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IMAGENS DO RACISMO AFRODESCENDENTE REPRESENTADO NAS
CHARGES DO CARTUNISTA MAURÍCIO PESTANA NAS DÉCADAS DE 1980
E1990
Edilaine Aparecida de Araujo1 Edméia Aparecida Ribeiro2
RESUMO
Este artigo apresenta reflexões da implementação do projeto de intervenção pedagógica, desenvolvido durante o Programa de Desenvolvimento Educacional do Paraná, envolvendo o uso de charges para tratar da questão do preconceito afrodescendente no Brasil. Em um contexto que a lei 10639/03 torna obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana, é necessário levar aos /às nossos /as alunos/as a reflexão e o debate sobre a questão racial no Brasil. O objetivo deste trabalho é abordar a questão racial no Brasil em relação aos afrodescendentes por meio da análise de charges de Maurício Pestana, produzidas nas décadas de 1980 e 1990 e também despertar os educadores para o uso desse recurso. O trabalho de Maurício Pestana aborda e denuncia as práticas sociais discriminatórias em relação ao afrodescendente no Brasil. Suas charges representam uma forma de refletir nossos problemas sociais, econômicos e políticos com humor e, por isso, torna-se um recurso rico para análise em sala de aula. Palavras–chave: Lei 10.639/03. Maurício Pestana. Charges. Cultura afro-brasileira. Implementação pedagógica.
ABSTRACT This article presents reflections of the implementation of the project of pedagogic intervention, developed during the Program of Education Development of Paraná, involving the use of political cartoons to treat of the subject of the prejudice afrodescendente in Brazil. In a context that the law 10639/03 turns obligatory the teaching of History and Cultura Afro. Brazilian and African, it is necessary to take to the / to our / the students / the the reflection and the debate on racial subject in Brazil. The objective of this work is to approach the racial subject in Brazil in relation to the afrodescendentes through the analysis of political cartoons of Maurício Pestana, produced in the decades of 1980 and 1990 and also to wake up the
1 Graduada em História pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), Pós graduada “Latu Sensu” na Universidade do Norte do Paraná (UNOPAR) em Administração, Supervisão e Orientação Educacional e professora da rede estadual do Paraná (PR).
2 Graduada pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), Mestrado e Doutorado pela UNESP/ASSIS e professora do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina (UEL).
3
educators for the use of that resource. Maurício Lash's work approaches and it denounces the discriminatory social practices in relation to the afrodescendente in Brazil. Their political cartoons represent a form of reflecting our problems social, economical and political with humor and for that he/she becomes a rich resource for analysis in classroom. Keywords: Law 10.639/03. Maurício Pestana. Political cartoons. Afro-Brazilian culture. Pedagogic implementation
INTRODUÇÃO
No Brasil, as desigualdades entre negros (as) e brancos (as), por muito
tempo, foram pensadas a partir de um recorte social, ou seja, bastava romper com a
desigualdade social capitalista para que as diferenças sócio-econômicas fossem
diminuídas consideravelmente. Outro aspecto muito popular estava relacionado à
falta de interesse individual da população negra. Dentro dessa linha de pensamento,
as idéias sobre o mito democracia racial no Brasil compilado na tradicional obra de
Gilberto Freire “Casa Grande e Senzala” foram muito divulgadas e são defendidas
por grupos sociais até os dias de hoje.
A partir da década de 70, essas concepções passaram a ser questionadas
por pesquisadores que analisam os processos históricos da desigualdade social no
Brasil e destacaram que além dos fatores sócio-econômicos, os aspectos cor e raça
são potencializadores da desigualdade de acessos e oportunidades, pois o racismo,
o preconceito e a discriminação contribuem para a desvalorização da população
afrodescendente brasileira.
Nesse sentido, na área educacional, ações foram pensadas na perspectiva
de projetos de lei para que pudesse haver uma reflexão acerca do tema e assim, a
partir do reconhecimento das desigualdades raciais na sociedade brasileira, a
necessidade de atuar positivamente nessa questão, com o objetivo de proporcionar
a essa população afro-brasileira uma reparação dos danos causados historicamente,
possibilitando o acesso a uma educação mais democrática. É nesse cenário que a
Lei 10.639/03 surge, pautada numa política de ação afirmativa em resposta a essas
questões e fruto também da luta do movimento negro que cresceu e se fortaleceu
nas últimas décadas.
4
Para que essas políticas de ações afirmativas fossem elaboradas, alguns
estudos sobre a discriminação racial nas escolas foram considerados como o de
Hélio Silva Junior (2002) que destaca em sua obra resultados de pesquisas e
estatísticas que comprovam que a discriminação já aparece na ponta inicial do
processo educacional brasileiro, uma vez que a trajetória de escolaridade aparece
muito diferenciada por raça e cor, desde o acesso, passando pela permanência e a
finalização da vida escolar, o que no futuro pode definir a capacidade de
competitividade no mercado de trabalho.
Ainda de acordo com Hélio Silva Júnior (2002), políticas de promoção da
igualdade racial aparecem como alternativa para diminuir as taxas de desigualdades
entre negros e brancos, atacando a discriminação, a fim de construir novos valores,
e contribuir para a valorização da diversidade e da construção de um senso de
respeito recíproco entre os grupos que compõem a diversidade cultural brasileira.
A obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira, nos níveis
de ensino fundamental e médio, nas redes municipal, estadual, federal e ensino
privado do país, faz com que essas instituições criem mecanismos de inclusão de
toda a diversidade cultural e de saberes que compõem a formação histórica social
brasileira, e promovem a valorização desses conhecimentos no espaço escolar,
contemplando de forma mais igualitária todas as matrizes culturais brasileiras.
