de “minha teoria pessoal”) não é nada mais do que o estado

atual das questões que pergunto a mim mesmo – para as quais

sinto-me pronto, assumindo absurdamente que o mundo está

preparado. Novamente, o lance ético aqui é confiar nessas questões,

ou seja, confiar que elas não são apenas minhas. São meu elo com

o trabalho de outras pessoas, e, quando minhas questões são de

fato compartilhadas por outros, descubro nisso a prova (agora objetiva)

de que não estou errando por completo.

De volta à cama de Madonna. Aqui estou, com uma ou algumas

questões teóricas em mente, endereçando-as à obra. Primeiramente,

a regra é a da associação livre. A obra – a impressão geral que ela

me dá, as sensações que ela produz e como as nomeio, seu conteúdo

temático, sua forma, sua técnica, sua figura e cor, às vezes um

único detalhe – tudo isso suscita outras obras, puxa referências da

memória, convoca outros comentários, leva-me à biblioteca para

consultar livros que desconfio conterem alguma pista. Logo concebo

que não estou sozinho na cama com Madonna. Apesar de não ter

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Thierry De Duve

42 concinnitas

nada contra sexo grupal, o problema agora é o de manter alguns

parceiros e deixar Madonna chutar da cama aqueles que não têm

nada a ver ou fazer aí. Em termos menos metafóricos, devo sentir

que tenho mais material interpretativo do que realmente posso usar

e que posso confiar na obra para fazer a seleção.

Achar o caminho até a escrita efetiva algumas vezes é imediato,

outras, dolorosamente demorado, mas se o primeiro parágrafo, mesmo

a primeira frase, não for algo que eu sinta poder voltar em busca de

significados latentes, sei que mais cedo ou mais tarde ficarei preso.

Se tudo for bem, estarei apto a escrever. Há momentos em que a

obra sobre a qual falo permanece nítida em minha mente e que as

palavras que tateio precisam manter-se junto à obra, em sentido,

em humor, em tonalidade, em precisão intelectual; e há momentos

em que os temas teór icos me conduzem para longe dela,

freqüentemente para uma discussão imaginária com oponentes

teóricos. Nunca subestime a dimensão polêmica da escrita de arte,

ela é essencial. Mas se você manipular ou simplificar a teoria com o

objetivo de abater um oponente ou se deixar seduzir por sua própria

teoria a ponto de trair a experiência estética da obra, isso aparecerá.

De qualquer maneira, esta é minha norma: ao sentir que fui desviado

por meu desejo de vencer uma discussão ou que segui um insight

teórico a um ponto em que a teoria obscurece a arte, suponho que o

leitor também sentirá isso.

Mais uma vez, é uma questão de ética, mas “ética” talvez seja

uma palavra pesada demais. Digamos “tato”, a não-metáfora

apropriada, em que se trata principalmente de tocar e ser tocado. O

tato transforma-se em uma batalha quando se dá além da distância

adequada – distância essa a partir da qual o valor real de sua

interpretação teórica depende da justeza de seu julgamento estético.

Se você está muito apaixonado, e seus leitores sentem poder

concordar com sua interpretação teórica sob a condição de apoiar

incondicionalmente seu julgamento estético, você está bem perto.

Se sua relação com a obra é a de uma noite apenas, com a qual você

forja toda uma teoria que os leitores sentem poder ser virtualmente

construída, igualmente, a partir dessa ou de qualquer outra obra,

então você está muito longe. Finalmente, se você consegue dar a

impressão de que decodificou o enigma da obra, extirpou seu segredo,

disse dela tudo que deveria ser dito, você está condenado. Se isso

for verdadeiro, nesse caso você não deveria, de forma alguma, ter

escrito sobre a obra; se não for, você vai perder seus leitores. Eles

querem que a arte resista à interpretação, e estão certos.

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Reflexões críticas: na cama com Madonna

ano 6, número 7, dezembro 2004

A verdadeira problemática a propósito da traduzibilidade acaba

por ser a intraduzibilidade. A boa crítica de arte de tendência teórica

deve alcançar duas metas contraditórias ao mesmo tempo: buscar a

elucidação teórica e respeitar o enigma da obra, a sua resistência à

linguagem da teoria, sua alteridade. Ainda que a força motriz por

trás do meu trabalho como crítico/teórico seja explorar o que sinto

que a arte “sabe” e eu não, traduzindo isso para a linguagem da

teoria, minha meta não é violar o segredo da obra, e sim circunscrevê-

la em uma firme rede de tangentes que a façam surgir bem lá no

meio, como se numa clareira, e, mesmo assim, escura como nunca.

O enigma da obra é o meu ponto obscuro. Se posso vê-la agora,

aprendi algo; se entender que simplesmente a desloquei para algum

outro lugar, para onde quer que seja, e de onde minha próxima

questão teórica surgirá, aprendi ainda mais. Pois não esqueci de

que objetos não pensam. Produzir reflexão teórica a partir de uma

obra é começar a partir da intuição de que a obra pensa e sabe algo,

e, movimentando-se a partir dessa intuição, sondar a obra com uma

questão teórica; então deixar a atividade teórica responder à questão

e produzir conhecimento; em seguida conferir novamente, com minha

intuição, se o conhecimento que adquiri parece pertinente, ou se

atinge a nota certa, ou se ressoa. E assim por diante, vice-versa. A

isso chamei, tempos atrás, interação entre diálogo e relação, e

chamaria agora de pensar teoricamente de modo estético. Você usa

o conhecimento que ganha das sensações que a obra lhe dá (chama-

se a isso insight ou intuição) com o objetivo de produzir teoria e usa

as sensações que tem a respeito do conhecimento que produziu com

o objetivo de conferir sua relevância à obra.

Sensações e conhecimento não se misturam – e isso é uma regra

tanto ética quanto epistemológica, com conseqüências estéticas. Quando

escrevo, sempre chego a um lugar onde minha preocupação principal

é a forma que aquela peça terá. Embora o quê2 eu quero dizer determine

como quero dizê-lo, é esse “como” que modela o “quê”. Velocidade,

ritmo, tom, ecos, escolha de palavras, construção de sentenças,

comprimento dos parágrafos, tudo importa muito. Onde mudar de

marcha abruptamente, como alternar emoção e argumentação fria,

onde ser acadêmico e onde ser coloquial, e daí por diante – esses são

os meios com os quais tento trançar as linhas teóricas que tenho em

mãos, formando um tecido com alguma consistência e docilidade,

enquanto propositadamente deixo alguns fios pendentes. Essas decisões,

que são estéticas, pertencem, em minha opinião, ao tema da peça

escrita; quero que elas contribuam para o trabalho de extrair

2 Embora este “quê” esteja gramaticalmenteincorreto, optei pelo desvio da regra para mantero espírito do texto em inglês. Nele, a frasearticula-se da seguinte maneira: “Though whatI want to say determines how I want to say it,it is the “how” that shapes the “what” (grifosmeus). Ou seja, os dois “what” estão colocadoscomo substantivo, estabelecendo-se entre elesuma relação semântica semelhante. Se, natradução para o português, o primeiro ‘que’fosse mantido como pronome, perderia a relaçãocom o segundo ‘quê’, que é substantivo. Assim,subvertendo a gramática portuguesa, mantenhoo jogo de idéias proposto no texto original. Asubstantivação do pronome ‘que’ pareceu-me amelhor solução para manter o jogo de palavrasoriginal sem que a frase se perdesse em lacunascom significado mais impreciso. (NT)

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Thierry De Duve

44 concinnitas

conhecimento da obra de arte em discussão. Contudo, elas devem ter

vida própria. O que está em jogo é o ato de expor o enigma da obra

qual enigma ou, tornar o enigma “visível”, torná-lo de alguma forma

esteticamente perceptível aos outros. A maioria dos críticos de arte e

teóricos provavelmente procede de forma similar; não creio ter descrito

nada excepcional. Não teria insistido nessa dimensão estética da escrita

de arte se não fosse por esse exercício da reflexão crítica, e também,

suponho, se não fosse pela queixa cordial de minha amiga: “Ah, Thierry,

você realmente parece um artista”.

Ora, eu realmente não acredito nela. Desconfio que os artistas

não operam exatamente dessa forma. À parte o fato de que todos os

artistas não operam da mesma maneira, creio que o modo de pensar

incorporado em uma obra de arte é extrínseco ao modo teórico,

extrínseco até mesmo ao que acabei de chamar “pensar teoricamente

de modo estético”. Ainda que os artistas possam algumas vezes falar

a linguagem da teoria, eles não o fazem em sua obra. Como sei

isso? Mais uma vez, não tenho provas. Mais uma vez, é uma questão

de alteridade e intraduzibilidade. Tudo que sei é que o enigma da

obra é meu ponto obscuro. E meu ponto obscuro não é necessariamente

o enigma da obra. Não posso pretender que o que se apresenta para

mim como um trôpego bloqueio teórico se tenha apresentado da

mesma maneira para a pessoa cujo processo de pensamento a obra

personifica. Não se trata simplesmente de dizer que a arte é

totalmente traduzível para a teoria, e s im que o tema da

intraduzibilidade não é o mesmo do ponto de vista do crítico e do

artista. E eu não tenho o ponto de vista do artista a minha disposição,

eis o problema. Posso apenas conjeturar. A melhor aproximação que

encontrei foi dizer que a maneira que os artistas parecem pensar,

em suas obras, é similar ao modo de pensamento mítico dos

pensadores pré-socráticos, ou seja, do tempo do Poema de

Parmênides, um pouco antes da divisão entre poesia e filosofia.

