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Imagens do patrimônio e saberes ambientais no entorno do Parque Estadual do Utinga
(PEUt)
BRENO AUGUSTO GARCIA SALES1
Este paper é parte integrante de uma pesquisa mais ampla que procura compreender
percepções ambientais e práticas sociais de crianças estudantes de uma escola situada no
entorno do Parque Estadual do Utinga (PEUt) - Unidade de Conservação situada na Região
Metropolitana de Belém.
Trata-se de um exercício etnográfico que enfoca a percepção de paisagens humanas e
não humanas e o afloramento de sensibilidades ambientais por parte de crianças que estudam
e moram em áreas circunvizinhas ao PEUt. Mais especificamente, pretendo pensar os
saberes, imagens e representações criados pelos estudantes sobre esta região, procurando
comparar e contrastar os diferentes tipos de socializações que os levam a ter mais ou menos
trânsito pelas áreas do Parque e, com efeito, indicar interesses maiores por circular (ou não)
em espaços como o lago, a piscina, a mata, as precárias áreas de lazer da rua e os quintais das
casas que compõem as paisagens do Parque.
Portanto, o que será expresso aqui representa apenas uma etapa de um processo que
apresentou atividades prévias e necessárias para poder se chegar nos resultados adiante
expostos.
Para capturar os dados brutos da pesquisa, lancei mão da promoção de duas atividades
e de conversas registradas durante a convivência na escola a partir dos primeiros meses de
pesquisa de campo iniciados em Fevereiro de 2011. A primeira atividade foi uma “oficina de
mapas” que, em verdade, consistiu no uso de um croqui construído por mim e minha
companheira - minha auxiliar na pesquisa - que retratava estabelecimentos e outros traços de
paisagem da rua da escola Lúcia Wanderley, que também é a via de onde se originam as
passagens onde a maioria dos estudantes reside Na primeira etapa da atividade, pedi aos
estudantes que identificassem no croqui suas casas e os locais onde gostam de brincar. Na
segunda parte, pedi para que desenhassem ou escrevessem a resposta para três perguntas: 1) o
1 Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais – Universidade Federal do Pará (PPGCS/UFPA). Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Pará (FAPESPA).
2
que eu mais gosto do que existe próximo da minha casa; 2) o que eu não gosto dentre o que
existe próximo da minha casa; 3) o que eu gostaria que tivesse próximo da minha casa.
A segunda atividade foi uma oficina de fotografia artesanal utilizando a técnica
pinhole2 com o intuito de apresentar aos estudantes um trabalho manual e um aprendizado da
luz cujos resultados – fotografias temáticas - pudessem me servir como dados para refletir
sobre o vínculo e o conhecimento sensível sobre seus lugares. É o resultado dessa segunda
atividade que quero expor aqui.
É importante frisar que, ao contrário do que foi descrito no resumo, não estou
trabalhando aqui com duas escolas. A segunda escola, de educação infantil e ensino
fundamental chamada Ruth Passarinho, que serviria de base comparativa, entrou em reforma
no início do ano de 2012 e tinha como previsão retomar as atividades no mês de Abril deste
mesmo ano. Lá foi realizado somente a oficina de mapas e a primeira parte da oficina de
fotografia, significando dizer que os estudantes não construíram e nem fizeram o ensaio com
as câmeras pinhole.
É mister ressaltar que para oficina em questão, lancei mão do que os integrantes da
“Associação Fotoativa” convencionaram chamar de “pinlux”, que é um tipo de câmera
fotográfica pinhole produzida com caixas de fósforo da marca “Fiat Lux”, cujas dimensões se
adequam perfeitamente às dimensões de bobinas de filme fotográfico 35mm que são
acopladas à caixa.
Fazendo uma avaliação mais cautelosa sobre o tempo que teria para realizar todas as
etapas da oficina de fotografia pinhole, quais sejam, entre elas me aproximar e adquirir a
confiança dos interlocutores para, aí sim, incursionar pelos ambientes significativos para eles,
me demandaria um tempo que eu não dispunha, haja vista os dados obtidos junto aos
estudantes da Escola Lucia Wanderley estarem esperando para serem sistematizados e
analisados.
