14
Universidade Estadual de Maringá 02 a 04 de Dezembro de 2015 1 IMAGENS DA ÁFRICA NO CURRÍCULO ESCOLAR NYAMIEN, Francy Rodrigues da Guia (UEM) 1 TERUYA, Teresa Kazuko (UEM) 2 Comunicação oral Introdução Neste artigo analisamos as questões abordadas no episódio televisivo da série Nota 10 intitulado “África no currículo escolar”. Trata-se de uma produção audiovisual do projeto A Cor da Cultura, uma parceria realizada entre a SEPPIR, a Petrobrás, o CIDAN, MEC, Fundação Palmares, a TV Globo, a TV Educativa e o Canal Futura e tem como proposta a inclusão da história, cultura afro-brasileira e africana nos meios televisivos e nas salas de aula. Este trabalho faz parte da pesquisa de doutorado, em andamento, na qual elegemos onze episódios televisivos da série “Nota 10”, edições 2005 e 2010, voltadas a educadores/as e a comunidade escolar de modo geral, sendo apresentadas experiências educativas consideradas como bem sucedidas com base em diferentes metodologias de ensino em que são registrados projetos e trabalhos de professores/as em escolas. No episódio em destaque são apresentados dois projetos que discutem o continente africano: primeiro, projeto resgate da riqueza cultural da África a partir do desenho animado Kiriku e a Feiticeira e o segundo, projeto Educar para igualdade racial. Na referida série o espaço escolar, especialmente a sala de aula, é a base para discussões cuja diretriz é sempre uma temática ligada à educação como prática (do 1 Mestre em Educação pela Universidade Federal do Ceará. Doutoranda em Educação pela Universidade Estadual de Maringá. Membro do Grupo de pesquisa em Psicopedagogia, Aprendizagem e Cultura (GEPAC). 2 Doutora em Educação pela UNESP/Marília. Professora Associada da Universidade Estadual de Maringá. Líder do Grupo de pesquisa em Psicopedagogia, Aprendizagem e Cultura (GEPAC).

IMAGENS DA ÁFRICA NO CURRÍCULO ESCOLAR · tem como proposta a inclusão da história, cultura afro-brasileira e africana nos meios televisivos e nas salas de aula. ... continente

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: IMAGENS DA ÁFRICA NO CURRÍCULO ESCOLAR · tem como proposta a inclusão da história, cultura afro-brasileira e africana nos meios televisivos e nas salas de aula. ... continente

Universidade Estadual de Maringá 02 a 04 de Dezembro de 2015

1

IMAGENS DA ÁFRICA NO CURRÍCULO ESCOLAR

NYAMIEN, Francy Rodrigues da Guia (UEM)1

TERUYA, Teresa Kazuko (UEM)2

Comunicação oral

Introdução

Neste artigo analisamos as questões abordadas no episódio televisivo da série

Nota 10 intitulado “África no currículo escolar”. Trata-se de uma produção audiovisual

do projeto A Cor da Cultura, uma parceria realizada entre a SEPPIR, a Petrobrás, o

CIDAN, MEC, Fundação Palmares, a TV Globo, a TV Educativa e o Canal Futura e

tem como proposta a inclusão da história, cultura afro-brasileira e africana nos meios

televisivos e nas salas de aula.

Este trabalho faz parte da pesquisa de doutorado, em andamento, na qual

elegemos onze episódios televisivos da série “Nota 10”, edições 2005 e 2010, voltadas a

educadores/as e a comunidade escolar de modo geral, sendo apresentadas experiências

educativas consideradas como bem sucedidas com base em diferentes metodologias de

ensino em que são registrados projetos e trabalhos de professores/as em escolas.

No episódio em destaque são apresentados dois projetos que discutem o

continente africano: primeiro, projeto resgate da riqueza cultural da África a partir do

desenho animado Kiriku e a Feiticeira e o segundo, projeto Educar para igualdade

racial.

Na referida série o espaço escolar, especialmente a sala de aula, é a base para discussões

cuja diretriz é sempre uma temática ligada à educação como prática (do

1 Mestre em Educação pela Universidade Federal do Ceará. Doutoranda em Educação pela Universidade Estadual de Maringá. Membro do Grupo de pesquisa em Psicopedagogia, Aprendizagem e Cultura (GEPAC). 2 Doutora em Educação pela UNESP/Marília. Professora Associada da Universidade Estadual de Maringá. Líder do Grupo de pesquisa em Psicopedagogia, Aprendizagem e Cultura (GEPAC).