Sugerir isso é constrangedor, menos por fazer o pensar dos artistas

parecer algo tão arcaico do que por automaticamente colocar-me na

posição de filósofo racional, para quem o modo pré-socrático de

pensamento está irremediavelmente perdido. Traduttore traditore.

Depositando – e portanto traduzindo para – as palavras de alguém

familiar à teoria (filosofia, no caso), minha aproximação já é uma

traição do modo de pensar dos artistas e, portanto, uma confissão

de minha cegueira definitiva.

Dois últimos tópicos. Primeiro, o pior engano, para um crítico, é

acreditar que se pode colocar o ponto de vista de um artista à

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45

Reflexões críticas: na cama com Madonna

ano 6, número 7, dezembro 2004

disposição entrevistando-o. Segundo, o maior desafio, para um crítico,

é o fato de que os artistas podem retrucar. A única diferença, de

acordo com o que penso, entre crítica de arte e história da arte –

seja com tendências teóricas ou não – é que os críticos de arte

escrevem sobre os artistas vivos, enquanto os historiadores de arte

sobre os mortos. A norma que aplico a mim mesmo é a de negligenciar

essa diferença. Devo escrever como se o artista vivo estivesse morto

e a obra, separada de seu criador, pertencesse à história da arte.

Não vou fingir que nunca entreviste artistas ou que não faça uso do

que os artistas dizem uns aos outros. Posso até mesmo ter abusado

dessa “fonte primária”, como é impropriamente chamada. Mas não

considero necessariamente o que os artistas dizem para representar

seus pontos de vista. Sou mais como um psicanalista lacaniano,

ouvindo o significante. Falar a respeito da obra de um artista é

relacionar o que a obra diz por si (entre outras coisas) ao que o

artista diz sobre a obra (entre outras coisas) e inferir que a obra ao

menos explica as palavras tanto quanto o contrário. Mas lembrem-

se: o que a obra diz sobre si mesma só me é acessível mediante um

diálogo que reivindico ter com a obra, mas que, de fato, tenho comigo

mesmo. Visto que estou atrás de meu próprio ponto obscuro, a obra,

ou seu enigma, é, numa forma de dizer, “o outro”. E, como disse

Lacan, não há Outro no “Outro”. A alteridade não é recíproca.

Entrevistar o artista – trocando conversa fiada, informações e

opiniões ou discutindo teoria com ele – é uma coisa. Como em

todas as trocas humanas, essa descansa sobre a convenção (ou

seja, a ilusão) de que pontos de vista são intercambiáveis. Daí a

comunicar ao artista o que escrevi a respeito de sua obra é de todo

uma outra coisa. É um face-a-face no qual ambos fitamos a

alteridade do outro, um face-a-face sem mediações, mesmo que

dois objetos – a obra do artista e meu texto – se mantenham entre

nós, fingindo ser vias de comunicação. A obra não foi endereçada

a mim em particular, mas, quando senti que ela me chamou e que

tinha alguma coisa teórica para me ensinar, confirmei seu

recebimento, como se tivesse sido enviada para mim. Meu texto

também não é endereçado ao artista. Felizmente, a maioria dos

artistas quer saber o que é escrito sobre sua obra. Temo e adoro

isso – o verdadeiro teste. Não considero ter passado com êxito no

teste se o artista concorda com minha interpretação da obra – esse

não é o objetivo. Fico mais feliz quando o artista se sente compelido

a retrucar, com palavras ou obras. Nisso encontro o sinal de que

não errei por completo.

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Robert Kudielka

46 concinnitas

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O olho ictérico

ano 6, número 7, dezembro 2004

O olho ictérico1

Crítica de arte e as falácias do historicismo

Robert Kudielka

Partindo da crítica de Baudelaire à Exposition

Universelle, de 1855 – feita com o intuito de concorrer

com a Grande Exposição de Londres, de 1851 –, o autor

traça um debate sobre a crítica e a leitura historicista da

arte. Aborda a noção de progresso como um sintoma de

decadência, já que se mostra como um suicídio

continuamente renovado, algo que morre e renasce,

como um escorpião ferroando a si mesmo. Esse insight

de Baudelaire sobre a lógica fatal do progresso teria

antecipado o ataque de Nietzsche ao historicismo. No

Modernismo o artista muda seu olhar, que era voltado

para a história da arte tradicional. A questão principal é:

como resolver a questão histórica dentro da arte? Do

bojo dessa questão surgem outras, como a do

Modernismo, que rompe com a continuidade histórica,

e a do Pós-Modernismo, que revive o romântico.

Tradição, ruptura, progresso

A forma como a história da arte é com freqüência transmitida

dificilmente leva em conta a importância seminal da Exposition Universelle

de 1855. Sabe-se, é claro, que tanto Ingres quanto Delacroix tiveram

grandes exposições retrospectivas no Palais des Beaux-Arts; que Courbet

protestou com sua própria mostra Du Réalisme em um pavilhão

especialmente construído; e que Pissarro chegou em Paris apenas a

tempo de ver as pinturas de Corot, que sobre ele exerceriam uma

influência decisiva. Esses, porém, foram incidentes secundários, de fato,

se comparados com a intensidade da carga que a Exposition Universelle

iria jogar sobre a concepção européia de arte. Com o intuito de concorrer

com a Grande Exposição de Londres de 1851, as autoridades francesas

decidiram acrescentar uma representação substancial da arte, tanto

estrangeira quanto francesa, a sua celebração do progresso tecnológico.

Além da maior parte dos países europeus, Rússia, Turquia, Estados

Unidos, México e Peru contribuíram para a cena internacional; e, dentro

do Palais des Beaux-Arts, um pequeno “Museu de Arte Chinesa” foi

instituído. Foi a primeira vez que a arte, em tal escala internacional, foi

reunida num mesmo lugar. Durante seis meses Paris realmente tornou-

se o centro da arte mundial no sentido mais pleno da expressão. De

Revisão Técnica de Luis Andrade.Tradução Jason Campelo.1 No dicionário de Oswaldo Ferreira Serpa (Serpa,Oswaldo Ferreira. Dicionário inglês-português,português-inglês. 8a ed., Rio de Janeiro:FENAME, 1977.), o verbete 'jaundice' aparecetraduzido como 'icterícia', e 'jaundiced'correspondendo a 'ictérico'. Considerando asreferências ao termo utilizadas pelo autor, paradar conta do olhar 'jaundiced' como um olharproblemático ou, em palavras mais tendenciosas,mas nem por isso menos claras, doente, otradutor optou por seguir a tradução literal,citado acima, e não se orientar por possíveissubstituições analógicas, alegóricas oumetafóricas que, longe de construírem uma pontede entendimento um pouco mais segura entre oinglês e o português, acabariam tornando otítulo do ensaio por demais dúbio. (NT)

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Robert Kudielka

48 concinnitas

acordo com Théophile Gautier, quatro horas dentro da exposição eram

equivalentes, ao connaisseur, a uma peregrinação de 15 anos.2

Todavia, de todos os críticos contemporâneos, apenas Baudelaire

compreendeu o significado pleno e explosivo daquela seleção.3 Assim

como outros escritores, ele deu as boas-vindas e louvou “essa graça

divina do cosmopolitismo” que havia exposto as riquezas da “beleza

universal”. Mas o título inesperadamente claro e seco que encabeçava a

primeira parte de sua resenha – Méthode de Critique – demonstra que

ele imediatamente alcançara o problema fundamental lá incluído. Como

alguém poderia relacionar-se justamente com essa diversidade

esmagadora? Um século antes Diderot havia reclamado que para fazer

justiça com o que ele vira, a crítica de arte moderna havia de possuir

uma alma “capaz de formas infinitamente diferentes de entusiasmo”4 –

e isso frente a meras 200 obras no “Salon” francês de 1763. Com a

Exposition Universelle, o problema de se relacionar com uma multidão

de manifestações de arte particulares e diversas aumentou

dramaticamente. Como lidar com esse “imenso quadro de

correspondências”?5 Para Baudelaire, a única resposta parecia ser adotar

uma aproximação modesta. “Decidi me contentar com a impressão”, ele

escreve. “Pedi asilo a uma inocência inculpável.”6

Sendo a inocência a resposta para uma exigência do julgamento

crítico amplificada – essa é uma contradição verdadeiramente

baudelaireana, e de maneira nenhuma uma declaração zombeteira ou

irônica. Ao refletir, em seu Méthode de Critique, ele desenvolve essa

contradição em um par de inteligentes paradoxos. Eles expõem essa

oportunidade sem precedentes e os perigos suscitados por essa nova

condição. Primeiramente ele saúda, sem reservas, a liberação de qualquer

forma de dogma ou regra normativa. Os dias do ideal classicista, assim

como qualquer outra forma de “fanatismo”, como ele mesmo nomeia,

seja italiano ou parisiense, pareciam ter chegado ao fim, já que a

beleza havia sido revelada em suas muitas formas e cores variantes.