Sabemos que a escola tem importância estratégica, no combate ao racismo
e na defesa dos direitos humanos, pois podem atuar de forma efetiva no combate a
estereótipos e ao bulling racista que corroem a autoestima de crianças e jovens,
podendo minar o desempenho escolar. Ações no sentido de valorização da
identidade negra, aceitação e orgulho de sua ancestralidade se fazem necessárias
em nossas escolas como ponto de partida para o enfrentamento desse desafio.
Este artigo pretende relatar uma experiência durante a participação no
Programa de Desenvolvimento Educacional do Estado do Paraná que tem como
objetivo proporcionar aos professores da rede pública estadual subsídios teórico-
metodológicos para o desenvolvimento de ações educacionais sistematizadas, e que
resultem em redimensionamento de suas práticas pedagógicas.
O programa oportuniza o retorno à Universidade e a participação em
diversos cursos, além de disponibilizar um professor da instituição para acompanhar
na elaboração do projeto de intervenção pedagógica que deve ser aplicado na
5
escola e, dessa forma, tem-se o acesso a uma formação continuada de grande valia.
O programa oportunizou um embasamento teórico sobre a questão do racismo
afrodescendente no Brasil e escrever um projeto de intervenção pedagógica que
pudesse colaborar para reflexões e ações no sentido de dar aplicabilidade à lei
10.639/03.
O tema foi escolhido pelo fato de a questão racial não ser tematizada na
escola. Ela não aparece como prioritária, mesmo nas escolas que apresentam um
amplo repertório de preconceito e discriminação em relação aos alunos
afrodescendentes. O que pode ser observado é que se têm abordado as diferenças
raciais de forma circunstancial, como por exemplo, no Dia da Consciência Negra.
Tais questões são tratadas por Miriam Abramovay e Mary Garcia Castro. Os
dados da pesquisa e suas reflexões nos fazem repensar as relações e interações
raciais na escola e, portanto, a importância de uma intervenção pedagógica mais
efetiva nas práticas consideradas racistas na escola que, na maioria das vezes,
aparece de maneira sutil a partir de um discurso de harmonia nas relações étnico-
raciais pressupondo a igualdade de direitos e oportunidades independente de cor e
etnia, discurso que perde a validade quando estatísticas demonstram outra realidade
(ABRAMOVAY; CASTRO, 2006).
Esperamos com o relato dessa experiência, colaborar para uma reflexão
crítica das relações sociais no ambiente escolar e fora dele também, bem como
promover a desconstrução de ideias que levam à discriminação racial a partir de
questionamentos de atitudes diárias que temos em relação ao outro.
Para isso, escolhemos o material do publicitário, cartunista, escritor e
roteirista Maurício Pestana. Sua extensa obra tem se destacado, principalmente,
pela luta em favor dos direitos humanos e da cidadania plena das minorias
brasileiras, feito que lhe concedeu reconhecimento internacional.3 Suas charges
foram a fonte escolhida para o desenvolvimento desse trabalho, pois elas tratam da
especificidade do universo do negro no Brasil, denunciando o preconceito racial
velado, característico de nosso país.
SOBRE A QUESTÃO RACIAL... E O ENSINO...
3www.mauriciopestana.com.br
6
Em um contexto em que a Lei 10.639 torna obrigatório o ensino de História e
Cultura Afro-brasileira e Africana, torna-se de fundamental importância
aprofundarmo-nos nessa temática, considerando que é preciso levar nossos alunos
e nossas alunas à reflexão e ao debate sobre a História do afro-descendente em
nosso país. Para isso, faz-se necessário destacar a importância da História da África
por meio do conhecimento e a valorização da trajetória dos/das afrodescendentes,
bem como resgatar uma imagem positiva e a relevância da luta pelos seus direitos
como cidadão brasileiro.
Segundo as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações étnico-raciais deve-se implantar uma nova visão nas práticas pedagógicas
nas escolas.
É importante destacar que não se trata de mudar um foco etnocêntrico marcadamente de raiz europeu por um africano, mas de ampliar o foco dos currículos escolares para a diversidade cultural, racial, social e econômica brasileira. Nesta perspectiva cabe as escolas incluir no contexto de estudos e atividades que proporcione, diariamente, também contribuições histórico-culturais dos povos indígenas, dos descendentes de asiáticos, além das raízes africana e européia (BRASIL, 2004, p. 17).
Com a leitura dessas diretrizes, percebemos que é importante romper com a
História focada principalmente na Europa e destacar também a importância de
outros povos para a construção da nação brasileira.
Uma das questões primordiais para a discussão desse tema, é que existe
pouca ou quase nenhuma preocupação quanto à preparação de professores/as, seja
de educação infantil ou fundamental, para lidarem com conteúdos mínimos que
tratem da diversidade humana, ou do fato da primeira representação que a criança
afrodescendente tem de si mesma na escola ser a do escravo, o qual aparece como
sujeito passivo da História. Não são destacados feitos gloriosos dos seus
antepassados, ou heróis que representem essa parcela da população e a religião é
sempre tratada com preconceito. A África, quando aparece nas aulas, ainda é
colocada como um país selvagem e miserável.
O nosso desafio é contribuir para que esse quadro descrito possa mudar. O
sistema educacional deve preparar os indivíduos para a valorização da diversidade
humana: um dos maiores patrimônios da humanidade.
7
A importância do resgate da História da África é colocada por Hélio Silva
Junior em seu trabalho, no qual ele analisa as leis que defendem a igualdade e os
resultados de pesquisas que comprovam a exclusão do afro-brasileiro na escola.
A questão de incluir a História da África foi considerada como uma estratégia de recuperação dos fatos, de superação da visão eurocêntrica dos conteúdos, mas também como elemento de valorização da população, num processo que visava à autoestima por meio do conhecimento de suas origens (SILVA JUNIOR, 2002, p. 41).