Page 2: IMAGENS DA ÁFRICA NO CURRÍCULO ESCOLAR · tem como proposta a inclusão da história, cultura afro-brasileira e africana nos meios televisivos e nas salas de aula. ... continente

Universidade Estadual de Maringá 02 a 04 de Dezembro de 2015

2

reconhecimento) da diferença indispensável à ação pedagógica. E ainda tem como

pretensão inspirar educadores/as a colocarem em prática a Lei 10639/2003.

A problematização em torno da educação para as relações etnicorraciais e a

referida legislação perpassa o episódio analisado e situam as discussões e embates sobre

a história e cultura afro-brasileira e africana em um campo não neutro, complexo e tenso

que é o contexto do currículo escolar. É notório que uma parcela significativa de

crianças, adolescentes e jovens negros brasileiros configura um percurso educacional

marcado pela discriminação racial. Subsiste uma realidade no contexto escolar em que

os saberes africanos são apresentados nos currículos como culturas exóticas e seus

espaços ficam restritos a projetos ou a datas comemorativas como 20 de novembro, 13

de maio.

Para fundamentar o estudo contamos com as contribuições de autores/as e

pesquisadores/as que fazem parte do pensamento negro em educação, inspirados nos

Estudos Culturais, além dos que tratam das questões relativas à mídia e currículo.

Partimos do pressuposto que a cultura da mídia interfere na subjetividade individual e

coletiva, portanto, não se pode negar que os veículos de informação e divulgação

influenciam a sociedade.

Neste contexto marcado de avanços e limites não podemos esquecer as práticas

culturais de exclusão dos negros pelos dispositivos midiáticos e o impacto para a

educação das relações etnicorraciais.

A alfabetização crítica da mídia oferece possibilidades de envolvimento com as

realidades sociais uma vez que a tecnologia da informação e comunicação podem ser

ferramentas de poder quando as pessoas marginalizadas ou sub representadas na mídia,

como no caso os negros, recebem a oportunidade de utilizá-las para contar suas histórias

e expressar suas inquietações. As novas tecnologias da comunicação são ferramentas

poderosas que podem libertar ou dominar, manipular ou esclarecer, e é vital que os/as

educadores/as ensinem os/as estudantes a usarem e analisarem criticamente esses tipos

de mídia (KELLNER, SHARE, 2008, p.703).

E a educação configura-se como importante mediação sociocultural nos

processos de apropriação das linguagens e usos de diferentes suportes, especialmente a

experiência audiovisual com suas sensibilidades e escritas.

Page 3: IMAGENS DA ÁFRICA NO CURRÍCULO ESCOLAR · tem como proposta a inclusão da história, cultura afro-brasileira e africana nos meios televisivos e nas salas de aula. ... continente

Universidade Estadual de Maringá 02 a 04 de Dezembro de 2015

3

Ressaltamos que os audiovisuais podem fornecer mensagens significativas de

valorização da cultura negra, e seu patrimônio histórico-cultural permitindo uma

interpretação positiva da população negra. Precisamos analisar como a cultura midiática

pode avançar nas questões de racismo, etnocentrismo e outras formas de preconceito. Imagens da África

O apresentador do episódio é o ator e jornalista negro Alexandre Henderson. Ele

compõe o cenário, anuncia o tema do programa, por meio de uma questão inicial no

gênero documentário. Com o discurso de especialista, apresenta uma narrativa que

produz realidades e marca posição frente à questão racial.

O episódio segue uma determinada sequência: inicialmente introduz-se um tema

para discussão. Neste caso realiza-se um jogo com pessoas convidadas para participar

da atividade. Em seguida ocorre o momento de entrevista com o/a especialista

convidado/a para falar sobre o tema em destaque no referido episódio. No segundo são

apresentadas as experiências educativas das escolas acompanhadas de depoimentos de

coordenadores, pais, alunos e professores participantes da comunidade escolar.