O passo a passo da oficina de fotografia
Após sentir o interesse de alguns estudantes na “câmara de furinho”, tive mais certeza
de que a escolha pela pinhole poderia render bons frutos e também me servir como forma de
me aproximar mais das crianças durante o trabalho. Após a oficina de mapas, cheguei a ir até
2 “A fotografia pinhole faz uso de uma câmara fotográfica artesanal, ou câmara de furinho, que nada mais é do que uma câmara fotográfica reduzida a sua expressão mínima (necessária e suficiente): [trata-se] de uma caixa hermética e opaca dotada de um pequeno furo num dos seus lados, que permite registrar em material fotossensível, a imagem luminosa formada espontaneamente em seu interior sobre a parede oposta”. (Pardini apud Sales; Silva Filho; Assis, 2008: 4)
3
a escola pelo menos umas duas vezes: a primeira para levar os mapas para aqueles estudantes
que tinham deixado de realizar pelo menos uma das tarefas - 26/10/2011; e a segunda para
marcar os dois dias em que seriam realizadas as oficinas de fotografia - data não registrada no
diário. Nas duas situações, um ou outro estudante me perguntou quando iríamos fazer a
câmera de caixinha de fósforo.
Vejo que a aprendizagem, propriamente dita, da técnica fotográfica pinhole exerce
uma atração sobre os estudantes. Contudo, assim como em outras escolas, existe também uma
forte demanda por atividades que sejam diferentes das atividades escolares rotineiras. As
duas coisas pareceram sempre figurar conjuntamente ao longo do trabalho de campo que
realizei com eles.
Visualizado o caminho a seguir, o próximo passo foi organizar a oficina. Fiz o contato
com meu amigo fotógrafo (e sociólogo) Ionaldo Rodrigues, que ministrou a primeira oficina
de fotografia artesanal que participei, em 2006, como atividade preparatória para o I
Seminário de Ensino de Antropologia da UFPA – evento organizado pela turma de 2003 da
graduação em Ciências Sociais, da qual fiz parte3. Por telefone, ele se mostrou disposto em
auxiliar na construção da atividade. Marcamos uma conversa em um feriado do mês de
Setembro de 2011 e lá pude esclarecer melhor as linhas mestras do projeto. Neste mesmo dia,
projetamos uma data para simularmos a mesma tarefa que iria ser feita nas duas oficinas,
quais sejam, a construção da câmara escura e da câmera pinhole utilizando caixinha de
fósforo. Assim foi feito. Algumas semanas depois, tivemos outro encontro presencial. Desta
vez, tivemos que definir sobre escolhas determinantes para o trabalho.
Uma dessas escolhas era se realmente eu iria trabalhar a técnica pinhole com crianças
com idade entre 10 e 13 anos, haja vista o próprio Ionaldo e o grupo que ele integra – a
“Fotoativa4” – não apresentar no(s) seu histórico(s) experiências com essa faixa etária. O
motivo me pareceu ser, principalmente, a habilidade no trabalho com as mãos, pois a
montagem de uma câmera pinhole não pode ser considerada difícil, mas devem ser seguidos
alguns passos que, se transpostos, podem levar desde a necessidade de refazer o que já tinha
sido feito até então ou até a total inoperância da câmera5.
3 Esta experiência resultou em um paper (Sales; Silva Filho; Assis, 2008) apresentado na 26ª Reunião Brasileira de Antropologia, 01-04 Jun. 2008. Porto Seguro – Bahia. Oficina “Experiências bem sucedidas de ensino de Antropologia”, Comissão de Ensino da Associação Brasileira de Antropologia (ABA). 4 Trata-se de um espaço multiuso fundado pelo fotógrafo e educador Miguel Chikaoka e é destinado ao aprendizado e interações socioeducativas no campo das artes visuais. Sua localização, no momento em que se escreve este trabalho, é o Largo das Mercês, bairro do comércio, em Belém. O espaço oferece cursos, oficinas e abriga eventos relacionados às artes visuais. Também dispõe de uma direção de acervo e documentação, que reúne a memória das produções nos mais diversos eventos e momentos vividos em mais de vinte anos de existência do grupo 5 Em uma das primeiras aulas da disciplina Métodos e Técnicas de Pesquisa em Antropologia, cursada durante o segundo semestre do curso, uma aluna do doutorado me alertou para a dificuldade de realizar oficinas pinhole
4
Entre as alternativas pensadas em nossa conversa, estava a possibilidade de se fazer o
mesmo trabalho com câmeras de celulares ou digitais, considerando que seria menos
trabalhoso e talvez mais adequado às novas tecnologias de informação e comunicação e à
cultura visual vivenciadas pelos estudantes interlocutores da pesquisa. Contudo, tinha a
certeza que isso implicaria uma reviravolta na base metodológica do trabalho, haja vista que a
fotografia pinhole não se apresenta aqui somente como uma forma de aproximar pesquisador
e interlocutores por meio de uma interação lúdica, mas também de lançar mão de um
processo barato capaz de desenvolver habilidades e proporcionar estranhamentos úteis à
formação do educando enquanto ser criativo repleto de possibilidades.