A escola tem o dever histórico de reverter esse fracasso escolar tão
eminente em relação aos/as afrodescendentes. É imprescindível que haja políticas
focalizadas nesse tema, pois com uma escola mais preparada, teremos mais
qualidade, o que contribuirá mais efetivamente para a emancipação e,
consequentemente, uma maior ascensão social dos/das afrodescendentes em
nosso país. O primeiro passo para essa mudança é combater a negação do racismo
no Brasil, principalmente entre os/as educadores/as.
O debate acadêmico traz muitos enfoques e críticas em relação à Lei
10.639/03 e mesmo à forma como as Diretrizes Curriculares atreladas a essa lei foi
composta. Júnia Sales Pereira, em seu artigo: "Reconhecendo ou construindo uma
polaridade identitária? Desafios do ensino de história no imediato contexto pós-Lei nº
10.639" problematiza pressupostos e paradoxos presentes no eixo da lei e das
diretrizes correlatadas, e faz a seguinte reflexão:
Não basta introduzir conteúdos de História e Cultura afro-brasileira ou africana para a superação do eurocentrismo nas abordagens históricas. O desafio é a promoção do ensino-aprendizagem em que a história africana e a história européia, por exemplo, não sejam dicotomizadas, nem idealizadas, nem tampouco contrapostas, mas, antes, compreendidas em sua dinâmica e circularidade, com as violências e embates do passado e do presente, mas com as perspectivas relacionais requeridas em uma abordagem histórica mais substantiva (PEREIRA, 2008, p. 29).
A autora chama a atenção para os "exageros" na abordagem desse tema.
Para ela a questão deve ser compreendida com todos os seus "aportes políticos,
éticos e históricos que lhe são constitutivos." (PEREIRA, 2008, p. 29), evitando,
assim, cair na bipolarização simples, de forma radical e antipluralista e
8
transformação da docência numa prática catequética em relação a algumas
plataformas políticas do movimento negro.
Esse é um desafio que as autoras Martha Abreu e Hebe Mattos também
colocam em seu artigo em meio a essa questão: "como articular políticas de
combate ao racismo, especialmente na escola, sem tropeçar nos essencialismos
culturais?" (ABREU; MATTOS, 2008, p. 15).
Elas sugerem algumas estratégias como o estudo da história local, inserindo
nas escolas manifestações artísticas e culturais relacionadas à cultura afro-
brasileira, ligadas a grupos e associações que desenvolvam tais manifestações,
demonstrando que as mesmas estão sujeitas a transformações ao longo do tempo.
Por fim, elas terminam o texto fazendo a seguinte reflexão:
A diversidade cultural brasileira, e sua tão propagada pluriculturalidade, devem ser pensadas levando-se em consideração os intercâmbios e as trocas culturais, de forma a colocar em evidência a pluralidade da própria experiência negra no Brasil (ABREU; MATTOS, 2008, p. 17).
Faz-se necessário buscar um conhecimento histórico comprometido com a
realidade e, ao abordar o tema, fugir do abismo do relativismo absolutizado, isto é,
evitando vitimizar o enfoque em relação à História da África e das/dos afro-
brasileiros e fazer uma abordagem focando as construções e transformações dessa
História numa trajetória histórica.
A proposta deste trabalho foi a de destacar o trabalho desenvolvido pelo
publicitário, cartunista, escritor e roteirista, Maurício Pestana, nas décadas de 1980 e
1990, período escolhido por ser anterior à Constituição de 1988 que determinou,
pela primeira vez, a criminalização do racismo. O objetivo principal é analisar como o
autor, Maurício Pestana, se dirigia à problemática do racismo em seus trabalhos em
um período em que a questão não tinha todo esse enfoque político e educacional
que passa a ter a partir da aprovação da lei 10.639/03.
Na década de 1980, no âmbito mundial, destacava-se o fortalecimento das
políticas neoliberais, nos Estados Unidos e na Inglaterra, o que se tornou referência
para a maioria dos países capitalistas em todo o mundo, inclusive no Brasil, que foi
marcado pela abertura política com a Campanha das Diretas Já, a eleição e depois
morte de Tancredo Neves. Mas o que realmente começa a apontar mudanças em
9
relação à questão dos afrodescendentes, no Brasil, foi a promulgação da
Constituição de 1988.
No ano de 1988, devido ao centenário da abolição dos escravos, muitos
protestos pelo Brasil denunciavam as condições de vida dos/as afrodescendentes no
país e duas grandes reivindicações do movimento negro viraram lei: a criminalização
do racismo, como podemos ler a seguir: "XLII - a prática do racismo constitui crime
inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;" (art.5º,
Constituição Federal do Brasil, 1988); e, o reconhecimento da propriedade de terras
remanescentes de quilombolas. Assim, diz a lei; "Aos remanescentes das
comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a
propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos." (Art. 68º
das disposições constitucionais transitórias, Constituição Federal do Brasil, 1988)
(BRASIL, 1991).
Foi nesse contexto histórico, que Maurício Pestana, natural de Santo
André/SP, atualmente com 47 anos e 30 de carreira, iniciou sua carreira no início
dos anos 80, no jornal O Pasquim, como assistente de Henfil, renomado cartunista,
que o motivou a direcionar seu trabalho para a área de direitos humanos. Nessa
época, também atuou como chargista político do Diário do Grande ABC.
Desenvolveu trabalhos em outros veículos de comunicação como jornais do bairro e
em boletins do movimento negro (PESTANA, 2011).