O apresentador Alexandre Henderson, no início do episodio, gira um globo

terrestre em seguida para, aponta a localização do continente africano no globo e

comenta:

Neste território com mais de 30 milhões de quilômetros quadrados, vive cerca de 780 milhões de pessoas, de diferentes etnias com as mais diversas culturas e história. Essa é a África, região também conhecida como continente negro. Mas é no mínimo curioso saber que apenas um país da África tem mais negros que o Brasil. A população brasileira é composta por cerca de 76 milhões de negros somando negros e pardos, isso corresponde a 45 % da nossa população, o que significa que a população negra não é exatamente uma minoria no nosso país. O Brasil é o segundo país com maior população de origem africana no mundo ficando atrás apenas da Nigéria. Mesmo com toda riqueza da influencia africana em nossa cultura, história, economia, ainda sabemos muito pouco sobre aquele continente. Também, os livros da escola, as notícias dos jornais historicamente vêm fazendo em nossas cabeças uma imagem estereotipada e simplificada da África. Mas que imagem será essa?(Nota 10, episódio 01, A África

Page 4: IMAGENS DA ÁFRICA NO CURRÍCULO ESCOLAR · tem como proposta a inclusão da história, cultura afro-brasileira e africana nos meios televisivos e nas salas de aula. ... continente

Universidade Estadual de Maringá 02 a 04 de Dezembro de 2015

4

no currículo escolar, narração de Alexandre Henderson, DVD 1, 2005).

É a partir desta pergunta que o apresentador de posse de um mapa do continente

africano convida algumas pessoas para participarem de um jogo para descobrir qual é a

imagem que eles têm da África. Foram escolhidas dez pessoas para classificarem a

África com cinco alternativas. A África é sinônimo de: desenvolvimento ou atraso;

saúde ou de doença; riqueza ou de pobreza; estabilidade política ou instabilidade

política; tribo ou civilização.

Alexandre Henderson apresenta cartões escritos com as cinco alternativas aos

participantes que os escolhe, afixando-os no mapa da África.

Apresentamos no quadro seguinte os trechos dos diálogos.

Quadro I - Imagens da África

Perguntas Respostas iniciais Explicitações das respostas

Expressões qualificadoras

E: A África é

sinônimo de:

P1(homem): Ela tem

riqueza, mas muito mal

distribuída.

E: Então o senhor colocaria o

quê? Riqueza ou pobreza?

P1: Agora depende porque o

país em si é rico, mas o povo é

pobre.

P1: Instabilidade...

P1: Muito atrasado.

E: Instabilidade política

P1: Tem pouca

civilização ainda.

E: Saúde ou

doença?

P1: Muita doença! P1: Muita!

P2(mulher): Doença...

P2: Instabilidade...

P2: Por causa da AIDS

E: Porque você acha

instabilidade?

P2: Por causa das guerras

E: Nota que você botou só

P2: Né?

Page 5: IMAGENS DA ÁFRICA NO CURRÍCULO ESCOLAR · tem como proposta a inclusão da história, cultura afro-brasileira e africana nos meios televisivos e nas salas de aula. ... continente

Universidade Estadual de Maringá 02 a 04 de Dezembro de 2015

5

palavras que dão um aspecto

negativo ao continente africano,

por quê?

P2: É o que a televisão mostra.

P2: Né?

P3(mulher): Acho que

civilização. Acho que fica

mais legal civilização.

E: Você já foi à África?

P3: Não!

E: Tem vontade de

conhecer?

P3: Tenho

P3: Até para tirar essa

conotação de que tribo seja

alguma coisa em atraso

E: Porque você tem vontade?

P3: Acho que faz parte do

Brasil. O Brasil é um pouco

África.

P3: Infelizmente.

P3: Né?

Elaborado pelas autoras. Fonte: Nota 10, episódio 01, A África no currículo escolar,

DVD 1, 2005.

As falas dos participantes sobre as imagens da África são: pouca civilização

ainda; muito atrasada; muita doença. Estas falas indicam a presença de preconceitos que

refletem um modo de pensar historicamente constituído, vinculados a determinadas

teorias já ultrapassadas baseadas nas ideias de hierarquia entre raças. Neste contexto o

continente africano é visto como atrasado, primitivo, habitado por populações

inferiores. E hoje as bases às quais eles foram construídos não se sustentam mais

(SCHWARCZ, 2010).