Não obstante, fui até a(s) escola(s) e perguntei quantos estudantes dispunham de
celulares com câmera ou câmeras digitais. Na ELW, a minoria dos 25 alunos possuíam tais
equipamentos (e na outra escola?). Considerei que seria inviável desenvolver um trabalho
com um número de câmeras tão reduzido. Dessa forma, entendi que esse levantamento
poderia ser um recado para mim, indicando que lidar com o artesanal seria realmente o
caminho mais acessível diante das condições não somente do pesquisador, mas também dos
interlocutores e, principalmente, do potencial pedagógico que esta forma de fazer fotografia
carrega consigo.
Ainda assim, a proposta de conjugar o artesanal com o digital não se esvaiu. Ao
folhear a dissertação de Biazus (2006), percebi que diversas fotografias pinhole estavam lado
a lado com fotografias digitais. Tratava-se do mesmo enquadramento, porém captados com
câmeras diferentes e, por isso, com texturas distintas. Nesta etapa, não conhecia o trabalho de
Biazus o suficiente para entender o porquê daquela escolha. Entretanto, aquela formatação
ficou guardada em minha memória e, ao propor o ensaio fotográfico aos estudantes, acabei
me apropriando da ideia.
A intenção, naquele momento, era que os estudantes relatassem as suas impressões
acerca da diferença em produzir uma imagem com câmera digital e a “mesma imagem” com
câmera artesanal. Contudo, as poucas crianças que me retornaram as imagens não as
produziram desta forma conjugada, uns talvez por ter esquecido da orientação que eu tinha
dado e outros realmente por não possuir um meio de captura de imagem digital.
A oficina na prática
com crianças, levando em conta a experiência dela em trabalhos pregressos no campo audiovisual.
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Apesar de todas as incertezas, mantive meu desejo de realizar as oficinas de fotografia
artesanal. E assim parti para a organização da oficina, procurando reunir o material
necessário e agendar junto às escolas quais seriam as melhores datas. O máximo que
conseguimos foi dois dias na semana de aulas das crianças. A questão do número de dias a
serem disponibilizados pela escola para realização das oficinas sempre foi o mínimo possível,
pois me pareceu que um dia sem aulas é interpretado como uma grande perda para os alunos,
mesmo que a atividade que estivesse sendo proposta se constituísse em um subsídio
importante para aplicação de conceitos que mais tarde iriam ser ensinados nas disciplinares
escolares como a Física, por exemplo, sem contar na contribuição deste tipo de oficina para
desenvolver habilidades manuais, motoras e perceptivas.
Contudo, um fator que talvez tenha favorecido a cessão de pelo menos dois dias para
a oficina de fotografia foi o fato de as duas turmas pertencerem a séries da primeira fase do
ensino fundamental, significando dizer que todas as disciplinas do currículo são ministradas
por um único professor, exceto arte no caso da ERP e Educação Física nos dois casos. Sendo
assim, o agendamento dos dias aconteceu com as professoras das turmas de cada escola.
Ainda assim, dois dias era pouco, considerando a duração do mesmo curso na
“Fundação Fotoativa” que geralmente é de quatro a cinco dias dependendo do número de
participantes e do ritmo de produção de cada turma.
Os dias que antecederam as oficinas foram bastante trabalhosos. O Ionaldo
recomendou que deixássemos as câmeras pinlux em fase de finalização, ou seja, faltaria
somente acoplar as bobinas dos filmes fotográficos às caixas que, por sua vez, já estariam
pintadas, com as janelas abertas e com os obturadores montados. O motivo de adiantarmos o
serviço foi que não seria possível construirmos as câmeras desde o início, considerando a
relação tempo disponível e destreza motora das crianças. Assim procuramos fazer, ainda que
não tivéssemos concluído todo o trabalho até a véspera do início da oficina.