Além disso, todas as tentativas de colocar as diferentes manifestações

juntas em um sistema uniforme estavam destinadas ao fracasso, porque

eliminaram a variedade, o princípio vital na essência da criação de arte.

A única generalização possível era a de que o belo sempre era particular.

“Le beau est toujours bizarre” é o primeiro e fundamental paradoxo de

Baudelaire; e ele se apressa em acrescentar que o bizarro, para além

dos critérios, não significa monstruoso ou algo que “saiu dos trilhos”:

“Quero dizer que ele (o belo) sempre contém algo de estranheza, uma

inocente, desembaraçada estranheza, que o torna belo de uma maneira

especial”.7

2 Gautier, Théophile. Les Beaux-Arts en Europe- 1855. Vol. I, Paris 1856, p. 2.3 Baudelaire, Charles. ‘Exposition Universelle,1855 - Beaux-Arts’. In Oeuvres complètes, ed.por Claude Pichois, Vol. II, Paris 1976, pp.575-597.4 Diderot, Denis. Ésthetische Schriften, ed. porFriedrich Bassenge. Vol. I, Frankfurt Mª. 1968,p. 433.5 Baudelaire. Oeuvres, Vol. II, p. 577.6 Id., ibid., p. 578.7 Id., ibid. O termo bizarre é derivado da palavrainglesa strangeness, usada por Edgar Allan Poeem seu conto Ligeia, que Baudelaire traduziraalguns meses antes, cf. comentários, p. 1.369.

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O olho ictérico

ano 6, número 7, dezembro 2004

A oposição à estética normativa, em particular ao “sistema”,

encontrava-se afinada ao espírito da época. Os românticos irão

sinceramente concordar com a exoneração do que lhes poderia parecer

uma tirania desbotada. De qualquer maneira, esse coup de grace foi

apenas um aspecto do argumento de Baudelaire. Se ele considerou o

dogmático estético um usurpador blasfemo da posição dos deuses no

universo, também condenou, com o mesmo prazer bíblico, o erro elegante

contra o qual sentiu ser seu dever proteger-se “como quem se protege

do inferno” [comme de l’enfer].8 Baudelaire, o grande arauto de la

modernité, era um oponente devoto a toda “idéia de progresso”: “esse

farol moderno arremessa escuridões sobre todos os objetos que

conhecemos” [cette lanterne moderne jette des ténèbres sur tous les objets

de la connaissance9]. A metáfora invertida de uma luz atirando escuridão

claramente prenuncia10 o segundo paradoxo pertinente – o da noção de

progresso como um sintoma da decadência. A própria liberdade,

conquistada por sua liberação da coação dos dogmas, pareceu ser

sacrificada em prol da crença no poder e providência da história.

Com referência aos outros escritos de Baudelaire, pode-se facilmente

tender a aplicar sua aversão a l’idée du progrès a sua crença apaixonada

na originalidade do artista. E, de fato, o Méthode de Critique culmina

na triunfante afirmação desta antítese:“O artista depende apenas de si mesmo. Promete aos séculos doporvir nada mais do que suas próprias obras. E só oferece garantiaa si. Morre sem filhos”.11

Apontar simplesmente a oposição heróica entre as condições

históricas e a autonomia do artista, porém, é negligenciar a análise

sucinta de Baudelaire a respeito da soberba do progresso. Ele demonstra

primeiramente que a aliança entre progresso e a condição da arte,

como inferida pela Exposition Universelle, confunde valores materiais e

espirituais. O desenvolvimento da Revolução Industrial segue caminhos

completamente diferentes dos do exercício da arte. Por conseguinte,

ele observa que a suposição global do progresso obscurece seu mérito

relativo nas partes. Quando, por exemplo, o nível básico de subsistência

do povo é elevado, quando a moralidade pública torna-se mais sensível

em certas áreas ou quando um artista realiza uma obra melhor do que

a precedente – então esses são certamente exemplos de progresso

real. Porém, não há garantia em nenhum desses casos de que tais

melhoramentos continuem indefinidamente. Tendo demolido dessa

maneira a crença em vigor, Baudelaire finalmente subverte sua base ao

revelar uma falha fatal em todo o conceito de progresso como tal.

Como só pode proceder negando suas próprias realizações, o “progresso

8 Id., ibid., p. 580.9 Idem.10 A palavra prenunciar, em inglês, é escritaforeshadow e, ao pé da letra, significa algocomo ‘penumbra (ou sombra) à frente’. Há aí aclara intenção do autor em fazer um jogo deidéias entre essa palavra e as metáforas de luze sombra baudelaireanas. A metáforabaudelaireana, ao mesmo tempo em queilumina, obscurece (prenuncia) o paradoxoseguinte. Essas e outras digressões, frutosdo jogo de palavras do autor, perdem-se natradução. (NT)11 Baudelaire, op. cit., p. 581.

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Robert Kudielka

50 concinnitas

infinito” eqüivaleria à “mais engenhosa e cruel tortura”12 da humanidade.

Ele propõe “um suicídio continuamente renovado”, que eventualmente

reverteria contra o próprio objetivo e intenção, como o escorpião mirando

contra si o próprio ferrão.

Essa é uma imagem poderosa, quiçá assustadora, que antecipa o ataque

de Nietzsche ao historicismo em Vom Nutzen und Nachteil der Historie Fur das

Leben, publicado 20 anos depois. Contudo, àquela época, o insight de

Baudelaire parece ter escapado à atenção. Na publicação original de seu

ensaio em Le Pays, os três parágrafos essenciais desapareceram: e não se

sabe se foram suprimidos pelo editor ou se Baudelaire os acrescentou mais

tarde, quando se deu conta do terreno que tinha pisado em suas plenas

implicações.13 Seja o que for, a conseqüência real do prognóstico de Baudelaire

só vem à luz bem mais tarde, quando, no final do século 20, a imagem do

escorpião ferroando a si mesmo parece tornar-se dolorosamente real na arte

ocidental. Após a injeção de vitalidade inicial, cedida pela arte pós-guerra

norte-americana, a atividade progressiva diminuiu sua velocidade em um

tempo relativamente curto e, por sua vez, cedeu espaço a um ânimo comum

que dá adeus ao espírito progressivo como tal. O “pós-ismo” é o dono da vez,

como mostram os títulos de algumas publicações influentes da década 1980:

Das Ende der Kunstgeschichte (Hans Belting, 1983), The End of Art (Arthur C.

Danto, 1984), La Fine della Modernitá (Gianni Vattimo, 1984).

De qualquer modo, o insight antecipado de Baudelaire sobre a lógica

fatal do progresso dá uma perspectiva histórica inesperada a essas perorações

fin de millénaire. Antes de nos movermos rapidamente do Modernismo para o

Pós-Modernismo, é válido considerarmos se a história da arte moderna pode

ser descrita, de qualquer maneira, em termos de um desenvolvimento

progressivo. Essa “tortura engenhosa” tem sido a forma de “correspondência”

entre pintores e escultores desde Delacroix? Ou, antes, não seria o progresso

histórico um clichê cultural, talvez o clichê, moderno por excelência, o qual,

como viu Baudelaire, vem atormentando a orientação da arte moderna desde

o começo? As duas tentativas críticas mais influentes do século 20 a empregar

o conceito de desenvolvimento, Entwicklungsgeschichte der modernen Kunst

(1904), de Julius Meier-Graefe, e a visão de “modernismo” de Clement

Greenberg, produzem evidências suficientes para o exame e discussão desse

ponto. Mas, com o objetivo de melhor entender os problemas metodológicos

de suas análises, é útil que se faça, primeiro, uma breve consideração sobre

a fundação da narrativa progressiva na filosofia de Hegel.

A apropriação de arte historicista (Hegel)É muito provável que Baudelaire tenha tido conhecimento de Hegel,

pela tradução francesa de sua Estética, cujo primeiro volume apareceu

12 Id., ibid.13 Cf. comentário in Baudelaire, Oeuvres, Vol.II, p. 1.370.

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O olho ictérico

ano 6, número 7, dezembro 2004

em 1840, ou pelos escritos de Heinrich Heine. Mas, mesmo que Baudelaire

nunca houvesse lido uma única linha do fundador do historicismo, sua

crítica ainda estaria endereçada a ele. É característico da influência de

Hegel que muitos dos críticos e historiadores que, até os dias atuais, se

utilizam da narrativa do desenvolvimento progressivo o façam sem

conceber quem talhou essa ferramenta. Longe de ter inventado a “idéia

de progresso” como tal, Hegel tem o mérito de ter penetrado todas as

implicações dessa condição de crença e, ao agir de tal maneira,

transformou-a em uma respeitável máquina acadêmica.