Maurício Pestana destacou-se como cartunista no Brasil, tendo como seu
primeiro trabalho de repercussão nacional a cartilha "O negro no mercado de
trabalho", publicado em 1986 com a edição do Conselho Estadual do Negro de São
Paulo/SP. A partir de então, escreve cartilhas e livros que abordam a questão racial
sempre a serviço de governos, sindicatos, movimentos e organizações não
governamentais, assim como promove exposições, workshops, oficinas e assessoria
educacional. Atualmente, preside o Conselho Editorial da Revista Raça Brasil
(PESTANA, 2011).
O ensino de História do Brasil, nas décadas de 1980 e 1990, período que
estamos analisando, pautou-se na formação de uma identidade nacional no ideário
da mistura de raças, construção elaborada e amplamente divulgada nos livros
didáticos, onde o Brasil era considerado harmônico e sem contradições. O precursor
dessa perspectiva conceitual clássica foi Gilberto Freire em sua obra "Casa Grande
10
e Senzala", onde defendeu a ideia de que no Brasil existe uma "democracia racial"
e, por isso, a convivência social se dá de maneira tranquila e pacífica.4
Anos mais tarde, com a influência marxista, começaram a surgir novos
debates sobre a escravidão no Brasil, propondo uma perspectiva revisionista sobre o
tema. Seus principais autores são da Escola Sociológica Paulista e passaram a
abordar assuntos como violência da escravidão, o escravo como "coisa" e as formas
de resistência dos escravos, analisando sempre com um referencial econômico.5
A corrente de historiadores que discute o tema da escravidão, com
perspectivas e abordagens mais recentes, trabalha com a história social, utilizam
novas fontes e metodologia, com novos enfoques conceituais da escravidão, entre
esses autores estão Célia Marinho Azevedo, Robert Slenes, João José Reis, Flávio
dos Santos Gomes, entre outros.
Célia Marinho Azevedo em seu livro, "Onda Negra, Medo Branco”, o negro
no imaginário das elites do séc. XIX, coloca a questão de uma construção ideológica
do racismo no século XIX, a partir da disseminação da ideia de inferiorização da
maioria da população brasileira, composta por ex-escravos e seus descendentes, o
que serviu para justificar a vinda de europeus para o Brasil. A autora faz uma análise
do movimento abolicionista e seus principais integrantes e coloca que o esforço pelo
fim oficial da escravidão no Brasil não incluía a luta pelos direitos civis dos negros e
muito menos uma distribuição diferente do poder político.
A chegada da república só fortaleceu esse racismo já que seus partidários
eram árduos defensores dos imigrantes brancos e, portanto, para a maioria do povo
brasileiro, o advento da república em nada mudou sua situação social e política.
Slenes (1999), em sua obra "Na senzala uma flor", trabalhou com a temática
da família escrava, fazendo um contraponto com as versões de escritores do século
XIX que colocavam que os escravos não tinham uma relação afetiva familiar, não
criavam laços e, por isso, tinham dificuldades para se organizarem politicamente.
Nessa obra, o autor questionou o preconceito sobre a incapacidade política de
grupos subalternos e procurou desconstruir a visão dos viajantes que escreveram
sobre a vida cotidiana dos escravos na região sudeste do Brasil. Além disso,
destacou quais eram de fato as preocupações e desejos dos africanos, vivendo em
4 Conforme discussões apresentadas na aula ministrada pelo professor Wander de Lara Proença, ao Curso Específico de História para professores e professoras do PDE, em 2011.
5 Idem.
11
condições de privação de liberdade, como podemos entender melhor nesse trecho
de seu livro:
A família cativa, no entanto, não se reduzia a estratégias e projetos centrados em laços de parentesco. Ela expressava um mundo mais amplo que os escravos criaram a partir de suas "esperanças e recordações” ou, melhor, ela era apenas uma das instâncias culturais importantes que contribuíram na região de plantation do sudeste, para a formação de uma identidade nas senzalas, conscientemente antagônica à dos senhores e compartilhada por uma grande parte dos cativos (SLENES, 1999, p. 49).
Enfim, essa nova concepção da vida privada dos escravos, coloca-os como
seres sociais, pensantes, capazes de questionar e lutar para reverter sua situação
de cativo, pois a família poderia ser vista como um centro de um projeto de vida.
Já na obra "Quase-cidadão", organizada por Olívia Maria Gomes da Cunha
e Flávio dos Santos Gomes, é possível encontrar vários debates de autores sobre as
experiências de liberdade no pós-abolição e questionamentos sobre as sutilezas
utilizadas para concretizar uma distribuição desigual de poder numa sociedade pós-
escravista. Os autores focaram nos embates pela ordem legal que concedeu a
liberdade e a possibilidade de acesso à cidadania aos ex-escravos.
Em seus estudos, fazem uma reflexão sobre as experiências e seus
impactos numa discussão mais ampla sobre os modelos de cidadania e igualdade
no Brasil pós-emancipação que podem ser analisados nesse trecho do livro:
A liberdade não foi restaurada; ao contrário, foi inventada e experimentada por aqueles que não a conheciam. Por isso, o território da liberdade é pantanoso e muitos dos sinais que sacralizaram a subordinação e a sujeição tornaram-se parte de um ambíguo terreno no qual ex-escravos e "livres de cor "tornaram-se cidadãos em estado contingente: quase-cidadãos. O que fazer com as marcas físicas e simbólicas desse passado, inalteráveis mesmo diante de operações jurídicas, institucionais e simbólicas diversas? (CUNHA; GOMES, 2007, p. 13).