No dia 9 de Novembro de 2011, aconteceu o primeiro dia de atividades da oficina de
fotografia artesanal. Na ocasião, estavam eu, Ionaldo e a Deylane - minha companheira,
mestranda em Ciências Sociais (Antropologia) e auxiliar na pesquisa. Apesar da segurança
que a presença do Ionaldo me causava, me encontrava em um clima de expectativa. Não
sabia o que estava por vir. Não sabia exatamente qual seria a recepção dos estudantes ao
trabalho, a despeito de alguns terem me procurado para perguntar sobre a construção da
câmera com caixa de fósforos.
Ao chegarmos à sala 4 da ELW, alguns estudantes ficaram eufóricos com a nossa
presença, pois já estavam avisados que aquele dia seria o início dos trabalhos que nos
levariam a tão falada câmera. Comuniquei a todos que naquele dia iniciaríamos a oficina de
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fotografia artesanal, sendo que o primeiro dia estaria dedicado à construção da câmara
escura6 e o segundo dia reservado aos trabalhos com a “pinlux”. Alguns lamentaram o fato da
“construção” da “pinlux” ter ficado para o dia seguinte, mas logo se conformaram quando
demos início aos trabalhos.
Antes de iniciarmos a construção das câmaras escuras, o Ionaldo resolveu realizar
uma dinâmica de apresentação chamada “teia luz”. Basicamente, a tarefa consiste em
organizar o grupo em círculo ao redor do qual todos se encontravam de pé. Com o rolo na
mão, cada participante deveria pronunciar seu próprio nome, idade e, em uma palavra,
resumir o que significa luz em sua opinião. Feito isso, o estudante desenrolaria o novelo em
direção à próxima pessoa a se apresentar. Assim todos deveriam fazer. No final das
apresentações, teríamos uma grande teia que, em uma interpretação possível, significaria os
caminhos que a luz percorre até chegar aos nossos olhos, na forma de luz refletida. A teia
também pode ser vista como o percurso de cada estudante para desvendar os mistérios da luz
e da formação das imagens, trilha esta que envolve um trabalho de ir e vir da memória,
através de fotografias que, antes de existirem fora, existem na forma de reminiscências e de
quadros mentais que vem se desenhando no curso das experiências vividas por cada sujeito.
Esta primeira atividade se desenvolveu em um clima de descontração e surpresa, a
medida que a teia ia se formando. As brincadeiras eram contínuas e uns se empenhavam um
pouco mais para vencer a timidez do que outros. A inclusão da professora na dinâmica deixou
os estudantes mais eufóricos, uma vez que ela estava se colocando como mera expectadora
do trabalho. Quando ela divulgou a idade, algo acima dos 40 anos, as gozações aumentaram.
Naturalmente, nem todos trouxeram palavras inéditas para traduzir o que significava luz para
si. Contudo, senti que ali estava se iniciando um pensar sobre a luz, algo importante para o
que vínhamos desenvolver posteriormente.
Concluída esta etapa, passamos para a construção das câmaras escuras. É válido
ressaltar que a proposta era construir o que se convencionou chamar “caixa mágica”, um tipo
de câmara escura construída com papel cartão preto ou de outra cor escura o suficiente para
termos um ambiente vedado à entrada da luz. No caso de nossa oficina, tratava-se também de
uma câmera pinhole, pois para a entrada da luz utilizávamos um pequeno furo no papel
alumínio colado à extremidade da câmara. Na parede oposta ao furo, composta de papel
vegetal, a imagem refletida do ambiente exterior se forma invertida horizontalmente e
verticalmente, dando uma sensação de estar vendo o mundo ao contrário.
6 “A câmera escura (ou câmara escura; em latim: câmera obscura) é um dispositivo, de qualquer forma e tamanho, vedado à entrada de luz, no interior do qual a imagem de uma cena externa pode se formar quando é permitida a entrada dos raios refletidos por essa cena. A entrada pode se dar através de um pequeno orifício ou
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De maneira geral, essa inversão das imagens é o que causa o espanto em quem
manipula e observa o interior da caixa mágica. Não foi diferente com os estudantes da ELW.
Ao final da atividade, que durou todo o tempo do dia de aula, eles puderam sair da sala e
observar livremente. O que chamo aqui de espanto está necessariamente embebido de
encantamento, pois é essa a sensação que se tem diante do potencial visual e reflexivo que
uma simples caixa feita de papel pode produzir.
