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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica
IMAGINÁRIO, CIBERCULTURA E CIDADANIA A interferência do fenômeno glocal interativo
na ressignificação da cidadania na contemporaneidade
Lygia Socorro Sousa Ferreira
DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
São Paulo/SP
2018
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LYGIA SOCORRO SOUSA FERREIRA
IMAGINÁRIO, CIBERCULTURA E CIDADANIA A interferência do fenômeno glocal interativo
na ressignificação da cidadania na contemporaneidade
Tese de Doutorado apresentada à Banca Examinadora, como
exigência parcial para a obtenção do título de Doutor em
Comunicação e Semiótica pelo Programa de Estudos Pós-
Graduados em Comunicação e Semiótica da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PEPGCOS/PUC-SP).
Orientador: Prof. Dr. Eugênio Rondini Trivinho
Área de Concentração: Signo e Significação nos Processos
Comunicacionais
Linha de Pesquisa: Dimensões Políticas na Comunicação
São Paulo/SP
2018
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BANCA EXAMINADORA
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__________________________________________
__________________________________________
___________________________________________
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À Nazaré Sousa, dedico esta Tese.
Foi com ela que aprendi as primeiras palavras, a dar os primeiros
passos;
Foi com ela que aprendi a escrever e a ler e aprendi o valor da educação;
Foi com ela que aprendi a ser forte, a ter garra para enfrentar as
dificuldades;
É em seu colo que sempre busco refúgio nos momentos de dificuldades;
É em seu abraço que encontro o maior significado da palavra amor;
É com ela que partilho mais essa vitória.
Obrigada, mãe! Eu te amo.
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AGRADECIMENTOS
Agradeço, primeiramente, a Deus. É Ele que sustenta as significações imaginárias que
fundamentam a minha vida: a Fé e o Amor.
A minha irmã Lourdes Ferreira pelo seu carinho, pelo seu apoio e pela sua amizade.
Alegria imensurável de nossa mãe, por ter, a partir de agora, duas filhas doutoras.
Ao meu orientador Prof. Dr. Eugênio Trivinho , por quem tenho profunda admiração,
amizade e carinho. Agradeço pelo seu incentivo, pela sua paciência e pela sua dedicação em
todo o meu percurso acadêmico iniciado em um curso e Pós-Graduação Lato Sensu na cidade
de Belém-Pará; e que, felizmente, se estendeu até o Doutorado. Sinto-me honrada em ter, como
orientador e amigo, um dos maiores pensadores da crítica da cibercultura. Sobretudo, em
tempos em que a crítica é o principal mecanismo de resistência dentro de uma sociedade
pautada na pós-verdade.
Aos professores do PEPGCOS-PUC/SP, que contribuíram sobremaneira para as
reflexões que deram ensejo a esta Tese. Principalmente, Prof. Dr. Norval Baitello, pelo seu
incentivo e a Prof. Dr. Lucrécia Ferrara pelo seu apoio e advertências necessárias para o meu
crescimento acadêmico. À querida Cida (do PEPGCOS/PUC-SP), pelo apoio necessário em
nosso caminho acadêmico junto ao COS. Aos colegas pesquisadores do CENCIB. A todos os
colegas do COS, pela acolhida amiga e pelo intercâmbio de conhecimentos.
Aos meus queridos familiares, tios e primos, pelo amor, carinho, amizade, orações e
apoio incondicional de sempre. Em especial à minha madrinha Conceição Fernandes.
Aos meus bons amigos, de Belém e São Paulo, cuja presença e apoio foram
fundamentais para a finalização deste trabalho. Destaco alguns nomes, porque estiveram ao
meu lado frequentemente ao longo desses quatro anos: Marlise Borges, Barbara Barbosa,
Márcio Wariss, Mário Tito Almeida e Leila Almeida. A eles, minha gratidão.
A coordenação da Universidade do Estado do Pará (UEPA) e da Universidade da
Amazônia; a equipe gestora da Escola Estadual Santo Afonso pela compreensão e pelo
importante incentivo para que este Trabalho fosse finalizado.
As irmãs do Pensionato Santa Marcelina pela disponibilidade e acolhida tão necessária
para que os estudos de doutoramento fossem concluídos em São Paulo.
Ao meu pai (in memorian) que se foi...foi tão rápido. Não deu para esperar que eu
crescesse. Não pôde me ver chegar aqui. Mas, no meu imaginário, está ao lado de Deus
intercedendo por mim. Por isso, quando penso nele lembro Guimarães Rosa ao dizer... “as
pessoas não morrem, ficam encantadas”.
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Se a velocidade é luz, então aparência é o que se move.
Transparências momentâneas e enganosas, dimensões do
espaço que não passam de aparições fugitivas, objetos
percebidos no instante do olhar, este olhar que é, a um só
tempo, o lugar e o olho. (VIRILIO, 2005, p.19)
7
RESUMO
A presente Tese de Doutorado tem como objeto de estudo a cidadania ressignificada – tanto no
modo de ser exercida, quanto conceitualmente – pelo fenômeno glocal interativo, em dimensão
transpolítica, no contexto social-histórico da cibercultura, entendida como configuração
material e imaginária de época, proveniente das transformações provocadas pela comunicação
tecnológica a partir da segunda metade do século XX. Nesse contexto, marcado por avanços
técnicos e científicos contínuos e pela utilização de equipamentos infotecnológicos conectados
à web, a interatividade e a velocidade logram valor absoluto, impulsionando para que cresça,
vertiginosamente, mobilizações políticas e sociais nas comunidades virtuais. As relações
estabelecidas nesses ambientes mediáticos pressupõem a produção e a articulação de um poder
descentralizado que tende, cada vez mais, a crescer ao sabor da visibilidade mediática. Assim,
o objetivo principal desta pesquisa trata-se em analisar a nova concepção do ser/fazer cidadão,
agora conformado nos ambientes em rede, atuando estrategicamente com contradições e
expansões, visibilidades e recuos, subvertendo a lógica da modernidade e emergindo como ação
imprescindível de resistência e disputa de status na sociedade dromocrática cibercultural. Por
isso, torna-se oportuno investigar quais os impactos causados pela ressignificação da cidadania
na sociedade?; e quais transformações e contribuições teóricas e práticas podem ser
proporcionadas pela ressignificação das ações cidadãs a partir das experiências nos ambientes
virtualizados? Como hipótese vislumbra-se que a cidadania ressignificada pelo fenômeno
glocal interativo colabora para o surgimento de uma nova forma de cidadania, cuja participação
imaginária em tempo real, favorece os cidadãos neonômades a se mobilizarem, via redes
sociais, em torno de questões referentes aos direitos civis, políticos e sociais a serem
diuturnamente alimentadas e executadas em contextos interativos móveis, ou fora deles, sem
que isso configure conscientemente obediência a regras do sistema dromocrático cibercultural.
A pesquisa se fundamenta nas reflexões de Bauman, Harvey, Jameson, Lyotard (pós-
modernidade); Breton (utopia da comunicação); Castoriadis (teoria do imaginário); Virilio
(sociodromologia); Trivinho (cibercultura, dromocracia cibercultural e fenômeno glocal);
Marshall e Carvalho (cidadania) e Foucault e Agamben (dispositivo e panoptismo). Tais
conceitos e tendências são articulados mediante reflexão crítica fincada na apreensão
fenomênica de processos socioculturais e históricos relacionados ao modo de ser da civilização
mediática atual, sempre na direção do questionamento sobre a condição do sujeito nessa mesma
civilização. Vale ressaltar que, este trabalho teórico, também se desenvolveu reflexivamente
analisando posts extraídos das redes sociais Facebook e Twitter, selecionados por hashtags com
temáticas que envolviam o tripé de direitos dos cidadãos. Esta pesquisa visa contribuir a crítica
da cibercultura no campo teórico e prático, a partir do entendimento de que o fenômeno glocal
interativo, em dimensão transpolítica, colabora para a ressignificação da cidadania, não
somente nos ambientes virtuais, como também na prática cotidiana.
PALAVRAS-CHAVE: comunicação; cibercultura; glocal/glocalização; interatividade;
cidadania.
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ABSTRACT
This thesis aims at studying the resignified citizenship – both in its exercise and conceptually
speaking – by means of the interactive glocal phenomenon in its transpolitical dimension in the
cyberculture, considering its social-historical context, also understood as a material and
imaginary configuration, stemming from the many transformations originated in the
technological communication sphere from the mid twentieth century on. In this context,
characterized by continuous improvement in technology and science and also by the application
of computing connected in the web, this interactivity possess absolute value, promoting a
vertiginous growth of political and social mobilizations associated with web communities. The
established relations in these media environments presuppose some level of decentralized
power internally articulated, which move towards the needs of media exposure. Hence, this
research main objective is to analyze this new concept of being/becoming a citizen, but now
framed in web environments, acting strategically in terms of contradictions and expansions,
exposure and retreat, in which there’s a subversion of modernity in the emergency as a language
of endurance and struggle for status in the dromocratic cybercultural society. Having this in
mind, it becomes advisable to investigate the impacts caused by this current resignification of
citizenship, asking what transformations and practical contributions derives from these
resignification phenomenon associated with this new model of web citizenship. As our
hypothesis we have that this resignified citizenship made by the interactive glocal phenomenon
collaborates for the rise of a new form of citizenship, whose imaginary participation, in real
time, favors neonomadic citizens to get mobilized through social media, around issues related
to civil rights that are going to be nourished in mobile interactive contexts, or outside them, not
characterizing it as a strict obedience to the rules of the cybercultural system. This research
relies on the thought of many authors: Bauman, Harvey, Jameson, Lyotard (post-modernity);
Breton (communication utopia); Castoriadis (imaginary theory); Virilio (sociodromology);
Trivinho (cyberculture, dromocracy and glocal phenomenon); Marshal and Carvalho
(citizenship); and Foucault and Agamben (dispositive and panoptism). These concepts and
trends are articulated through a critical analysis based on the phenomenical grasp of
sociocultural and historical processes related to the current media civilization layout,
emphasizing the questions concerning the subject – his/her condition – in the civilization. It is
important to highlight that this thesis has also found its development in a reflexive analysis of
posts, which were extracted from the social media (Facebook and Twitter), selected through
hashtags, and concerning issues linked to citizen rights. This research aims at contributing to a
critical approach to the cybercultural field study, based on the understanding that the glocal
interactive phenomenon, in its transpolitical dimension, collaborates to resignify citizenship not
only in the web environment, but also in daily life.
Keywords: communication; cyberculture; glocal/glocalization; interactivity; citizenship.
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LISTA DE FIGURAS
Imagem 1: MexeuComUmaMexeuComTodas.............................................................
Imagem 2: PEC 1818/15...............................................................................................
Imagem 3: #ELENÃO..................................................................................................
Imagem 4: #ELENÃO e #LOVEWINS........................................................................
Imagem 5: #NenhumDireitoAMenos...........................................................................
Imagens 6: #ESCOLASEMPARTIDO e #ESCOLASEMMORDAÇA.......................
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.............................................................................................................
PARTE I
O IMAGINÁRIO NA PÓS-MODERNIDADE E NA CIBERCULTURA...............
CAPÍTULO 1 - O IMAGINÁRIO...............................................................................
1.1. Sobre o imaginário...............................................................................................
1.2. As significações imaginárias...............................................................................
1.3. Os magmas de significações imaginárias da contemporaneidade.......................
CAPÍTULO II – AS SIGNIFICAÇÕES IMAGINÁRIAS NA PÓS-
MODERNIDADE .........................................................................................................
2.1. A emergência do imaginário pós-moderno..........................................................
2.1.1. O imaginário pós-moderno no Brasil e na América Latina.........................
2.2 O regime da velocidade no contexto pós-moderno: o nascimento da
Cibercultura.....................................................................................................................
2.2.1. Cibernética e cibercultura............................................................................
2.2.2. A dromocracia como sistema articulador da civilização mediática.............
2.2.3. Fenômeno glocal..........................................................................................
2.2.4. A gênese do glocal.......................................................................................
2.2.5. A teoria do glocal como crítica conceitual da civilização mediática...........
2.2.6. A vida glocalizada........................................................................................
2.2.7. As utopias do imaginário tecnológico: o fascínio pelas práticas glocais
interativas.........................................................................................................................
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PARTE II
CIDADANIA COMO DISPOSITIVO.........................................................................
CAPÍTULO 3 – CIDADANIA......................................................................................
3.1. A cidadania..........................................................................................................
3.1.1. Evolução conceitual da cidadania 3.1.2. A cidadania no Brasil..................
3.1.2. A cidadania no Brasil....................................................................................
CAPÍTULO 4 – CIDADANIA E DISPOSITIVO.......................................................
4.1. O dispositivo como magma das significações imaginárias.................................
4.2. Dispositivo, cidadania e a cibercultura................................................................
PARTE III
O FENÔMENO GLOCAL E A CIDADANIA GLOCALIZADA............................
CAPÍTULO 5 – O GLOCAL........................................................................................
5.1. O dispositivo glocal.............................................................................................
5.2. O dispositivo cidadania e o dispositivo glocal....................................................
CAPÍTULO 6 – A CIDADANIA GLOCAL...............................................................
6.1. Cidadania ressignificada......................................................................................
6.2. A tríade dos direitos na cidadania glocal.............................................................
CONCLUSÃO................................................................................................................
BIBLIOGRAFIA...........................................................................................................
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INTRODUÇÃO
Com o advento da pós-modernidade, inaugurou-se a era da civilização
mediática. Época histórica marcada pela presença da tecnologia em todas as dimensões da vida
humana, incluindo a esfera do trabalho até a esfera do tempo livre e de lazer. Indivíduos (jovens,
adultos, crianças), instituições (educacionais, religiosas, fundações), empresas (públicas e
privadas), Estados (desenvolvidos ou emergentes) são convidados ou pressionados a
adequarem-se às modificações sociais, culturais e imaginárias provocadas pelos media
interativos, principalmente, após terem se tornado o principal vetor de articulação da vida
humana. Nesse contexto, a cidadania, antes localizada exclusivamente no território da cidade
ou do Estado, passa a também vigorar nos ambientes virtuais. O “não-lugar” (VIRILIO, 1993b)
da rede é a “nova ágora”, o espaço de discussões de cidadãos neo-nômades (BAITELLO, 2012)
que, alojados em seus espaços de acesso, manifestam-se sobre os mais diversos assuntos,
incluindo os seus próprios direitos, fazendo com que a cidadania sofra ressignificação.
A presente Tese possui como fio condutor a teoria do imaginário de Cornelius
Castoriadis (1986), por entender que o processo de ressignificação ocorre, primeiramente, no
âmbito do imaginário social para depois se fazer presente nas práticas cotidianas. Sob essa
perspectiva, a utilização dos termos “ressignificação” e “ressignificado” pressupõem, de
imediato, algo já consolidado ou instituído socialmente. Por isso, nesta Introdução aborda-se a
história da cidadania, destacando elementos importantes, que serão aprofundados nos capítulos,
mas colaboram, antecipadamente, no entendimento da abordagem analítica do modo conceitual
e empírico pelo qual a cidadania se transforma até ressignificar-se por interferência do
fenômeno glocal.
O conceito de cidadania remete a três questionamentos basilares: [1] o que é
cidadania?; o que é ser cidadão?; e quem pode ser caracterizado como tal?. Na percepção
aristotélica, ser cidadão é possuir titularidade que garante poder público sem restrições e
permite tomar decisões visando o bem coletivo. No que toca aos critérios, Aristóteles restringe
a cidadania aos que não precisavam utilizar a força produtiva para viver, excluindo os escravos,
os estrangeiros e as mulheres que tinham funções específicas ligadas ao cuidado com os filhos
e com o lar. Opondo-se a concepção grega, a cidadania romana possuía caráter mais jurídico.
A palavra latina civis servia para diferenciar os cidadãos nativos, que possuíam direitos, dos
estrangeiros, Os direitos relativos aos cidadãos/civis estavam vinculados ao voto, ao direito de
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paz ou guerra, às eleições nas magistraturas, constituição de família, ou mesmo à propriedade
e libertação de escravos. Com o tempo, Roma expandiu os critérios de cidadania para todos os
habitantes do Império, afastando-se de vez do sentido strictu presente no termo civis, o qual
limitava os direitos do cidadão ao sangue e ao solo. (PINSKY, 2013).
Ao se desvincular de explicações naturalistas, a cidadania volta-se para a esfera
da política e, por influência de John Locke e de Jean-Jacques Rousseau, nos séculos XVII e
XVIII, passa a ser entendida como resultado de um contrato social realizado entre os cidadãos
e o Estado. Durante a modernidade, surge a ideia de jusnaturalismo entendida como condição
principal da liberdade humana, sendo um “estado de natureza”, que precede a construção da
comunidade política. Por isso, o pensamento de Locke representa um duro golpe na divisão já
consolidada entre homens livres e escravos. A Declaração Francesa de 1789, influenciada por
pensadores Iluministas, em especial Rousseau, foi fundamental para compreensão de que a
cidadania só pode ser construída por meio da liberdade e da igualdade de direitos entre os
sujeitos desde o nascimento, provocando um deslocamento no valor do sentimento de pertença
historicamente presente no significado da cidadania para a liberdade individual (BOTELHO;
SCHWARCZ, 2012), e, consequentemente, fazendo emergir a noção de que o bem estar do
indivíduo precisa se sobrepor ao bem estar coletivo. (FOUCAULT, 1972, p. 37).
Então, durante o processo de urbanização da era moderna, a cidadania atrelou-
se à luta pelos direitos civis, políticos e sociais, ganhando sentido por meio dos movimentos
sociais que eclodiram mundialmente logo no início do século XX, com destaque para a luta das
mulheres pelo direito ao voto nos Estados Unidos, em 1913. Nesse sentido, vale ressaltar que
uma das principais manifestações a favor do voto feminino deu-se ainda em 1893, na Nova
Zelândia, estimulando, posteriormente, a fundação da União Nacional pelo Sufrágio Feminino
em 1897, no Reino Unido, responsável por ações que não se restringiram ao voto, mas ao
reconhecimento da mulher como cidadã, dotada de liberdade e igualdade de direitos.
(BOTELHO; SCHWARCZ, 2012).
Como se pode perceber, as transformações históricas interferiram não apenas no
modo como a cidadania passou a ser exercida, como também agregou em sua semântica a
experiência subjetiva de pessoas e de grupos sociais carregada de satisfações, aproximações,
embates, negociações realizadas tanto no âmbito prático quanto no simbólico, por isso, o
conceito de cidadania modifica-se ao longo do tempo. O atual conceito possui duas questões
primordiais: [1] a ligação ao campo dos valores e das práticas dos direitos e, em uma esfera
distinta, a efetividade e/ou reconhecimento desses mesmos direitos; e [2] a validação desses
direitos, garante o reconhecimento de que cidadão é membro da comunidade política ou da
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nação responsável em assegurar a permanência de seus direitos, tendo em contrapartida a
execução de suas obrigações. É por meio dessa relação de interdependência entre cidadão e
Estado que se depreende a existência de dualidades entre direitos e deveres, inclusão e exclusão.
(BOTELHO; SCHWARCZ, 2012).
Nas sociedades contemporâneas, sob a interferência do capitalismo neoliberal,
como é o caso do Brasil, a luta pela cidadania está envolta numa aura conservadora que formata
um conjunto de características do cidadão “virtuoso” – também como forma de justificar os
benefícios que a elite possui em relação aos cidadãos comuns – e que favorece o aparecimento
da figura do “outro” desprovido de efetivo reconhecimento de cidadania, aquele cujas práticas
estigmatizadas permitem identificá-lo até como não cidadão (como por exemplo, é o que ocorre,
atualmente, com os imigrantes). A cidadania brasileira carrega em si a herança do processo de
colonização, por isso, o modo de exercê-la possui tantas contradições. Ao mesmo tempo em
que existe o discurso de liberdade e de igualdade entre todos os membros da sociedade, existe
a prática que está longe ser igualitária. Os desníveis de classes sociais, gênero e etnias foram
amenizados após a Constituição de 1988, mas ainda não foram superados. Nesse cenário em
que, efetivamente, nem todos os sujeitos gozam de todas as prerrogativas da cidadania, as
tecnologias da comunicação e da informação passam a vigorar como possibilidade de fazer com
que grupos não atendidos em seus direitos possam dar visibilidade as suas causas.
A partir de junho de 2013, inaugurou-se, em certa medida, a experiência de um
novo modo de exercício da cidadania no Brasil. O movimento liderado por jovens a favor da
redução do valor da passagem do transporte público que tomou conta do país e ocupou o centro
da agenda mediática da época, se originou e foi articulado via as redes sócias. O que seria uma
manifestação sem objetivos partidários, acabou desdobrando-se em sérias consequências no
cenário político, revelando à sociedade o quanto a internet havia se tornado espaço de
articulação de poder descentralizado. No cenário internacional, também em 2013, Edward
Snowden vazou informações confidenciais que fizeram vir à tona a vertiginosa estrutura de
espionagem liderada pelos Estados Unidos, mostrando ao mundo que a transparência total entre
as relações de governo e o direito à privacidade do usuário, no atual contexto da cibercultura,
residem como utopias.
A construção histórica da cidadania não ocorre, portanto, em um tempo e em um
espaço lineares. Ao contrário, sua dinâmica dialética desconstrói a noção de sucessão, de
progresso crescente, caracterizando-se como processo, construção social de grupos que
proclamam suas diferenças, suas identidades. A partir disso, é possível compreender que a
flexibilidade do conceito de cidadania permite que os dispositivos glocais interfiram em seu
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modo de exercício, bem como, em seu conceito, ressignificando-a.
Para qtraçar o percurso teórico crítico percorrido pela cidadania até a sua
ressignificação, esta Tese está organizada em três partes, tendo como fio condutor a teoria do
imaginário de Cornelius Castoriadis (1986). Na primeira parte, composta por dois capítulos,
tem caráter contextual, ao abordar, no primeiro capítulo, a Teoria do Imaginário de Castoriadis
(1986), a qual permitirá a compreensão da evolução da cidadania como magma de significações
imaginárias instituídas no imaginário social da sociedade. No segundo capítulo, é evidenciada
as transformações ocorridas pelo imaginário pós-moderno, responsável em estimular o
surgimento da cibercultura. A cibercultura permite a potencialização do uso continuo de
dispositivos glocais que promovem novas formas de relacionamento, de comportamento e de
percepção de mundo. A segunda parte, também divida em dois capítulos, aborda o objeto da
Pesquisa que é a cidadania. O primeiro capítulo amplia a história da cidadania, localizando o
Brasil na reflexão, a fim de perceber os avanços e retrocessos da cidadania brasileira. O
segundo capítulo, trata do dispositivo. Primeiramente, de modo conceitual, depois analisando a
cidadania como dispositivo social. A terceira e última parte, dedica-se ao fenômeno glocal.