Diante da relevância dessa discussão historiográfica, a importância da
aplicação desse projeto numa comunidade escolar, que é formada, em sua maioria,
por afrodescendentes, é muito importante. Constatamos, no dia a dia, muitos casos
de bulling em relação à diferença racial, como apelidos e piadinhas, contribuindo
para um desestímulo pelos estudos; levando a faltas injustificadas dos alunos e até
a evasão escolar. Essa realidade causa muita preocupação para nós, profissionais
da educação. Esta proposta de trabalho vem de encontro com essa demanda, pois é
12
uma oportunidade de reflexão sobre a influência de uma ideologia de
embranquecimento que marcou e ainda marca a personalidade de muitos
afrodescendentes, principalmente devido à maneira que a História desses sujeitos
foi tratada na escola, sempre na perspectiva dos brancos.
Outra questão importante é o preconceito silenciado característico da nossa
sociedade. Tem-se consciência do racismo, porém é considerado como um
problema do outro ou simplesmente nega-se, por isso este trabalho torna-se mais
difícil. É comum e parece politicamente correto referir-se ao/a afrodescendente como
moreno/a, muitas vezes o preconceito aparece em meio a frases educadas o que
alimenta ainda mais o mito do brasileiro de vivermos em harmonia e aceitação das
singularidades sem conflitos de interesses.
Concebe-se como necessário o reencontro da ciência com o senso comum, para que seja possível compreender melhor o mundo e seus problemas étnicos, sexuais, religiosos, as diferentes formas de relações desiguais, entre outros (BITTENCOURT, 2004, p. 191).
A passagem acima nos deixa clara a importância de uma nova abordagem
no ensino de História na educação básica, pois nos aponta a necessidade da
aproximação do senso comum com o conhecimento científico e, para isso, é
imprescindível a valorização dos conhecimentos prévios dos/das alunos/as, partindo
sempre de sua vivência.
O conhecimento que se processa fora da escola deve ser valorizado no
momento da construção do conhecimento histórico. É necessário propor questões a
partir da própria experiência social do/a aluno/a para que o processo de
aprendizagem seja diferenciado, com procedimentos metodológicos específicos e,
para isso, é primordial problematizar e ampliar o objeto de estudo com uma
diversidade de fontes.
Lana Mara de Castro Simam (2004), em seu artigo publicado no livro Ensino
de História e Educação destaca a importância dos/as alunos/as buscarem
evidências, objetos que atuam como "mediadores do processo de conhecimento e
raciocínios históricos." (SIMAM, 2004, p. 84). Para ela quando os/as alunos/as
estabelecem relações dos conhecimentos e objetos do presente e vão fazendo
conexões com outros tempos, a História começa a ganhar sentido e conhecimentos
do cotidiano ajudam na aquisição e ressignificação de novos conhecimentos, o que
13
a autora denomina de zona do desenvolvimento proximal. Para que esse processo
se concretize, o papel da ação mediadora do professor é essencial para que o
ensino de História realmente cumpra seu papel de formar sujeitos críticos, sensíveis
e comprometidos com as questões do seu tempo.
Flávia Heloísa Caimi, em seu artigo, fez sua contribuição para as questões
sobre o ensino de História, colocou que a lógica histórica é provisória, por isso não
há verdade absoluta, ela parte de análises de documentos (evidências) que podem
ter diversas interpretações em tempos diferentes, por isso a necessidade de que os
conteúdos sejam significativos e o método investigativo. Podemos compreender
melhor nesse trecho de seu artigo:
[...] o ensino de História deve ter parte de suas preocupações a administração das recordações, relatos e transmissões do passado, auxiliando os alunos a desenvolverem habilidades de pensamento e instrumentos para evitar as naturalizações do passado e a mera recepção das tradições herdadas. Enfim, existe hoje uma compreensão consensual de que o ensino de História é um instrumento para emancipação individual e social da população, razão pela qual requer uma metodologia que ofereça aos alunos os instrumentos de conhecimento precisos para enfrentar seu presente e seu futuro. Uma metodologia de trabalho que prepara para reflexão, para a análise, para a dúvida e para a valorização dos argumentos (CAIMI, 2009, p. 73-74).
A proposta das Diretrizes Curriculares de História do Estado do Paraná vem
de encontro com o pensamento desses autores, pois apresentam como referenciais
teóricos algumas contribuições das correntes da Nova História Cultural e da Nova
Esquerda Inglesa e propõe que o processo de construção do conhecimento histórico
seja feito mediante problematizações, com análises de diversas fontes para a busca
de respostas para as indagações e, desta maneira, o hábito de problematizar possa
contribuir de maneira definitiva para a formação da consciência histórica.
CHARGES E ENSINO DE HISTÓRIA
A proposta da implementação pedagógica que será relatada neste artigo é
um trabalho com imagens, especificamente com charges que o autor Maurício
Pestana produziu sobre a questão do preconceito ao afrodescendente no Brasil nas
décadas de 1980 e 1990. O trabalho com imagens como fonte histórica deve ser
feito com muito cuidado, com a devida apreciação crítica.
14
Segundo Peter Burke, ao utilizar imagens, o historiador deve analisá-las de
acordo com o contexto em que foram produzidas, as possibilidades de idealização,
de estereótipos com exageros de alguns traços da realidade e outros que podem ter
sido omitidos. A imagem pode ser importante instrumento para a formulação do
conhecimento histórico, a partir do momento em que passamos a olhá-la como uma
fonte rica de conceitos e interpretações, fruto da criação humana e cheia de
significados; "Para utilizar a evidência de imagens de forma segura, e de modo
eficaz, é necessário, como no caso de outros tipos de fonte, estar consciente das
suas fragilidades." (BURKE, 2004, p. 18).
Para Alberto Mangel, imagens representam nossa consciência instantânea,
pois o código que nos habilita a ler uma imagem é impregnado por nossos
conhecimentos anteriores:
[...] uma pintura em cada elemento é um código, um sistema de sinais criado com o propósito declarado de ser traduzido, uma charada para o espectador deslindar. Talvez todas as pinturas sejam, em certo sentido um enigma; talvez todas as pinturas permitam supor a proposição de uma pergunta relativa ao tema, a lição, ao enredo e ao significado (MANGUEL, 2001, p. 83).