Há uma clara diferença entre considerar uma obra de arte antiga ou

exótica e declará-la algo do passado ou estrangeiro. Acolhendo o exemplo

de Baudelaire, como europeus ou sul-americanos, certamente tomamos

ciência de que um vaso chinês não vem de nosso tempo e cultura. Não

obstante, isso não quer dizer que não o possamos apreciar. O fato de

uma obra de arte apresentar-se antiga e não habitual pode até mesmo

acentuar nosso deleite sobre ela, talvez como uma manifestação da

“estranheza”, que Baudelaire reconheceu como pré-requisito para o

belo. Por outro lado, se declararmos essa mesma obra algo pertencente

a um período e cultura diferentes, nós a removemos do presente,

empurrando-a para longe de nós. Por mais inócua que essa distância

pareça, ela é o primeiro passo em uma seqüência de operações que

eventualmente podem dissolver a singularidade e distinção de uma obra

de arte.

Historicismo, em seu significado preciso, é um método para qualificar

essa distância histórica. É claro que é impossível recriar o mundo

particular de onde uma obra de arte emergiu, porque o que permanece

desse meio original só pode ser um certo número de documentos e

objetos diversos com igual proveniência. De qualquer modo, longe de

considerar isso uma barreira insuperável, Hegel e a escola do historicismo

afirmaram que o desaparecimento do contexto ativo oferecia oportunidade

única de reconhecimento: ao examinar e comparar os traços

remanescentes, se podia descobrir objetivamente o que havia realmente

acontecido, sem ser corrompido por percepções ou enganos subjetivos.14

É realmente tentador acreditar em tal esclarecimento retrospectivo em

relação à área conjunta das maquinações sociais e políticas – apesar de

haver um pormenor no comentário escarnecedor de Nietzsche, de que o

historicista constrói uma história “verdadeira” que nunca existiu e nunca

existirá.15 Mas o verdadeiro nó se dá quando esse método é aplicado às

obras de arte. Ao comparar um Van Eyck, por exemplo, a seus

contemporâneos e relacionar suas pinturas com convenções sociais e

condições da época em que foram feitas, podem ser descobertas

14 A melhor introdução acadêmica aohistoricismo é a Grundri der Historik, de JohannGustav Droysen, publicada pela primeira vezem 1858 e reeditada por Rudolf Hübner em1937 sob o título Historik. Vorlesungen ÜberEnzyklopedie und Methodologie der Geschichte,6a ed., Darmstadt 1971.15 Cf. capítulos 4 e 7 em Vom Nutzen undNachteil der Historie Für das Leben (1974). InFriedrich Nietzsche, Kritische Studienausgabein 15 Bnden, hg. V. Giorgio Colli e MazzimoMontinari. Berlin-München-New York 1988, VolI, pp. 271 e 295.

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Robert Kudielka

52 concinnitas

16 G. W. F. Hegel, Aesthetics. Lectures on FineArt, Trad. T. M. Knox. Vol. I, Oxford 1975, p.12. (Curso de Estética: O Belo na Arte. Traduçãode Orlando Vitorino e Álvaro Ribeiro. São Paulo,Martins Fontes, 1996, p. 25-26). (NT)17 Uma explicação concisa desses princípiosespeculativos pode ser encontrada na ‘Vorrede’para a Phenomenologie des Geistes, de Hegel(1807), ed. por Johannes Hoffmeister,Hamburgo 1952, pp. 9-59.

conexões, afinidades e até mesmo influências interessantes. Todavia,

diluir uma obra de arte em seus elementos históricos traz o perigo de

se eliminar sua natureza específica. Hegel justificava esse efeito sem

reservas: “O que, hoje, uma obra de arte em nós suscita é, além do

direto aprazimento, um juízo sobre seu conteúdo e sobre os meios de

expressão, e ainda sobre o grau de adequação da expressão ao

conteúdo”.16 Portanto, o método historicista evidentemente não está

interessado na presença da obra de arte, para não falar em seu poder

de cobrir a distância entre o passado e o presente, e sim apenas no

material que a arte pode fornecer para a produção de uma verdade

produzida por si.

Se isso já parece ser um meio de acesso um tanto duvidoso à matéria

em questão, as hipóteses metodológicas básicas do historicismo são ainda

mais questionáveis devido a seu caráter largamente especulativo.17 Em

primeiro lugar, é fundamental que a conexão entre passado e presente seja

vista como contínua. Vê-la apenas como uma forma de transferência das

realizações de uma geração a outra tradição não é suficiente: o conteúdo

pode ser mudado durante o caminho ou mesmo perdido. A pressuposição

metódica de se conhecer algo melhor por uma visão tardia requer que um

núcleo idêntico de interesses exista do começo ao fim. Hegel vai ainda mais

longe ao afirmar que a arte continua na filosofia! Mas a continuidade por si

só não seria suficiente para substanciar o privilégio do reconhecimento. O

segundo requerimento necessário para essa construção do verdadeiro curso

dos eventos é a asserção de que o desenvolvimento contínuo é progressivo.

Apenas quando o ponto de vista presente vem de uma posição mais avançada,

mais eminente, em termos literais, é que pode ser possível olhar para trás

e inspecionar o passado com qualquer tipo de autoridade. O que é o mesmo

que dizer que historicismo, a sua própria maneira, é tão exatamente

dogmático ou “fanático”, nas palavras de Baudelaire, quanto, antes, o

classicismo havia sido. A última fase do desenvolvimento progressivo

estabelece normas pelas quais todos os estágios precedentes são então

medidos. Por adição, a asserção é colocada em um novo nível de

exclusividade, se bem que não apenas como um conceito particular de arte

transformado em absoluto, mas sim onde a dominância da teoria sobre a

arte é afirmada. Precisou-se da agudeza dialética de um Hegel para se ver

que toda essa construção só poderia ser mantida pela hipótese de que a

própria história, em prosseguimento contínuo, tinha finalmente se

desenvolvido para além de qualquer necessidade física, e de arte em

particular, deixando o reconhecimento e estabelecimento de uma ordem a

essas relacionada como as últimas tarefas a serem executadas. É esse o

pano de fundo de sua famosa máxima no “End of Art”:

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O olho ictérico

ano 6, número 7, dezembro 2004

“Em todos os aspectos referentes ao seu supremo destino, a arte é

para nós coisa do passado. Com sê-lo, perdeu tudo quanto tinha de

autenticamente verdadeiro e vivo, sua realidade e necessidade de

outrora, e encontra-se agora relegada à nossa representação”.18

Qualquer acadêmico sério certamente recusaria tão indiscriminado

pronunciamento. Todavia, há um historicismo acadêmico considerável

em todo lugar, que confirma Hegel ao admitir tacitamente que a mais

alta vocação da arte é ser examinada, sondada e colocada em

seminários, conferências e livros de História da Arte. A relevância da

reflexão de Hegel consiste em articular uma réplica poderosa e altamente

convincente a uma crise histórica genuína; e a atualização de seu

pensamento no livro de Fukuyama The End of History and the Last Man

(1992) e nos discursos incessantes de Danto sobre o “Fim da Arte”

certamente revelam uma coisa – que a crise ainda não acabou. Só

sendo aparente primeiramente na virada do século 18 para o 19, ela é

de fato uma crise componente da moderna consciência de si. A rápida

queda da autoridade da tradição em todas as áreas culturais – em

religião, política e relacionamentos sociais – criou uma cisão quase

traumática da consciência, que é refletida na filosofia do idealismo

alemão. Essa nova autoconfiança subjetiva achou-se imediatamente

confrontada por um problema assustador – a evidência acumulada da

mesma tradição de que ela se havia há pouco libertado. Como se poderia

relacionar livremente com tão esmagador passado? O historicismo

ofereceu uma solução ao proporcionar um novo contexto, o qual pareceu

reconciliar tanto com o novo espírito de emancipação quanto com a

riqueza inegável de realizações culturais com as quais ele deveria lidar.

No século 19 já havia ficado evidente que a gigantesca tarefa de

construir uma história ampla do desenvolvimento do espírito humano

era inatingível em qualquer das disciplinas culturais em que fosse

empreendida; e isso não era devido apenas à escala íngreme do problema,

que colocou essa tarefa além do alcance humano, mas também porque

nenhum dos pensadores que fundaram o historicismo havia previsto que

seu trabalho lembraria tanto o de Sísifo. O historicismo não foi capaz

de fundar uma nova tradição porque a cisma de confrontar o passado

inteiro como um todo se renova continuamente. Todo espírito

independente começa questionando de maneira virtual as autoridades

existentes, e, eventualmente, mesmo as realizações do próprio

historicismo não estariam isentas. Essa constelação essencialmente

moderna parece ter sido, por um longo tempo, obscurecida pelo sucesso

relativo da narrativa do desenvolvimento progressivo. Os historiadores

da arte, em particular, puderam aproveitar-se do fato de que a tradição18 Hegel, Aesthetics, Vol. I, p. 11. (Página 25,na edição em língua portuguesa.) (NT)

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Robert Kudielka

54 concinnitas

prática da arte havia criado grandes plataformas estáveis de similaridades

formais e temáticas. Então, a história familiar de um estilo ultrapassando

o outro foi desenvolvida, mudanças em uma iconografia particular

procuradas, e o questionamento acerca de quão relevantes são para a

arte os frutos dessa comparação e generalização metódica foi quase

totalmente deixado de lado.19

Essa aproximação se manteve sem ser desafiada apenas enquanto o

foco da atenção era direcionado à tradição, especialmente a européia.