Analisando-o como dispositivo panóptico (FOUCAULT, ) da civilização mediática. Para,
então, compreende-lo como mecanismo de interferência da ressignificação da cidadania. Por
fim, vale ressaltar que o discurso presente nesta Tese, fundamenta-se, essencialmente em
TRIVINHO (2001, 2007, 2012), VIRILIO (2000), CASTORIADIS (1986), FOUCAUT (1987;
2012) AGAMBEN (2009), MARSHALL (1967) e CARVALHO (2013).
16
PARTE I
O IMAGINÁRIO NA PÓS-MODERNIDADE E
NA CIBERCULTURA
17
Esta primeira Parte da Presente Tese é composta por dois capítulos analíticos e
críticos . O primeiro capítulo dedica-se à teoria do imaginário de Cornérlius Castoriadis (1986),
por ser concebida como teoria imprescindível para argumentação analítica deste trabalho, uma
vez que as instituições políticas, civis e sociais são, primeiramente, instituídas pela via das
significações imaginárias para, posteriormente, concretizar-se na vida da sociedade. Esse
capítulo subdivide-se em três importantes aspectos para se compreender o imaginário: [1] a
evolução social-histórica do imaginário, incluindo as dimensões de Barbier (1984) que trazem
à tona o conflito epistemológico entre razão e imaginação numa tentativa de arrefecer o poder
criativo e articulador do imaginário; [2] a perspectiva crítico-reflexiva apresentada por
Castoriadis, a qual possibilita entender o modo como as significações imaginárias se instituem
na sociedade; e [3] reflete as transformações provocadas pelas significações imaginárias
tecnológicas que, convertidas em magmas, consolidam a velocidade como vetor de articulação
social em escala planetária, modificando o ser/fazer/dizer na contemporaneidade.
O segundo capítulo fundamenta-se na teoria crítica da pós-modernidade de
Lyotard (2002), Bauman (1998) e Jameson (2004), no pós-estruturalismo de Baudrillard e na
teoria crítica da cibercultura de Virilio (1993, 1996, 2002) e Trvinho (2001, 2007, 2012). A
argumentação do capítulo abrange o percurso histórico que resultou na pós-modernidade. Esta
originada da descrença dos ideais iluministas não concretizados, possibilitando o surgimento
de novas significações imaginárias, agora tecidas pela rede da tecnologia. As tecnologias da
comunicação e da informação passam a vigorar como articuladores da sociedade, ao estarem
presentes tanto na esfera do trabalho e do lazer, provocando o nascimento da cibercultura
(TRIVINHO, 2007). A cibercultura, entendida como época social-histórica, faz emergir
desdobramentos tais como: a implantação do sistema invisível da velocidade e o fenômeno
glocal, incluindo todas as suas dimensões.
18
CAPÍTULO 1 - O IMAGINÁRIO
1.1. Sobre o imaginário:
A frase inicial do Livro de João, “no princípio era o verbo, e o verbo estava com
Deus, e o verbo era Deus” (Jo, 1, 1), remete à criação do mundo. Deus é o personagem principal
da narrativa bíblica e responsável por toda existência terrena. Por ser divino, não possui
materialidade, mas é a partir dele que a força criadora da palavra (o verbo) converte-se em
matéria. Diante disso, pode-se perceber que tanto Deus, quanto a palavra usada como
instrumento da criação divina habitam o mesmo plano simbólico. Ambos podem ser
interpretados como metáforas da força criadora do imaginário, capaz de antecipar a concretude
de todas as coisas. Tudo aquilo que hoje habita o mundo material teve sua origem em forças
imaginárias. As produções artísticas; as construções arquitetônicas que ilustram as paisagens
das metrópoles; as crenças e os sentimentos são alguns exemplos de que nada escapa à força
imaginal. Por isso, é difícil definir o imaginário. Ele possui uma dimensão tautológica em que
a única via de acesso para sua compreensão é enxergar a própria realidade como produção
imaginária.
Assim, a questão dicotômica razão-imaginação sofre tensionamento,
principalmente, dentro de um contexto histórico em que a racionalidade consolidou-se como
valor absoluto. No entanto, não há como negar que a razão só se impõe por meio do imaginário,
uma vez que o imaginário é a pulsão mais íntima do sujeito, enquanto a razão é o fator
impulsionador da ação/concretização daquilo que se iniciou no campo imaginal. Desse modo,
a relação existente entre racionalidade e imaginário deixa de ser dicotômica e passa ser de
complementação, favorecendo a quebra do paradigma instituído ao longo da história da
humanidade, no qual o próprio termo imaginário/imaginação esteve associado à obscuridade,
ao irracional, ao mito, aos devaneios ou fantasias. Na verdade, ele está presente em todos esses
termos e, ao mesmo tempo, em nenhum deles, porque é impossível reduzi-lo a apenas uma
significação. Apesar de ser da mesma natureza da racionalidade, o imaginário não se fixa em
explicações racionais, devido à razão já ser uma produção imaginária, como citado
anteriormente. Inclusive, a máxima de Descarte “cogito ergo sun” ou “penso, logo existo” se
transformou em frase representativa do racionalismo moderno, não deixa de referenciar a
capacidade primeira do sujeito, que é o pensamento/imaginação.
19
A imaginação funciona como bússola orientadora da existência humana,
conduzindo a história, a cultura e a subjetividade. As grandes revoluções, as ditaduras, a criação
de tecnologia de guerra possuem suas origens no imaginário. Assim como a palavra divina que
deu origem à vida terrena, no texto bíblico de Gênesis, o homem também herdou a capacidade
de criação. Entre o período clássico até o medieval, era reconhecido o valor das forças
imaginais. Com o passar do tempo, a razão assumiu a centralidade da história, deixando o
imaginário em posição inferior, possibilitando, assim, a origem da dualidade razão-imaginação
presente até os dias de hoje. A concepção de inferioridade do imaginário é reflexo das
transformações históricas. A partir delas, Barbier (1984) classifica o imaginário em três fases:
[1] a fase de sucessão, [2] a fase de subversão e [3] a fase de autorização.
A fase da sucessão caracteriza-se pelo reconhecimento da função imaginante do
sujeito. Após os pré-socráticos, o pensamento grego impôs o dualismo entre o real e o
imaginário, numa tentativa de separar a sensação e a percepção dos mitos. Segundo Détienne e
Vernant (1978), desde a epopeia homérica até a primeira metade do século III a.C, começou a
ser disseminada a ligação do imaginário com os poderes sobrenaturais, contribuindo para o
início do processo de marginalização do imaginário. Em Atenas, por volta de 432 a.C, tornou-
se delito misturar crenças do senso comum com os conhecimentos astronômicos. A astronomia
possuía status de superioridade por representar o primeiro contato com a experiência científica,
apesar de a época não ter estrutura suficiente para que a ciência triunfasse. Por isso, Platão
precisou recorrer à alegoria mítica para explicar a importância da descoberta da verdade;
Sócrates também não hesitava em invocar sua força interior para orientar suas condutas;
Aristóteles acreditava nos sonhos premonitórios como representações dos desejos ou temores
suscitados na representação onírica de algo provável de acontecer; e, com o advento do
cristianismo, os símbolos religiosos estimulavam a conexão com o divino por meio da fé,
perfeita tradução das forças imaginárias. Somente após o Renascimento, houve o verdadeiro
abandono da contemplação para dar lugar à experiência concreta e ao rigor intelectual. O
método cartesiano de Descarte ocupa centralidade no modo de o sujeito entender o mundo,
colaborando para que o imaginário passasse a ser concebido como forma de mascarar o real.
Sartre (1971) afirmava que os objetos “fantasmas” alteram a realidade e tornam o sujeito inábil
diante da complexidade da vida. Segundo o autor, existe “um abismo que separa o real do
imaginário” (SARTRE, 1971, p. 168).
A segunda fase, denominada por Barbier (1984), de Subversão, caracteriza-se
por nova tentativa de retomar as bases gregas de valor do imaginário, apesar do abismo que o
racionalismo cartesiano havia criado entre imaginação e razão. Na tentativa de resolver o
20
problema fortaleceu-se a busca pelo entendimento do inconsciente humano por meio dos
estudos da psicanálise. Contudo, só reforçou ainda mais a relação abismal entre o real e o
imaginário, fazendo com que as ações imaginárias permanecessem subversivas executando suas
funções e sendo voluntariamente ignoradas. A terceira e última fase, a da autorização, visa
encontrar o ponto de equilíbrio. É um período rico de contribuições intelectuais de Barchelard
(1974), Durand (1969) e Castoriadis (1986). Barchelard (1974) considera a função do irreal tão
útil quanto à função da realidade. Para o autor, o homem da ciência – diurno – deve atuar no
domínio da consciência, no locus da técnica e da razão. O homem da poiesis –noturno –
enraizado nos domínios do arcaico, na profundidade de sua história ainda desconhecida da
psique, tem responsabilidade de atuar no locus da criação. Desse modo, Barcherlard
potencializa a razão, ao mesmo tempo em que referenda a incapacidade dela atingir sozinha o
nível ontológico. Nível que só pode ser atingindo por meio da imaginação. Durand (1969)
propõe “recensear” as imagens que constituem o “capital homo sapiens” (ibid., p.12). Essas
imagens geram conjuntos constituídos de núcleos organizadores (constelações e arquétipos)
com a finalidade de servir como instrumento de normalização para estudos com fins científicos.
Paralelamente, aos estudos de Durand (1969), Cornelius Castoriadis (1986) também apresenta
uma via de acesso para a compreensão do imaginário, analisando ações provocadas por ele no
contexto social. Castoriadis procura se distanciar das teorias já instituídas, criando uma análise
poliforma de variados eixos do imaginário, entre eles o imaginário radical, o social e o magma
de significações.
Castoriadis (1986) compreende o sujeito como fonte inesgotável de imaginação
e, consequentemente, de criação, “o que faz a essência do homem, precisamente, é a imaginação
criadora” (CASTORIADIS, 1986, p. 285). O autor constrói seu pensamento a partir da relação
do imaginário com três dimensões: com a sociedade (imaginário social), com o sujeito
(imaginário radical), ambos articulam a terceira dimensão que é o social-histórico. Ele enfatiza
que as ações imaginárias não são opositoras ao real, nem derivação de algo, mas força criadora
que fundamenta o que chamamos de realidade.
O imaginário que falo não é imagem de. É criação incessante e essencialmente
indeterminada (social-histórica e psíquica) de figuras/imagens, a partir das
quais somente é possível falar-se de “alguma coisa”. Aquilo que
denominamos ‘realidade’ e ‘racionalidade’ são seus produtos.
(CASTORIADIS, 1986, p. 13).
O imaginário é criação a partir do nada, assim como a palavra proferida por Deus
descrita no Livro de Gênesis. Nada existia antes dela. Essa é a função do imaginário,é
21
responsável em criar o mundo, pois está na base de todo modo de pensamento e de qualquer
possibilidade de sentido. O real, o ser, a racionalidade são produtos da força imaginária.
Enquanto criação, o ser não se fecha em uma única determinação possível, pelo contrario, está
aberto, sempre em processo de construção, o que Castoriadis denomina de “por-ser”
(CASTORIADIS, 1986, p. 233).
Na ontologia tradicional, o tempo não é um fator absoluto, mas sim o caminho
para se chegar ao eterno, ao imutável. Já o sentido de “por-ser”, criado por Castoriadis, dá
protagonismo ao tempo, ao acreditar que o sujeito se constrói no tempo para transformar o seu
próprio tempo. Esse processo de construção só é possível por meio da criação incessante do
imaginário. Aquilo que escapa da ação imaginária já foi instituído pelo pensamento herdado.
Por isso, o autor diferencia duas dimensões na qual a sociedade opera: a dimensão da lógica
conjuntista-identitária e a imaginária. A primeira tem como característica a determinidade
causada pela submissão ao pensamento instituído oriundo da herança histórica. A segunda está
ligada ao processo criativo humano que permite dar significações ao mundo. As significações
se fazem no tempo e estão conectadas umas as outras, construindo magmas que se consolidam
na sociedade. Por isso, a sociedade e suas instituições não podem ter seu sentido reduzido à
perspectiva biológica ou somente ontológica, uma vez que o imutável ontológico também
sobrevive por meio do imaginário.
1.2. As significações imaginárias
Mesmo após a fase da autorização – quando muitos autores se dedicaram ao
estudo do imaginário, a razão permaneceu com o status de superioridade, principalmente, em
virtude dos avanços tecnológicos e científicos surgidos no século XX. As ações imaginárias
desfavorecidas permaneceram ligadas ao obscurantismo ocupando lugar marginal. Um bom
exemplo é o modo como, no senso comum, a Alegoria da Caverna de Platão continuou sendo
interpretada. As sombras refletidas na parede da caverna (imaginário) são, de acordo com o
senso comum, associadas à superficialidade ou ao obscurantismo, como se o mundo das
aparências não tivesse implicado forças criativas do imaginário. No entanto, ao sair da caverna,
o sujeito depara-se com a luz, revelando a razão. .
Nessa interpretação, ignora-se o poder criativo que, se por um lado estimulou os
sujeitos a darem sentido a sua limitada vida por meio das imagens projetadas nas paredes da
caverna, também impulsionou o sujeito a quebrar os grilhões que o prendiam em busca da
revelação do desconhecido. Ainda do lado de fora da caverna, a ação imaginal se faz presente
22
na internalização das experiências vividas somadas às novas que permitiram modificar sua vida,
a sociedade e, consequentemente, transformar a história. Esse processo, de experiência vivida
no tempo que constrói a história, pode ser compreendido pelo viés do imaginário, afirma
Castoriadis (1986). Para o autor, a história é composta por instituições que vão sendo
consolidadas na sociedade porque produzem significados nelas.
As instituições são responsáveis pela coesão da sociedade. Essa coesão só é
possível por meio do “magma das instituições imaginárias sociais”. Castoriadis define as
instituições como magmas porque elas possuem realidades fluidas, inconscientes, criações
instituídas e compartilhadas por um pensamento coletivo e anômino, repleto de significações
que, algumas vezes, fogem da logica conjuntista-identitária do pensamento herdado.
Tais significações imaginárias sociais são, por exemplo: espíritos, deuses,
Deus, polis, cidadão, nação, Estado, partido; mercadoria, dinheiro, capital,
taxas de juros; tabu, virtude, pecado, etc. Mas também: homem, mulher,
criança, tais como são especificados em uma sociedade dada”.
(CASTORIADIS, 1986, p. 239).
É a instituição imaginária da sociedade que estabelece o mundo de significações,
determinando o que é importante e o que não é, diferenciando o verdadeiro do falso, o que tem
sentido e o que não tem. Porque “toda sociedade é uma construção, uma constituição, uma
criação de um mundo, de seu próprio mundo” (CASTORIADIS, 1986, p. 241). Por isso,
Castoriadis propõe superar o significado recorrente de imaginário sempre ligado à invenção, ao
engano ou falso, para, finalmente, apreende-lo como movimento criador que articula a
sociedade e transforma a história. O social e o histórico são indissociáveis para o autor. O termo
“social-histórico”, criado por ele, possui o emprego do hífen com o objetivo de evidenciar o
movimento permanente de atividades criativas produzidas pela sociedade ao longo dos anos.
Esse movimento criativo se faz dentro de uma lógica conjuntista-identitária, ou seja, uma lógica
que carrega em si traços daquilo que a humanidade já foi (pensamento herdado instituído),
unida à emergência do presente (pensamento instituinte) que influenciam na construção do
futuro (CASTORIADIS, 1986, p. 241). A lógica conjuntista-identitária é a marca da sociedade,
tudo aquilo que pode ser reconhecido, seja pelo modo de pensar ou agir que se faz no presente,
influencia o futuro, mas possui raízes no passado, construindo assim os magmas de
significações.
Contrariamente à sistematização, característica da lógica identitária, segundo o
qual o mundo deve ser organizado de forma coerente e absoluta (conjuntista), o magma de
significações aponta para o mundo sempre aberto, como acontece com a linguagem. Toda
23
palavra é aberta e os seus significados (magmas) que, algumas vezes, ultrapassarem os limites
das regras sociais (lógica-conjuntsita identitária). Como no caso, da palavra cidadania, de
imediato, se refere ao exercício politico e social de um sujeito na sociedade. A ligação
indissociável entre objeto/finalidade-nome é algo da ordem da lógica conjuntista-identitária,
por seu sentido já ser herdado pelo pensamento instituído. Porém, a constituição do
objeto/finalidade jamais vai reduzir os múltiplos sentidos que a palavra proporciona (magmas).
Uma única palavra pode reportar a infinitas “remissões”, mas nunca esgotará “no que seria a
coisa em si” (CASTORIADIS, 1986, p. 394). Essa impossibilidade de esgotamento dos sentidos
deve-se a permanente movimentação do magma de significações.
Então, o movimento de articulação da vida humana está ligado ao imaginário.
Ele tanto compõe o processo social-histórico por meio da lógica conjuntista-identitária, quanto
consolida a lógica conjuntista-identitária e movimenta o magma de significações da sociedade.
A extensa ação imaginária é subdivida por Castoriadis (1986) como imaginário radical e
imaginário social. O imaginário radical origina-se no interior da mente humana. Ele é a força
que dava sentido para as sombras projetadas nas paredes das cavernas. Depois, passa a fazer
parte do fluxo do social-histórico, absorvendo as significações imaginárias coletivas e anônimas
e como “psique-soma” exerce funções no âmbito representativo, afetivo e intencional. O
imaginário social, por sua vez, é posição, criação, fazer ser, articulando e dando sentido a
sociedade instituinte, impulsionando o movimento e o processo criativo dos magmas. Sendo
assim, o ser, para Castoriadis, é o caos, é o “sem fundo”, é o tempo (CASTORIADIS, 1986, p.
233). A sociedade cria, faz emergir o novo, institui e é instituída no tempo, mas também cria o
tempo, pois esse é um imaginário social. A história é gênese ontológica, o por-vir-a-ser se faz
na história segundo as auto-alterações da sociedade. Essa muda constantemente e se impõe aos
núcleos de psiques individuais, resultando em sujeitos que fabricam e são fabricados
imaginários sociais.
As contribuições imaginárias estão presentes em todos os momentos da vida
humana. Seja na descoberta do fogo, nas pinturas no interior das cavernas primitivas, no modo
de vida dos nômades, nas construções de apetrechos para guerra, nos sistemas de governança
dos estados, nos sofrimentos dos exilados, nos esquemas dos grupos terroristas, nas narrativas
emancipatórias, nos golpes políticos, nos meios de comunicação, nas relações afetivas. Tudo
só tem sentido se for por meio do imaginário. Castoriadis (1986) ressalta que “falar das
significações imaginárias sociais quer dizer também que essas significações são presentificadas
e figuradas pela efetividade dos indivíduos, dos atos e dos objetos que eles informam” (Ibid.,
p. 514). O imaginário instituído na sociedade determina o que é “real” e o que não é. Habita no
24
que tem sentido e no que é desprovido dele. Uma sociedade não vive sem crenças, utopias ou
projetos, pois, facilitam na interpretação do mundo e incentivam a humanidade a reconstruir a
sua própria história.
1.3. Os magmas de significações imaginárias da contemporaneidade
Como abordado anteriormente, segundo Castoriadis (1986), as instituições
apresentam-se como rede simbólica que é, primeiramente, tecida no imaginário e, depois,
definida socialmente. Essa rede não é produto de uma criação totalmente livre, mas de uma
construção histórica consolidada pelas experiências vividas. Sendo assim, de acordo com o
autor, a instituição da sociedade e as significações imaginárias estão incorporadas em duas
dimensões indissociáveis: [1] a dimensão conjuntista-identitária (lógica), na qual operam a
ação e pensamento mediante elementos, classes, propriedades, relações econômicas, políticas e
sociais. Ela carrega em si a cristalização do passado que é inserido no presente, sendo
responsável pelo fluxo de continuidade da história. [2] a dimensão propriamente imaginária,
o magma, que corresponde a existência da significação que se conecta indefinidamente umas
às outras, sob o controle da lógica conjuntista, fazendo com que toda significação remeta a um
número indefinido de outras significações. Então, a ligação existente entre passado e presente
ocorre por meio da cristalização das regras, dos comportamentos, das ideologias, das crenças e
de tudo que compõe o pensamento/ação da humanidade.
O imaginário social vive em permanente transformação, promovendo a
ressignificação da lógica conjuntista em novos contextos. Para isso, precisa dos magmas
compostos por tudo aquilo que já existiu, dando suporte ao que ainda vai existir, numa
incessante atualização, nunca de exclusão. Por esse motivo, muitas vezes há impressão de que
a sociedade avança em alguns setores, por exemplo, como na ciência e na tecnologia e retrocede
em outros, como no nefasto discurso conservador no âmbito da política. Esse movimento de
ida e vinda só é possível por causa das cristalizações inseridas no magma das significações
imaginárias.
O mundo das significações tem que ser pensado não como uma réplica irreal
de um mundo real [...]. Temos que pensá-lo como posição primeira, inaugural,
irredutível do social-histórico e do imaginário social tal como se manifesta
cada vez numa sociedade dada; posição que se presentifica e se configura na
e pela instituição das significações [...] que coloca, para cada sociedade, o que
é e o que não é, o que vale, o que não vale o que pode ser ou valer. É ela que
instaura condições e orientações comuns do factível e do representável, e
25
através disso dá unidade, previamente e por construção, se assim podemos
dizer, à multidão indefinida e essencialmente aberta de indivíduos, de atos, de
objetos, de funções, de instituições no sentido secundário e corrente do termo
que cada vez, concretamente, uma sociedade. (CASTORIADIS, 1986, p. 413).
Se a instituição da sociedade é sempre a instituição de magmas de significações
imaginárias compostas por essas lógicas conjuntistas cristalizadas que se ressignificam no
fazer/dizer social, é possível compreender que o magma da contemporaneidade não é recente,
pois possui suas bases na lógica conjuntista-identitária do início da cultura tecno-
industrializada, pós-advento da Revolução Industrial. A partir desse momento, as pessoas
começaram a manter relacionamento paradoxal com a tecnologia, modificando, inclusive, seu
comportamento por influencia dos meios de comunicação de massa. Adorno e Horkheimer
(1947), na obra Dialética do Esclarecimento, refletem sobre a “ação alienadora” dos media,
concebidos como reprodutores das ideologias vigentes. Para os autores, a indústria cultural
colabora para limitação do senso crítico e para o fortalecimento do sistema, no caso, o
capitalismo. Sob a perspectiva de Castoriadis (1986), os mass media se instituem na sociedade,
por meio do conjunto de magmas composto pelo capitalismo e pelas ideologias que o mantem.
O sentido social desses magmas originam-se da lógica conjuntista cristalizada no início da
história da humanidade, a qual visava à manutenção do status quo das classes mais abastadas
da sociedade. Afinal, sempre houve, ao longo da história, o dominador e o dominado, o
colonizador e o colonizado. Assim, o capitalismo é resultado de todo esse movimento histórico,
só que atualizado, mas sem perder a sua natureza de controle de poder.