Além de ser um instrumento fundamental para iniciarmos um “estudo da luz” através
da observação e de outras experimentações análogas e derivadas, a construção da “caixa
mágica” é basicamente um trabalho de dobradura, corte e colagem. Contudo, trata-se de um
processo que também envolve a medição do tamanho das dobras com os dedos, de modo que
a inserção de um dedo a menos ou a mais pode provocar problemas na hora do
dimensionamento do tamanho de cada caixa. Enquanto uma mão serve de apoio, a outra faz a
dobra. Nesse dobrar, cortar e colar exercitamos a firmeza nas mãos e nos dedos, valorizando
o trabalho manual, tão necessário para o entendimento do processo de aprendizado, conforme
demonstra Ingold (2007), quando propõe aos seus alunos a construção de cestas para
experimentar a produção de cultura material a partir da consideração de variáveis como clima
e paisagem.
Como balanço, pode-se dizer que o primeiro dia de atividades foi positivo e tranquilo,
com exceção da conclusão da oficina, quando tivemos que fazer o furo com a agulha em cada
câmara para poder observar internamente. Nesse momento, os estudantes literalmente
“avançaram” e nós tivemos que atender a todos mantendo o controle.
Contudo, a maioria seguiu passo a passo as instruções demonstradas e conseguiu
construir a câmara sem tantos problemas. Alguns poucos colocaram um dedo a mais ou a
menos na hora de dobrar a folha e, ao final, as caixas ficaram praticamente do mesmo
tamanho ou, em outros casos, uma ficou muito maior do que a outra, de forma que facilitou a
entrada de luz. Entretanto, estamos lhe dando com situações perfeitamente normais, sempre
presentes em um tipo de técnica artesanal cujo motor do aprimoramento é sempre a relação
ensaio-erro.
A oficina foi concluída por volta das 14:30, exatamente o horário correspondente à
saída dos estudantes. Todos estavam livres para levar suas câmeras para casa e assim o
fizeram, exceto alguns poucos que optaram por deixar no armário da sala. Minha expectativa
era que eles mostrassem as câmeras para as pessoas com as quais residiam, assim como para
os amigos mais próximos.
com a ajuda de uma lente”. (OLHOS DE VER BELÉM, 2009: 8)
8
Seguimos para casa um pouco exaustos depois da primeira jornada da oficina. Não
obstante, pude trocar impressões com Ionaldo e Deylane acerca do comportamento e da
recepção da turma ao trabalho com a fotografia pinhole. Naturalmente, um aspecto
diferencial era a quantidade de participantes para um número reduzido de “oficineiros”.
Somado a isso estava a ansiedade característica da faixa etária dos estudantes, o que gerava
agitação e nos pedia autocontrole.
Voltando para casa, o tempo de descanso era mínimo, pois tinha que organizar o
material para o dia seguinte, tarefa que tínhamos deixado pendente. Como mencionei
anteriormente, devido ao tempo reduzido, as câmeras pinlux tinham que estar quase prontas,
esperando somente os ajustes finais, que, neste caso, consistia em retirar a “gaveta” onde
ficariam os fósforos, sendo que neste lugar estaria a janela por onde o filme fotográfico novo
iria passar (por trás) em direção à bobina vazia, onde ele seria colado. Além disso, era tarefa
nossa revestir metade das bobinas e metade da caixinha de cada lado com fita isolante, depois
com o elástico preto e, fechando o ciclo, novamente passar as derradeiras tiras de fita
isolante. Para concluir, restava mostrar o funcionamento do conversor, que serve para girar o
filme cheio em direção ao vazio e, por fim, fazer o furo, neste caso com agulha de
acupuntura. Tudo isso foi feito e teria sido feito com cada participante dispondo da sua
câmera se não fosse eu ter pensado que a atividade seria levada a cabo em dupla.
Quando a oficina pinlux iniciou, aproximadamente às 11h30 do dia 10 de Novembro,
o Ionaldo abriu os trabalhos mostrando àqueles que ainda não conheciam, um rolo de filme
fotográfico, explicando sobre o sistema de produção de imagens da câmera que estávamos
prestes a finalizar a construção. Na sequência, antes de organizarmos as cadeiras em círculo
para manipular as câmeras, perguntei para ele – somente para me certificar – se faríamos este
primeiro contato com a pinlux em duplas. Para meu espanto, ele disse que não. Cada um
deveria ter sua câmera. Dispor das câmeras semi-prontas não era o problema. O “nó” era com
os obturadores, eles ainda não estavam colados às câmeras. De imediato, minha sensação foi
de desapontamento, comigo mesmo. A expressão dele parecia compartilhar do mesmo
sentimento. Contudo, sabíamos que a oficina teria que prosseguir, mesmo diante deste
imprevisto.