Com a emergência da arte moderna e a crescente necessidade de se

observá-la, essa atitude retrospectiva foi inevitavelmente corroída. É

muito simples atribuir a relutância prolongada da História da Arte em

incluir a arte moderna ao gosto conservador ou à imparcialidade

necessária dos acadêmicos. O problema é de metodologia e desafia a

disciplina em seu princípio. Pois a arte moderna, sendo comparativamente

tão antiga quanto a História da Arte, reage à mesma crise, a perda da

tradição, mas de maneira completamente diferente do historicismo. De

Delacroix e Ingres para diante, os artistas modernos transformaram a

carência de tradição em vantagem, ao se relacionar livremente com a

arte do passado e de outras culturas. Antes essa liberdade de escolha

teria sido o símbolo de um indivíduo excepcionalmente independente,

como Michelangelo, que, ainda jovem artista, copiou Masaccio, ou Rubens,

ao tentar assimilar a Alta Renascença. Mas, quando a autoridade da

tradição afinal desmoronou, essa opção foi aberta a todos os artistas e

atraiu em particular aqueles que não queriam sucumbir ao “juste milieu”

das escolas em voga. Tornou-se, de fato, quase uma necessidade orientar-

se dessa maneira. Delacroix viu seus próprios interesses refletidos em

Rubens e Veronese; as “misteriosas coincidências” entre Manet e os

grandes pintores espanhóis, contra as quais pesava a acusação de mero

plágio,20 foram defendidas por Baudelaire; Cézanne estudou os

venezianos; e Renoir referiu-se a Delacroix e Rubens, demonstrando

que a química criativa de afinidades eletivas não estava restrita a uma

permuta com a arte antiga estabelecida, mas que ela poderia ser trazida

para a contemporaneidade. Por mais ilegítimas que essas afiliações

possam parecer ao historicista, a arte moderna veio à luz e prosperou

justamente dentro dessa rede de correspondências. Além disso, os artistas

entrecruzaram com bastante sucesso a lógica plana do desenvolvimento,

ao virar-se para culturas cuja continuidade de tempo não os conectava.

O orientalismo e o niponismo foram poderosos na formação da arte

moderna do século 19, e Matisse, em 1906, em sua fase mais radical,

virou a idéia de progresso contra si ao descobrir o mérito artístico das

esculturas primitivas.

19 É claro que há exceções entre os historiadoresde arte do século 19, mais notadamente JacobBurckhardt que, em seus parcos e quase lacônicoscomentários sobre metodologia, é ainda o críticomais profundo do historicismo nas artes. Cf.Jacob Burackhardt, Diea Kunst der Betranchtung.Aufsëtze und Vortëge zur Bildenden Kunst, HenningRitter, Këln, 1984.20 Carta a Théophile Thoré, 20 de junho de1964. In Correspondance générale, ed. porJacques Crépet. Vol. IV, Paris 1948, pp. 275-277.

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O olho ictérico

ano 6, número 7, dezembro 2004

O problema que Baudelaire reconheceu em 1855, na Exposition

Universelle, tornou-se, portanto, notadamente mais complexo. A questão

não é mais apenas relacionar-se à imensa variedade de manifestações

artísticas, mas também o reverso: como dar conta das diferentes

correspondências culturais e históricas que podem residir em uma única

obra? A história da arte moderna mal começou a ser contada; e talvez

não exista uma narrativa mestra, como nos fez crer o modelo historicista

de desenvolvimento progressivo, que possa fazer justiça a sua

complexidade. Mas para haver uma abordagem desse assunto é de suma

importância reconhecer a força dos hábitos acadêmicos, que quase

involuntariamente obstrúem tal esforço. A idéia de a história ser idêntica

ao desenvolvimento progressivo é um preconceito tão profundamente

arraigado em nosso pensamento, que até os críticos mais conhecidos

podem cair presas das mesmas falácias que perceberam. Julius Meier-

Graefe é o exemplo perfeito disso. Sua fé na “conservação das energias

da arte” não o impediu de ver-se emaranhado nos laços e enganos da

forma narrativa progressiva que ele escolheu para sua apresentação da

história da arte moderna.21 Contudo, justamente por causa dessa falha

é que sua Entwicklungsgeschichte é de longe mais esclarecedora do que

muitos estudos amenos sobre o mesmo assunto.

A Entwicklungsgeschichte der modernen Kunst (1904)de Meier-Graefe

Publicada em 1904, a ‘História do Desenvolvimento da Arte

Moderna’ de Meier-Graefe é o primeiro amplo relato da pintura moderna

do século 19. Outras histórias desse período haviam sido escritas,

mas nenhuma delas reconheceu a superioridade internacional dos

pintores que formaram a lendária “corrente” que vai de Delacroix e

Manet a Cézanne e os pós-impressionistas – sendo capaz de

apresentar essa reflexão com competência. Graças a uma longa estada

em Paris, de 1895 a 1904, ele adquiriu um conhecimento profundo

da arte francesa, vindo a travar amizade com muitos dos artistas,

mais notadamente Renoir, de quem se tornou o mais brilhante

defensor. Independente desse contato íntimo com seu tema, Meier-

Graefe, apesar de não ser um historiador de arte, era suficientemente

versado no novo método historicista do Geisteswissenschaften, a ponto

de ter os meios para organizar seu material novo e nada convencional.

E é justamente a tensão entre estes dois aspectos de seu trabalho,

experiência de primeira mão e um método de construção ainda não

utilizado nesse meio, que fez seu livro ao mesmo tempo tão influente

e problemático.

21 Julius Meier-Graefe, Entwicklungsgeschichteder modernen Kunst. Vergleichende Betrachtungder Bildenden Künste als Beitrag zu einer neuenÉsthetik. 3 vols., Stuttgart 1904. O método éexplicado no “Vorwort”, vol. I, pp. I – VII.

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56 concinnitas

Meier-Graefe foi, em essência, um crítico para quem a arte não era

apenas mais um em meio a outros assuntos acadêmicos. No centro de

seu compromisso havia uma consciência aguda e apaixonada da

discrepância entre arte e vida no mundo moderno. Quando chegou a

Paris, então com 28 anos, tornou-se a princípio um ardoroso promotor

do Jugendstil, que parecia, a seus olhos, conter a promessa de cura

para essa divisão. Já em 1899, a obsessão por um novo “estilo” que

tudo envolvesse pareceu ter sido tão poderosa, que não hesitou em

declarar: “Fora com as pinturas! Melhor que não existam, primeiro boas

paredes!”.22 Num sentido que nos parece anacrônico, pintura para ele

era “arte abstrata” – significando que era separada da cultura cotidiana.

Mas, em vez de manter o status da pintura dessa forma, ele reconheceu

o paradoxo histórico implícito: “A arte liberou-se de sua

indispensabilidade”.23 Então, concluiu, seria absurdo esperar que a pintura

readquirisse sua posição por sua própria conta. Era exigida uma “arte

da vida” maior, na qual a pintura poderia ser reintegrada.

De qualquer modo, à medida que seu envolvimento com o Jugendstil

cresceu, ficou mais e mais desiludido, em parte com a qualidade da

obra, em parte porque sentiu que qualquer casamento das “artes

abstratas” com a cultura cotidiana sempre se daria à custa da arte. Por

volta de 1899 sua conversão à pintura estava completa; e foi a essa

altura que a ‘História do Desenvolvimento da Arte Moderna’ foi concebida.

O cenário é virtualmente uma tríade hegeliana. O último capítulo,

intitulado “A luta pelo estilo”, demonstra que parte de sua antiga

fidelidade ao Jugendstil ainda era mantida: o sonho de uma redenção

final das “artes abstratas” em um novo estilo que abraça a vida.24 Isso

dá à narrativa uma meta e orientação progressiva. Mas o corpo do livro

investiga o surgimento e realização da pintura como uma arte autônoma.