Os mass media passaram a ocupar status de valor na sociedade até o surgimento
dos media interativos, na primeira metade dos anos 90. A instituição dos media interativo
provocou atualização das significações imaginárias, ao mesmo tempo em que consolidou um
novo magma reconhecido como imaginário tecnológico. O imaginário social tecnológico rompe
com o paradigma comunicacional, ao proporcionar a superação do obstáculo espaço-tempo e,
assim, gerando um fascínio sem igual pela tecnologia da informação e da comunicação. Porém,
esse novo magma não apenas deixa intacta a lógica-identitária que reafirma o status quo, como
também, enraíza o sistema vigente ao incluir a lógica da velocidade como vetor estimulador das
atividades concretas e como forma de imprescindível de se viver na contemporaneidade.
(TRIVINHO, 2001; 2007)
Os media interativos são dispositivos pelos quais o imaginário tecnológico se
concretiza, realizando o sonho imemorial da humanidade, superar do espaço-tempo. Algo que
seria impossível – de acordo com Virilio (1993) – pelos limites do corpo material, mas que
26
converte-se em realidade por meio do fenômeno, denominado por Baitello (2012), de
neonomadismo. O neonomadismo é a capacidade de o sujeito movimentar o corpo espectral no
ambiente de rede, sem precisar deslocar o corpo físico. Esse corpo virtual é veloz, volátil e
possuidor de experiências únicas, sobretudo, ao estar protegido por um bunker tecnológico
(TRIVINHO, 2007). Todos os elementos que compõem esse cenário, só têm sentido porque
fazem parte do imaginário social da época. Os elementos não são reais pela concretude da
matéria, porém, estão no plano do real na medida em que a lógica identitária opera e se legitima
pelo uso e pela crença dos usuários.
Agregada a toda novidade trazida pelo magma das significações ao serem
instituídas na sociedade, após as tecnologias interativas, reside à teleologia da emancipação
humana presente nos ideais iluministas, agora, ressignificada. O sonho emancipatório se mostra
não apenas possível, mas concretizável por meio da globalização da comunicação. A
miniaturização das máquinas de comunicar, bem como, a crescente mobilidade presente nos
aparelhos informáticos tornou o fenômeno comunicativo ubíquo. As crenças (mitos,
metanarrativas, ideologias) aparentemente superadas pelo conhecimento tecno-científico da
modernidade, retornam em forma de “fetichismo” tecnológico, no qual máquinas adquirem
valor absoluto, ao se fazerem presentes de modo frequente e imprescindível na vida dos sujeitos
contemporâneos.
Vale ressaltar que o magma das significações tecnológicas, além de ser
composto pela lógica emancipatória da humanidade e pelas crenças atualizadas em forma de
fetichismo, também atualiza a lógica do sistema de controle e de poder sob as bases da
megatecnoburocracia da informatização, virtualização e ciberespacialização das sociedades
contemporâneas (TRIVINHO, 2001, p. 214). Na megatecnoburocracia estão implicadas as
interferências do capital, porém dentro de uma narrativa organizadora e lúdica confortada no
imaginário social. Não há como perceber a existência “ditatura invisível” do tempo real,
instituído pela significação imaginária tecnológica da dromocracia, na qual estão implicados
dispositivos de controle dos corpos dos sujeitos que se veem, cada vez mais, imersos num
cotidiano regido pela velocidade.
27
CAPÍTULO 1I – AS SIGNIFICAÇÕES IMAGINÁRIAS NA
PÓS-MODERNIDADE
2.1. A emergência do imaginário pós-moderno
Como apresentado no subitem anterior, o imaginário social corresponde à
operação mental que conduz à práxis humana. As significações imaginárias possuem
características agregadoras, capazes de organizar o comportamento dos sujeitos e,
consequentemente, as relações sociais, colaborando para a construção de uma rede de sentidos
que são incorporados pela sociedade. Na modernidade, essas significações estavam sustentadas
pelo tripé iluminista constituído de propostas revolucionárias e de práticas inovadoras com a
promessa da emancipação humana baseada na razão e no domínio da ciência. Porém, aos
poucos, as redes de sentidos do tríplice pilar ciência-técnica-razão foram sendo desfeitas ao
mostrar, na prática, a impossibilidade de serem realizadas, pelo contrário, ao invés de
impulsionar o processo emancipatório, converteram-se em ações que levaram à barbárie da
segunda guerra.
Vale destacar que toda rede de sentidos é construída e perpetuada ao longo de
determinada época, podendo ser transformada ou substituída por outra de acordo com a
evolução da humanidade. A questão moderna apresentada no parágrafo anterior ilustra essa
transformação. Nenhuma significação imaginal é anulada, mas transformada, levando em seu
bojo a própria história. Logo, nas bases da rede de sentidos da modernidade existia a herança
medieval, assim como a pós-modernidade virá no lastro da modernidade e ressignificará suas
utopias. Para Agamben (2012), só é possível compreender uma determinada época quando,
dela, o sujeito toma distância. A conexão com o tempo é mais bem entendida por meio do
processo de desconexão. Somente dessa forma, enxerga-se o quanto os elementos do passado
compõem os fios que tecem a rede de significados do presente. Ainda para o autor, cada sujeito
torna-se contemporâneo do tempo que já se foi. A partir do deslocamento temporal se faz
melhor a leitura de seu momento histórico.
[...] Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente
contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está
adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual: mas,
exatamente por isso, exatamente através deste deslocamento e desse
anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o
seu tempo. (AGAMBEN, 2012, p. 58).
28
Então, o atual desliga-se do passado, apesar de trazer consigo elementos
herdados dele, criando uma nova condição, um novo estado de espírito que somente pode ser
sentido no momento presente e entendido após seu afastamento. A pós-modernidade, bem como
cada período da história, é a expressão da contemporaneidade, afinal, para enfatizar: “a
contemporaneidade é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo
tempo, dele toma distância” (AGAMBEN, 2012, p. 59). Nesse sentido, torna-se evidente
perceber que a lógica iluminista da modernidade estava mesmo fadada ao fim trágico, como
afirma Harvey (2004). O excesso de racionalidade, a crença absoluta no sujeito e a exacerbada
valorização da técnica aprisionaram o homem, ao invés de libertá-lo. E à medida que o projeto
iluminista caiu em descrédito, outros característicos da época nascente tomaram o seu lugar. A
transição de um período para o outro permitiu às significações passadas deixarem suas marcas
nas atuais. Não por outro motivo, ainda hoje se presencia – sob outras bases – traços da política
de exclusão purificadora do passado. Antigamente, a exclusão residia na separação entre “povo
eleito” e os “pecadores”, tendo os pecadores a punição por não serem capazes de corresponder
às normas dominantes, como é o caso dos hereges no cristianismo medieval e dos judeus para
o nazismo. Atualmente, as exclusões acontecem no plano simbólico dos media interativos. Uma
dessas exclusões é concebida por Trivinho como apartheid da civilização mediática, capaz de
criar um fosso entre os indivíduos que possuem capital cognitivo e econômico necessário para
o pleno domínio das linguagens infotecnológicas, bem como para participar da lógica da
reciclagem estrutural imposta pelo mercado, e os indivíduos que não conseguem acompanhar a
frenética atualização da informática. Tal fato comprova o quanto as significações imaginárias
modernas ainda sobrevivem na pós-modernidade, mas ao serem aplicadas em novo contexto
têm os seus sentidos alterados que passam a ser identitários à nova época (TRIVINHO, 2001,
p. 147).
Não há como precisar data ou acontecimento específico para o início da pós-
modernidade. Autores como Lyotard (2002), Harvey (2004) e Bauman (1998) acreditam que
ela tenha emergido dos escombros deixados pela segunda Guerra Mundial. A barbárie dos
campos de concentração deixou marcas profundas na sociedade, instalando um clima de
descrença e de incerteza capaz de causar negação de todo e qualquer pensamento legitimado na
modernidade, como destacado anteriormente. A ineficiência do projeto moderno decorreu do
discurso totalizante que anunciava a verdade única e aceitável, por meio da razão, da ciência e
da técnica. E, ao longo da história, comprovou-se: todo o pensamento totalizador carrega em si
a própria barbárie. Com o passar do tempo, a sociedade tem testemunhado o desfecho trágico
de seus projetos de emancipação construídos na tentativa de unicidade social a qualquer custo.
29
O cristianismo desembocou num império medieval de dez séculos e na
Inquisição sob o álibi da libertação da alma pecadora e da condução final dos
homens ao paraíso; os religiosos fragmentários geraram mais preconceito,
intolerâncias étnicas e espíritos belicosos em nome do Deus monoteísta, em
vez de levarem ao enunciado encontro harmonioso com a divindade. O
iluminismo redundou na falácia do progresso técnico e na industrialização da
cultura de massa a pretexto de, por elas, emancipar a totalidade da espécie
humana da ignorância, do mito e do obscurantismo. O liberalismo preservou,
em novas bases, as desigualdades sociais e econômicas sob a evasiva de
equacioná-las para melhor distribuição de uma forma obscura e obsoleta de
Estado que o nazismo e o socialismo, por má fé da história, acabaram, cada
qual a sua maneira, por confiscar para si e por encarnar: os três culminaram
no totalitarismo estatal-burocrático sob o pretexto dos fins emancipatórios. O
marxismo, em particular, sob o pilar da dialética como princípio teórico-
metodológico e da luta de classes como motor da história e como práxis
acabou por reduzir – conforme já assinalado –, depois de realizadas as
revoluções proletárias, a lógica da dominação contra a qual se lançou desde
cedo. E, agora, o neoliberalismo triunfante no âmbito da política burocrática
e do valor de troca, bem como, o neonazismo que insurge em diversas partes
do mundo colocando-se como repetições cínicas da catástrofe pregressa de
seus originais. (TRIVINHO, 2001, p. 383).
Dessa forma, com a desconstrução das utopias modernas somada à crise
econômica e societária do pós-guerra e à emergência dos meios de comunicação, favoreceu-se
a emergência da época pós-moderna. Trivinho (2001) concebe a pós-modernidade como
fenômeno justamente pela impossibilidade de determinar sua origem histórica e de defini-la
com exatidão. Para o autor, o pós-moderno vigora como sprit du temps originado de uma teia
de acontecimentos conflitantes concentrados a partir da segunda metade do século XX
(TRIVINHO, 2001, p. 45). A maioria das literaturas ensaísticas, que versam sobre o tema da
pós-modernidade, a define destacando três aspectos distintos: [1] como época histórica capaz
de determinar novas formas de economia, como a globalização; [2] como condição cultural
relacionada à novidade e a superação de conceitos tradicionais, modificando as formas de ser e
de atuar no mundo; e [3] como corrente propositiva capaz de justificar novas formas de
manifestação literárias, filosóficas e artísticas. Porém, o fenômeno pós-moderno não pode se
restringir em apenas um dos enfoques elencados acima, porque trata-se da soma de todos eles,
nutrindo-se de todos os fatores ao mesmo tempo (TRIVINHO, 2001, p. 47).
De acordo com Lyotard (2002), a incredulidade em relação às teleologias
proporcionou o aparecimento de características marcantes da nova era, tais como a
pulverização, a hibridização e a liquidez. Inclusive, Bauman (2001) compara a fluidez do
espírito pós-moderno ao efeito característico dos líquidos. Esses, ao serem submetidos às
pressões externas, têm suas partículas facilmente modificadas. O mesmo ocorreria com o
30
“clima” da pós-modernidade. A cada nova situação, as formas de pensar e de agir transformam-
se, provocando confusão de sentidos na sociedade. Para Jameson (2000), tal fluidez, liquidez,
aumenta a avidez pelo consumo, favorecendo o enraizamento da lógica capitalista no cerne da
sociedade por meio de dois aspectos conexos: [1] a globalização do comércio impulsionado
pelo avanço da tecnologia informática e [2] a forma com que os indivíduos interagem com os
media.
Como o advento do fenômeno pós-moderno, a comunicação tecnológica passou
a dominar o campo cultural, político e econômico ao tornar-se presente no reduto da vida
privada e do lazer. Assim, consolida os interesses das grandes corporações que transformam a
cultura em produto de consumo, perpetuando a lógica capitalista no imaginário da sociedade.
O capital supera sua dimensão econômica e política para fazer-se presente na esfera simbólica.
Nesse caso, Baudrillard (1991) enfatiza que, no transcurso da história, o mercado passou por
três estágios: [a] a primeira fase relacionada à forma de produção primitiva, baseada na
agricultura, sendo mantida pelo sistema de trocas visando a subsistência; [b] a segunda fase
refere-se à modernidade, período de industrialização do mercado com introdução de novas
formas de produção e de valorização da técnica. O homem migra do campo para a cidade,
deixando de trabalhar no cultivo da terra para enfrentar a jornada de trabalho nas indústrias em
troca de salários; [c] na terceira fase, a industrialização atinge o seu ápice. Tudo passa a ser
comercializado. A cultura torna-se objeto de consumo. Os meios de comunicação constituem o
principal articulador de produção e venda dos produtos simbólicos, aumentando o consumo –
primariamente – no imaginário do sujeito e, posteriormente, compondo a rede de significações
convertidas em mercadoria no plano real.
Segundo Agamben (2009), inspirado em Walter Benjamin, na pós-modernidade,
o capitalismo vigora como fenômeno religioso, em que o mecanismo de sacrifício-redenção
consiste em transformar tudo o que compõe a existência humana, mesmo a sexualidade e a
linguagem, em mercadoria. Nesse cenário, o consumo não corresponde à aquisição de algo para
ser utilizado, mas em algo que será inutilizado. Ao retirar a função do objeto, esvai-se seu
sentido, sendo, então, profanado. Por isso, para o autor, o capital põe a sociedade diante do
improfanável1. Uma vez que somente à primeira vista parece ser possível resistir às seduções
1 Para Agamben, “profanar significa abrir a possibilidade de uma forma especial de negligência, que ignora a
separação, ou melhor, faz dela um uso particular” (2007, p. 65). Profanar um objeto significa retirá-lo da esfera do
sagrado e trazê-lo de volta para o livre uso dos seres humanos. Agamben (2007, p. 66) sustenta que “parece haver
uma relação especial” entre usar e profanar, uma vez que na profanação se desrespeita ou se negligencia o
significado dado às coisas quando consagradas, ou seja, quando retiradas da esfera humana e depositadas num
lugar especial que corresponde à esfera do sagrado. O uso profano é, portanto, o uso que ignora a separação
proposta pelo Sagrado. Esse uso particular ocorre por meio de um reuso ou uso especial do sagrado. O reuso que
31
das mercadorias ou que todos os objetos consumidos terão a sua funcionalidade. Mas, na
verdade, não há possibilidade de resistência. O consumo exagerado causa inutilidade daquilo
que é adquirido, porque o sujeito pós-moderno passa a sobreviver numa simbiose com os media
e o mercado. Essa simbiose media-mercado-sujeito resulta no aparecimento da visão niilista
nos modos de encarar a existência humana, na fugacidade das relações pessoais, no
neonarcisismo (glamorização da autoimagem) e no hibridismo fortalecido pelo uso frequente
dos recursos infocomunicacionais.
Encontramo-nos diante de sujeitos dotados de uma elasticidade cultural que
se assemelha a uma falta de forma, são mais bem receptivas as mais diversas
formas, e de uma plasticidade neural que lhes permite uma camaleônica
adaptação aos mais diversos contextos e uma enorme facilidade para os
idiomas da tecnologia. (SANTOS, 1996, p.13).
A ação camaleônica define bem a identidade plural, performática e híbrida,
característica da pós-modernidade, como afirma Hall (2003). A nova concepção de sujeito se
caracteriza pelo provisório, variável e problemático, alguém como não tendo uma identidade
permanente. Se a identidade moderna era construída a partir da linearidade dos discursos
emancipatórios e da clareza dos valores, a identidade pós-moderna é alicerçada no consumo,
conforme explica Silverstone (2002, p. 28): “Posso ser homem pela manhã, mulher à tarde e
talvez algo completamente diferente após o jantar, e onde meus gostos, estilos e minha pessoa
podem mudar com cada momento de consumo”. O autor ainda conclui que:
Falamos da fatura de identidades numa era pós-moderna, das indeterminações
de etnias, classes, gêneros e sexualidade em torno dos quais as culturas se
formam, oferecendo-nos uma grande coisa agora, outra depois; aqui e acolá,
em toda parte, enquanto vagueamos nômades, pelo tempo e pelo espaço.
Como visto como foliões num carnaval sem fim; num baile de máscaras no
hiper-real, e cercado por ele. (SILVERSTONE, 2002, p. 83).
Além da efemeridade nas relações sociais, da pluralidade de identidades, da
mundialização da cultura e do relacionamento íntimo existente entre sociedade e tecnologia,
outra característica da pós-modernidade é a liberdade. A excessiva busca pela liberdade acentua
os sentimentos de insegurança, de incerteza e de solidão. A afetividade passa a ser
se dá aos objetos ao perderem sua aura consagrada na profanação “não restaura simplesmente algo parecido com
um uso natural” (AGAMBEN, 2007, p. 74), preexistente à separação, mas, antes, permite atribuir um novo uso
àquilo que era sagrado. Trata-se, antes, de uma emancipação, de um esvaziamento de sentido em relação a uma
determinada finalidade, abrindo e dispondo o sagrado a novos usos. No olhar diagnosticador de Agamben, o
consumo é um ato ritualístico improfanável, pois não permite abolir a separação que atribui estatuto especial à
mercadoria, originando a “absolutização capitalista da mercadoria” (AGAMBEN, 2007, p. 77).
32
compreendida apenas como fonte de prazer passageiro, impossibilitando a solidificação dos
sentimentos e causando o vazio existencial. Planejar algo para ser alcançado no futuro não é
uma atitude atraente, pois, “qualquer oportunidade que não for aproveitada aqui e agora é uma
oportunidade perdida” (BAUMAN, 2001, p. 187). Laços e parcerias humanas não são baseados
no utópico sonho de completude, afinidade, ideais partilhados; pelo contrário, são utilitários,
mantendo a mesma lógica do mercado.
O mercado, impulsionado pela comunicação tecnológica, migra do espaço físico
para o virtual, assim, desmaterializando o capital e reorganizando os modos de produção e de
consumo. O capitalismo, no contexto pós-moderno, é ressignificado, apesar de continuar
vigorando sobre as mesmas bases. As hierarquias, as zonas privilegiadas, os polos de produção
e toda sua estrutura não se encontram em estágio autocrático, pelo contrário, o sistema
capitalista continua cumprindo seu papel totalitário por meio da lógica da mais potência: a
velocidade é o produto. O sujeito vive sob o imperativo da atualização constante, da necessidade
de dominar as linguagens de acesso dos objetos infotecnológicos cada vez mais avançados e
que mantêm o mercado sempre revigorado. Cazeloto (2008) concebe a forma cultural e
imaterial do capitalismo agindo num campo fluido e indeterminado geograficamente, buscando
possibilidades mais rentáveis que a civilização mediática possa oferecer.
2.1.1. O imaginário pós-moderno no Brasil e na América Latina
A América Latina, em destaque, o Brasil, já emergiu pós-moderno. As suas redes
de significações são multiculturais, devido às diferenças étnicas e culturais provenientes da
miscigenação resultante do processo de colonização. Canclini (2003) recorre à história para
compreender as contradições latino-americanas, principalmente, para esclarecer a origem dos
problemas ainda enfrentados nos dias de hoje. Ele afirma que, como os países latino-americanos
foram colonizados por nações europeias mais atrasadas, submetidas às Contra Reformas e
outros movimentos, tardou em conhecer plenamente a manifestação moderna, vivenciando
somente as chamadas “ondas de modernização” (CANCLINI, 2003, p. 67). Essas ondas
modernas foram impulsionadas por fatos ocorridos entre o início do século XIX e XX.
[...] a oligarquia progressiva, pela alfabetização e pelos intelectuais
europeizados, entre os anos 20 e 30 deste século, pela expansão do capitalismo
e ascensão democratizadora dos setores médios e liberais, pela contribuição
de migrantes e pela difusão em massa da escola, pela imprensa e pelo rádio;
33
desde os anos 40, pela industrialização, pelo crescimento urbano, pelo maior
acesso à educação média e superior, pelas novas indústrias culturais.
(CANCLINI, 2003, p. 67).
Como a América Latina não conseguiu atingir o patamar de desenvolvimento
moderno europeu, ela passou a sobreviver num contexto visível de desajuste entre modernidade
e modernização. Ainda de acordo com Canclini, o desajuste não é apenas um fator resultante
do processo histórico de colonização, outros fatores colaboraram para isso. Entre o principal
fator está a organização política e social instituída nos países da América Latina, uma vez que
o poder foi tomado por uma determinada classe dominante fortalecida pela ideologia da
desigualdade.
Enquanto a modernidade europeia propagava o desenvolvimento científico, a
autonomia pessoal, a renovação das ideias e a remuneração pelos serviços prestados, o Brasil
ainda vivia em situação de escravidão. A dependência econômica agrária latifundiária
brasileira, com o mercado externo, influenciou o surgimento da racionalidade econômica
burguesa ainda sob os moldes serviçais. Se a intenção era introduzir a prática do trabalho com
retorno remunerado, transformou-se em dominação da classe dirigente condutora das forças de
trabalho. A falta do retorno compatível com a força de trabalho dispensada revelou-se nos
maiores problemas sociais vivenciados nos dias de hoje, a pobreza, o desemprego e a
criminalidade.
Se, por um lado, o Brasil e a América Latina não conseguiram viver plenamente
a modernidade, contraditoriamente, já nasceram pós-modernos, como foi afirmado
anteriormente. A pós-modernidade compreendida pelas (con)fusões de sentidos e na
multiplicidade cultural sempre esteve presente no cotidiano latino-americano. Inclusive, a
diversidade cultural, as desigualdades entre as classes e o preconceito demonstram a
impossibilidade da construção de metanarrativas totalizantes. Cada grupo, cada minoria, clama
para serem enxergados, unindo-se a partir de suas necessidades. Gardea (2007) afirma que, na
pós-modernidade latino-americana, emerge uma nova lógica de ação de atores coletivos e
movimentos sociais não mais voltados para uma política de movimento que, obrigatoriamente,
deva resultar numa resposta positiva do estado, mas numa lógica de campanha em que o
importante é ter a oportunidade de ser ouvido. Ou seja, a lógica movimentalista não promove
projetos universalizantes e tampouco emancipatórios, em sentido amplo. Os objetivos desses
movimentos são menos ambiciosos e não são projetados em longo prazo. Eles passam a ser
localizados e reduzidos e, dessa forma, o sentido pragmático da ação coletiva ganha
proeminência sobre a lógica redentora da visão moderna dos movimentos sociais. Nesse
34
sentido, os media colaboraram para dar evidência às necessidades desses movimentos.