O participante 1 não sabe que a África é continente e afirma “ porque o país em

si é rico, mas o povo é pobre”. Para Cunha Jr. O principal problema encontrado no

processo de ensino e aprendizado da História africana é com relação aos preconceitos

adquiridos num processo de informação desinformada sobre a África. Estas informações

são racistas, produtoras de um imaginário preconceituoso. Seu efeito é tão forte que as

pessoas quando colocadas em frente a uma nova informação sobre a África têm

Page 6: IMAGENS DA ÁFRICA NO CURRÍCULO ESCOLAR · tem como proposta a inclusão da história, cultura afro-brasileira e africana nos meios televisivos e nas salas de aula. ... continente

Universidade Estadual de Maringá 02 a 04 de Dezembro de 2015

6

dificuldade em articular novos raciocínios sobre a história deste continente, sobretudo

de imaginá-lo diferente do raciocínio habitual. (CUNHA JR, 2002, p.58)

Constatamos nestas falas como as práticas de significação estruturam os nossos

olhares sobre o “outro da Cultura”. Conforme analisa Hall (1997) em seu ensaio “O

espetáculo do outro”, as varias formas como a diferença é marcada por filmes,

publicidades e fotografias do final do século XIX ao momento presente, e como

aspectos atribuídos à raça, etnia e gênero tem sido utilizados para marcar diferenças, de

forma essencialista e estereotipada. O autor faz referencia a várias representações

produzidas sobre africanos pelo Ocidente de modo que a diferença é marcada pela raça.

O apresentador salienta que na maioria das vezes a África foi associada às

características negativas. Apesar de existir problemas no continente africano

frequentemente exibido nas mídias, há um desconhecimento de aspectos importantes da

realidade africana. Durante séculos fomos expostos a informações deturpadas e

incompletas sobre a África e este fato trouxeram consequências negativas e um grave

problema é que a desinformação começa justamente no livro didático. Nos currículos

escolares o espaço dedicado a história da África é mínima. Levamos uma vida escolar

inteira aprendendo sobre o império romano, o feudalismo na Europa, a revolução

industrial na Inglaterra, a revolução francesa, a guerra civil norte americana. Falamos da

história de um continente inteiro em apenas algumas horas e isso quando falamos.

Porque na maioria das vezes a África chega aos bancos escolares na carona de tema

escravidão. E mesmo a escravidão é abordada sob uma perspectiva eurocêntrica, isto é

sob o ponto de vista do colonizador. (Nota 10, episódio 01, A África no currículo

escolar, DVD 1, 2005)

Ao tratarmos da história da África buscamos estudos e pesquisas em diversas

áreas do conhecimento (história, antropologia, literatura, geografia, arqueologia, etc.)

para aprofundar nossa familiaridade sobre a realidade africana. Outro aspecto deste

episódio são as experiências educativas contidas em dois projetos que discutem o

continente africano na sala de aula.

O primeiro projeto aborda a riqueza cultural da África observado no desenho

animado Kiriku e a Feiticeira, exibido na EMEF Profa. Daisy Amadio Fujiwara – Zona

Oeste em São Paulo. Seu objetivo é introduzir a história do negro no Brasil; conhecer e

Page 7: IMAGENS DA ÁFRICA NO CURRÍCULO ESCOLAR · tem como proposta a inclusão da história, cultura afro-brasileira e africana nos meios televisivos e nas salas de aula. ... continente

Universidade Estadual de Maringá 02 a 04 de Dezembro de 2015

7

valorizar a África e o modo de viver de alguns povos africanos, elevar a autoestima das

crianças afrodescendentes, bem como trabalhar o racismo, o preconceito e a

discriminação e valorização do negro na sociedade brasileira para alunos do ensino

fundamental.

No documentário, a professora Maria Cecilia Pinto ressalta que a motivação para

a produção do projeto foram as observações feitas das relações entre as crianças negras

e brancas. Ela notou que as crianças negras sofriam com atitudes racistas, xingamentos

e hostilidade. E, também, identificou a ausência de heróis e personagens negros/as nas

histórias, nos contos de fadas tradicionais:

Como a criança negra vai se identificar com aquela princesa sempre loira porque o problema não é ter a princesa loira e o príncipe loiro. O problema é só ter a princesa loira e só ter o príncipe branco. E eu resolvi apresentar um herói negro pra eles e [...] aí foi o Kiriku. (Nota 10, episódio 01 - A África no currículo escolar, entrevista professora Maria Cecilia Pinto, DVD 1, 2005).

Para esta professora, “Kiriku e a Feiticeira” é a melhor representação do/o

negro/a em animação, porque traz a sabedoria da tradição africana numa história que

notabiliza a coragem, a curiosidade e o destemor de um menino negro e franzino, corpo

pequeno, mas com características típicas de um grande herói. Kiriku nasce numa aldeia

e tem curiosidade em saber por que Karabá, a feiticeira que engoliu todos os homens da

aldeia é má. Kiriku quer entender as razões desta maldade e libertar a sua comunidade e

também livrar a própria Karabá do sofrimento.