As imagens são articuladas com o universo social em que estiveram
inseridas quando produzidas e ao mesmo tempo falam por si, o papel do historiador
é indagar o que elas nos dizem a respeito do seu tempo e a finalidade com que
foram criadas.
[...] a leitura da imagem, enriquecida pelo esforço da análise, pode se tornar um momento privilegiado para o exercício de um espírito crítico que, consciente da história da representação visual na qual ela se inscreve, assim como de sua relatividade, poderá dela tirar a energia de uma interpretação criativa (JOLY, 2004, p. 136).
Deve-se considerar, ao lermos uma imagem, que existe toda uma rede de
significações de acordo com as nossas experiências individuais. As imagens podem
ser usadas para denunciar, seduzir, chamar atenção para um fato e podem propor
conceitos que geram preconceitos, por isso a necessidade de toda uma apreciação
crítica ao trabalhar com esse tipo de fonte.
Aqui se faz necessário também, uma reflexão sobre o uso de charges,
caricaturas e cartuns especificamente como fontes históricas, já que esse será
15
nosso objeto de estudo. Alberto Gawryszewski, em seu artigo: 'Ilustradores da
revista O Cruzeiro', coloca a diferença entre caricatura, charge e cartum, destaca
que a base da caricatura e da charge é o humor, com a diferença que a charge tem
um aspecto crítico definido, como podemos observar nessa passagem:
Há uma diferença conceitual entre caricatura, mais voltado para traços corporais do caricaturado, charge, mais voltada para crítica a um fato específico e, por fim cartum, este com uma linguagem artística universal. A charge e a caricatura possuem limites temporais e espaciais, já o cartum, não (GAWRYSZEWSKI, 2009, p. 36).
Essas fontes são recursos que podem ser usados para compreender melhor
a nossa História, pois representam uma forma de refletir sobre nossos problemas
sociais, econômicos e políticos com humor, mas ao mesmo tempo está impregnado
de recados ou mensagens significativas. Entretanto, é necessário que o leitor tenha
conhecimento prévio do assunto abordado, caso contrário o objetivo do autor corre o
risco de não ser alcançado.
O autor define melhor essa ideia em outra passagem no artigo: "Conceito de
caricatura: não tem graça nenhuma", publicado na revista Domínios da Imagem do
Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina:
A charge e a caricatura políticas podem causar o riso, por possuírem uma carga de humor, podem divertir, mas não podemos esquecer de que podem causar também ao interprete um estranhamento, pois podem despertar sua consciência, dar uma visão do político ou da situação que desconhecia, isto é, desvendar, desnudar uma realidade que talvez não quisesse ver ou conhecer. Portanto, a charge e a caricatura políticas possuem um grau de ambiguidade, uma carga emocional que a caricatura comum, a charge comum, a de costumes de humor não contêm (GAWRYSZEWSKI, 2008, p. 16).
Para Gawryszewski (2008), as charges são carregadas de significados
políticos e possuem todo um objetivo educacional e ideológico, englobam
preocupações sociais e políticas do autor que deve ser um profissional engajado em
uma causa. A charge é política, nunca neutra, ela toma partido e potencializa seu
humor e sua crítica, mas nem sempre o riso é o objetivo do autor/a e muitas vezes
tem a agressividade como essência.
A imagem é uma linguagem que circula muito nas mídias, sendo capaz de
formar opinião e influenciar decisões políticas importantes no país. Acreditamos que
esse recurso, no caso a charge, possa ser mais explorado em nossas aulas, por
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apresentar um humor crítico, provocando um riso que pode expressar alegria ou
triunfo maldoso, agressivo e sarcástico.Tanto serve para afirmar, subverter ou refletir
sobre política nacional quanto fatos do cotidiano.
Muitas vezes, o riso pode servir para mascarar uma intenção ideológica,
mas pode tratar de questões que levem o leitor a uma visão mais crítica de sua
realidade. Assim, percebe-se que a “a ideia de caricatura, assim como a piada, não
é inocente, e sempre está em jogo uma relação política.” (ALBERTI, 2011, p. 19).
Interpretar signos visuais, com suas especificidades, tornou-se uma
necessidade, pois vivemos em uma era de imagens que nos chegam de forma cada
vez mais rápida por meio das mídias. É muito importante analisarmos essas
mensagens, em forma de imagem, com nossos alunos, pois são cheias de
significados e tem forte influência na formação de opiniões.
As denúncias de estereótipos usados pelos cartunistas, no nosso caso,
Maurício Pestana, podem ser usadas para a reflexão da realidade sócioeconômica
do afrodescendente no Brasil, pois ajuda-nos a descobrir que o sorriso irônico em
relação ao outro pode ser também ser um sorriso irônico sobre nós mesmos, quando
conseguimos nos enxergar em atitudes do dia a dia, que são preconceituosas, mas
mascaradas pela piada e pelo riso, tornam-se “aceitáveis” pelo outro, podemos
iniciar uma reflexão mais aprofundada sobre questões que estão inseridas na nossa
sociedade desde o início da colonização.
No caso específico, o trabalho foi direcionado às charges publicadas por
Maurício Pestana, nos anos 80 e 90, compiladas em seu livro “Racista, eu? De jeito
nenhum.” A Charge foi escolhida como fonte, pois vem ocupando um espaço cada
vez mais significativo nas mídias, ela dialoga com outros textos verbais e sua
compreensão obriga o leitor a realizar associações e muitas vezes buscar
informações a respeito do assunto.