No que diz respeito à relação com os media interativos e à influência deles no
contexto social, o Brasil destaca-se pelo número de acessos à internet. De acordo com a décima
primeira edição da pesquisa TIC Domicílios2 que tem como objetivo medir a posse, o uso, o
acesso e os hábitos da população brasileira em relação às tecnologias de informação e de
comunicação, mostrou-se o quanto aumentou o uso da internet em relação à última pesquisa
realizada em 2014. Atualmente, 58% da população acessam irrestritamente a web e, para isso,
prioritariamente, utilizam-se de smartphones e tablets. O crescimento ficou mais evidente nas
classes C, D e E, como são denominadas na pesquisa. São essas classes que passaram, inclusive,
a trocar com mais frequência os aparelhos infotecnológicos, com o objetivo de facilitar o acesso
à rede. Então, apesar da crise política e econômica brasileira, o imperativo pós-moderno da
lógica da mais potência domina o imaginário social, fortalece o mercado e, consequentemente,
consolida o capitalismo no cerne da sociedade.
2.2 O regime da velocidade no contexto pós-moderno: o nascimento da Cibercultura
O desenvolvimento da cultura pós-moderna aliado à comunicação como valor
utópico, em meados do século XX, favorece o surgimento da cibercultura. Para Trivinho
(2007), a cibercultura não está restrita somente ao âmbito cultural ou ao contexto econômico-
financeiro de produção das infotecnologias presentes na atualidade, mas engloba toda a
estrutura societária, articulada por meio de investimento planetário nas tecnologias e redes
digitais em todas as dimensões da existência humana: material, simbólica e imaginária.
[...] comunicação eletrônica e pós-modernidade são, no fundo, uma só e
mesma coisa. Se a ascensão do fenômeno pós-moderno coincide com a
progressiva mistura homogênea da comunicação com o tecido social, a cultura
protagonizada pelos media de massa, por sua vez, condiciona e otimiza a
realização da pós-modernidade. (TRIVINHO, 2001, p. 72).
Trata-se de uma cultura marcada por fronteiras pulverizadas, pelo fragmento,
pela personalização e individualismo, além do ceticismo em relação às metanarrativas. Essas e
outras características da condição pós-moderna estiveram, e ainda estão misturadas aos mass
2 A pesquisa TIC Domicílios é realizada anualmente desde 2005. Objetiva mapear o acesso à infraestrutura das
TIC nos domicílios urbanos e rurais do país e as formas de uso destas tecnologias por indivíduos a partir dos 10
anos de idade. A partir de 2013 a TIC Domicílios também incorporou em seu escopo a TIC Crianças, que investiga
o uso de TIC entre indivíduos de 5 a 9 anos, e é realizada separadamente desde 2009.
35
media e se interligam às experiências vividas nas redes informáticas. Por esse motivo, a
cibercultura se apresenta como um dos vetores da pós-modernidade. Trivinho (2007) reforça
que os sistemas políticos convencionais passam a ser submetidos à lógica do modo de vida
cibercultural. Os estados subordinam-se às estratégias comunicacionais e tendências
tecnológicas de mercado para se autolegitimar, isso acontece devido ao caráter transpolítico da
cibercultura (TRIVINHO, 2001, p. 70-72).
As formas individualizadas e descentralizadas dos meios interativos
correspondem a contendo à efemeridade e à descontinuidade pós-modernas. A comunicação,
na cibercultura, torna-se vetor de articulação da sociedade, a partir da emergência das redes
digitais, da globalização mundial e do imaginário de integração do mundo, assumindo valor
absoluto no centro da sociedade, por meio da promessa da transparência e da democratização
do acesso à informação herdada da teoria cibernética – que será aprofundado no item anterior.
A gênese cibercultural está ligada à revolução da microeletrônica que
proporcionou o desenvolvimento da indústria de hardwares e softwares capaz de impulsionar a
expansão da informação em escala mundial, concomitantemente aos avanços na área das
telecomunicações. Dessa forma, a cibercultura decorre da interseção entre os avanços
tecnológicos e os meios de comunicação em sua versão eletrônica. Se na sociedade moderna, a
técnica era compreendida como elemento fundamental no progresso civilizatório, na sociedade
atual existe um conjunto fatores, entre eles a tecnologia, o mercado, as iniciativas estatais e
empresariais e a contínua aceleração na produção e utilização de bens e serviços informáticos,
que passam a ser responsáveis pelas profundas transformações no cotidiano dos indivíduos. Os
equipamentos infotecnológicos tornam-se, assim, instrumentos imprescindíveis do estilo de
vida tecnocultural, consolidado pelo sistema econômico capitalista. Na era pós-industrial,
denominada dessa forma devido às mudanças nas relações de produção, de trabalho e no
consumo, sobretudo, das tecnologias de informação e de serviços de telecomunicação, a ampla
procura por novidades de acessórios tecnológicos e informacionais é característica intrínseca
da cibercultura. Para Bauman (2008, p.108-109), essa cultura de consumo exacerbado exige
constante busca de “estar à frente” das “tendências de estilo”, que promete aos indivíduos o
reconhecimento, significando inclusão e sentido de pertença nessa mesma sociedade. O autor
afirma que existe a preocupação dos indivíduos de ficarem à margem de uma nova tendência
caso os atuais objetos/produtos desejados sejam postos fora de circulação.
Desse panorama, fazem parte a produção e o consumo acelerados e ininterruptos
de tecnologias da informação que levam os indivíduos a se apropriarem dos produtos
infotecnológicos com funções cada vez mais sofisticadas, tanto em recursos e aplicativos,
36
quanto em acessórios e design. Essa veloz atualização de bens materiais e imateriais
informáticos garante a reprodução social e histórica da lógica cibercultural. Por isso, segundo
Trivinho (2001, 2007), a velocidade, somada à comunicação tecnológica e à cultura pós-
moderna, resulta num dos principais vetores estruturais da cibercultura, provendo dinamismo
para a atual civilização tecnológica se firmar e se autoconservar.
Paul Virilio (1996b) define a lógica da velocidade como dromocracia. O termo
origina-se do conceito de dromologia, fenômeno baseado no deslocamento, na corrida ou
movimento e que tem seu sentido derivado do grego dromos. Para o autor, a velocidade possui
valor primordial nas estratégias políticas e militares de cada época, sem exceção dos dias atuais.
Trivinho amplia e aprofunda a análise do impacto da dromocracia na sociedade atual, ao
enfatizar que, embora a velocidade estivesse presente ao longo da história, pautando a
existência humana, no contexto atual, ela se constitui como regime totalitário e invisível a partir
do advento da sociedade marcada por instrumentos infotecnológicos amplamente saturados
pelo uso cotidiano. E, por alcançar seu ápice como articuladora de todos os processos sociais,
indo da esfera do trabalho à do lazer, a velocidade impacta na constante produção, distribuição
e reciclagem de tecnologias informáticas e no consumo de bens e serviços informáticos que
mantêm o sistema dromocrático contemporâneo.
Existem conexões íntimas entre a velocidade tecnológica como princípio de
estruturação e modulação da vida social e o imperativo da saturação ad
infinitum como telos inexorável de qualquer produção [...]. A primeira
coordenada propende para a segunda, otimizando-a, e esta, por sua vez,
fomenta aquela, num inacabável círculo vicioso em que se confundem causa
e efeito, origem e destino. (TRIVINHO, 2007, p. 64).
A partir desse contexto, Trivinho enfatiza que a velocidade está relacionada à
violência ao longo da história, principalmente, por ter servido às conquistas de territórios e, na
atualidade, engendra os processos sociais, culturais, políticos, econômicos e de mercado, por
meio do processo de reciclagem de bens informáticos que acabam por obrigar o sujeito a possuir
capital financeiro e cognitivo para acompanhar a frenética evolução dos produtos cada vez mais
sofisticados. Em vista disso, o autor lembra que a maior parte dos usuários permanece
desatualizada em relação aos avanços tecnológicos. Esse panorama demonstra o quanto
dromocracia, comunicação e cultura pós-moderna estão imbricadas ao contexto cibercultural,
como será aprofundado no item a seguir.
37
2.2.1. Cibernética e cibercultura
Como tratado anteriormente, o advento da pós-modernidade colaborou para que
os meios de comunicação passassem a ocupar o epicentro social, principalmente, após a
absoluta expansão na produção, circulação e consumo de objetos infotecnológicos capazes de
conexão de rede. A cibercultura consolida-se a partir da segunda metade do século XX,
irradiando-se para todos os segmentos da vida humana, à medida que todas as atividades do
cotidiano estão atreladas à tecnologia informática (TRIVINHO, 2001).
A origem da cibercultura coincide com a disseminação da teoria cibernética.
Essa influenciou diretamente na concepção de comunicação tecnológica como valor utópico
articulador da sociedade pós-moderna. No entanto, para compreender melhor o processo
evolutivo da tecnologia, é necessário recorrer à história, mais precisamente no período
moderno, marcado pela Revolução Industrial, quando a técnica unida à ciência passa a compor
as bases propulsoras das transformações sociais da época.
Diante da valorização da técnica no período moderno, Heidegger analisa que “a
essência da técnica não é, de maneira alguma, nada técnico” (2008, p. 12). A essência está
relacionada propriamente ao modo de revelação do ser no fazer técnico, ou seja, o desvelamento
do ser pode ocorrer tanto no modo de desenvolvimento da técnica tradicional, quanto da técnica
moderna. A primeira consolida-se, para o autor, como poética (artesanal) e a última se
estabelece pelo apelo exploratório da natureza como dis-ponibilidade, pautado no
gerenciamento, no controle, no asseguramento e no automatismo. Essa concepção da metafísica
heideggeriana tornou-se base para os princípios da cibernética, além de colaborar para a difusão
dos efeitos da técnica e da tecnologia até a civilização atual sob os moldes ciberculturais.
O início da teoria cibernética remonta aos avanços da informática. O progresso
informático se fortaleceu por meio da confluência dos avanços técnico-científicos que
impulsionaram a criação da microinformática, provocando inevitáveis transformações sociais,
culturais e ideológicas. Breton (1991) destaca três importantes fases do processo: [a] a primeira
fase ocorre entre as décadas de 40 a 60 e estavam pautadas no desenvolvimento da teoria
cibernética. As universidades norte-americanas, subsidiadas por verba militar, desenvolviam
tecnologia para atender às forças armadas. O interesse residia na criação de máquinas capazes
de simular o funcionamento do cérebro humano; [b] a segunda fase, de 1960 a 1970,
caracteriza-se pelo surgimento de sistemas centralizados, compostos por representantes da
tecnocracia estatal, militar, científica e empresarial. Foi nessa fase que houve a ruptura entre
informática e cibernética. O principal motivo era o interesse na comercialização de produtos
38
informáticos, apesar de as pesquisas para o desenvolvimento da microeletrônica continuar a
serem mantidas pelos militares. Por isso, os primeiros microcomputadores foram introduzidos
nos setores governamentais, até que as empresas privadas passassem a investir na produção de
computadores; e [c] a última, a partir da década de 70, é marcada pelo surgimento dos
computadores pessoais e das redes telemáticas. A comercialização da microinformática, após
ser inserida na sociedade civil, rompeu com os sistemas burocráticos e centralizados do reduto
governamental e militar, para tornar-se a principal utopia pós-moderna: reencantar o mundo por
meio da comunicação informática.
Deve-se a Nobert Wiener (1978) as sementes do processo de reencantamento do
mundo promovido pela comunicação tecnológica. Wiener é responsável pela teoria social que
tinha como objetivo criar um campo interdisciplinar com várias áreas do conhecimento
organizadas em torno do eixo da comunicação. A teoria possuía forte caráter ideológico, pois
acreditava na emancipação do mundo por meio da liberdade total das informações,
possibilitando, assim, a renovação da sociedade. Essa renovação assume fundamental
importância na reconstrução social pós Segunda Guerra. O autor se inspirou nas leis da física
para desenvolver suas pesquisas, buscando associar os princípios físicos às relações sociais. A
comunicação e o controle, na concepção de Nobert, teriam a importante função de impedir o
caos social causado pela tendência entrópica, a qual poderia gerar a degradação natural da
sociedade. “Assim como a entropia é uma medida de desorganização, a informação conduzida
por um grupo de mensagens é a medida de organização”, afirma o autor (WIENER, 1978, p.
21).
Dessa forma, a manutenção da ordem social e a harmonia dos laços sociais
compunham o imaginário da teoria cibernética e representavam o retorno à esperança de
reerguer o mundo sob as bases de uma sociedade autogovernada e livre, tendo a informação
como o principal mecanismo de auto-organização e harmonia da sociedade. A auto-organização
dependeria de dois articuladores: os sujeitos que deveriam estimular a sua potencialidade
comunicativa e as máquinas, dotadas de inteligência, capazes de se nivelar aos humanos pela
troca informacional complexa, gerando a simbiose sujeito-máquina (BRETON, 1995). Dessa
experiência interativa surgiriam novas formas comunicativas e um novo aprendizado. Esse
nivelamento, o indivíduo e a máquina de pensar possuem quatro proposições, de acordo com
Breton:
O texto de Nobert Wiener apoia-se, assim, em quatro grandes proposições.
Todos os objetos do universo existem sob uma forma informacional, que lhes
39
é essencial. Todo o universo é constituído pelas diferenças equivalentes ao seu
comportamento. O comportamento de todos os objetos no universo é
compatível numa mesma escala, que apenas toma em conta o critério de
complexidade. De um ponto de vista informacional, não há fronteiras de
separação entre o humano e os outros objetos que compõem o universo. Destas
quatro proposições nasce uma representação do humano como ser
transparente e racional. (BRETON, 1995, p. 125).
Essas proposições impulsionaram o desenvolvimento da microinformática com
o intuito de produzir máquinas que pudessem interagir entre si e com os humanos, culminando
no amplo projeto tecnológico vivido na atualidade. O primeiro computador foi comercializado
ainda nos anos 70 e, na década de 80, houve a fusão entre a informática com as
telecomunicações. Mas a expansão mercadológica dos objetos infotecnológicos somente
tornou-se possível nos anos 90, com a difusão da web. Em decorrência disso, a comunicação
ampliou seu conceito e passou a ser o mecanismo de articulação social, assumindo o epicentro
da sociedade da informação a partir da segunda metade do século XX e consolidando-se no
século XXI.
Mesmo que a cibernética tenha arrefecido depois da morte de Nobert Wiener,
seus princípios continuaram servindo de fundamento não apenas para o desenvolvimento de
tecnologias, mas para sustentar a principal ideologia que compõe a metanarrativa pós-moderna:
a de a harmonia social estar ligada à livre circulação de informação. Vale ressaltar que alguns
conceitos como informação, feedback e transparência são herdados da cibernética e tornam-se
pilares da comunicação tecnológica e ganham amplo significado na cultura mediática. Diante
disso, Trivinho (2001, 20017) enfatiza que a civilização tecnologicamente assentada em
princípios gestados na teoria cibernética é engendrada pelos ditames do processo
comunicacional levado às últimas consequências ao ser imprescindível para a manutenção dos
vínculos sociais.
A partir da segunda metade do século XX, a comunicação passou a ser o motor
de propulsão da cultura tecnológica denominada de cibercultura. Como exposto, a cibercultura
é uma época marcada pelo uso contínuo de objetos informáticos e comunicacionais e pela
manutenção da lógica de reciclagem de aparelhos infotecnológicos e aplicativos que propõem
um novo condicionamento psíquico, cognitivo e comportamental aos sujeitos. As linguagens
estruturantes do ambiente virtual passam por constante atualização, implicando em aprendizado
contínuo. A apreensão das senhas infotécnicas de acesso são fundamentais neste novo modelo
de civilização.
40
Se o pleno domínio das senhas infotécnicas promove inserções, a inexistência
desse domínio envolve uma exclusão em cadeia, uma hiperexclusão: exclusão
do mercado de trabalho, exclusão do lazer, exclusão do cyberspace, exclusão
da época, exclusão da vida. (TRIVINHO, 2001, p. 225).
Essa revolução provocada pela cultura tecnológica, então, implica em
consideráveis transformações, pois [1] a memória cultural e social expande-se para além do
corpo, para ser armazenada na extensão da memória informática; [2] as informações convertem-
se em produto mercadológico; e [3] o corpo e as relações sociais desmaterializam-se no
ambiente de rede. A vida humana vigora sob a lógica da instantaneidade. A velocidade torna-
se o principal motor que movimenta a cibercultura.
2.2.2. A dromocracia como sistema articulador da civilização mediática
Os conceitos de dromocracia, dromologia e as possíveis variações são creditados
às obras de Paul Virilio. O autor utiliza-se desses termos para compor a base da categoria
epistemológica crítica capaz de revelar a velocidade como vetor de condução da história da
humanidade. Dromos, prefixo grego que designa rapidez, remete às ações da urbis na qual estão
imbricados os planos estratégicos e táticos com os fins bélicos. Então, o progresso humano, sob
o ponto de vista de Virilio, sempre esteve mais ligado à ditadura do movimento fomentado pela
guerra, do que a projetos dos pensamentos tradicionais grego-clássicos, cristãos, cartesianos
e/ou positivistas (TRIVINHO, 2007).
O processo de dromocratização da vida passou por diversas transformações até
configurar-se como sistema que rege a vida social na cibercultura. A dimensão dromológica da
existência está implicada desde a descoberta de “vetores de movimentação de corpos, objetos
e valores materiais e/ou simbólicos” (TRIVINHO, 2007, p. 71-72) presente nos planos
estratégicos de conquistas por território na sociedade primitiva, passando pela superação dos
limites do mar e do ar com ajuda dos meios de transporte até chegar à anulação do tempo e
espaço provocada pela instantaneidade da comunicação tecnológica que, para Virilio (1997),
representa o último veículo. Na concepção do autor, os meios de transporte comparecem no
mesmo plano epistemológico dos meios de comunicação, porque os dois são condutores de
velocidade.
Os vetores de produção de movimento convencionais cedem espaço aos de
transmissão e circulação de produtos simbólicos (informação e imagem),
representativos ou não de referentes concretos. O secular império sucede o
41
último veículo, fadado a mais alta velocidade praticável, a velocidade da luz.
A subtração do território geográfico que se confunde com a diminuição
anuladora do planeta. (TRIVINHO, 2007, p. 57).
A dinâmica da dromocratização cibercultural converge para uma nova forma de
pressão social, identificada por Trivinho (2007, p. 223) como o “gerenciamento infotécnico da
existência” que rege a civilização mediática, na medida em que o cenário mundial torna-se cada
dia mais dependente das tecnologias de tempo real.
2.2.3. Fenômeno glocal
Trivinho (2007) traça o percurso da conceituação do glocal, desde a
conceituação utilizada no âmbito corporativo em tom celebrativo, por apresentar o princípio
pragmático de que toda iniciativa econômica relevante deve seguir os padrões técnicos aceitos
no nível de mercado, até a apropriação do conceito pelas ciências humanas e sociais, incluída
como epistemologia crítica, ultrapassando a esfera da constatação e descrição contextual. Para
o autor, o glocal – como reflexão teórica orientada pela crítica – torna-se uma categoria
conceitual que permite mapear as bases e consequências desse mundo em sua significação
social-histórica e que possibilita o tensionamento teórico do modo de ser no atual arranjamento
da civilização mediática. Dessa forma, a gênese do glocal vigora como categoria conceitual e
de potencial crítico, pois suas características nos âmbitos empírico e sociocultural colaboram
para o entendimento do processo expansão e de conservação da glocalização.
Semanticamente, o glocal funde o local e o global para conceituar o contexto
tecnocultural de acesso e recepção ou de retransmissão de signos ou produtos mediáticos em
tempo real. O glocal, de acordo com Trivinho (2007) é um fenômeno típico da civilização
mediática e dela emergido, formado pela imbricação de processos de contrastantes, sem redução
do global e do local e sem destituir a sua natureza da terceira via:
Como o significante indica “glocal” é neologismo resultante da hibridação
cumulativa de dois termos, “global” e “local”. O plasma semântico, sem
ruptura visível, entre eles faz do glocal alternativa de terceira grandeza, não
redutível a mero somatório daquele, tampouco a um ou a outro, isolado. Na
nova via, global e local são um e mesmo e, simultaneamente, nenhum:
globalização (ou globalismo) e localização (ou localismo) restam dissolvidos.
(TRIVINHO, 2007, p. 283).
O glocal vislumbra a possibilidade de melhor apreender o processo civilizatório
42
satelizado, operando – ao mesmo tempo – a releitura de sua natureza de seu desenvolvimento
e as suas implicações no cotidiano. Por isso, Trivinho acredita que, por meio desse prisma
conceitual, é possível um reexame das problemáticas e dos consequentes impactos dessa
configuração mediática que precisa de aprofundamentos e desdobramentos reflexivos.
2.2.4 A gênese do glocal
Ainda que tenha sido apreendido a partir do contexto cibercultural, o glocal
remonta ao próprio início da comunicação mediática no século XIX, com a invenção do
telégrafo sem fio – por apresentar características de transmissão simultânea em tempo real – e,
posteriormente do telefone, até o desenvolvimento da comunicação mediatizada ao longo do
século XX, passando pela invenção do rádio, da televisão e dos media interativos. Em síntese,
é por meio da categoria glocal que se realiza a revisão social-histórica do desenvolvimento da
comunicação, tornando-se o principal imaginário da cibercultura. Trivinho (2007) aponta
alguns elementos básicos presentes no processo de evolução da condição glocal: [1]
equipamentos de telecomunicações; [2] infraestrutura de rede; [3] acoplamento humano-
máquina; [4] tempo real; [5] procedimento de emissão e de recepção; [6] fluxo de sentido e
não-sentido; [7] alteridade como espectro; [8] desejo comunicacional de interatividade humana.
Embora o fenômeno glocal já se fizesse presente desde o final do século XIX, é
no âmbito da cibercultura que se torna mais apreensível o acoplamento material, simbólico e
imaginário entre o humano e as máquinas capazes de conexão em tempo real. Para Trivinho,
isso decorre da tendência de discussões em nível internacional da ascensão da globalização e
dos localismos. Esses dois fenômenos são equivocadamente, segundo o autor, “considerados
hegemônicos e mutuamente excludentes” (TRIVINHO, 2007, p. 247), porém, eles suscitam
obviamente reflexões sobre a contextualização do fenômeno glocal.
Pelo fato de dar origem à sociedade mediática, o glocal é considerado um
acontecimento inédito e de maior relevância deste século. Os contextos mediáticos incluídos
no processo de glocalização formam a própria empiria do esquema mediático presente no reduto
imediato de ação do corpo, permitindo a sustentação material da recepção e irradiação simbólica
e imaginária de todos os signos pertencentes à ordem global, conforme Trivinho (2007, p. 260).
Essa inextricável integração do global e do local presente no glocal é o grande propulsor das
irradiações simbólicas do global no cotidiano local, resultando no investimento de interesses
empresariais e institucionais, bem como as experiências ciberespaciais vivenciadas pelos
indivíduos com a utilização – obrigatória ou não – dos dispositivos capazes de rede.