A oficina transcorreu conforme os recursos que tínhamos no momento. Organizamos
os estudantes em duplas e o trabalho foi iniciado. Formamos três grupos, de modo que cada
um de nós pudesse estar em um deles, atuando como facilitador. No meu grupo, senti as
vantagens e as desvantagens de o trabalho estar sendo desenvolvido em duplas. O ponto
positivo foi que instigou os estudantes a auxiliar uns aos outros, ao passo que em dinâmicas
9
dessa natureza uns querem dominar e o respectivo par que não reivindica a participação acaba
sendo gradativamente excluído, mesmo com a intervenção de quem está dirigindo a oficina.
Durante a oficina, uma estudante chamada Nara7 - uma interlocutora importante, não
obstante o esfriamento de nossa relação ao longo da pesquisa - teve um desentendimento com
uma colega e optou por não participar da oficina. Contudo, ela permaneceu circulando pela
sala no decorrer do trabalho, manifestando interesses repentinos em determinadas etapas.
Nesta oficina, tivemos outros atropelos além destes que já foram expostos. Todos
relacionados aos aspectos técnicos de funcionamento da câmera como, por exemplo, o
sentido do giro do conversor que movimenta o rolo da bobina cheia. Estes atropelos não
foram gerados somente pelos estudantes, mas também por mim, que, por falta de
conhecimento sobre determinados mecanismos, passei orientações erradas para os estudantes
que estavam na minha mesa. À isso, somava-se os defeitos no funcionamento de algumas
câmeras, os quais tínhamos que, com calma, realizar o reparo. Novamente, roguei em busca
de paciência.
Antes da conclusão e com a maioria das câmeras prontas, decidimos que iríamos nos
encontrar no dia seguinte, pois naquele dia não seria mais possível realizar o ensaio
fotográfico, que preliminarmente iria ser realizado dentro da escola. Este ensaio iria ser
realizado novamente em dupla, com vistas à troca de experiências diante do primeiro contato
com uma câmera pinhole. O objetivo deste momento seria aprender a manipular a câmera e
exercitar a observação da luz e o tempo de exposição para captação das primeiras imagens.
Ao final do segundo dia de trabalho, todos estávamos tensos e mais exaustos do que
no segundo dia. Lidar com aquela quantidade de estudantes todos ansiosos para serem
atendidos diante dos problemas que surgiram foi extremamente exaustivo. O silêncio que a
ausência dos estudantes causava se não era o suficiente para proporcionar calma, servia para
percebermos mais claramente a tensão na musculatura do pescoço. Confesso que nas horas
subsequentes pensei em desistir de todas as técnicas e arranjos metodológicos que tinha
pensado para o trabalho. Entretanto, o “Senhor Tempo” em conjunto com a troca de
impressões e a conversa com meus parceiros na condução da oficina novamente servia como
um alento.
Levei algumas câmeras para casa, realizei ajustes necessários ao seu pleno
funcionamento e no dia 11 de Novembro, voltei à escola, desta vez sozinho, para realizarmos
o primeiro ensaio fotográfico. Recebi orientações do Ionaldo para desenvolver um exercício
que consistia em realizar a mesma imagem com diferentes tempos de exposição, para poder
7 Nome fictício.
10
mostrar posteriormente aos estudantes e auxiliá-los a perceber qual o melhor timing em
determinadas condições de luminosidade. O exercício foi feito e, em algumas semanas, eu
pude retornar para eles as imagens.
O retorno das imagens foi recheado de surpresas, pois muitos deles nem sequer
acreditavam que a câmera era capaz de produzir imagens. Pesa sobre isso o fato de todos eles
já terem nascido na assim chamada era digital, na qual o recrudescimento das câmeras,
especialmente as acopladas em celulares, cujo acesso é mais facilitado a eles, dão o tom de
como se vivencia a fotografia, de tal forma que eu suponho que a maioria conhecia a
captação de imagens não como processo, mas como algo instantâneo e somente a partir dos
novos aparelhos digitais.