As charges de Maurício Pestana têm um sentido político, pois coloca de
forma clara e sem hipocrisia a questão do racismo no Brasil, um país que não
admite claramente que tem preconceito em relação ao negro, mas é revelado nos
pequenos detalhes e nas sutilezas dos relacionamentos sociais.
Sobre a utilização da charge no ensino de história, podemos partir da ideia
de que o conhecimento histórico escolar compreende a soma de vários
conhecimentos: o acadêmico, o popular e as vivências do cotidiano do aluno. Para
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desenvolvermos o conhecimento histórico é necessário analisarmos como se
desenvolve a consciência histórica humana. Circe Bittencourt (2004, p. 27) faz a
seguinte colocação sobre o ensino de História:
O ensino de Historia pode possibilitar ao aluno ‘reconhecer a existência da historia crítica e da historia interiorizada’ e ‘a viver conscientemente as especificidades de cada uma delas’. O estudo de sociedades de outros tempos e lugares pode possibilitar a constituição da própria identidade coletiva na qual o cidadão comum está inserido, à medida que introduz o conhecimento sobre a dimensão do ‘outro’, de uma ‘outra sociedade’, ‘outros valores e mitos’, de diferentes momentos históricos. Identidade e diferença se complementam para a compreensão do que é ser cidadão e suas reais possibilidades de ação política e de autonomia intelectual no mundo da globalização, em sua capacidade de manter e gerar diferenças econômicas, sociais e culturais como as do nosso país. E, nessa perspectiva é preciso considerar o papel do professor na configuração do currículo real, ou interativo, que acontece na sala de aula, lembrando que ele é sujeito fundamental na transformação ou na continuidade do ensino da Historia (BITTENCOURT, 2004, p. 27).
O ensino de História visa contribuir para a formação de um ‘cidadão crítico’
diante da sociedade em que vive. Ao estudar as sociedades passadas, a História
contribui para que o aluno compreenda o tempo passado, e perceba que é membro
da sua sociedade, capaz de contribuir para uma sociedade mais justa. As charges
podem ser um dos recursos, em sala de aula, contribuindo para a reflexão de
nossos alunos de questões relevantes para a nossa sociedade.
TEORIA ALADA À PRÁTICA
Na prática pedagógica, na disciplina de História, as charges tornam-se um
recurso atrativo para os alunos pelo caráter risível desta ilustração, contribuindo,
assim, para a construção do conhecimento histórico. Sendo assim, optamos pelo
uso das charges de Maurício Pestana, por promoverem uma reflexão sobre a
situação do afrodescendente no Brasil em relação à discriminação social, econômica
e política, ainda que seja de maneira velada.
Escolhemos um nono ano, período matutino do Colégio Estadual Teothônio
Brandão Vilela, local em que atuo como professora há quinze anos. A série foi
escolhida devido ao conteúdo estar de acordo com o DCE do Paraná. A turma,
muito numerosa, com cerca de 40 alunos, foi muito receptiva ao ser informada do
trabalho que iria ser desenvolvido com ela.
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No primeiro momento, foi pedido para que a turma trouxesse recortes,
figuras de pessoas que gostariam de levar para uma ilha deserta. Recolhemos as
imagens e colamos para expor aos alunos. Pedi para que descrevessem as pessoas
escolhidas, eram na sua maioria brancas, só apareceram dois negros no cartaz.
Esse foi o início de nossa reflexão sobre a questão do racismo afrodescendente no
Brasil, pois os alunos foram questionados em relação as suas escolhas.
Nas próximas aulas, trabalhamos com textos informativos e de opinião sobre
a questão do racismo na sociedade brasileira em todos os níveis sociais, inclusive
com a temática da “democracia racial”, tão utilizada até hoje nos discursos oficiais
ou no nosso dia a dia. No início, a reação da turma foi de negação, para trabalhar
com isso foi pedido para que analisassem pesquisas do IBGE que trouxemos para a
sala por meio de pesquisa na internet, o que ajudou na reflexão, mas a negação
ainda continuou persistente.
Nesse momento da implementação, foi solicitado aos alunos que
escrevessem suas impressões sobre as discussões feitas durante as aulas. Muitos
alunos mostraram-se até surpresos com a constatação de que o racismo é uma
realidade que deve ser enfrentada no nosso dia a dia. O que podemos observar nos
seguintes trechos de relatos dos alunos.
“[...] dizem que no Brasil não há preconceito, não acho essa afirmação correta, pois ele aparece em uma simples piada ou no jeito que pessoas são tratadas no dia a dia [...]” Aluno A. “[...] por mais que uma pessoa diz que não é racista, sempre numa briga, piada, brincadeira, ela se revela com ofensas racistas [...]” Aluna B.
Essa discussão deu um embasamento teórico para a introdução das charges
nas aulas, e foi o próximo passo. Antes de trabalhar efetivamente com as charges,
foi solicitada aos alunos uma pesquisa biográfica do autor, Maurício Pestana.
Trouxeram informações e impressões sobre o autor e sua obra deve destacar que a
adesão ao trabalho foi de, em média oitenta por cento da classe, alguns não
participaram efetivamente das atividades de discussão e pesquisa.
Os alunos estavam ansiosos para entrarem em contato, de maneira mais
efetiva, com os trabalhos do autor. A classe foi dividida em grupos que deveriam
discutir as charges e expor suas conclusões oralmente para a turma. Nesse primeiro
momento, foi possível perceber que os alunos tiveram muitas dificuldades para
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interpretar e precisaram da interferência da professora. Para auxiliá-los, foram feitos
alguns questionamentos que os levassem à reflexão sobre a intenção do autor com
aquele trabalho. Após as discussões, produziram um texto sobre as impressões que
tiveram sobre as charges apresentadas.