43
2.2.5 A teoria do glocal como crítica conceitual da civilização mediática
De acordo com Trivinho (2007), o glocal pode ser entendido como a terceira via
semântica capaz de tensionar os contextos mediáticos em tempo real e a lógica da civilização
atual, articulada a partir deles. Para o autor, essa tensão exercida pelo fenômeno de glocalização
do cotidiano impacta diretamente nas teorias da comunicação, ao propor uma releitura radical
das estruturas comunicativas e das experiências humanas instauradas após o advento sui generis
da era mediática. A categoria glocal desconstrói as bases da matéria social-histórica e o
pensamento tecnoburocrático já consolidadas, ao longo do tempo. Essa revisão histórica tornou
possível a renovação da teoria crítica tão necessária para o entendimento da cibercultura, cuja
principais características são a velocidade e a interatividade, bases do próprio fenômeno glocal.
Desse modo, o fenômeno glocal é o principal responsável pela consolidação da
cibercultura, bem como do enraizamento do capitalismo mantido pelo sistema dromocrático. A
comunicação mediada por máquinas é “a epopeia técnica da integralidade mediática do globo
segundo a lógica do glocal” (TRIVINHO, 2007, p. 245). A clareza crítica que o conceito abarca
contrapõe-se ao contexto que ele engendra, demonstrando o quanto está indexado à própria
lógica na qual opera em todos os âmbitos da existência humana.
[...] cada ambiente glocal se equipara, em seu recorte minoritário, a um
“sistema operacional geral”, destinado a efetivar, a partir de cada ponto de
acesso/recepção/retransmissão, as necessidades multilaterais de imortalização
da civilização global e das suas macroestruturas de desenvolvimento da
existência em tempo real. (TRIVINHO, 2007, p. 274).
Considerando o ponto de vista do autor, o glocal, como categoria crítica,
demonstra a vivência em tempo real, sendo analisada a partir de cinco elementos: [1] a
dependência acentuada nos objetos tecnológicos e na internet; [2] o acoplamento compulsório
entre corpo/mente e máquinas/fluxos comunicacionais como modo de auxiliar as atividades do
cotidiano; [3] as relações sintetizadas na socioespacialização das telas compostas por paisagens
mediáticas que emergem como “real prioritário”, em detrimento do real não exposto pela
visibilidade mediática; [4] a abordagem da alteridade como espectro; e [5] a adesão – voluntária
ou não – ao modelo de civilização atual, como estratégia de legitimação dessa sociedade e da
consolidação do sistema capitalista. Os elementos ora citados, em maior ou menor grau,
explicitam o fenômeno da dependência em relação à interatividade em tempo real (glocal) e a
velocidade (dromocracia).
44
2.2.6 A vida glocalizada
O processo de glocalização da vida humana é configurado como um conjunto de
experiências potencializadas e multiplicadas pelo enredamento dos contextos glocais – como
articulador sociocultural e transpolítico – que reescreve mediaticamente a atualidade. Essa
reescrita acontece, principalmente, por meio das infotecnologias capazes de rede que vigoram
sob o modelo bunker, “um reduto de livre confinamento interativo do corpo, da subjetividade
e do campo próprio” (TRIVINHO, 2007, p. 299), fazendo o glocal interativo emergir.
Quando o autor usa a expressão “livre confinamento”, é possível perceber o
paradoxo contextual no qual o sujeito da civilização mediática está imerso. Na cibercultura,
vive-se sob a égide do sistema dromocrático, cuja expansão depende – seja por adesão dos
indivíduos, seja para a manutenção do mercado e do capital – dos objetos tecnológicos
promotores de interatividade que, ao estarem presentes como imperativo no cotidiano,
submetem o indivíduo à obrigação desejável, à liberdade no aprisionamento invisível que leva
ao estado de desejo vigilante de estar sempre conectado e não perder o tempo, sobretudo, o
tempo real virtual. O tempo real une o campo material – necessário na formação do contexto
glocal – e o campo do imaginário que alimenta o desejo de conexão permanente. Dessa forma,
o fenômeno glocal inaugura a categorização do tempo real, capaz de redimensionar o tempo e
o espaço. O tempo diuturno transforma-se em tempo real, o tempo da imediatez, presente no
momento informacional que se mantém num espaço fluído, sem limites territoriais, englobando
o “espaço imediato da condição glocal”, correspondente ao tempo, e simultaneamente à
“socioespacialização tecnoimagética do aparelho de base”, analogamente ao lugar, ao espaço
da tela (TRIVINHO, 2007, p. 253), resultando no surgimento do tempo anacrônico, reduzidos
à instantaneidade.
Trivinho (2007) aponta a existência de dois modos de tempo real: o bidirecional,
presente no acesso interativo, e o unidirecional, característico da transmissão televisiva. As
características inerentes ao tempo real bidirecional são fundamentais para a compreensão deste
trabalho, uma vez que a vivência em tempo real reorganiza as relações sociais, a política e até
a cidadania. Para dar suporte ao entendimento da temática, é necessário destacar as dimensões
da prática glocal em sentido lato e stricto sensu. O glocal stricto sensu refere-se ao glocal
tecnológico, remetendo ao espaço concreto imediato no qual o corpo experimenta o tempo real
e a superação do espaço por meio de um suporte tecnológico conectado à internet. Essa estrutura
empírica se configura pela presença da tecnologia comunicacional, do fluxo sígnico circulante
nas redes, do sujeito grupal ou individual, institucional ou não, e da relação de acoplamento
45
entre subjetividade/corpo e a rede tecnológica (TRIVINHO, 2008, p. 3-4). Tal estrutura
comparece em todos os tipos de glocais existentes desde o telégrafo até os meios interativos.
O processo de glocalização stricto sensu envolve o contato direto com o meio
comunicacional capaz de acesso em tempo real, especificado por Trivinho (2007), como
experiência glocalizada, pressupondo o contato com a empiria e com os fluxos imagéticos
provenientes desse acesso, possibilitando ao indivíduo o desenvolvimento da própria
experiência vivenciada nesse contexto. A experiência, por sua vez, concretiza-se por meio do
imaginário glocal, no mesmo instante, sem estar atuando somente no âmbito local e tampouco
somente no âmbito global, mas na terceira via proporcionada pela imbricação do local/global,
onde os sujeitos dedicam horas das suas rotinas cotidianas. Na dimensão stricto sensu, o glocal
permite vislumbrar a indexação que ocorre no campo material, tanto através do vínculo
umbilical, formado no ato do acesso em tempo real pelo indivíduo, quanto através do amplo
incentivo e investimento das grandes corporações no sentido de instalar pontos de acesso à rede
nos recintos públicos ou privados, como estratégias de mercado e interesses do capitalismo
enraizado na sociedade.
O glocal lato sensu, por sua vez, relaciona-se ao alcance social, econômico e
financeiro das tecnologias em tempo real. O processo de glocalização em sentido lato acontece
no âmbito da articulação sociocultural e transpolítica da experiência humana. Esse aspecto do
glocal contribui para a apreensão do “poder comunicacional vigente”, devido permitir enxergar
com clareza a abrangência da glocalização humana e, como isso, impactar diretamente na vida
em sociedade.
[...] o glocal é, por assim dizer, a metonímia de toda uma configuração social
histórica de poder tecnológico avançado que, nutrindo-se da eficácia diuturna
dos satélites artificiais, responde pela subordinação de todos os contextos
locais ao processo de glocalização capitalarizada do planeta. (TRIVINHO,
2007, p. 261).
Ainda, o glocal lato sensu se firma no âmbito social- histórico, permitindo
vislumbrar mais claramente a despolitização da política engendrada pelo glocal. A realidade
apresentada por ele é baseada numa realidade mediática que abrange o plano material, o
simbólico e o imaginário. Nesse sentido, segundo Trivinho, o glocal não apenas se transforma
no próprio contexto no qual a civilização está inserida, como também é base de preservação do
status quo. Assim como a despolitização levada às últimas consequências pelo processo de
glocalização que, na sua expansão silenciosa, oblitera e profunda transformação nas relações
sociais, na política, na economia, também impacta nas formas do sujeito ver e agir no mundo.
46
A partir dessas considerações, é possível compreender que o fenômeno glocal é
imaginário da época. Por meio do magma de significações, ele favorece o sujeito a experienciar
novas formas de existência, fincadas e remodeladas no/pelo processo de glocalização. Tal
processo nunca finaliza, mas cria novas práticas que realimentam as existentes, o que poderá
ser visto de maneira mais clara a partir da análise da cidadania glocal, objeto desta Tese, o qual
será apresentado e contextualizado nos capítulos a seguir.
2.2.7 As utopias do imaginário tecnológico: o fascínio pelas práticas glocais
interativas
O imaginário tecnológico está ligado diretamente no pensamento instituído pela
lógica identitária, por carregar em si resquícios das metanarrativas da modernidade não
cumpridas e a capacidade de potencialização da afetividade, dentro de um novo magma de
significações: a velocidade e a informatização. Ambos são magmas por serem estimuladores
das atividades concretas do cotidiano tecnológico cibercultutal, produzindo sentindo e
possibilitando a construção a ressignificação deles.
[...] o imaginário era fruto puro das relações interpessoais, sem mediação
maquínica, sem meio, finalidade em si (teatro, poesia oral, “causos”, contos,
fábulas). O pecado original estabeleceu-se com a mediação. A tela entrou na
vida homem como divisor de águas. Passou-se da fluência para à fruição, da
conjunção à intermediação e do troco ao meio. Aos poucos, tudo virou meio.
O meio se tornou fim [...]. (MACHADO, 2003, p. 75).
Durante muito tempo a voz do imaginário foi silenciada. Era a voz que da
margem, relegada a uma posição secundária. Na modernidade, por exemplo, foram cortados os
laços com as fontes vitais da imaginação em detrimento da supremacia da razão. Agora, a
humanidade recupera o tempo perdido. Durand (1970) destaca que a situação contemporânea,
na qual a ciência e a técnica, oriundas do projeto racional, conduziram paradoxalmente ao
ressurgimento do imaginário como força vital. A civilização que ama das imagens produzidas
pelos meios de comunicação reinstala no mundo a ditadura do imaginário. A sociedade passa
de um extremo ao outro: da exclusão absoluta do imaginário ao desejo da substituição do
racional e da imaginação. Felinto (2003), ainda enfatiza: “quando o imaginário está por toda
parte, quando o seu poder é ubíquo, sem centro e inteiramente pervasivo torna-se tão perigoso
quanto à razão totalitária” (Ibid., p. 28).
O termo imaginário tecnológico é utilizado pela primeira vez por Lucien Sfez
47
(1996) e de acordo com ele o conceito repousa na percepção de “saúde total”, pois, possui um
caráter circular, como se a tecnologia se imaginasse a si mesma.
A serviço de uma ordem, as técnicas solicitadas não são entretanto somente
meios visando a este fim, elas têm sua vida própria, isto é, um funcionamento
que exige que o universo onde elas “vivem” reflita seus próprios traços [...].
A técnica assim reivindicada instaura, pois, um mundo à sua imagem. (SFEZ,
1996, p. 110).
O imaginário tecnológico pode ser mais bem compreendido se for levado em
consideração sua operalidade. Para tanto, é fundamental recorrer a psicanálise, quando Freud
(1971) – influenciado por Le Bon (1895) – pretende explicar a “alma das massas. Para o autor,
o individuo ao se reunir num grupo rende-se a sensação de poder que mobiliza o grupo. Esse
poder é mobilizado por um líder que possui aceitação imediata e que possui um efeito
hipnotizador. Esse comportamento uníssono da massa reforça o sentido de que o imaginário
social é o modo pelo qual os sujeitos partilham inconscientemente o mesmo modo de agir e de
pensar (CASTORIADIS, 1986). Assim, o imaginário tecnológico é o imaginário social sob
bases técnicas que – na atualidade – atua como um dos maiores articuladores da esfera social,
mudando comportamentos, modificando valores e implantando novas formas de relações
pessoais, pois, por meio da ação dos meios de comunicação interativos, os usuários a voz de
comando de algum líder que surgir de qualquer lugar do contexto descentralizado da rede.
Vemos então que o desaparecimento da personalidade consciente, a
predominância da personalidade inconsciente, a mobilização por meio da
sugestão e do contágio de sentimentos ideias sugeridas em atos, estas, vemos,
são características principais do individuo que faz parte de um grupo. Ele não
é mais ele mesmo, mas, transformou-se num autômato que deixou de ser
dirigido pela vontade (FREUD, 1971, p. 87)
O “inconsciente tecnológico” dos usuários é alimentado por meio de discursos
devotados que anunciam o surgimento de um novo tipo de consciência coletiva, capaz de
expandir-se sem limites pela rede (TURKLE, 1997, p. 98). Nessa expansão, o corpo torna-se
maleável, podendo, inclusive, romper os limites de espaço e de tempo – numa ação mais
complexa que o estado de bilocação – ou até mesmo, desaparecer, já que o corpo deixa de ser
matéria para converter-se em códigos padrões da informatização. A narrativa organizadora em
torno da qual se desenrolam todas as ações do imaginário tecnológico, implica na ideia de
desaparição de todo o obstáculo ou materialidade envolvendo as noções de imediatez e de
48
transparência. Essas narrativas ou utopias sem a qual o imaginário tecnológico não poderia
sobreviver se não fosse pelo fenômeno glocal. O que pertence ao local e ao global efetiva-se
como glocal dentro do imaginário tecnológico. O principal vetor de articulação das ações
imaginárias presente no glocal é a velocidade e a interatividade. Esses dois processos
constituem no processo de “planetarização” do mundo por meio da capacidade de
desterritorialização e imaterialidade eletromagnétoca, possibilitando o condicionamento de
toda vida humana ao estado dromocrático. Ou seja, dominam os discursos institucionais e
corporativos, interferem na cultura e no contexto de trabalho, mediam as relações sociais,
econômicas e politicas.
As significações do imaginário tecnológico proporcionadas pelo fenômeno
glocal se concretizam quando o usuário ao se conectar à rede passa a experimentar o poder
proporcionado pelo bunker que, segundo Trivinho (2007)
[...] nomeia redutos ou, muitas vezes, cinturões fortificados, erigidos ou
sulcados no solo ou construídos em patamar totalmente subterrâneo, ara
cumprir objetivos logísticos de proteção, resistência ou defesa contra
investidas inimigas em contextos de guerra ou guerrilha e, como tal, para
oferecer, simultaneamente, retaguarda e processo progressivo de contra-
ataque. (Ibid., p. 307).
Nesse sentido, o usuário protegido pela parafernália tecnológica expande o corpo
material e passa a interagir no ambiente de rede com o corpo imaterial. Trivinho enfatiza, “o
emissor e, em especial, o receptor, meramente distintos no processo real, obliteram-se para
ressurgir como usuários teleinteragentes” (TRIVINHO, 2001, p. 124). O conceito de usuário
teleinteragente pressupõe o grau de participação e intervenção mais plena do que o receptor
num processo dos meios de comunicação de massa. A comunicação interativa desafia o sujeito
a ser totalmente protagonista do processo de produção e de promoção de conteúdo,
redimensionando tanto os esquemas teóricos dos estudos comunicacionais, quanto causando
ressignificação das próprias relações sociais, uma vez que a máquina tornou-se alteridade no
processo comunicativo. As máquinas interativas acabaram por substituir algumas faculdades
humanas e, em outros casos, acabaram cedendo às suas facilidades. Essas máquinas
“inteligentes”, instrumentos de irradiação do imaginário tecnológico glocal, introduzem o
sistema dromocrático no cotidiano da sociedade por meio da praticidade de seu uso, causando
dependência delas. As máquinas tecem no imaginário social contemporâneo com a ideia de
indispensabilidade para execução das tarefas mais corriqueiras. Por isso, na esteira dessa
afirmativa, vale lembrar Le Breton (2003) que diz: “os computadores transformaram-se em
49
parceiros da vida, em companheiros, em abertura para o mundo” (Ibid.,p. 155). Essa “parceria
da vida e abertura para o mundo” é o exercício das práticas glocais interativas que possibilitam
a teleexistência, ou seja, por meio do imaginário, o sujeito passa a existir dentro das redes
telemáticas. O corpo imaterial desloca-se no ciberespaço, surgindo, então, o neonomadismo
(BAITELLO, 2012). O usuário abandona o corpo material e o terreno citadino para tomar posse
do corpo “liquefeito”, fluido, espectral e poder experimentar todas as possibilidades de vida
proporcionadas pelo ambiente glocalizado. “(...)o glocal e a existência em tempo real por ele
permitida significam abandono e esvaziamento do espaço urbano extensivo (...)em proveito da
feudalização e povoamento da vasta socioespacialização eletrônica em que se transformou o
planeta” (TRIVINHO, 2001, p. 87).
A crise da motricidade desencadeada pela “lei da menor ação” chega ao ápice
com as práticas glocais interativas. Ao mesmo tempo em que o usuário compartilha do
imaginário de liberdade no contexto do ciberespaço, está aprisionado na materialidade do corpo
em apenas num local. Logo, como é possível perceber, as significações imaginárias instituídas
no imaginário social por meio do fenômeno glocal não se reduzem a experiência na rede, mas
extrapola para a vida cotidiana, para o real, invadindo o imaginário radical (individual) criando
novos magmas e, assim, mostrando a força criativa das ações imaginais que articulam a
sociedade e reescrevem a história.
50
PARTE II
CIDADANIA COMO DISPOSITIVO
51
A segunda Parte desta Tese é composta por dois capítulos, sendo um descritivo
e outro descritivo e analítico. O terceiro capítulo, que compõe a sequência do trabalho, dedica-
se em traçar o percurso histórico do conceito de cidadania construído ao longo do tempo.
Destaca-se a evolução da cidadania no Brasil, desde o processo de colonização até os dias
atuais, após o governo Dilma Rousself. Esse retorno à história torna-se fundamental para
compreensão da fragilidade da cidadania brasileira. Fragilidade decorrente de alguns fatores,
tais como: [1] o sistema escravagista que vigorou no país por muito tempo, contribuiu para que
a lógica conjuntista identitária fosse fundamentada na negação do reconhecimento do escravo
como sujeito, fazendo com que no imaginário social se consolidasse a objetificação do negro;
porém, após a abolição, percebe-se que o magma das significações imaginárias está alicerçado
na negação do direito de toda e qualquer minoria; e [2] conquistas e retrocessos, na mesma
medida, constantemente, colaboram para que os direitos políticos e civis não sejam vividos
plenamente pelo cidadão brasileiro, favorecendo com que se satisfaça somente com os direitos
sociais. Vale ressaltar que o tripé de direitos garante a plenitude do exercício da cidadania.
O quarto capítulo faz uma abordagem descritiva e analítica da cidadania como
dispositivo. Para tanto, se faz necessário uma breve abordagem do conceito de dispositivo
presente nas obras de Foucault (2010) e Agamben (2009). O dispositivo entendido como
magma de significações imaginárias que carregam em si à lógica identidária da manutenção do
poder. É importante frisar que a lógica se instrumentaliza de várias maneiras, uma delas é o
tripé de direitos que garantem a cidadania. Na mesma medida em que a cidadania é necessária
para o benefício da vida do cidadão, também é ferramenta de controle do Estado. Os
dispositivos de controle se potencializam no contexto da cibercultura, favorecendo a criação de
novos magmas de significações imaginárias fundamentados nas práticas interativas e, assim,
ressignificando o dispositivo da cidadania.
52
CAPÍTULO 3 – CIDADANIA
3.1. A cidadania
Comumente, o termo cidadania está associado às condutas sociais. Sua origem
está intimamente ligada ao desenvolvimento da polis grega, entre dos séculos VIII e VII a.C,
quando passou a vigorar como condição para o exercício da vida em sociedade. Ao longo do
tempo, mudanças estruturais de caráter socioeconômico e político incidiram na evolução
conceitual e na prática da cidadania. Por esse motivo, a definição de cidadania não é estanque.
Ela é construção histórica e, por isso, o seu significado varia de sentido ao longo do tempo.
Remete-se à origem da cidadania o desenvolvimento da polis grega, entre os
séculos VIII e VII a.C, quando passou a ser concebida como condição para o exercício da vida
em sociedade. Mas, a partir do século XVIII – com a expansão das sociedades modernas
industriais –, novas visões de economia, política e sociedade foram alargadas, contribuindo para
a ampliação dos horizontes da esfera pública e, consequentemente, no surgimento de novos
direitos aos cidadãos, modificando as estruturas no âmbito civil, político e social. A
intensificação desses direitos provocou – ao mesmo tempo – a contrapartida de caráter mais
conservador na tentativa de conter que novos direitos fossem legitimados (BARBALET, 1989).
A discussão dialética entre o conceito de cidadania e a organização político-
social colabora para a compreensão da estreita relação entre a cidadania pós-moderna, o
enraizamento do capitalismo e o fenômeno glocal, consolidado na cibercultura. Desde o fim da
segunda guerra, a cidadania passa por consideráveis transformações ao ter íntima ligação com
os direitos humanos. Mas, no contexto cibercultural, é ressignificada. Para abarcar todas as
modificações sofridas com o passar do tempo, é importante vislumbrar o resgate histórico do
termo, que é iniciado com sua origem na antiguidade clássica até o atual contexto pós-moderno,
observando o impacto do imaginário glocal no processo de ressignificação da prática cidadã.
3.1.1. Evolução conceitual da cidadania
Não há como precisar o aparecimento do conceito de cidadania. Historicamente,
ele está ligado a duas outras categorias: civilização e civilidade. Ambos os termos – cidadania,
civilidade e civilização – derivam do latim civis (cidadão) e civitas (cidade) que, na perspectiva
clássica, estavam relacionados aos moldes de vida urbana, onde os sujeitos poderiam gozar da
urbanização e cumprir com as responsabilidades políticas necessárias para a manutenção da
ordem da cidade.
53
De acordo com a história ocidental, o termo civis começou a ser utilizado na
Antiguidade Clássica e estava associado à participação política nas polis gregas. O primeiro a
escrever sobre o papel do cidadão e os aspectos que compõem a cidadania foi Aristóteles. Para
o filósofo, todo sujeito estava destinado a viver naturalmente nas cidades-estados. Por isso, a
cidade-estado precisava ser a mais perfeita representação de uma comunidade cívica. A
manutenção da satisfação dos membros da polis dava-se por meio da política, que tinha como
objetivo colaborar para os princípios da ordem, visando o bem comum. Apesar de o homem
possuir instinto para a gregariedade – latente necessidade de estar perto de seu semelhante –,
precisava de leis que assegurassem os direitos e determinassem os deveres para se viver em
harmonia social. Ainda, para Aristóteles, como a cidade-estado era uma comunidade
naturalmente política, deveria ser governada pelo princípio da conformidade com a justiça, ou
seja, a política estava atrelada ao significado de justiça, que era entendida como lei natural,
fruto da razão (logos) reta e sem possibilidades de equívocos ou distorções, garantida por meio
das constituições (politeial) concebidas como espelho do próprio sistema que vincula todos os
cidadãos, garantindo-lhes direitos e determinadas responsabilidades sociais.