O primeiro capítulo, “A luta pela pintura”, desvela a origem desse

desenvolvimento em uma grande comparação – a Basílica de São Marco

com a Capela de Scrovegni.25 Sob a luz escura dos mosaicos dourados

de São Marco, a arquitetura, imagens e decoração associam-se em uma

unidade misteriosa e monumental, a qual Meier-Graefe interpreta como

a manifestação de uma união arcaica e indiferenciada: “Deixamos de

ser Sr. Fulano de Tal”.26 Em contraste a isso, ele põe a obra-prima de

Giotto, “a primeira galeria de pintura”,27 como ele mesmo a chama. O

interior da Capella di Scrovegni é uma sala retangular com teto abobadado,

construído em escala humana, e as pinturas são claramente obras

“abstratas” separadas, declarando sua independência das estruturas da

arquitetura. “O caráter de galeria de toda a nossa arte [de lá] se inicia”,28

diz Méier-Graefe, que foi o primeiro a ver em Giotto o protagonista de

22 Brochura Dekorative Kunst, Munich 1897,arquivos de Bruckmann Verlag, Munique.23 Entwicklungsgeschichte, vol. I, p. 8.24 Loc. cit., vol. 2, p. 539.25 Loc. cit., vol. 1, p. 31.26 Loc. cit., vol. 1, p. 34.27 Loc. cit., vol. 1, p. 40.28 Meier-Graefe, op. cit.

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O olho ictérico

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um desenvolvimento progressivo da pintura que culmina com os mestres

modernos do século 19.

A linha familiar “desde Giotto” conduz a narrativa do desenvolvimento

ao longo de muitos obstáculos e insuficiências. O Renascimento é visto

rapidamente, o século 17 é quase pulado, e ainda há muitos outros

atalhos até que Meier-Graefe chegue às margens da região mais próxima

de sua afeição, a pintura francesa do século 19. Nessa área, percebe-se

que o fruto da senda está para ser colhido. As vantagens da analogia que

delineou entre a emancipação da pintura e a do indivíduo tornam-se

aparentes. Meier-Graefe é capaz de manter diversas linhas de

desenvolvimento suficientemente separadas e, ao mesmo tempo, as

interliga sem sucumbir à tentação de traçar uma linha contínua na qual

um artista suceda o outro. Dessa maneira, seu estudo só foi superado

pelo relato mais sutil e acadêmico de John Rewald, que dá conta do

mesmo período. No centro da construção de Meier-Graefe estão “os quatro

pilares da arte moderna”, como ele os chama: Manet, Cézanne, Degas e

Renoir, cada um deles cercado por um “círculo”.29 Ao redor desse centro

outros “círculos” são agrupados, como os de Millet, Seurat, Gauguin,

assim como indivíduos solitários, como Delacroix e Monet. Artistas

estrangeiros, como Turner e Constable, da Inglaterra, ou Leibl e Liebermann,

da Alemanha, são costurados nessa tapeçaria francesa. Considerando-se

a época em que esse livro foi concebido, é uma representação de artistas

muito impressionante, sobre os quais o autor pôde dizer: “Se algum dia a

tristeza com relação a nossa ‘mera arte’ for admitida numa feliz combinação

com júbilo, será observando esses artistas”.30

Mas há uma deficiência básica na construção dessa história, que só

se percebe após algum tempo decorrido. Meier-Graefe escreve sua História

da Arte Moderna sem prestar muita atenção a sua crise constituinte

ocorrida por volta de 1800. Para ele, Davi e a arte do Império são

apenas acidentes, lapsos deploráveis, contrários ao contínuo movimento

que vai de Watteau a Corot e Renoir.31 O princípio historicista da

continuidade parece tê-lo cegado frente à ruptura crucial da tradição

européia. Apesar de isso não ter conseqüências significativas no contexto

imediato, essa curiosa negligência para com a condição moderna teria

efeitos profundos na tentativa de Meier-Graefe em chegar a termo com

a reorientação da arte moderna no começo desse século.

A Entwicklungsgeschichte der modernen Kunst foi um sucesso de

público, apesar de seu alto custo e do fato de consistir de três volumes.

Uma segunda edição foi preparada, cujos dois primeiros volumes

apareceram em 1914, um pouco antes da Primeira Grande Guerra.32 Mas

já não era o mesmo livro. Todas as referências ao Jugendstil foram

29 Id., ibid., vol. 1, p. 139.30 Id., ibid., vol. 1, p. 142.31 Id., ibid., vol. 1, p. 66.32 Julius Meier-Graefe, Entwicklungsgeschichteder modernen Malerei, 3 vols. vol. 1 e vol. 2,München 1914 (2a ed. 1920). O vol. 3 nãoapareceu antes da 3a ed., 1924.

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Robert Kudielka

58 concinnitas

apagadas, e, ao cotejar-se o final, “A luta por estilo”, a narrativa perde

sua força principal. O capítulo principal, que distingue os “quatro pilares

da pintura moderna”, foi cortado e substituído por outro, com

agrupamentos de artista menos pertinentes. Como um todo, a construção

fica embaralhada por acréscimos que não estão realmente integrados

ao tema principal. A desordem é mais do que um sintoma da decepção

final de Meier-Graefe com o Jugendstill: reflete sua profunda frustração

com a direção que a arte moderna havia tomado. Coincidentemente, o

ano de sua edição original, 1904, é também aquele em que Matisse fez

seu giro radical em direção ao Fauvismo. É difícil para Meier-Graefe

suportar esse desafio inadvertido a suas idéias. No terceiro volume do

Entwicklungsgeschichte, que apareceu após um intervalo de 10 anos, em

1924, ele caracterizou Matisse como aquele que mantém “o último suporte

do gosto francês”33 e, com relação a Picasso, perdeu completamente a

postura: “O historiador do futuro que deve olhar para as estranhas

necessidades da humanidade passada vai parar no nome de Picasso e

dizer: aqui tudo chega ao fim”.34

Tendo começado como um arauto da arte moderna, Meier-Graefe

transformou-se em um crítico geral da cultura dos anos 20 que era visto

por jovens artistas, como Nolde, como um “inimigo da arte moderna”.

Seu humanismo estético, por si só uma herança do século 19, fora

irreparavelmente despedaçado; e o desastre da Primeira Grande Guerra

foi um acréscimo a isso. Ele foi, no máximo, capaz de comandar um

tipo de divertido derrotismo, como, por exemplo, em seu juízo acerca

de Beckmann: “Odeio esse homem com toda a força que sobrou de

minha existência inicial, mas o embuste da arte moderna dos vivos...

vem pedindo há muito esse castigo”.35 O aspecto mais problemático de

sua obra posterior dá-se numa espécie de glorificação heróica das vidas

dos artistas, que é particularmente precária em seu livro de 1925 sobre

Van Gogh, intitulado Vincent, a história de um perseguidor de Deus.36

Foi de qualquer forma uma trágica reviravolta. Mas, apesar do respeito

pessoal por Meier-Graefe, não se pode evitar a observação objetiva de

que seu dilema ocupava uma extensão considerável de sua própria criação.

O método historicista, inicialmente criado para cicatrizar a cisão moderna

com a tradição, torna-se errante e obstinado quando empregado na

fabricação de qualquer coisa que lembre uma “tradição moderna”. O

desespero a respeito das mudanças na arte moderna nos anos entre

1904 e 1912 não foi objetivamente justificado, como prova a resposta

de Roger Fry, contemporâneo pontual de Meier-Graefe. Fry também viu

o mérito artístico do Impressionismo, porém, por causa de seu forte

interesse pela pintura renascentista italiana, ele o achou carente do

33 Meier-Graefe, 1924, Id., ibid., vol. 3, p. 622.34 Id., ibid., vol. 3, p. 634.35 Id., ibid., vol. 3, p. 678.36 Como é sabido, não se recomenda traduzirtítulos de livros que não possuem traduçãooficial no país, a não ser que feitas diretamentedo próprio idioma. Neste caso, optei portraduzir este título em particular (apesar deser uma tradução em português, de um títuloalemão traduzido para o inglês) devido aofato de que este serve tanto como ilustração àmudança de mentalidade do autor em questão(Meier-Graefe), quanto como mostra a irônicadireção a que esse mesmo autor rumava. (NT)

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O olho ictérico

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que chamava “design estrutural”.37 De qualquer modo, em vez de

desenvolver essas reservas mediante um argumento histórico, ele refreou

sua expressão até que, de maneira muito inesperada, o próprio andamento

da arte pareceu endereçar novamente tais omissões. Seu reconhecimento

imediato, em 1912, de Matisse e Picasso é um bom exemplo do valor

cognitivo das correspondências. Seu conhecimento do formalismo do

Renascimento possibilitou-lhe ver essas novas obras sob a “clareza de

suas estruturas lógicas”, no “entrelaço cerrado de sua unidade de

textura”, exibiam “mesma intensidade das coisas da vida atual”.38

Tudo isso poderia indicar que o período alto do historicismo deveria

ter sido por volta dos anos 20. Porém, o real desabrochar ainda estava

por vir. Nos termos de uma teoria manifesta, pode parecer improvável

que um método orientado retrospectivamente, que já se mostrara

inadequado em face da arte moderna, pudesse a qualquer momento

entrar nos estúdios de artistas vivos. Mas entrou. Em meados dos anos

50, o crítico norte-americano Clement Greenberg, por meio de seu conceito

de “Modernismo”, afirmou que a real e verdadeira história da arte poderia

ser construída por antecipação – e levada a cabo pelos próprios artistas.