Podemos analisar a impressão dos alunos a partir de alguns trechos escritos
por eles.
“O autor Maurício Pestana faz uma crítica social sobre o preconceito com os negros, denúncias sobre emprego, moradia e oportunidades que não são iguais para todos [...]” Grupo A “A charge que meu grupo pegou fala de uma família que usa o diploma para tapar o buraco do telhado, uma crítica sobre a dificuldade do negro a uma boa oportunidade de trabalho, mesmo com um diploma nas mãos [...]” Grupo B.
Observamos que, como o trabalho de análise e reflexão de imagens é
minucioso e traz também outras reflexões, muitos alunos, em um primeiro momento
tiveram a impressão de que Maurício Pestana fosse racista, pois seus trabalhos são
provocativos e parecem querer chocar as pessoas que visualizam, já com objetivo
de levar a questionamentos e discussões sobre a situação social, política e
econômica do afrodescendente no Brasil.
Após essas reflexões, os grupos foram motivados a produzirem suas
próprias charges, sendo que as dificuldades foram grandes, pois a produção de uma
charge exige criatividade e pesquisa, copiar as ideias prontas foi a primeira opção da
maioria dos grupos, que com os questionamentos, começaram a fazer uma reflexão
sobre a complexidade da construção de um texto visual, cheio de significados como
as charges. Foi preciso um trabalho de pesquisa e muitas tentativas e erros para
que os trabalhos fossem se desenvolvendo.
Essa experiência foi acompanhada pelo GTR (grupo de trabalho em rede),
onde houve uma socialização do projeto de intervenção pedagógica e uma troca de
experiências que contribuíram para o desenvolvimento do trabalho com os alunos.
Os professores compartilharam as dificuldades encontradas relacionadas à leitura
de charges e deram sugestões como a professora A:
“[...] Quando iniciei os trabalhos com o uso de charges percebi que os alunos tinham uma grande dificuldade de compreender a mensagem transmitida. Para que o aluno possa ter facilidade de compreensão de
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charges é preciso que o professor introduza esse recurso didático na sua prática pedagógica, com o uso das charges com freqüência os alunos foram tendo melhor compreensão da mensagem transmitida [...]”
Outros professores destacaram que a interdisciplinaridade contribui muito
em trabalhos como esse, acreditam que a possibilidade de compreensão do aluno
cresce quando o trabalho é interligado entre as disciplinas como podemos observar
no relato feito pela professora B:
“[...] Acredito que a superação destas dificuldades está na repetição, ou seja, na insistência em usar este material (fonte). Quanto mais contato os alunos tem com charge, mais facilidade terão em interpretá-las.Nas series iniciais é interessante, digamos inverter a ordem, ou seja, trabalhar com textos, questioná-los de como poderia ser representada a idéia do texto em desenho e, se fossemos fazer um desenho humorístico, como ficaria? E aí mostrar a charge. Esta é uma forma do aluno perceber que o desenho "fala" de maneira diferente a mesma coisa que o texto, ou gráfico, ou tabela, etc. Com o passar do tempo, os alunos conseguem ler nas entrelinhas coisas que às vezes, nós mesmos não percebemos. Porém o mais importante em tudo isso, acredito que seja o trabalho coletivo, visto que, as charges são interdisciplinares, podem ser utilizadas em qualquer disciplina, em diversos assuntos [...].”
As charges produzidas pelos alunos, durante a implementação do projeto,
podem ser consideradas uma releitura dos trabalhos de Maurício Pestana. O tema e
o autor foram explorados em sala de aula e foi a partir desse enfoque que o trabalho
foi desenvolvido. Outra questão foi a novidade, pois nunca tinham trabalhado com
análise e produção de charges de forma tão detalhada, pois na maioria das vezes as
imagens são utilizadas nas aulas apenas como uma ilustração do texto escrito,
sempre no papel de coadjuvante nunca como o ator principal.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com este trabalho, espera-se ter demonstrado que a escola é um espaço
privilegiado para desenvolver a leitura de charge, considerando que ela faz parte de
um discurso midiático muito presente na vida de nossos alunos e que, por sua vez,
pode estimulá-los a buscar novas informações para o entendimento desse discurso
e fazer reflexões sobre a sociedade em que vivem.
É importante ressaltar que a escolha do trabalho de Maurício Pestana foi
importante, pois contribuiu para a reflexão sobre o mito da democracia racial
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observada na cordialidade mascarada existente em nossa sociedade nas mais
variadas situações. E, dessa forma, abordar assuntos que se alojam no inconsciente
coletivo, rompendo assim com o silêncio ideológico do racismo.
O trabalho de Maurício Pestana aponta para a urgência de mudanças de
atitude e de comportamento da sociedade brasileira e desestabiliza o discurso liberal
da igualdade de oportunidades quando notamos que há hierarquias marcadas por
gênero e cor da pele, demonstradas inclusive por dados do IBGE.
Para Circe Bittencourt (2004, p. 75), a importância das imagens como
recurso pedagógico tem sido destacada há mais de um século por editores de livros
escolares de História. O professor não pode se manter alheio à influência que a
imagem tem na sociedade, pois corre o risco de ficar fora do processo histórico em
curso.
É importante destacar os cuidados que devemos ter no uso dessas fontes,
pois é primordial a mobilização prévia dos conhecimentos dos alunos, a descrição, a
explicação, a contextualização do documento na época, a identificação da natureza,
dos limites e os interesses vinculados a ele.
A introdução de charges nas aulas de história pode ser uma das formas que
propomos para que o/a aluno/a possa ter uma visão crítica dos conteúdos, pois
possuem uma dosagem cômica e irreverente em uma medida suficiente para
colaborar com a formação da consciência histórica de nossos/as alunos/as.
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