Dessa forma, os cidadãos, por constituírem o núcleo da polis, eram elementos
fundamentais para a manutenção da política. Ser cidadão era um encargo ativo no quadro das
atribuições cívico-políticas, podendo exercer as funções de juiz e contribuir na elegibilidade
dos cargos de magistratura. Segundo Aristóteles, é inevitável a dissociação entre cidadão e
virtude cívica. No entanto, ressaltava que a cidadania estava anelada às formas de constituições,
sejam puras ou corruptas. Ser cidadão na democracia difere-se de ser cidadão na oligarquia ou
tirania, tanto por causa da constituição que rege determinada sociedade, quanto pelo
regionalismo das instituições políticas. Por isso, nas primeiras páginas do livro III da Política
[...], o autor afirma que para melhor apreender os termos cidadania e cidadão faz-se necessário
responder a dois questionamentos: [1] quem é o cidadão? e [2] quem e qual pessoa pode ser
chamado de cidadão? Para a primeira pergunta, o filósofo enfatiza que “ser cidadão” significa
ser titular de um poder público não limitado, capaz de possibilitar a participação efetiva na
decisão coletiva, visando o bem comum da sociedade. Para a segunda questão, os critérios
restringem tal participação a um número específico de homens, sendo excluídos aqueles que
vivessem do próprio trabalho, como: camponeses, mulheres, escravos e estrangeiros.
A cidadania entre os gregos não possuía sentido lato, uma vez que a categoria
não abarcava todos os sujeitos moradores da polis. Por isso, para Aristóteles, a escravidão era
justificada. Os escravos eram concebidos como parte integrante do “corpo” do seu senhor e
deveriam estar sempre à sua disposição. A escravidão era prevista na constituição, pois
54
possibilitava ao homem cidadão de direito livrar-se das amarras dos afazeres domésticos mais
elementares, para poder exercer com desenvoltura suas atribuições, seja na vita activa ou na
vida contemplativa. No texto aristotélico, a escravidão está ligada à impossibilidade de os
instrumentos técnicos não cumprirem suas funções por si só. “Como as tecedeiras podem tecer
sozinhas?”, pergunta o filósofo. De certo modo, ainda de maneira tímida, residia nesse discurso
o início da crença no desenvolvimento da técnica como possibilidade da libertação do homem
(escravo) das amarras que o prendia aos grilhões da necessidade social (PINSKY, 2015).
A construção jurídica do termo cidadania originou-se no Império Romano,
apesar de na Roma antiga não se falar em nacionalismo ou patriotismo, tal como se fala
hodiernamente. Compreendia-se que o combate pela pátria deveria ser um desejo inerente ao
cidadão romano. Em Roma, o termo latim civis significava a garantia dos indigenatos (nativos)
diante dos estrangeiros. Dos direitos garantidos aos civis estavam a possibilidade de construir
família, ter servos – bem como ter o direito de libertá-los –, direito ao voto para decidir sobre a
paz, sobre a guerra e sobre a criação de cargos de magistrados com a prerrogativa de também
serem eleitos nas magistraturas. Vale ressaltar que, a priori, no Império Romano, os direitos
cabiam ao gentil. Portanto, os termos gentil, gentilis e civis correspondiam a três lados da
mesma figura social que lhe conferiam, igualmente, o direito à cidadania.
A história romana é acompanhada pela evolução dos critérios de cidadania que,
com o passar do tempo, previa ser conferida a todos os habitantes do Império Romano. Aos
poucos, rompia-se com a distinção que ligava a cidadania, em sentido restrito, aos indigenatos.
Assim, quebrava-se, também, a ligação entre cidadania e os elementos de ordem natural como
sangue e solo, para ganhar significados mais amplos ligados à ordem política (BOTELHO;
SCHWARCZ, 2012, p. 9). Na medida em que a cidadania passou a fazer parte do viés político
da sociedade, também tornou-se mais fácil “perder” o título de cidadão. O grau máximo da
redução chegava a transformar o sujeito livre em escravo, submetendo-o à condenação penal
que correspondia à morte da personalidade jurídica do indivíduo.
No período que se sucedeu à queda do Império Romano, século V, houve uma
perda do significado de cidadania, tal como herdado na Antiguidade. Uma nova organização
social, baseada em ideais de fidelidade, tornou a participação política assunto secundário e
cedeu espaço para a preocupação com o plano religioso (ARENDT, 1995, p. 43). A organização
social na Idade Média mantinha-se num cenário de dependência entre nobreza, clero e
camponeses. Os camponeses estavam subordinados à nobreza que, por sua vez, era responsável
pela redenção de todos. “Ninguém pensava que este (o povo) tivesse que ser consultado,
diretamente ou por intermédio dos seus eleitos. Não tinha ele como seus representantes naturais,
55
segundo o plano divino, os poderosos e os ricos?” (BLOCH, 1982, p. 450). A esse tipo de poder
aliou-se o regime judiciário que refletia uma distinção de status social diferenciada em
estamentos3. Os estamentos superiores possuíam o direito de serem julgados por alguém
semelhante. Porém, os mais pobres não possuíam esta prerrogativa. Assim, o acesso à justiça,
além de constituir-se de elemento consuetudinário4, impedia o julgamento entre “iguais” nas
camadas menos favorecidas da sociedade. Era, assim, uma sociedade de ordens diferenciadas
tanto na política quanto juridicamente. O clero e a nobreza detinham os direitos de cidadania,
o “saber e o poder”. Os servos permaneciam alheios aos privilégios dos cidadãos, não sendo
possível o acesso ao poder público, sem mediação de outro estamento, detentor de maior poder.
Submissos às ordens da justiça e sem reconhecimento do poder jurídico, não possuíam direitos
reconhecidos legalmente (BLOCH, 1982, p. 411).
O quadro começou a ser revertido no contexto do renascimento urbano e a partir
da formação dos Estados Nacionais. Fase conhecida historicamente como Baixa Idade Média,
responsável pelo ressurgir da ideia de Estado centralizado e, por consequência, da noção
clássica de cidadania ligada à concessão de direitos e deveres políticos. Iniciava-se uma nova
relação entre política, economia e sociedade, dado o dinamismo que o nascente capitalismo
provocava. Claro que houve espaço para o fortalecimento de uma burguesia mercantil que
aspirava aos mesmos direitos destinados aos estamentos privilegiados. Ainda neste período,
foram desenvolvidos tanto os princípios teóricos que instauraram o Absolutismo Monárquico,
quanto a moderna concepção de cidadania. Então, é possível afirmar que, no contexto medieval,
os direitos políticos e a cidadania estavam submetidos às necessidades materiais e espirituais
impostas pela ruralização da economia e pela cristianização da sociedade que foram, pouco a
pouco, suplantadas pela crescente urbanização.
O processo de formação dos Estados Nacionais impulsionou mudanças nos
quadros sociopolíticos, à consolidação da burguesia como classe atuante na política (ainda que
timidamente) e no campo econômico. Mesmo assim, o poder ainda estava centrado no
absolutismo monárquico. Foi somente a partir das revoluções sociais, das transformações
políticas e econômicas, das criações artísticas, do desenvolvimento das ciências, da busca pela
liberdade de pensamento e da igualdade entre os indivíduos impulsionados pelas ideias
Iluministas que se reconstruiu um novo conceito de cidadania. Esse novo conceito vinha
3 Trata-se de uma forma de estratificação social com camadas mais fechadas do que as classes sociais e mais
abertas do que as castas. Nessas sociedades, os indivíduos são obrigados, desde pequenos, a seguir um estilo de
vida predeterminado pelo governo. 4 No direito consuetudinário, as leis não precisam estar no papel para serem sancionadas ou promulgadas, porque
estão atreladas a cultura. São os costumes das sociedades que promovem as leis.
56
carregado de novos significados, sofrendo influência do tripé iluminista de igualdade, liberdade
e fraternidade, mas também pelo desenvolvimento do capitalismo e pelas reformas religiosas
do século XV, que traziam uma visão atualizada de espiritualidade, entre as quais o trabalho
passava a ser reconhecido como forma de redenção pessoal. Nessa realidade, a burguesia lutava
para conquistar o poder, apesar de sua proeminência econômica e do apoio recebido do
Mercantilismo, ainda não tinha se firmado politicamente como gostaria. Como forma de tomar
de vez o centro político e econômico, os burgueses passaram a propagar a maior autonomia de
pensamento aos homens comuns, ou seja, o proletariado, surgindo assim, as ideias iluministas
liberais, produto dos avanços científicos tecnológicos que davam suporte para uma concepção
de racionalidade.
Nesse cenário, a concepção de cidadania aproximou-se daquela originalmente
pensada por gregos e romanos, contendo como princípios básicos a igualdade e a liberdade. Foi
com esse espírito renovador que Locke e Rousseau conceberam as ideias de uma democracia
liberal, baseando-se na razão e contrapondo-se ao direito divino (LOCKE, 1973; ROUSSEAU,
1980). Tais ideais serviram de substratos teóricos das Revoluções Burguesas ocorridas nos
séculos XVII e XVIII. Esses pensamentos procuravam regular as relações de poder, garantindo
aos cidadãos livres a atuação civil, econômica e política. Rousseau contestava o uso da força
como reguladora da sociedade que, segundo seu entendimento, devia reger-se pela consciência
múltipla dos direitos e deveres dos cidadãos, os quais atuariam diretamente sobre si mesmo, no
sentido de proporcionar a liberdade plena. O capitalismo, para Locke, continha caráter de
universalidade e fornecia o argumento que a burguesia necessitava para firmar-se politicamente,
ao associar o conceito de liberdade ao de propriedade material (LOCKE, 1973, p. 88). Assim,
introduzem-se inovações de pensamento que remetem à atual concepção de Direito Civil,
levantando a questão dos direitos políticos e de quem os deve possuir e exercer. Essa
problemática dos direitos era um traço que distinguia a burguesia do povo, pois, as lutas por
direitos políticos igualitários distanciavam as duas classes, à medida que a primeira sempre era
beneficiada.
As ideias iluministas eram a base do pensamento político da época e, por isso,
influenciavam tanto os movimentos de independência na América, quanto as Revoluções
Inglesa e Francesa. Se o pensamento iluminista promovia a inclusão de todos, na prática,
traduzia-se em desigualdades no campo social. Tal situação trouxe inúmeros prejuízos à
cidadania, restringindo a sua prática, como afirma Barbalet (1989).
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[...] a concessão de cidadania para além das linhas divisórias das classes
desiguais parece significar que a possibilidade prática de exercer os direitos
ou as capacidades legais que constituem o status do cidadão não está ao
alcance de todos que os possuem. (BARBALET, 1989, p. 13).
Os limites da esfera da cidadania e as diferenças de classes operavam no sentido
de diminuir os atributos políticos dos cidadãos. Esse contexto torna-se profícuo para a evolução
conceitual da cidadania, principalmente após os avanços no campo da técnica e da política.
Esses avanços provocaram impactos tão radicais na sociedade e reverberaram nos direitos e
deveres dos cidadãos, sobretudo nos séculos XIX e XX, pois transferiram para a categoria a
reflexão dos desajustes do sistema de classes provenientes das democracias modernas
consolidadas pelo sistema capitalismo. A independência dos Estados Unidos e o processo
revolucionário francês acabaram por delinear um novo tipo de Estado. O tripé iluminista,
embora tivesse origem no pensamento burguês e não se converter na prática, contribuiu para
repensar a necessidade de incluir um maior número de indivíduos no corpus político das
sociedades, sob o ponto de vista dos direitos. Os indivíduos não nascem com direitos – uma
noção reafirmada pela Declaração dos Direitos Humanos da ONU, em 1948 –, pois eles são
fenômenos sociais, retornando, assim, ao pensamento clássico aristotélico. Em vista disso,
segundo Hegel, só há direitos efetivos ou liberdades concretas no quadro da vida social do
Estado. Por isso, os sujeitos passaram a lutar pela inclusão de seus direitos pelo estado,
desencadeando estudos contemporâneos como os de Marshall e Barbalet, cujo enfoque estaria
centrado nas desigualdades de classe (MARSHALL, 1967; BARBALET, 1989).
A luta pela garantia dos direitos passa a ser característica da prática da cidadania.
Assim, pode-se entender que o cidadão deve atuar em benefício da sociedade e cabe ao estado
legitimar os direitos básicos à vida, como moradia, alimentação, educação, saúde, trabalho,
entre outros. E, com isso, a cidadania passa a ter o significado ligado diretamente à política.
Marshall (1967) afirma que durante todo o século XIX, a cidadania estava relacionada às
questões das diferenças de classes. De acordo com o autor, a diferenciação seria inerente à
própria relação entre os direitos e a camada que os teria fomentado. Nesse sentido, a cidadania
apareceria dividida em categorias distintas, com o intuito de demonstrar o desenvolvimento
desigual de cada uma delas e a quais setores pertenceria (MARSHALL, 1967, p. 63-66). Assim
surge a cidadania civil, que marca a superação do problema instaurado no período medieval, ao
garantir direitos à liberdade e à justiça, proporcionando a ampliação da cidadania política.
Esses, segundo Marshall, aparecem com a diferenciação classista, sobretudo, depois da
efervescência dos conflitos sociais ocasionados pela cobrança do poder público em ações
efetivas para diminuir as diferenças. Logo, pretende-se “(...) suavizar o mal que as
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desigualdades econômicas causam aos indivíduos, colocada uma rede de proteção de política
social por baixo dos desfavorecidos” (BARBALET, 1989, p. 76).
A nova consciência sobre as diferenças de classes acentua os debates sobre a
exclusão social, os direitos humanos e a atuação política da sociedade civil. No entanto, no atual
estágio do capitalismo, é imprescindível considerar as transformações causadas pelas duas
grandes guerras mundiais. O clima de tensão vivenciado durante o período de guerra permitiu
práticas institucionalizadas de violência, o que desencadeou reivindicações por parte da
sociedade civil. Mas foi somente após a segunda guerra que se iniciou uma nova relação entre
os diretos sociais e o poder público, favorecendo a atualização do conceito de cidadania. Em
dezembro de 1948, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou a Declaração Universal dos
Direitos do Homem, mesmo com a resistência de alguns países. Pela primeira vez na história,
houve a conscientização mundial em relação aos crimes cometidos contra populações inteiras,
minorias nacionais, étnicas, religiosas. A soberania nacional, desde o século XVIII e até à
última guerra, era considerada privilégio absoluto de cada Estado, autorizando os governos,
dentro de seus territórios, a, não raras vezes, negligenciar a vida de seus cidadãos, sobretudo,
daqueles que faziam parte de minorias.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem contém a enumeração dos
direitos humanos fundamentais, os quais se tornam regras para os países por meio do “Pacto
sobre os Direitos Civis e Políticos”. Na sequência da Declaração Universal e da ratificação dos
dois Pactos, várias convenções regionais foram subscritas, designadamente a Convenção
Europeia dos Direitos Humanos, assinada, em Roma, no dia 04 de novembro de 1950. Dessa
conscientização mundial foi possível a legitimação e a defesa pela garantia dos direitos do
homem, resultando num enorme progresso do conceito de cidadania ao integrar no conjunto
dos direitos (além dos direitos civis, políticos e sociais) os direitos econômicos e culturais.
No entanto, mesmo com as garantias constitucionais e os acordos firmados entre
as Nações Unidas não foram suficientes para a promoção das condições necessárias ao exercício
de uma cidadania plena, com liberdade e igualdade de direitos humanos. Ainda nos dias de
hoje, no contexto pós-moderno e com o advento da cibercultura, os problemas são recorrentes
tanto nas violações dos direitos humanos, como nas ineficiências no campo social e no processo
de pauperização manifestado na periferia do capitalismo. Isso só reforça o quanto a cidadania
é mais do que o ato de votar ou de pertencer a uma sociedade política. Cabe, portanto, à
sociedade civil, que o caráter representativo substitua as pressões ou mesmo a atuação legítima
dos cidadãos. Nisso consiste a essência do papel do cidadão atual.
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3.1.2. A cidadania no Brasil
O fenômeno da cidadania é complexo e historicamente indefinido. De acordo
com Marshall (1967), o conceito de cidadania se desenvolveu na Inglaterra de maneira lenta.
Primeiro, os direitos civis foram instituídos por volta do século XVII. No século XIX, surgiram
os direitos políticos e, somente, no século XX, os direitos sociais foram conquistados. Segundo
o autor, esse desenvolvimento não é apenas cronológico, mas também lógico. Foi com base no
exercício dos direitos civis que os ingleses reivindicaram o direito de participar da vida política,
por meio do voto. A participação permitiu a criação do Partido Trabalhista, responsável pela
introdução dos direitos sociais no país. No entanto, o autor ressalta que uma das exceções na
sequência da aquisição dos direitos está, também, diretamente ligada à introdução da educação
popular, definida como direito social. Mas tem sido historicamente, um pré-requisito para
expansão dos outros direitos. Em alguns países, como a Inglaterra, um dos principais motivos
que levaram a cidadania se desenvolver com rapidez foi a implementação do ensino voltado
para a população de baixa renda. Por meio da educação, o maior número de pessoas tomou
conhecimento de seus direitos e se organizaram para lutar por eles. Por isso, países que possuem
deficiência no ensino das classes populares têm dificuldades em consolidar a cidadania civil e
política.
O ideal de cidadania pode ser semelhante em toda a cultura ocidental. Porém, o
caminho para se chegar nela é distinto. O percurso inglês foi diferente do Francês, do Alemão
e do norte americano. Nesse processo houve evoluções, retrocessos e singularidades. Cada país
seguiu o seu caminho. O Brasil não é exceção. O que aconteceu em outros países foi uma
evolução totalmente diferente do que ocorreu no Brasil. No Brasil, o direito social sempre teve
maior destaque em relação aos outros direitos. No entanto, Carvalho (2013) ressalta que, na
Inglaterra, havia lógica na cronologia do desenvolvimento da cidadania. A alteração nessa
lógica implica alteração no modo como a cidadania vai ser exercida no país.
No período da colonização, o Brasil já era um país territorialmente grande,
possuía rica variação linguística, cultural e religiosa. No entanto, a maioria da população não
sabia ler, vivia sob o modo econômico de monocultura estimulado pelo trabalho escravo e pela
prática de uma política de absolutista. Nesse cenário, a escravidão, é sem dúvida, o fator mais
negativo para a consolidação da cidadania. A escravidão dos índios foi praticada logo no início
do período colonial, mas foi proibida por lei. Rapidamente, a maioria das tribos indígenas foram
dizimadas. De acordo com Carvalho (2013), na época da descoberta havia cerca de quatro
milhões de índios. Em 1823, restavam apenas um milhão. As tribos que conseguiram escapar
60
ou se miscigenaram ou foram afastados para o interior do país.
Sem a mão de obra indígena, os escravos começaram a ser importados. Essa
prática iniciou na segunda metade do século XVI e estendeu-se, initerruptamente, até 1850,
vinte oito anos após a proclamação da independência. Nessa época, após a independência, o
Brasil tinha em média cinco milhões de habitantes, sendo um milhão só de escravos. Embora
estivessem concentrados nas áreas de agricultura exportadora e de mineração, os escravos
também trabalhavam na área urbana. Praticamente, toda pessoa que possuísse recursos
financeiros adquiria escravo. A escravidão era tão forte no Brasil que os próprios escravos
alforriados, quando conseguiam certa estabilidade financeira, adquiriam novos escravos
(CARVALHO, 2013). O fortalecimento da escravidão, bem como, o modelo econômico
vigente não contribuía para construção de um ambiente favorável à formação da cidadania.
Os escravos não eram considerados cidadãos, não tinham nenhum direito. Nem
mesmo direito sobre o seu próprio corpo. Eram vítimas de violência (espancamentos, estupros,
torturas) sob a condição de ser legalmente propriedade dos seus senhores. Entre escravos e
senhores existia uma sociedade legalmente livre, mas que sofria pela falta de condição para o
exercício da cidadania. A população em geral dependia dos grandes proprietários para morar,
trabalhar e defender-se contra arbitrariedades do governo ou de outros proprietários. A
educação era elitizada, as mulheres viviam sob a custódia dos homens da família (pai, irmão ou
marido). Vale ressaltar que até mesmo os proprietários de terras ou comerciantes bem
sucedidos, apesar de livres e terem o direito de votar e de serem votados nas eleições
municipais, não conseguiam gozar plenamente dos seus direitos de cidadão, pois faltava o
exercício da igualdade perante a lei. O poder do governo, as leis de Estado, não conseguia
atender a todos, permitindo que cada sujeito a executasse a sua maneira.
A justiça do rei tinha alcance limitado, ou porque não atingia os locais mais
afastados das cidades, ou porque sofria oposição da justiça privada dos
grandes proprietários, ou porque não tinha autonomia perante as autoridades
executivas, ou, finalmente, por estar sujeita à corrupção dos magistrados.
Muitas causas tinham que ser decididas em Lisboa, consumindo tempo e
recursos fora do alcance da maioria da população. O cidadão comum ou
recorria à proteção dos grandes proprietários, ou ficava à mercê do arbitro dos
mais fortes. Mulheres e escravos estavam sob a jurisdição privada dos
senhores, não tinham acesso à justiça para se defenderem. Aos escravos só
restava o recurso da fuga e da formação dos quilombos. (CARVALHO, 2013,
p 30.).
Outro aspecto que dificultava a prática da cidadania durante o governo português
era o descaso com a educação. De início estava ligada aos ensinamentos catequéticos dos
61
jesuítas. Mas após a expulsão da ordem, por volta de 1759, o governo tomou para a si a
responsabilidade. No entanto, em nada avançou o ensino brasileiro durante esse período. Em
1872, meio século depois da independência, apenas 16% da população era alfabetizada. No que
toca ao ensino superior, o cenário não era diferente. Portugal não possuía tradição em
investimento na criação de universidades nas suas colônias. Então, somente brasileiros com
bons recursos financeiros tinham condições de viajar para estudar nas tradicionais escolas
superiores da Europa, sobretudo, nas escolas portuguesas (CARVALHO, 2013).
Ainda de acordo com Carvalho, mesmo após a proclamação da república, o
Brasil não se transformou em república. Não havia sociedade política, “não havia “repúblicos”,
isto é, não havia cidadãos” (CARVALHO, 2013, p. 35.). Isso porque os direitos civis e políticos
se restringiam a poucos. Assim, sem a experiência do exercício político e civil, a sociedade
também não tinha clareza do que seriam os direitos sociais. Por esse motivo, as manifestações
cívicas eram tão raras. No Brasil colonial, a manifestação mais significativa foi protagonizada
pelos escravos. Porém, sempre abafadas pelo governo e silenciadas com o massacre de muitos
negros. No século XVIII houve quatro revoltas de caráter político. Três delas lideradas por
elementos da elite a favor da independência. Duas aconteceram na região de Minas Gerais,
berço do movimento, inspirado nos ideais iluministas, denominado de Inconfidência Mineira
em 1789. Esse foi, sem dúvida, o movimento mais politizado da época. Outro movimento
bastante significativo, influenciado pela Revolução Francesa, foi a Revolta dos Alfaiates em
1798, que teve adesão da classe popular como militares de baixa patente, artesãos e escravos
com objetivo de lutar pela extinção do sistema escravagista. A luta em nada se parecia com os
antigos movimentos organizados pelos próprios escravos. Principalmente, porque antes os
negros se organizavam em suas senzalas e, quase sempre, articulavam fugas para os quilombos
distantes. A Revolta dos Alfaiates também almejava a extinção da escravidão, mas por meio do
reconhecimento dos negros escravos como cidadãos brasileiros. Esse movimento, bem como,
qualquer outro em prol da cidadania durante esse período no Brasil, foi reprimido.