Historicismo em ação: Clement Greenberg e o “Modernismo”É difícil avaliar quão íntimo foi Clement Greenberg da obra de Meier-

Graefe. Uma referência tardia ao julgamento dos críticos alemães sobre

Turner sugere que ele conhecia a tradução de 1908 da

Entwicklungsgeschichte.39 Parece também muito provável que as

perspectivas de Meier-Graefe tenham sido importantes para as aulas

que Hans Hofmann dava. O que realmente sabemos é que Greenberg

certamente teve ciência do esforço original do alemão em construir o

desenvolvimento da arte moderna por intermédio de um de seus mais

devotos acólitos, o crítico Kenworth Moffett, que escreveu a monografia

Meier-Graefe as art critic e a dedicou “a Clement Greenberg” em 1973.40

Há muitas similaridades entre os dois escritores. Como críticos,

partilham uma insistência rigorosa na qualidade, combinada com um

desprezo por todas as formas modernas de vulgarização da arte. Ambos

preferem a argumentação sucinta, mordaz e freqüentemente provocante,

em vez da análise detalhada. Seu foco está, sem nenhuma ambigüidade,

voltado para a pintura, e, mais importante, sua crítica é fundada numa

atenção ao contexto social mais amplo das artes. E é aí que a divergência

entre a Entwicklungsgeschichte der modernen Kunst e o conceito de

“Modernismo” de Greenberg se revela. Enquanto Meier-Graefe ainda

defende a esperança humanista do século 19, de que o mundo moderno

poderia reconciliar-se com a herança cultural do passado, Greenberg

37 Roger Fry, ‘Retrospect’ (1920). In Visionand Design. 8a ed., Cleveland and New York1969, p. 287.38 Id. ibid., p. 239.39 A tradução inglesa da versão original daEntwicklungsgeschichte foi publicada sob otítulo de Modern Art: being a contribution to anew system of aesthetics. Trad. FlorenceSimmands e G. W. Chrystal. 2 vols., Londres,1908. A referência de Greenberg a Meier-Graefeestá incluída em sua resenha da biografia deTurner por Jack Lindsay, intitulada “Thesmoothness of Turner” (1966) e reimpressaem The Collected Essays and Criticism, ed. porJohn O’Brian, 4 vols., Chicago e Londres 1986-1993, vol. 4, p. 231.40 Kenworth Moffett, Meier-Graefe as art critic.München 1973 (Studien zur Kunst des 19Jahrhunderts, Bd. 19).

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Robert Kudielka

60 concinnitas

toma uma perspectiva excepcionalmente clara e dura da crise persistente

que reforça a resolução da arte moderna.

Em anos recentes, a identificação do “Modernismo” com o Purismo

ou Formalismo obscureceu quase completamente o fato de que Clement

Greenberg começou suas atividades comprometido e, embora crítico,

um defensor do socialismo. Em 1939 ele entrou em cena com Avant-

Gard and Kitsch, um ensaio rigorosamente sustentado, menos interessante

pelo assunto levantado do que por sua descrição da nova posição social

da arte.41 Ele enumera precisamente as condições de uma sociedade

que se libertou das autoridades tradicionais:“Uma sociedade, à medida que se torna no curso de seudesenvolvimento cada vez menos capaz de justificar ainevitabilidade de suas formas particulares, destrói as noçõesaceitas das quais os escritores e os artistas devem depender emgrande parte para comunicar-se com seu público. Torna-se difícilsupor qualquer coisa. Todas as verdades envolvidas por religião,autoridade, tradição, estilo são postas em questão, e o escritorou artista não mais prevê as respostas de seu público aos símbolose referências com os quais ele trabalha”.42

O artista moderno não pode mais confiar em iconografia comum

ou vocabulário de símbolos, porque no mundo moderno não há mais

crença nem convicção ou valor que esteja além da disputa, incluindo a

arte e a própria necessidade dela. Isso é, claro, a única coisa que a

“sociedade burguesa”, como chama Greenberg, não quer admitir para

si mesma, muito menos achá-la em obras de arte. Parece ser muito

duro prosseguir sem “assumir” uma base comum de um tipo qualquer.

É sobre essa questão que ocorre a ruptura cultural que constitui,

segundo Greenberg, a “vanguarda”. Apesar de o uso do termo

“vanguarda” para movimentos radicais na arte ser uma afetação do

século 20, e não refletir as atitudes de, por exemplo, Delacroix, Manet

ou dos impressionistas, a reflexão a respeito da natureza da cisma é

correta. Greenberg viu que não fora só a negação dos padrões

predominantes de gosto que provocara os primeiros escândalos na

arte moderna, mas a revelação de uma dolorosa verdade. “Foi em

busca do absoluto que a vanguarda chegou à arte ‘abstrata’ ou ‘não

objetiva’”.43 O que é o mesmo que dizer que o único absoluto viável

que pode ser assumido no mundo moderno é a ausência de um absoluto.

É válido considerar cuidadosamente essa reflexão, pois ela é a fonte

do extraordinário alcance crítico de Greenberg, e ao mesmo tempo o

ponto central de sua traição posterior. A aceitação de uma ausência

básica de convicções possibilitou-lhe enxergar além das predileções

estéticas e de estilo, e permitiu a apreciação de uma larga variedade

41 Greenberg, The Collected Essays and Criticism,vol. 1, p. 5-22.42 Id., ibid., vol. 1. p. 6.43 Id., ibid., vol. 1, p. 8.

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O olho ictérico

ano 6, número 7, dezembro 2004

de formas de expressão. Ele poderia adorar Matisse, vendo-o como o

maior pintor do século, e ao mesmo tempo ser o primeiro crítico a

reconhecer a excelente qualidade de Pollock e David Smith. No começo

de sua carreira crítica, “abstração” não era obviamente um termo restrito

a um estilo formal particular, mas uma condição da arte moderna que

também poderia incluir obras figurativas. Simplesmente significava que,

na ausência de um assunto representativo, a atenção era levada aos

componentes da obra. Esta é, aliás, sua definição da “gênese do

abstrato”: “Ao desviar sua atenção do assunto de uma experiência

comum, o poeta ou artista vira-a para o meio de seu próprio ofício”.44

O papel do meio tem sido o centro do debate modernista há muito

tempo. Mas sua definição não é tão clara ou sem ambigüidade quanto

se poderia esperar. Tendo creditado a Hans Hofmann o alerta para a

importância desse tema, Greenberg desenvolve seu próprio entendimento

em Towards a Newer Laocoon (1940).45 Esse ensaio é sua primeira

tentativa na construção de uma história da arte moderna e demonstra

duas tendências interessantes em sua análise. Para começar, Greenberg

tem que admitir que a mudança para o meio, longe de se configurar na

origem da arte moderna, foi precedida pela busca por parte da arte

romântica de um novo tema e conteúdo. A vanguarda, escreve, é “ao

mesmo tempo infante e negação do romantismo”.46 Aqui não é o lugar

para investigar se Delacroix realmente é o expoente desse romantismo,

como pensa Greenberg, ou se o próprio Delacroix também não é

protagonista dessa mudança de meios, no seu caso a mudança para a

cor. Mais significativa, parece, é a maneira como Greenberg trata esse

precedente. “Pelos idos de 1848”, declara, “o romantismo já se havia

exaurido”.47 Com isso o assunto é encerrado para sempre. Nem mais

uma palavra é desperdiçada no fato de que a busca de um novo tema

irá continuar a desempenhar um papel importante na arte moderna,

reaparecendo de diferentes modos no Surrealismo, no Expressionismo

abstrato, e mais recentemente em artistas tais como Joseph Beuys.

Esse outro “Modernismo” deveria ser suprimido para manter clara a

linha de desenvolvimento.

Mas há ainda aí outro elemento curioso no arranjo inicial da construção

de Greenberg, no que concerne aos artistas qualificados para o progresso

do movimento de vanguarda. Em Towards a Newer Laocoon o meio em geral

é definido por sua “opacidade” e “resistência”,48 duas distinções que são

vislumbradas para somar-se à primazia da “planaridade” na pintura.

Obviamente que há uma tendência a um espaço pictórico mais raso na

pintura moderna. Contudo, é o grau de exagero a que Greenberg chega

nessa tendência, à custa de todos os demais fatores, que fica digno de

44 Id., ibid., vol. 1, p. 8-9.45 Greenberg, The Collected Essays and Criticism,vol. 1, p. 23-38.46 Id., ibid., vol. 1, p. 28.47 Ibid.48 Id., ibid., vol. 1, p. 32-34.