O desenho de Kiriku e a Feiticeira, é a animação francesa do diretor Michel

Ocelot “que passou boa parte da infância na Guiné, onde tomou contato com o mito que

sustenta o roteiro da animação”. Em virtude da sua formação o diretor Ocelot preocupa-

se com o multiculturalismo e as alternativas ao modelo branco-ocidental. Youssou

N’Dour, músico senegalês, tornou mais elaborada a narrativa com músicas e

instrumentos tradicionais, as músicas são cantadas e batucadas como no cotidiano da

aldeia. “O desenho é delicado e fino com cores intensas, tropicais e muito vivas,

contornos nítidos; os personagens são negros e apresentados como negros” (FERREIRA

SANTOS, 2005, p.222).

Page 8: IMAGENS DA ÁFRICA NO CURRÍCULO ESCOLAR · tem como proposta a inclusão da história, cultura afro-brasileira e africana nos meios televisivos e nas salas de aula. ... continente

Universidade Estadual de Maringá 02 a 04 de Dezembro de 2015

8

Para este autor, a narrativa parece simples, mas o seu desenrolar é complexa.

Primeiro vai além do maniqueísmo simplista do bem contra o mal. Kiriku não se coloca

contra a Feiticeira, ele quer compreender. “O desejo (philia) feminino de saber (sophia),

se soma a outros elementos femininos na constituição deste herói” que é “amante dos

segredos da terra e das águas”. Durante a jornada Kiriku morre e sobrevive por conta

dos cuidados das anciãs da aldeia, expressão da potencia feminina na velha sábia. O

herói lunar, duas vezes nascido, prossegue sua saga em busca de sua ancestralidade.

(idem, p. 223-224)

Depois de várias aventuras Kiriku encontra o Grande Avô, uma cena comovente,

que o acalanta e revela o segredo de Karabá, a Feiticeira. Revela que a origem de sua

maldade, causadora de um sofrimento dilacerante, é um espinho cravado em suas

costas, sobre a espinha dorsal, por isso ela nunca dá às costas a ninguém e tornou-se má.

E decidido Kiriku pensa uma estratégias para retirar o espinho.

Cabe citar um trecho da análise de Ferreira Santos do ápice da narrativa:

Quando Karabá se distrai, Kiriku se volta para as suas costas e com os dentes retira o espinho cravado. Karabá é libertada do sofrimento que dá origem ao mal com a paixão expressa no toque da boca de Kiriku, ao extrair com os seus próprios dentes o espinho da dor. A boca na cosmovisão africana é parte sagrada do corpo por onde a força vital (axé) é liberada seja pela saliva, pelo ar da respiração, pelo beijo ou pela palavra. Agradecida, Karabá pode voltar a ser ela mesma, novamente, e Kiriku passa por uma radical transformação: converte-se num belo príncipe e os dois se beijam e se casam, numa reconciliação dos dois princípios constituintes das energias do universo: o feminino e o masculino. O pássaro e a serpente, emblemas ancestrais de todo continente africano, se juntam na complementaridade dos opostos, sem apagar os conflitos, mas mantendo a relação dinâmica entre os polos. Tão logo o casal, retorna a aldeia para surpresa de todos, os homens que haviam sido engolidos por Karabá também retornam à aldeia com seus tambores numa celebração alegre e esfuziante [...] (FERREIRA SANTOS, 2005, p.224)

Após assistirem o desenho as crianças reescreviam e elaboravam desenhos sobre

a história, foram estimuladas a comparar os desenhos com os contos de fadas

tradicionais e foram percebendo a pouca quantidade não só de personagens negros, mas

também de heróis negros nas histórias. Reitera a professora, a relevância de discutir

Page 9: IMAGENS DA ÁFRICA NO CURRÍCULO ESCOLAR · tem como proposta a inclusão da história, cultura afro-brasileira e africana nos meios televisivos e nas salas de aula. ... continente

Universidade Estadual de Maringá 02 a 04 de Dezembro de 2015

9

com as crianças as situações onde os negros são inferiorizados ou quando aparece

sempre numa situação subalterna.

Nos depoimentos de duas crianças negras percebe-se o reconhecimento do negro

de forma positiva e a avaliação da atividade satisfatória na vida das crianças.