Vale destacar que a Revolta dos Alfaiates teve muito mais cunho social do que
político, por isso, a sua relevância para a história. Mesmo não alcançando os objetivos de
imediato, deu o primeiro passo no caminho pela luta dos direitos sociais, influenciando o
surgimento de outra revolta, a de Pernambuco5, em 1817. Ao contrário da Revolta dos Alfaiates,
a de Pernambuco era composta por membros da alta patente militar, comerciantes, senhores de
engenho e religiosos com a intenção de proclamar uma república independente do resto do país,
5 A Revolta de Pernambuco originou-se de uma prolongada luta contra os holandeses no século XVII, o que acabou
contribuindo para o fortalecimento dos ideais iluministas no imaginário social.
62
formada pelas capitanias de Paraíba, Rio Grande do Norte e Pernambuco. Durante dois meses,
os lideres do movimento conseguiram controlar o governo. Mas, não demorou em serem
punidos com fuzilamento. No entanto, a revolta serviu para demonstrar que a população
começava a ter consciência dos direitos sociais e políticos. A república passou a ser entendida
como governo do povo livre, se opondo ao absolutismo monárquico português. A sociedade,
por sua vez, começou acreditar que o significado de liberdade estava ligado ao rompimento
com Portugal, o que acabou gerando um problema: ao invés de disseminar o discurso sobre os
benefícios que a ruptura traria para o fortalecimento da cidadania brasileira, foi disseminado
um discurso patriótico vazio e exagerado que em nada contribuía para a conscientização da
população sobre o sentido de ser cidadão.
Como abordado anteriormente, pode-se perceber que a independência não foi
um fator impulsionador para consolidação da cidadania. Principalmente, porque a herança
colonial deixou marcas na sociedade. Uma dessas marcas pode-se perceber no próprio modo
com que o movimento da independência ocorreu. Ela não foi fruto de movimentos populares e,
nem tão pouco, de guerras civis, como na América espanhola. A revolta que mais se aproximou
de uma luta popular foi a Revolta de Pernambuco, de 1817, e, de certa forma, a Inconfidência
Mineira, em 1789. Porém, ambas lutavam pela libertação de suas regiões em particular, afinal
não havia ainda uma identidade nacional construída. E, por estar restrita a uma pequena parte
do país foi rapidamente derrotada. Diante desse cenário, Carvalho (2013) afirma que a
“característica política da independência brasileira se deu por meio da negociação entre a elite
nacional, a coroa portuguesa e a Inglaterra, tendo como figura mediadora o príncipe D. Pedro”
(CARVALHO, 2013) e o negociador José Bonifácio que fazia parte da alta burocracia local e
viveu durante algum tempo em Portugal.
Sabe-se que a maioria da população aceitou a independência negociada. A
sociedade carioca e de outras capitais apoiaram com entusiasmo o movimento, inclusive
enfrentaram as tropas portuguesas, fazendo acender um radicalismo popular manifestado no
ódio aos portugueses que ainda ocupavam posições de poder ou controlavam o comércio nas
cidades costeiras. No entanto, quem diretamente se envolveu com a causa foi a elite brasileira,
procurando, até o fim, uma solução que não implicasse a ruptura total com o governo português,
porém, não foi possível. Por intermédio da Inglaterra, Portugal aceitou a independência após o
pagamento de uma indenização de dois milhões de libras esterlinas, além de manter no Brasil
a monarquia e a casa de Bragança. Fato apoiado pela elite, pois existia a convicção de somente
a figura de um rei poderia manter a ordem social e a união entre as províncias.
Como se pode perceber, o papel do povo na independência do Brasil não foi de
63
mero espectador, mas também não foi decisivo, se comparado com a América do Norte. Porém,
mesmo assim, não é possível afirmar que o fato se deu à revelia da população, apesar de não
ocorrer impulsionado pela luta popular em prol da liberdade. Contudo, o movimento pró-
independência acendeu na sociedade o sentimento de pertencimento à pátria. O que reverberou
na decisão de pressionar, em 1831, o imperador renunciar o posto. Nessa época houve grande
agitação nas ruas do Rio de Janeiro exigindo a reposição do ministério deposto. Implantou-se
um governo ao estilo das monarquias constitucionais e representativas europeias. Mas não se
tocou no grande problema que era a escravidão. Vale ressaltar que, após da independência, a
inspiração política brasileira caminhava em duas direções opostas: a primeira na direção norte
americana, com o modelo republicano; a segunda, no modelo europeu, com a monarquia.
Com a presença mediadora da Inglaterra, o modelo de monarquia constitucional
venceu, principalmente, após o discurso dos ideais do liberalismo francês pós-revolucionário
serem disseminados entre a elite brasileira. O constitucionalismo exigia a presença de um
governo representativo, baseado no voto dos cidadãos e na separação dos poderes políticos.
Outorgada em 1824 e influenciada pelo modelo francês e espanhol, a primeira constituição
regeu o Brasil até o fim da monarquia e estabeleceu os três poderes tradicionais: o Executivo,
o Legislativo – dividido em Senado e Câmara – e o Judiciário. Ainda com o resíduo do
absolutismo, tinha o quarto poder denominado de Moderador. Esse era exercido pelo
imperador, cuja principal função limitava-se a livre nomeação dos ministros de Estado,
independente da opinião do Legislativo.
A constituição de 1824 regulou os direitos políticos, definindo quem teria direito
de votar e de ser votado, o que para os padrões da época era bastante liberal. Assim, podiam
votar todos os homens maiores de vinte cinco anos com renda mínima de cem mil réis, o que
não era um problema, pois, a maioria da população ganhava mais de cem mil réis por ano. As
mulheres não votavam e os escravos nem era considerados cidadãos. De acordo com Carvalho
(2013), o limite de idade caia para 21 anos, caso os homens fossem casados, ou oficiais
militares, bacharéis ou ainda servidores públicos. As eleições eram indiretas e divididas em dois
turnos. Houve eleição ininterrupta no Brasil de 1822 até 1830, com algumas exceções, como
por exemplo, durante a Guerra no Paraguai (de 1865 a 1870) quando foram suspensas as
eleições na província do Rio Grande do Sul. Mesmo com o exercício do voto, os brasileiros
tornados cidadãos pela Constituição de 1824 eram analfabetos e, totalmente, desinformados
sobre o que seria o exercício da cidadania. Inclusive, na ação do voto, muitos nem sabiam a
função dos cargos e as pessoas que escolhiam. Muitos dos eleitores votavam por serem
pressionados pelos patrões. Eram poucos que sabiam como se dava o funcionamento das
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instituições. Tanto que o patriotismo não tinha o significado de pertencimento a uma pátria
comum e soberana, restringindo-se apenas ao ódio de Portugal.
Em 1881, a Câmara dos Deputados aprovou lei para introduzir o voto direto que
trouxe mudanças que, para Carvalho (2013), geraram retrocesso, tais como: alteração da
exigência do valor de renda do eleitor para duzentos mil réis, proibição do voto dos analfabetos
e transformação do voto para o caráter facultativo. Essas mudanças tinham como objetivo de
coibir a corrupção durante as eleições. Mas nada adiantou. Apenas limitou votos e o restringiu
aos com poder aquisitivo alto.
As consequências logo se refletiram nas estatísticas eleitorais. Em 1872, havia
mais de 1 milhão de votantes, correspondendo a 13% da população livre. Em
1886, votaram um pouco mais de 100 mil eleitores, 0,8% da população total.
Houve um corte de quase 90% do eleitorado. O dado é alarmante, sobretudo
se lembrarmos que a tendência de todos os países europeus da época era na
direção de ampliar os direitos políticos. A Inglaterra, sempre olhada como
exemplo pelas elites brasileiras, fizera reformas importantes em 1832, em
1867 e em 1884, expandido o eleitorado de 3% para cerca de 15%. Com a lei
de 1881, o Brasil caminhou para trás, perdendo a vantagem que adquira com
a Constituição de 1824 (CARVALHO, 2013, p. 45).
A restrição dos votos durou até depois da República ser proclamada, em 1889.
A constituição republicana de 1891 eliminou apenas a exigência da renda de duzentos mil réis,
porém, manteve a exclusão dos analfabetos. Problema que envolvia a grande maioria da
população. Na primeira eleição para Presidente da Republica, em 1894, votaram apenas 2,2%
da população. Somente em 1830, o voto tornou-se universal, incluindo o feminino, aumentou
para 5,6% o total de eleitores. Por isso, do ponto de vista da representação política, a Primeira
República (1889-1930) não trouxe significativas mudanças. Na verdade, só demonstrou o
quanto as marcas deixadas pelo período colonial não permitiram com que a população se
reconhecesse como cidadãos brasileiros, fazendo vir à tona alguns equívocos: [1] achar que a
sociedade após sair da dominação colonial pudesse aprender a exercer sua cidadania. O Brasil
não passara por nenhuma revolução plenamente popular e, logo, o aprendizado democrático
precisava ser lento e gradual; [2] processo eleitoral excludente e sem organização, o que
favorecia práticas fraudulentas; e [3] desconhecer que a eleição em países modelos, como a
Inglaterra, era corrupta como no Brasil. Mesmo após a reforma inglesa, permaneceu a liderança
dos mesmos políticos e famílias no poder. Porém, a grande diferença, é que a população possuía
um pouco mais de esclarecimento político e começaram a fazer pressão pela democratização
do voto e, por último, [4] imaginar que o aprendizado do exercício dos direitos políticos não
viesse por meio da educação, área que os governantes faziam questão de não investir. A
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ausência de uma educação sistemática, originada nas escolas, era o fator principal para que a
maioria dos sujeitos fossem analfabetos e, assim, sem direito a votar. Além disso, os poucos
que dominavam a leitura e a escrita e, portanto, votavam, também não davam nenhum valor ao
voto e, quase sempre, o usavam como mercadoria e o vendiam cada vez mais caro
(CARVALHO, 2013, p. 78).
Como é possível perceber, os direitos políticos se sobrepuseram aos demais
direitos, como é o caso do direito social e civil. Durante todo o período colonial e,
posteriormente, com a República, a escravidão continuou sendo um problema sem solução até
1888, quando foi assinada a Lei Aurea. O Brasil foi o último país, de tradição cristã ocidental,
a conceder liberdade aos escravos, porque os valores da escravidão eram aceitos por toda a
sociedade a ponto dos escravos livres, apesar de lutarem pela sua própria libertação, quando a
conquistavam, admitiam escravizar seus iguais. Isso demonstra que os valores da liberdade
individual, base dos direitos civis caro à sociedade europeia e pauta de luta na América do
Norte, mostravam-se irrelevantes no Brasil. Tanto que após a Abolição, não havia estrutura para
garantir o bem estar dos libertos. Não havia escola, não havia terra e nem emprego. Passada a
euforia da libertação, muitos regressaram às antigas fazendas para retomar seu trabalho em
troca de algum benefício, moradia ou um pouco de dinheiro que ajudasse a se manter. Outros
migraram para as capitais e ajudaram a engrossar o número de pessoas sem emprego fixo. A
ausência de políticas inclusivas desses sujeitos que viveram privados de sua liberdade e à
margem da sociedade por tanto tempo, reverberam consequências duradouras para a população
negra. Até hoje, essa população ocupa posição inferior em grande parte dos indicadores de
qualidade de vida. (CARVALHO, 2013, p. 79).
A propriedade rural foi outro obstáculo que prejudicou a expansão da cidadania.
Incialmente estava ligada ao sistema escravocrata. Porém, conseguiu sobreviver muitos anos
após a abolição. Tanto que até os anos 20, o Brasil era um país predominantemente agrícola.
Segundo o censo de 1920, 70% da população se ocupava com atividades agrícolas estimuladas
pela ampla exportação de produtos primários. Destaque para economia do ouro dominante até
parte do século XVIII e, depois da Independência, três produtos ocuparam o centro econômico:
açúcar, algodão e café, contribuindo para o fortalecimento do coronelismo. O coronelismo era
um entrave no livre exercício dos direitos políticos, porque nem reconhecia os direitos civis de
seus trabalhadores, privando-os do direito de ir e vir, da inviolabilidade do lar, do direito de
propriedade e do direito de manifestação. Uma vez que nas fazendas, e fora delas, imperava a
lei criada e executada pelos coronéis, cabendo ao trabalhador somente se submeter. O Estado
não podia interferir nessa relação injusta, uma vez que os próprios governantes eram coronéis
66
ou se beneficiavam da ajuda dos mesmos. (CARVALHO, 2013, p. 81).
No entanto, como abordado anteriormente, na década de 20, menos da metade
da população moravam nos centros urbanos, pois trabalhavam nas indústrias que estavam em
expansão, sobretudo, nas capitais de São Paulo e Rio de Janeiro. As duas cidades eram distintas
na forma como cresciam e na maneira como a cidadania se consolidava. Havia na classe
operária do Rio de Janeiro, um grande número de negros. Além disso, por ser a capital do país,
também concentrava maior diversidade de campos de trabalho. Funcionários e operários
possuíam certa organização e diálogo com os patrões. Em São Paulo, com número significativo
de imigrantes, o peso do anarquismo influenciou na organização do movimento operário, o qual
culminou com a greve geral de 1917 como forma de enfrentar a repressão comandada por
patrões e governistas, estimulando a organização de movimentos parecidos em todo país
realizados ao longo dos anos. Do ponto de vista da cidadania, esses movimentos contribuíram
para avanços inegáveis dos direitos civis. A classe operária lutava pelos direitos básicos de se
manifestar, de fazer greve e ter uma legislação trabalhista que regulasse horário de trabalho, de
férias e, também, os direitos sociais, como direito a aposentadoria.
Em 1930, houve significativo avanço no país com aceleração das mudanças
sociais e políticas. As primeiras medidas do governo foi criar o Ministério do Trabalho,
Indústria e Comércio. Em seguida, foi implementada a legislação trabalhista e previdenciária,
concluída em 1943 com a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). A partir disso, a legislação
não parou de ser ampliada. Mas mesmo assim, os direitos políticos desenvolveram-se de
maneira mais lenta, uma vez que não demorou muito para o Brasil começar a alternar períodos
de ditadura com regimes democráticos. O período entre 1930 e 1945 foi dedicado aos direitos
sociais, sobretudo, no governo populista de Vargas, no qual foram construídas casas populares
e oferta de alimentação com valores mais acessíveis. Vale ressaltar que os direitos sociais se
sobressaíram aos direitos políticos e civis porque causavam maior impacto na sociedade,
propiciavam a visibilidade dos governantes e construíam relação de dependência entre a
população e o político. O que resultava mais numa cidadania receptora e passiva, do que ativa
e reivindicadora. (CARVALHO, 2013).
Após 1945, o ambiente se tornou favorável à democracia representativa,
refletindo na Constituição de 1946 que expandiu o voto direto, secreto e obrigatório a todos os
cidadãos alfabetizados a partir de 18 anos, incluindo as mulheres. Os analfabetos proibidos de
participar do pleito somavam mais de 50% da população concentrados, majoritariamente, na
zona rural. A constituição também previa ao Tribunal Superior Eleitoral e aos tribunais
regionais a organização de todo processo eleitoral, favorecendo aos cidadãos maior participação
67
da vida política, seja afiliando-se aos partidos e sindicatos ou contribuindo diretamente por
meio do voto. Se até esse período, os avanços foram lentos, após 1964, com o Golpe Militar, a
população brasileira amargou retrocessos no campo dos direitos civis e políticos.
(CARVALHO, 2013).
Com os instrumentos legais de repressão, introduzido em 1964, por Castelo
Branco, houve a cassação dos direitos políticos de lideres sindicais, políticos e intelectuais, por
um prazo de dez anos. Além disso, houve a aposentadoria forçada de funcionários públicos
civis e militares que se mostrassem avesso à proposta do governo. Após o Ato Institucional nº2,
em 1966, foram abolidas as eleições diretas para Presidência da República e alguns partidos
políticos dissolvidos. Os poderes do presidente aumentaram, dando-lhe autoridade de intervir
diretamente nos estados, fechar o parlamento e decretar estado de sítio. O direito de
manifestação, de opinião, foi pesadamente restringido e os juízes militares passaram a julgar
causas civis relativas à segurança nacional.
Em 1968, operários e estudantes voltaram a se mobilizar contra o governo que
respondeu com mais rigor, implementando o Ato Institucional nº 5. Conhecido como o mais
radical, o AI-5 atingiu diretamente os direitos políticos, civis e sociais, sobretudo, na gestão de
Garrastazu Médice. Durante esse período, foi promulgada nova Constituição incorporando os
dois atos institucionais e aumentando as medidas repressivas. Houve introdução de nova lei de
segurança nacional incluindo a pena de morte por fuzilamento, sendo que a pena de morte tinha
sido abolida do país ainda durante a época do Império. Em 1970, começou a vigorar a censura
em jornais, livros e outros meios de comunicação. Frequentemente, o governo mandava
instruções sobre os assuntos que não podiam ser comentados e pessoas que não poderiam ser
mencionadas. Sem falta de alternativa para oposição legal, grupos de pessoas começaram a agir
na clandestinidade e adotar táticas militares de guerrilha urbana e rural. O governo respondia
com prisões, tortura sistemática e morte. Não havia respeito pela inviolabilidade do lar, pela
integridade física e, consequentemente, pela vida.
Nessa época, o aumento da desigualdade não era evidente. Uma vez que a
urbanização significava progresso para sociedade. Então, a expansão econômica veio
acompanhada de grandes transformações na demografia e na composição da oferta de emprego.
“A população passou de 22,7 milhões, durante os amos 60, para 42, 3 milhões em 1980”,
segundo Carvalho (2013).
Os efeitos catastróficos desse crescimento para a vida das grandes cidades só
apareceriam mais tarde. Na época, a urbanização significava para muita gente
68
o progresso, na medida em que as condições de vida nas cidades permitiam
maior acesso aos confortos da tecnologia, sobretudo a televisão e outros
eletrodomésticos. A mudança na estrutura de emprego acompanhou a
urbalização. Houve enorme crescimento da população empregada, que os
economistas chamam de economicamente ativa [...]. Particularmente
dramático foi o aumento do número de mulheres no mercado de trabalho.
Enquanto o número de homens aumentou 67%, o número de mulheres cresceu
184%. (CARVALHO, 2013, p. 68).
Diante desse cenário, pequenas significativas mudanças ocorreram no âmbito
dos direitos sociais, tais como: [1] a criação do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS)
que garantia o benefício da aposentadoria, da pensão, assistência médica; [2] criação do Fundo
de Assistência Rural (Funrural) responsável em incluir os trabalhadores rurais na previdência;
e [3] criação do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) que garantia ao recém
desempregado apoio financeiro por alguns meses, tendo em vista o retorno do mesmo ao
mercado de trabalho. Então, sob o ponto de vista da cidadania, os governos militares
restringiram os direitos civis e políticos com as ações repressivas e ampliaram os direitos
sociais, como estratégia de se manter no poder, mascarando as dificuldades econômicas e
políticas, além de silenciar o problema da violência consolidada pela máquina opressora de
liberdade de expressão.
No auge da repressão, algumas instituições tiveram papel importante, com
destaque para a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) que se dedicava a
assuntos relacionados à pesquisa científica da área de ciências humanas e exatas e para a Ordem
dos advogados do Brasil (OAB). A OAB promoveu a V Conferência Anual da Ordem, em 1974,
dedicada, exclusivamente, aos direitos humanos. Isso fez com que a Ordem dos advogados
tornasse-se referência na defesa da legalidade constitucional e civil. Por isso, passou a sofrer
represália frequentemente. A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, uma vez ao
ano, promovia reuniões abertas para a população em geral. Por isso, passou a ser vista como
uma organização anarquista, fazendo com que governo cortasse o apoio financeiro dado para o
evento. Mesmo à revelia do Estado, a reunião de 1977 aconteceu na Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP), em clima emocional de confronto político, reunindo mais de
seis mil pessoas. Nesse momento, se percebeu que o grupo acadêmico tinha força ímpar para
fazer resistência. (CARVALHO, 2013, p. 76). As Sementes plantadas naquela reunião foram
fundamentais para a sociedade enxergar o desgaste desse modelo de governo. A partir de então,
outras classes de trabalhadores começaram articular movimentos em defesa da
redemocratização do país.
Em 1978, o Congresso votou a favor da extinção do AI-5, proporcionando
69
abertura política, dando fim a censura prévia da imprensa, reestabelecendo o habeas corpus
para crimes políticos e permitindo o regresso de 120 exilados. O que acabou favorecendo, em
1979, a assinatura da controversa Lei da Anistia. Controversa porque a lei beneficiava tanto os
acusados de terem cometido crimes contra a segurança nacional, quanto os agentes de segurança
acusados de prender, torturar e, muitas vezes, matar os acusados. Além disso, a mesma lei
também devolveu direitos políticos aos que tinham perdido e, assim, ajudou a renovar a luta
política em prol da democracia. No mesmo ano, aboliu-se o bipartidarismo, favorecendo a
organização de seis novos partidos, com destaque para os mais conhecidos como: o Partido do
Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) e o Partido Democrático Trabalhista (PDT). O
Partido dos Trabalhadores (PT) surgiu em 1980, após reunião aberta em que participaram
centenas de militantes, principalmente, os metalúrgicos paulistas. O partido ascendeu com o
apoio dos trabalhadores, dos sindicatos, da vertente da igreja católica mais progressista, que
mantinha uma luta significativa em prol dos trabalhadores do campo, e de alguns intelectuais e
artistas. (CARVALHO, 2013, p. 76).
Sob o ponto de vista da população, os anos obscuros foram importantes para
compreender o verdadeiro significado de ser cidadão brasileiro. Foi preciso três séculos para
que a cidadania fosse, de fato, um desejo da sociedade. Em 1984, aconteceu o auge da
mobilização popular pedindo as eleições diretas. Essa manifestação foi, sem dúvida, a maior
que houve no país, sobretudo, porque havia um desejo comum. Estavam todos do mesmo lado
da utopia da democracia que garantia, entre outras coisas, o direito da população ser livre.
Inicialmente, as eleições estavam previstas para janeiro de 1985 e ocorreriam no colégio
eleitoral composto por senadores, deputados federais e representantes das assembleias
estaduais. A oposição, além de indicar um candidato que concorresse o pleito, ainda organizou
campanha pela eleição direta à presidência, com objetivo de forçar o Congresso a aprovar
emenda à constituição que permitisse o voto direto. (CARVALHO, 2013, p. 77).