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Robert Kudielka

62 concinnitas

nota. O Impressionismo é exaltado por sua “perseguição à objetividade

material”,49 sem nenhuma referência à importância do trabalho sur le motif;

e Manet, o pintor da vida moderna, é admirado por “sua indiferença insolente

a seus temas”.50 Além disso, a técnica de recrutar artistas para a causa da

vanguarda, fazendo de seu mínimo denominador comum, a “planaridade”,

sua base de construção, é finalmente alcançada pela reivindicação de alguma

misteriosa necessidade histórica. Greenberg recruta artistas como Van Gogh,

Picasso e Klee para seus propósitos, simplesmente desinvestindo-os:“Um bom quinhão de artistas – senão a maioria – que contribuíramconsideravelmente para o desenvolvimento da pintura modernachegou a este ponto com o desejo de explorar a ruptura com orealismo imitativo, em prol de uma expressividade mais poderosa,mas a lógica do desenvolvimento foi tão inexorável, que, no final,sua obra se constituiu de nada além de outro passo na direção daarte abstrata e uma esterilização ulterior dos fatores expressivos”.51

Contudo, em 1940, a despeito de tantas retificações drásticas, a

intenção historicista de estabelecer um desenvolvimento progressivo

contínuo não conseguiu ser realizada. Em retrospecto, não se pode

deixar de notar uma predição nefasta: “A história da pintura de vanguarda

é a de uma rendição progressiva à resistência do meio”.52 Mas como tal

história deve ser produzida sem uma ambição e meta positiva? Em

Avant-garde and Kitsch Greenberg havia observado corretamente que a

diferença decisiva entre a vanguarda e formas de arte anteriores, carentes

de um tema vital – como o alexandrinismo, por exemplo –, era a habilidade

de deslocar-se e criar novas bases.53 Tendo despojado a pintura de

todas as outras qualidades, à exceção de seu meio, ele não teve outra

saída senão transformar esse pré-requisito num tema historicamente

viável. Isso exigiu uma revisão completa de suas reflexões originais,

que pode ser testemunhada em dois textos, The New Sculpture (1949) e

Sculpture in Our Time (1958), que traçam o avanço de Greenberg nos

anos 50.54

Apesar de a introdução a ambos os textos ser quase idêntica em

essência, a mudança de tom revela a crescente convicção de si com a

qual Greenberg apresenta seus exames. Seu insight inicial a respeito

de a ausência de um absoluto ser o único absoluto na sociedade

moderna é substituído por uma ideologia de evidente positivismo: “O

século 19 desviou sua busca para o empírico e o positivo... A

sensibilidade estética mudou da mesma forma”.55 No texto de 1949

ele explica: “nossa sensibilidade mudou similarmente, exigindo da

experiência estética uma ordem de efeitos cada vez mais literal e

tornando-se cada vez mais relutante em admitir ilusão e ficção”.56 Na

49 Id., ibid., vol. 1, p. 29.50 Id., ibid., vol. 1, p. 29-30.51 Id., ibid., vol. 1, p. 37.52 Id., ibid., vol. 1, p. 34.53 Id., ibid., vol. 1, p. 10.54 Ambos os textos encontram-se reimpressosem The Collected Essays and Criticism: “The NewSculpture” no vol. 2, p. 313-319, e “Sculpturein Our Time” no vol. 4, p. 55-61.55 Loc. cit., vol. 4, p. 55.56 Loc. cit., vol. 2, p. 314.

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63

O olho ictérico

ano 6, número 7, dezembro 2004

versão de 1958 ele, seco, assevera “nossa crescente fé e gosto pelo

imediato, o concreto, o irredutível”.57 Para servir a essa mudança de

sensibilidade, tudo que seja extrínseco à matéria em mãos deve ser

eliminado das obras de arte. No texto mais antigo, ele especifica: “A

sensibilidade moderna pede a exclusão de toda a realidade externa a

seus respectivos meios, ou seja, a exclusão do assunto”.58 Dez anos

depois, lê-se o seguinte: “Uma obra de arte modernista deve tentar,

em princípio, evitar a comunicação com qualquer ordem de experiência

que não seja inerente à mais literal e essencial natureza regida desse

meio”.59 Em resumo, a observação objetiva de que o artista moderno

não pode mais confiar em um tema ordinariamente aceito deu espaço

a um dogma que condena e até mesmo proíbe que o artista aborde o

assunto, qualquer que seja.

O que é sintomático dessa nova posição é que ela é mais claramente

expressa em textos sobre escultura. O positivismo estético de Greenberg

tende a equiparar o meio à fisicalidade da arte. Isso é nitidamente

confirmado em seu ensaio mais influente, Modernist Painting (1960).60

Aqui o meio é finalmente “esterilizado” de todas as conotações

imaginativas e reduzido a seus constituintes materiais: “a superfície

simples, o formato do suporte, as propriedades do pigmento”.61 Essa é

uma rendição de um tipo bem peculiar. Por não fazer distinção entre a

superfície da tela e o plano pictórico, entre a forma da tela e a forma

plástica, entre pigmento e cor, Greenberg define o meio, esse interesse

principal do artista modernista, em termos que o representam de forma

indistinta ao do métier do pintor de casas. Ironicamente, a resolução

final de sua narrativa modernista acaba tornando-se uma crua essência

do que não é arte na arte.

Hoje parece quase inacreditável que por toda a arte ocidental houve

uma época em que jovens pintores ambiciosos discutiam ansiosamente

apenas um assunto: para onde vai a vanguarda? Para duas gerações de

artistas, a progressão de Manet a Jules Olitski, via Impressionismo,

Cubismo, Expressionismo abstrato e Abstracionismo pós-pictórico, foi a

versão santificada da arte moderna. A “literalidade” não adulterada do

Minimalismo, a reintrodução do tema pela arte Pop e finalmente o

veredicto pós-modernista sobre a pintura arruinaram sua construção. O

“Modernismo”, na acepção de Greenberg, chegou ao fim. Mas o modo

historicista de pensar que o grande crítico projetou sobre a arte está

tão profundamente arraigado, e de tal maneira, que parece ter sobrevivido

à morte de seu propagador. Não devemos acreditar, pelo Pós-Modernismo,

que o Modernismo chegou historicamente a seu fim? Até mesmo Arthur

C. Danto, o teórico da condição “pós-histórica” da arte, parece não ver

57 Loc. cit., vol. 4, p. 5558 Loc. cit., vol. 2, p. 314.59 Loc. cit., vol. 4, p. 56.60 Greenberg, The Collected Essays and Criticism,vol. 4, p. 85-93.61 Id., ibid., vol. 4, p. 86.

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Robert Kudielka

64 concinnitas

nenhuma contradição em afirmar que o fim da “narrativa mestra” de

seu desenvolvimento progressivo é um progresso histórico.62 Longe de

ter superado o historicismo, a forma atual de pós-ismos parece ser uma

apoteose definitiva dele. A proclamação do Pós-Modernismo só não

dissimula o fato de que muitas de suas manifestações, como a quebra

de barreiras entre as várias formas de arte e a mistura de meios,

simplesmente revivem o espírito romântico. Sua destituição do

“Modernismo” traz de volta a profecia de Baudelaire de que a “idéia de

progresso” inevitavelmente destrói suas próprias raízes. Ao admitir a

construção de Greenberg como se essa fosse um verdadeiro relato da

arte moderna, essa nova investida do historicismo abandona uma herança

vital e mal examinada, de onde algo poderia surgir.

Pode parecer um prospecto deveras severo, mas apenas para o olho

historicista. A equação da presença das obras de arte com o momento

histórico no qual vieram à tona tem sido negligenciada por tempo demais.

Provavelmente, foi necessária uma tradução implacável do historicismo

para dentro da atualidade com o conseqüente esgotamento das fontes

da arte, para chamar a atenção de alguém para um tipo de revisão e

reabilitação que vem acontecendo quieta e tranqüilamente há 20 anos.

Desde o final dos anos 70, os últimos trabalhos de Cézanne e Monet

têm sido exibidos em uma série de grandes exposições e atraíram uma

resposta inesperadamente ampla e entusiástica do público.63 Isso por si

já é suficiente para se colocar em dúvida toda a viabilidade do historicismo

na arte. Não só coloca julgamentos anteriores em perspectiva, como os

veredictos de Meier-Graefe e Venturi, como também clama pelo

questionamento do fato de a obra de Cézanne e Monet pertencer, de

qualquer modo, ao século 19. Ela obviamente encontrou seu público

real no século 20. Será que as obras de arte algumas vezes só se

tornam presentes após um lapso de tempo considerável? Esse seria o

argumento mais forte contra o historicismo, isto é, um argumento

essencialmente histórico. Há uma boa razão para supor que a arte

moderna, em vez de ter acabado, nem sequer tenha, de muitas maneiras,

ocorrido totalmente.

62 Cf. Arthur C. Danto, After the End of Art.Contemporary Art and the Pale of History.Princeton, N. J., 1997 (= The A W. MellonLectures in Fine Arts, 1995). Ver tambémminha contribuição “According to What: Artand the Philosophy of the ‘End of Art’” inDanto and His Critics: Art History, Historiographye ‘After the End of Art’, ed. por David Carrier.Theme Issue 37 de History and Theory, vol. 37,no. 4, dezembro de 1998, p. 87-101.63 As duas exposições seminais foram Monet’sYears at Giverny: Beyond Impressionism, noMetropolitan Museum of Art, e Cézanne: TheLate Work, no Museum of Modern Art em NovaYork, ambas acontecendo em 1978. Um atrasosimilar na apreciação de um artista pode serobservado na reavaliação de Marcel Duchamp.