[...] eu gostei dele porque ele era negro e salvava as pessoas. (Johnata Felipe Matos, aluno). Eu gostei. Assim que quase a maior parte da minha família é negra, menos o meu pai e o meu irmãozinho. Aí eu gostei muito que ele fosse dessa cor e minha mãe também. (Dafne Cristina Silva Oliveira, aluna).(Nota 10, episódio 01- A África no currículo escolar, depoimentos de aluno (a), DVD 1, 2005).

Cabe aqui, portanto uma reflexão que o projeto partiu da iniciativa da professora

que observou as relações entre as crianças negras e brancas e percebeu que as crianças

negras eram expostas a situações preconceituosas no ambiente escolar, não escolhendo

o silencio como estratégia diante da situação, tomou decisões embasadas teórica e

pedagogicamente no trabalho desenvolvido junto com seus alunos (as). Esta experiência

educativa recebeu o prêmio Educar para Igualdade Racial do CEERT.

O Segundo projeto Educar para igualdade racial na Escola Municipal General

Álvaro da Silva Braga em Aquidauana em Mato Grosso do Sul. Este projeto

coordenado pela professora Nilda Fátima Moraes teve como objetivo estimular o debate

sobre a lei 10639/2003, a fim de levar os/as alunos/as a conhecerem as politicas

afirmativas, seus objetivos e suas implementações e aprofundar os conhecimentos sobre

religiões de matrizes africanas. O projeto contou com aulas expositivas sobre a

importância da História da África nos currículos escolares e realização de palestras com

lideres de entidades locais que abordavam a temática.

O que motivou a criação do projeto, conforme a coordenadora, foi à necessidade

sentida com seus/as alunos/as provenientes de bairro de periferia, assim como ela,

sempre rotulados de modo negativo e o que mais lhe preocupava era que em todos os

acontecimentos ruins eles estavam sempre envolvidos. Ela procurou uma maneira de

fazê-los perceber a importância deles na sociedade e seus direitos como cidadãos que

tem voz. Como educadora acredita que isso é primordial: “Nós somos diferentes sim! E

essa diferença tem que ser ressaltada, a gente tem que trabalhar a equidade, a diferença,

Page 10: IMAGENS DA ÁFRICA NO CURRÍCULO ESCOLAR · tem como proposta a inclusão da história, cultura afro-brasileira e africana nos meios televisivos e nas salas de aula. ... continente

Universidade Estadual de Maringá 02 a 04 de Dezembro de 2015

10

porém com direitos iguais”. (Nota 10, episódio 01- África no currículo escolar,

entrevista professora Nilda Fátima Moraes, DVD 1, 2005)

Na conversa com Jaqueline Régis Soares, líder comunitária, é enfatizado o

trabalho com a comunidade nesse projeto:

Há sempre uma resistência porque alguns acham que não existe racismo no Brasil e isso não é verdade, nós diariamente encontramos dentro da escola... é diferentes etnias, diferentes culturas. E os alunos convivem com essas diferenças e inconscientemente já colocam obstáculos e barreiras pra aceitar o outro. (Nota 10, episódio 01- África no currículo escolar, entrevista Jaqueline Régis Soares, líder comunitária, DVD 1, 2005).

Para Jaqueline, a implementação da Lei 10.639/2003 foi uma grande conquista e

possibilita discussões e debates em sala de aula e no cotidiano escolar sobre a História e

cultura afro-brasileira e africana. Ela acredita que a prática dessa legislação quebra

muitos mitos, por exemplo, o mito da democracia racial, propiciando às crianças o

entendimento de que “não é a cor que faz o ser humano é o caráter da pessoa”.

Na roda de conversa sobre ações afirmativas, especialmente sobre as cotas

raciais, dois estudantes se posicionam; um é favorável ao sistema de cotas e outro se

manifestou contrário. Vale registrar que o estudante que se posicionou desfavorável é

negro.

Valter - Infelizmente no Brasil há lei que pega e lei que não pega. Espero que essa dê certo. Que desde a infância, desde o jardim a criança aprenda a conviver com a diferença, com o diferente e aprenda a respeitar. Aí enquanto isso essas cotas são mantidas lógico! Aí vai chegar um determinado momento que não haverá mais a necessidade, entendeu? É esse o meu posicionamento eu continuo defendendo, lógico! Deonilson - Eu sou contra! Começa daí, só o motivo de dá cotas já diferencia né. A disputa já começa por aí. E se desse capacidade para todos desde o ensino fundamental ao ensino médio, final do ensino médio, acho que todos teriam oportunidade de prestar um bom vestibular e aí assim conseguir sem cotas, né. Porque é mais um, é uma... Falta mais uma política social aí (Nota 10, episódio 01- África no currículo escolar, dialogo sobre cotas raciais, Valter e Deonilson, DVD 1, 2005).