Após o retorno das imagens, onde discutimos exclusivamente questões técnicas
relacionadas ao uso da câmera, marcamos o dia 05 de Dezembro para a entrega das câmeras
individuais. Neste dia, todos ganharam a sua câmera e foi combinado que o tema do ensaio
fotográfico com as câmeras individuais seria “o que eu mais gosto entre as coisas que existem
próximas à minha casa”. Com este tema, eles estariam “livres” para fotografar tudo que
chamasse a atenção e que eles considerassem como paisagem circundante às suas residências.
Através deste tema, minha intenção era capturar a relação afetiva que os estudantes vem
desenvolvendo com as paisagens humanas e não humanas do Parque que, como já frisei
anteriormente, se confunde com o terreno e o quintal da moradia de boa parte deles.
Por conta de viagens e outros compromissos, só consegui pegar os primeiros filmes
dos ensaios individuais no período que alguns estudantes estavam no período da recuperação,
já em Janeiro de 2012. O primeiro a me devolver foi o Jonathan e foi com ele que desenvolvi
um diálogo mais profícuo.
Imagens do patrimônio e saberes ambientais: uma introdução
Jonathan tinha 13 anos na época do ensaio e desenvolveu um gosto por fotografar e
uma habilidade interessante ao manipular a câmera pinhole. Ao conversarmos sobre a
imagem que mais chamou a sua atenção no primeiro resultado do ensaio individual, ele
relatou que tratava-se de um lugar que para ele é especial: o quintal de sua tia que, naquele
momento, já tinha sido dado à sua mãe e passou a ser propriedade e morada da família.
Na imagem visualiza-se uma árvore que ele identifica como um limoeiro. A
exposição feita de baixo, parece se tratar de uma espécie de grande porte. A imagem foi
capturada às quatro horas da tarde. Para ele, o que chama a atenção na imagem é a
sobreposição, algo característico das fotografias pinhole, pois no momento da conversão nem
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sempre temos a habilidade de realizar um giro perfeito. Segundo o Jonathan, a imagem que
está sobreposta – ou justaposta dependendo do ângulo de observação – é a mesmo limoeiro.
Os raios de luz que descem do céu também o encantam, parecendo fios coloridos que
perfazem o mistério desse formato de produção de imagens.
Jonathan Luis. Dez. 2011
Em outro diálogo, Jonathan disse ter ficado satisfeito por ter participado das oficinas e
mencionou o fato de nunca ter feito um trabalho parecido em nenhum colégio que estivesse
estudado. Disse que sua mãe teve acesso às fotografias e que pediu as fotos reveladas. Se ela
fosse estudante, gostaria de ganhar uma câmera também. Sobre a próxima fotografia,
Jonathan escolheu o lugar por se tratar de uma sombra, pois do contrário poderia sofrer um
processo alérgico.
Perguntei acerca do cachorro que aparece na imagem, “por que tirou foto dele?”. Aos
risos, ele confessou que “acha bacana tirar foto de cachorro”. Jonathan possui o cão há três
anos e considera-o como um amigo. Falou que gosta de brincar mais no quintal de casa do
que dentro de casa por conta do espaço. Ele costuma receber os amigos no quintal da sua casa
para jogar bola. Ao final da nossa conversa, perguntei se ele não queria que eu ampliasse
mais alguma foto para ele, sem pensar duas vezes, perguntou se se escolhesse a foto da
cachorra, a imagem dela iria aparecer. Respondi que sim, mas iria sair mais ampliada. “Eu
quero uma da minha “cachorra”.
Jonathan Luis. Dez. 2011
Referências
INGOLD, Tim, LUCAS, Ray. The 4 A’S (Anthropology, Archaelogy, Art and Architeture): reflections on a teaching and learning experience. In: HARRIS, Marvin ways of knowing. New approaches in the anthropology of experience and learning. Oxford: Berghahan, 2007. P. 287-305
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SALES, Breno Augusto Garcia; SILVA FILHO, Ionaldo Rodrigues da; ASSIS, Eneida Corrêa de. “Pelo furo da agulha”: a fotografia artesanal como ferramenta para o exercício do “estranhamento” no ensino da Antropologia. Trabalho apresentado na Reunião Brasileira de Antropologia, 26ª, 01-04 Jun. 2008. Oficina “Experiências bem sucedidas de ensino de Antropologia”. Porto Seguro, 7p.