Page 11: IMAGENS DA ÁFRICA NO CURRÍCULO ESCOLAR · tem como proposta a inclusão da história, cultura afro-brasileira e africana nos meios televisivos e nas salas de aula. ... continente

Universidade Estadual de Maringá 02 a 04 de Dezembro de 2015

11

O trecho breve do diálogo mostra como os estudantes se posicionam em relação

ao debate polêmico das políticas de ação afirmativa para a população negra e, mais

especificamente, as cotas ou reservas de vagas em universidades. Os diferentes

posicionamentos revelam o caráter não consensual. O estudante que se manifesta

desfavorável apresentou um argumento de caráter universalista para justificar a não

adoção de cotas raciais. Apesar de os objetivos de caráter universal estar contido em

nossa Constituição, convém lembrar que “o ideal universalista ainda nem chegou a se

realizar de modo pleno no país, deixando de fora dos seus benefícios um grande número

de cidadãos” (PAIXÃO, 2003).

No episódio registramos apenas uma lacônica definição do apresentador

Alexandre Henderson sobre o sistema de cotas “que é uma política estimulada pelo

governo federal através do programa Universidade para todos. Estabelece cotas para

alunos indígenas e afrodescendentes nas Universidades”. (Nota 10, episódio 01- África

no currículo escolar, DVD 1, 2005).

À exceção dos episódios da mesma série, o destaque abreviado sobre as cotas

raciais pode ser sentido como uma ausência de conteúdo teórico indispensável à

discussão de uma educação para relações etnicorraciais. A adoção de sistemas de cotas

raciais definidas pelas políticas de ações afirmativas são contornos de marcos

normativos para as correções ou minimização das injustiças econômicas e simbólicas

provocadas pelo preconceito, racismo e pela discriminação racial contra a população

negra, que de algum modo, atendem às reivindicações legítimas na luta por igualdade de

direitos e educação (MARQUES, 2012).

Desse modo, parte das ações afirmativas no Brasil se centra na educação escolar,

seja na Educação Básica ou Ensino Superior, por acreditar que esses são setores

estratégicos para uma reorganização na trama social brasileira (FELIPE, 2014, p.123).

Assim, na medida em que foram implementadas políticas públicas direcionadas para

população negra, as discussões sobre relações raciais, tornaram-se ainda mais acirradas

e reacenderam o debate sobre o mito da democracia racial, a miscigenação e a

persistente estrutura de discriminação histórica.

Neste episódio, essa lacuna expressa um silêncio profundo do não-dito, faltou

respaldo teórico de um/a estudioso/a que poderia ter sido convidado/a para abordar,

Page 12: IMAGENS DA ÁFRICA NO CURRÍCULO ESCOLAR · tem como proposta a inclusão da história, cultura afro-brasileira e africana nos meios televisivos e nas salas de aula. ... continente

Universidade Estadual de Maringá 02 a 04 de Dezembro de 2015

12

especialmente, sobre os debates provocados pelas cotas raciais. No termino do

programa, na parte “para saber mais” não há sugestões de leituras para aprofundamento

dos assuntos discutidos nos episódios.

Considerações Finais

Após a descrição e uma breve análise do episódio televisivo, evidenciamos um

potencial pedagógico dos audiovisuais produzidos pelo projeto A Cor da Cultura. No

entanto, sua contribuição como ferramenta pedagógica criativa no trato dos saberes

sobre os afrodescendentes, sua história e cultura, precisa ser explorada com

aprofundamento histórico, social e cultural para realizar uma análise dos seus

conteúdos. Isso implica em estabelecer critérios de uso para fins didático-pedagógicos

de modo a instaurarem sentidos que provoquem fissuras nas perspectivas

preconceituosas e racistas dominantes e embates mais politizados e críticos que a

inclusão da historia e cultura afro-brasileira e africana trazem para esse território tão

cercado e disputado que é a escola.

Ressaltamos que muitas ações precisam ser efetivadas para a

desconstrução/construção de uma imagem não caricaturada e/ou folclorizada dos

africanos e afrodescendentes. Nesta pesquisa tecemos reflexões sobre a presença

marcante da cultura afro-brasileira e africana na dinâmica das relações sociais, culturais

e educacionais da sociedade brasileira e da cultura nacional.

Acreditamos que essa pesquisa anuncia mudanças possíveis, aponta alterações

que sugerem um tratamento, critico e consciente de superação dos estereótipos e

preconceitos raciais nos materiais didáticos inclusive o livro didático acerca dos

afrodescendentes que constituem praticamente metade da população brasileira. Além do

aspecto formal de conhecer as civilizações africanas e suas reelaborações presentes no

cotidiano da sociedade brasileira, em diferentes áreas do saber, faz-se necessário partir

de um outro olhar ante as diferenças que nos caracteriza como diversos nos aspectos

étnico-raciais nas diferentes vivências e referenciais ancestrais

É necessário encontrar o sentido educativo no uso dos recursos audiovisuais para

seleção e leitura crítica da linguagem das diversas mídias. A produção de materiais

Page 13: IMAGENS DA ÁFRICA NO CURRÍCULO ESCOLAR · tem como proposta a inclusão da história, cultura afro-brasileira e africana nos meios televisivos e nas salas de aula. ... continente

Universidade Estadual de Maringá 02 a 04 de Dezembro de 2015

13

audiovisuais não é suficiente, caso não haja uma consciência crítica que possibilite o

uso de conteúdos relevantes e significativos na compreensão da realidade educacional,

social e racial brasileira.

REFERÊNCIAS CUNHA JR, Henrique. A História Africana e os elementos básicos para o seu ensino. LIMA, Ivan Costa e ROMÃO, Jeruse. Negros e Currículo. 2 ed. Vol.2, Florianópolis: Editora Atilènde, 2002. Núcleo de Estudos Negros. Série Pensamento Negro em Educação. FELIPE, Delton Aparecido. Negritude em discurso: a educação nas revistas Veja e Época (2003-2010). 182 p. Tese (Doutorado em Educação). Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Estadual de Maringá, 2014. FERREIRA DOS SANTOS, Marcos. Ancestralidade e convivência no processo identitário: a dor do espinho e a arte da paixão entre Karabá e Kiriku. In: EDUCAÇÃO ANTI-RACISTA: caminhos abertos pela Lei Federal nº 10.639/03. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Brasília: Ministério da educação, Secretaria de educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005. HALL, Stuart. The spectacle of “other”. In: ______(org.)Representation: cultural representations and signifying practices - Cap.IV. London: Thousand Oaks/New Delhi: Sage/Open University. P.225-290 KELLNER, Douglas. Lendo imagens criticamente: em direção a uma pedagogia pós-moderna. In: SILVA, Tomaz Tadeu da. (Org.) Alienígenas na sala aula: uma introdução aos estudos culturais em educação. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva 9. ed., Petrópolis: Vozes, 2011. ______, SHARE, Jeff. Educação para leitura crítica da mídia, democracia radical e a reconstrução da educação. Educação e Sociedade Campinas, vol.29, n.104- Especial, p.687-715, out.2008. Disponível no site: http://www.cedes.unicamp.br. Acesso em 13/11/2013. KELLNER, Douglas. A cultura da mídia – estudos culturais: identidade e política entre o moderno e o pós-moderno. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: EDUSC, 2001. MARQUES, Eugenia Portela de Siqueira. A manifestação do preconceito e da discriminação racial na trajetória dos alunos negros bolsistas do PROUNI. In: VALETIM, Silvani dos Santos; PINHO, Vilma Aparecida de; GOMES, Nilma Lino

Page 14: IMAGENS DA ÁFRICA NO CURRÍCULO ESCOLAR · tem como proposta a inclusão da história, cultura afro-brasileira e africana nos meios televisivos e nas salas de aula. ... continente

Universidade Estadual de Maringá 02 a 04 de Dezembro de 2015

14

(Org.). Relações étnico-raciais, educação e produção do conhecimento: 10 anos do GT 21 da ANPED. Belo Horizonte: Nandyla, 2012. SCHWARCZ, Lilia K. Moritz. Raça como negociação. Sobre teorias raciais em finais do século XIX no Brasil. In: FONSECA, Maria Nazareth Soares (org.) Brasil Afro-brasileiro. 3 ed. Belo Horizonte: Autentica Editora, 2010.