Os comícios se transformaram em shows cívicos e eram amplamente cobertos
pelas emissoras de televisão. Mesmo com a pressão das ruas, e de certo modo da imprensa, o
Congresso não aprovou a emenda constitucional. A eleição ocorreu indiretamente e, como já
se esperava, Tancredo Neves ganhou com 480 votos, dando um ponto final no governo dos
militares. Tancredo morreu em 1985, mas a retomada da supremacia civil continuou de maneira
ordenada e sem retrocessos. Em 1988, a Assembleia Constituinte redigiu e aprovou a
constituição liberal e democrática, denominada de constituição cidadã. No ano de 1989, houve
a primeira eleição para a presidência da República desde 1960, por meio do voto direto,
possibilitando a ampliação dos direitos políticos.
70
A constituição também foi liberal no critério de idade. A idade anterior era de
18 anos e foi reduzida para 16 anos que passou a ser compreendida como idade mínima para
aquisição da capacidade civil relativa. Outra mudança significativa aconteceu no Tribunal
Superior Eleitoral que aceitou inscrição de mais partidos políticos, ampliando a possibilidade
de diálogo democrático. Deixando para trás o modelo do regime militar em que só haviam dois
partidos. A eleição direta aconteceu em 1989 e elegeu Fernando Collor de Melo, o representante
da elite tradicional brasileira, que não se sustentou muito tempo no poder. A união de vários
fatores – Partido da Reconstrução Nacional (PRN) foi criado somente para apoiar a candidatura,
não possuindo nenhuma representatividade na Câmara dos Deputados; personalidade arrogante
e narcísica; medidas radicais e irregulares para combater a inflação e os esquemas ambiciosos
de corrupção – levou o Congresso Nacional abrir processo de impedimento que resultou no
afastamento do presidente, apoiada pela forte mobilização popular que tomou conta do país
(CARVALHO, 2013, p. 55).
Na história do Brasil e da América Latina, a regra para afastar presidentes
indesejados tem sido revelações e golpes de Estado. No sistema
presidencialista que nos serviu de modelo, o dos Estados Unidos, o método
foi muitas vezes o assassinato. Com exceção do Panamá, nenhum outro país
presidencialista da América tinha levado antes até o fim um processo de
impedimento. O fato de ele ter sido completado dentro da lei foi um avanço
na prática democrática. Deu aos cidadãos a sensação inédita de que podiam
exercer algum controle sobre os governantes. (CARVALHO, 2013, p. 56).
Além do fortalecimento dos direitos políticos, a constituição de 1988 também
ampliou os direitos sociais, vinculando o aumento do salário mínimo como parâmetro para o
pagamento das aposentadorias, das pensões e dos benefícios a todos os deficientes físicos e
maiores de 65 anos, independente de terem ou não contribuído para previdência. Introduziu a
licença paternidade de cinco dias por ocasião do nascimento do filho, criou indicadores básicos
para mensurar a qualidade de vida da população, tendo em vista controle da mortalidade
infantil. Na área educacional, houve progresso ao firmar compromisso com o aumento das taxas
de escolarização, com o objetivo de diminuir o analfabetismo no país, reconhecido como
principal empecilho para o exercício da cidadania. Tanto que em 1990, no governo Collor, foi
sancionado o Estatuto da Criança e do Adolescente que prevê a proteção integral às crianças e
adolescentes brasileiras, além de estabelecer os direitos e deveres do Estado e dos cidadãos
responsáveis pelos mesmos. Já em 1996, houve a sanção da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Brasileira (LDB, Lei 9394/96) fundamentada nos princípios do direito universal da
educação para todos.
71
No campo dos direitos civis, a Constituição inovou ao criar “o direito de "habeas
data”, em virtude do qual qualquer pessoa pode exigir do governo acesso à informação
existente sobre ela nos registros públicos, mesmo em caráter confidencial.” Definiu o racismo
como crime inafiançável, ordenou ao Estado a proteção do consumidor, por meio do dispositivo
regulamentado em 1990, o Código de Defesa do Consumidor. (CARVALHO, 2013). Outras
inovações legais e institucionais só foram possíveis pós-Constituição, como a criação dos
Juizados Especiais de Pequenas Causas Cíveis e Criminais que possuem o objetivo de tornar a
justiça mais acessível a população, simplificando e agilizando a resolução de problemas de
causas cíveis de menor complexidade e infrações menores.
No entanto, mesmo com os avanços trazidos pela Constituição democrática, o
Brasil ainda amargou muitas dificuldades no campo da cidadania. Sobretudo, com expansão da
urbanização nas capitais, outros problemas surgiram. O maior deles foi a violência, agravada
pela precariedade dos órgãos de segurança pública. De acordo com a Constituição de 88, o
controle da segurança passou a ser responsabilidade dos estados. Isso ocorreu para tirar das
mãos do Exército o poder sobre a polícia militar, porém, se tornou ineficiente na prática. De
qualquer forma, as polícias possuem treinamento seguindo os métodos militares que preparam
para combater e destruir os inimigos e erra na proteção dos cidadãos.
[...] Ele é aquartelado, responde a seus superiores hierárquicos, não convive
com os cidadãos que deve proteger, não os conhece, não se vê como garantidor
de seus direitos. Nem no combate ao crime as polícias militares têm se
revelado eficientes. Pelo contrário, nas grandes cidades e mesmo em certos
estados da federação, policiais militares e civis têm se envolvido com
criminosos potenciais, organizam grupos de extermínio e participam de
quadrilhas. Mesmo a polícia civil, que não tem treinamento militarizado, se
vem mostrando incapaz de agir nas normas de uma sociedade democrática.
(CARVALHO, 2013, 57).
Casos de violência policial marcaram a história do país. Chacina em frente à
Igreja da Candelária e a invasão do Carandiru, no Rio de Janeiro, e o massacre de Eldorado dos
Carajás, no Pará, são alguns dos exemplos que viraram notícia internacional. O judiciário
também é deficiente no cumprimento de seu papel. Além dessas críticas, pesa sob a justiça e a
polícia a parcialidade no controle da segurança. Do ponto de vista das garantias do direito civil,
político e social, os brasileiros estão divididos em classe que demonstram muito bem as
desigualdades existentes no país. Para a elite brasileira, como sempre, há privilégios. Para a
maioria, os mais pobres, não há segurança, saúde e educação de qualidade. Neste cenário repleto
de incertezas, insatisfações e desigualdades que, no ano de 2002, foi eleito Luís Inácio Lula da
72
Silva.
A resistência ao candidato nas três eleições anteriores, vinda de setores
conservadores e liberais e do grande negócio nacional e internacional, foi
habilmente neutralizada pela Carta aos Brasileiros, em que o candidato se
comprometeu a respeitar as instituições, os tratados internacionais e a política
vigente. O restante da vitória ficou por conta da difícil situação econômica do
país, responsável pela baixa avaliação do governo, que se refletia em seu
candidato, e do carisma do candidato oposicionista, de sua extraordinária
capacidade de comunicação com as camadas populares. (CARVALHO, 2013,
p. 59).
O governo Lula ficou conhecido por ter uma agenda dedicada aos direitos
sociais. Foram vários programas de inclusão social tendo em vista a melhoria de vida das classes
mais pobres. Iniciou o governo implantando o programa Comunidade Solidária e o Bolsa
Escola, depois expandiu para o Bolsa Família que agregou os programas, Auxílio Gás, Bolsa
Escola e o Cartão Alimentação sob a administração do Ministério do Desenvolvimento Social
e Combate à Fome. Como já abordado anteriormente, os programas atendiam as famílias mais
carente, possuidoras de uma renda per capita entre R$ 70, 00 a R$ 140,00 (CARVALHO,
2013). Para manter-se atendida pelos programas sociais, as famílias precisavam comprovar que
a frequência dos filhos na escola por meio de relatório expedido pelas instituições de ensino
público. Outro modo de comprovação se dava pelo controle pré-natal e da carteira de vacinação
das crianças.
Dois anos após a implantação dos programas sociais, mais de 10 milhões de
famílias eram atendidas. Em 2013, segundo Carvalho (2013), já havia 13, 8 milhões, cerca de
50 milhões de pessoas incluídas no programa Bolsa Família. Óbvio que uma ação política como
essa não ficaria fora do alvo das críticas. Uma delas, vinda da oposição política e de boa parcela
da população, era de que a medida tomada pelo governo possuía caráter paliativo, não
diminuindo, efetivamente, a pobreza. Apenas “causando relação de dependência” dos cofres
públicos. Contudo, é importante reconhecer os benefícios trazidos para milhões de famílias
pobres nunca antes enxergados pela política brasileira. O Bolsa Família se tornou programa de
referência no Brasil e no Mundo, rendendo frutos eleitorais, como a reeleição do Presidente
Lula da Silva. Posteriormente, eleição e reeleição da Presidente Dilma Rouseff.
Outra política social implantada pelos governos petistas foi a expansão do ensino
universitário. Na primeira gestão de Lula eram 2,7 milhões de pessoas matriculadas em cursos
de graduação; em 2011, já eram 6,7 milhões. O aumento se deu por meio do Programa
Universitário (PROUNI), criado pelo ministro Fernando Haddad, o qual garantia bolsas
73
integrais e parciais a alunos que possuíssem renda familiar de até três salários mínimos e
estivessem aprovados no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Em 2005, quando
implantado, o PROUNI teve 422.531 inscritos. Em 2012, já haviam mais de 1.600.000 inscritos.
Assim como o Bolsa Família, o PROUNI também gerou algumas críticas. A primeira delas
estava ligada a introdução do sistema de cotas raciais para alunos oriundos da escola pública.
A segunda vinha das instituições federais que começaram a criticar a ampliação de acesso às
instituições particulares, ao invés de ampliar vagas nas Instituições de Ensino Superior Federais
ou Estaduais. É fato que esse movimento de acesso ao Ensino Superior foi benéfico para o país,
mas longe de resolver os problemas educacionais herdados ao longo da história. De acordo com
o BBC News6, a mais recente avaliação do Programa Internacional de Avaliação dos Alunos
(PISA), mostra que o Brasil ocupa a 69ª posição em leitura e 66ª colocação em Matemática.
No que toca aos direitos civis, houve poucos avanços nos últimos governos de
Lula e Dilma. Um dos destaques nesse âmbito foi o intenso debate em torno da reforma sindical
e trabalhista, promovido ainda no governo do presidente Lula. O controle do Estado sobre os
sindicatos confluiu para uma integração da central sindical à estrutura herdada de Getúlio
Vargas. O governo ainda firmou um “pacto de classes”, ao incorporar a classe dos menos
favorecidos na pirâmide econômica por meio das políticas sociais compensatórias que, também,
possibilitaram a construção de importante base eleitoral do partido (SINGER, 2012;
MARQUES et al., 2009). Segundo Singer (2012), a partir de 2003, os atores internacionais
começaram a intensificar acordos em combate à miséria nos países menos desenvolvidos, mas
sem confronto com a lógica do capital. Isso resultou em políticas de combate à pobreza unido
a ativação do mercado interno, colaborando para o aumento do poder de consumo da esfera
mais pobre da sociedade, sobretudo, dos habitantes do norte e nordeste.
O lulismo, que emerge junto com o realinhamento, é, do meu ponto de vista,
o encontro de uma liderança, a de Lula, com uma fração de classe , o
subproletariado, por meio do programa cujos pontos principais foram
delineados entre 2003 e 2005: combater a pobreza, sobretudo, onde ela é
excrucitante tanto social quanto regionalmente, por meio da ativação do
mercado interno, melhorando o padrão de consumo da metade da sociedade,
que se concentra no Norte e Nordeste do país, sem confrontar os interesses do
capital. (SINGER, 2012, p.12 ).
O apoio por parte desse estrato social foi obtido graças à articulação de um tripé
formado entre Bolsa Família, aumento anual do salário mínimo e expansão de crédito no
6 Pesquisa completa no site <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45761506>.
74
mercado, associado a diminuição dos preços da cesta básica. Todos esses fatores foram
fundamentais para diminuição da pobreza a partir de 2004, quando as dívidas externas
começaram a cair e a economia voltou a crescer junto com o crescimento da oferta de emprego.
Ainda de acordo com Singer (2012), houve uma pequena inflexão na política neoliberal –
presente desde o governo Sarney e fortalecida com FHC – com a presença de Guido Mantega
no Ministério da Fazenda que passou a adotar a politica de desenvolvimentismo, favorecendo
a valorização do salário mínimo, a flexibilização dos gastos públicos e a redução dos juros.
Nessa conjuntura houve a geração de 40% de novos postos de trabalho no
mercado formal, aumento do salário mínimo e ampliação do direito ao crédito consignado,
permitindo alteração no combate à pobreza para além da transferência de renda, como foram
no primeiro governo. Isso favoreceu alcançar um novo público, as classes de trabalhadores não
organizadas e duramente precarizadas. Porém não se distanciando dos movimentos sociais que
sempre estiveram na base do partido dos trabalhadores. Fato que colaborou para a eleição de
Dilma Rousseff, em 2010, demonstrando a vigência do realinhamento eleitoral operado pelo
chamado “lulismo” (SINGER, 2012, p. 9). O governo Dilma iniciou com o desafio de recuperar
o país de uma crise financeira global de 2008. Com um plano de governo não muito claro, a
única certeza era de que os programas sociais continuariam. No entanto, a política adotada não
teria somente a dinâmica de continuidade, mas iria adotar mudanças estruturais e arrojadas, tal
como questionar o poder estrutural do capital financeiro na determinação das taxas de juros e
câmbio, rompendo o pacto conservador formado pelo governo Lula em 2003 (BASTOS,
2012b).
A execução do programa foi prejudicada por iniciar a fase de austeridade – que
supostamente prepararia as condições para a queda de juros – estagnando o PIB entre o segundo
semestre de 2011 e o primeiro de 2012. O problema de estratégia continuou até 2013, quando
a redução do custo de capital, deprimiu as expectativas de demanda futura. Algumas ações
foram corrigidas, porém, os erros econômicos causaram fragilidade no governo e fortaleceram
a oposição. Em 2013, o movimento Passe Livre, que teve sua origem apartidária, acabou
servindo de escudo para as forças opositoras de manifestarem contra as políticas adotadas pelo
governo, fazendo emergir a narrativa neoliberal alarmista. Unida a insatisfação com a política
econômica, havia o ressentimento relativo ao status social ocupado pelo pobre durante toda a
gestão do país pelos membros da esquerda.
Como já abordado, a elite brasileira sempre criou modos de manter seus
privilégios. E a questão distributiva tendo o salário mínimo e a educação como elementos
fundamentais compõem, hoje, a relação neoliberal com as suas bases na sociedade. Essas bases
75
são compostas pela camada média com alguma qualificação profissional e educacional
especializada e a pequena burguesia que, ao longo do tempo, gozaram de padrão de vida
semelhante a população de classe mediana de países com renda per capita superior, pois
contavam com bens e serviços barateados pelos baixos salários resultado da falta de
qualificação dos trabalhadores.
No governo Dilma, os direitos sociais continuaram sendo ampliados, mesmo
diante da estabilidade econômica. Em 2012, o número de formados em ensino superior já
chegava a mais de 1,05 milhão, ou seja, um aumento de 124%, apoiado por programas de
inclusão social como o PROUNI, o FIES e a política de cotas (INEP, 2010, p. 32; 2015, p. 63).
Assim, a manutenção do status social da classe média tradicional sofria tensão significativa que
veio à tona com o movimento de ofensiva ideológica da direita a partir da segunda fase das
manifestações de junho de 2013, sobretudo, no eixo Rio-São Paulo. Além da disputa crescente
na esfera educacional, a classe média ainda concorria com as oportunidades de emprego bem
remunerados, uma vez que havia, cada vez mais, pessoas qualificadas no mercado de trabalho,
também experimentavam concorrência nas redes de infraestrutura e serviços (aeroportos, por
exemplo) que consideravam exclusivos, experimentando perda de privilégios e à pretensão de
distinção cultural (SICSÚ, 2014; CAVALCANTE, 2015).
Essa insatisfação ganhou força por meio das narrativas da direita opositora ao
governo que passou a desvalorizar os projetos de inclusão social implementados nos mandatos
de Lula e Dilma. Uma parte da população passou a não concordar que os impostos pagos fossem
convertidos em benefícios sociais para os mais pobres, por acreditar ser assistencialismo com
a finalidade de conversão de voto no período eleitoral. A partir de 2013 houve o retorno ao
pensamento conservador no Brasil, fortalecido pelas mídias tradicionais, fruto do
descontentamento da classe média e do aumento do índice na violência nas grandes capitais.
Problema que nenhum dos governos esquerdistas conseguiu dissipar.
A derrocada do governo Dilma se deu pela soma de todos esses fatores com os
escândalos de corrupção envolvendo os membros do Partido dos Trabalhadores, incluindo o
presidente Lula. Os veículos de comunicação do país deram ampla cobertura ao caso, fazendo
com que a população acompanhasse o desenrolar dos fatos como capítulos de uma dramática
novela. Rapidez das delações e vazamentos de depoimentos que prejudicavam o PT e a
presidente Dilma contrastava com a divulgação tardia da compra de votos de parlamentares que
pudessem votar contra o impeachment da presidente no Congresso Nacional. Por isso, surgem
as hipóteses de que o discurso de combate à corrupção é seletivo, com a finalidade de
enfraquecer a popularidade dos dois presidentes e prejudicar a reputação do partido.
76
A espetacularização midiática da corrupção possibilitou que a sociedade
conhecessem os “responsáveis pelo mal feito ao país” e, deliberadamente, não tematizou os
arranjos estruturais do sistema político que contribuem para um esquema de corrupção antigo
no Brasil (CHAUI, 2013). Diante de tudo isso, surge o processo de polarização política, o que
é totalmente danoso para o exercício da cidadania. Tanto que o governo que sucedeu Dilma, de
imediato, tentou aprovar leis que desestabilizam os direitos dos cidadãos. Além de,
fundamentado no discurso anticorrupção, impulsiona a propagação do pensamento de extrema
direita, o qual não apenas desestabiliza, mas anula muitos dos direitos dos cidadãos,
principalmente, das minorias, visando à manutenção do status quo da burguesia brasileira por
meio do discurso da meritocracia. A meritocracia sugerida pela classe elitista é que cada
cidadão ocupe a hierarquia social a partir de seus dons e méritos pessoais. Como um país
historicamente construído sob as bases da colonização, do trabalho escravo e da diferença
secular entre as classes, pode acreditar que todos terão as mesmas oportunidades? O
meritocracismo no Brasil é só mais uma estratégia de negação de que todos os cidadãos
brasileiros são iguais perante a Constituição de 1988, conhecida como Constituição cidadã, na
qual têm os direitos humanos como pilar fundamental.
77
CAPÍTULO 4 – CIDADANIA E DISPOSITIVO
4.1. O dispositivo como magma das significações imaginárias
O conceito de dispositivo foi introduzido no campo das ciências humanas e
sociais por Foucault, em meados da década de 70, quando começou a tratar de assuntos ligados
à biopolítica e à governamentalidade. No entanto, foi Agamben, reconhecidamente um leitor
foucaultiano, que ampliou e aprofundou a definição de dispositivo, como revela a citação a
seguir:
Aquilo que procuro individualizar com este nome é, antes de tudo, um
conjunto heterogêneo que implica no discurso, instituições, estruturas
arquitetônicas, enunciados, decisões regulamentares, leis, medidas
administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais e
filantrópicas, em resumo: tanto o dito, eis os elementos de dispositivos. O
dispositivo é a rede que se estabelece entre estes elementos. (AGAMBEN,
2009, p. 46).
Foucault caracteriza o dispositivo em dois tipos de sociedade: a soberana e a
disciplinar. As sociedades soberanas têm como base as relações de dominação e de apropriação
dos bens, dos produtos, do tempo e da fidelidade dos súditos pelo soberano legitimado por um
poder originado do direito divino dos reis, da hereditariedade ou da conquista de territórios,
concedendo o privilégio de decisão sobre a vida ou a morte de seus subordinados. Por volta do
século XVIII, sobretudo no século XX, a sociedade soberana foi substituída pela sociedade
disciplinar. Na sociedade disciplinar, a finalidade é gerir a vida humana ao invés de ordenar a
morte, pois, os seus dispositivos não visam destruir, mas manter a docilidade dos corpos. As
escolas, as fábricas, as cadeias surgem atendendo diferentes urgências e estabelecendo
estratégias para submeter o sujeito ao julgo do poder relacional indeterminado e não apenas ao
comando de um soberano.
A partir dessa visão de gestão da vida, Deleuze (1990) propõe a ideia de que, na
pós-modernidade, há a constituição de uma nova forma social, porém, sem eliminar os outros
modelos de sociedade, apontados por Foucault. No entanto, a atual configuração histórico-
social está aberta aos limites indefinidos gerados pelo controle total e contínuo, por isso,
Deleuze nomeia isso de sociedade do controle. Na era do controle, ao contrário da sociedade
disciplinar, a independência dos meios de confinamento disciplinares é substituída pela
contiguidade, modulação e o tempo contínuo do controle. Os dispositivos sofrem alterações
78
profundas. O dispositivo educacional, por exemplo, vigora por meio da formação permanente,
superando o objetivo terminável da escola para interligá-lo ao dispositivo econômico capitalista
infindável que necessita de sujeitos atualizados frequentemente para ingresso ou permanência
no mercado de trabalho. Essa sociedade incentiva um aprimoramento infinito do profissional,
atrás do qual se esconde um controle perpétuo de seus objetivos e motivações.
Quando Deleuze abordou a temática da sociedade de controle, não havia
experenciado as consequências radicais da revolução tecnológica provocadas pela cibercultura.
Contudo, vale refletir que se o dispositivo é a rede formada pelo entrelaçamento de ditos e não-
ditos, arquiteturas e discursos, leis e equipamentos, a web seria a rede por excelência. A
presença absoluta na internet transformou-se no – que se pode chamar – de mais eficiente
dispositivo da história. A conexão simultânea e descentralizada de todo o planeta, levada ao
extremo na ausência de limites, pressupõe o estabelecimento de controle onipresente e
onisciente. Tal controle vem das câmeras de vigilância, das funções stories das redes sociais,
dos dados disponíveis em plataformas de cadastros virtuais (e-mails, dados bancários)
acessados dos mais variados equipamentos tecnológicos. No entanto, o poder das redes
telemáticas não está subjugado ao Estado, apesar de ele ainda tentar manter o controle por meio
de normatizações de privacidade e de acesso, mas a conexão descentralizada permite que os
fluxos informacionais sejam controlados e manipulados pelos sujeitos em locais diversos, numa
interação glocalizada, além da capacidade de armazenamento de informações privilegiadas e
pessoais em mais de um dos diversos dispositivos contemporâneos, o arquivo.
Segundo Foucault (1997), o arquivo é um conjunto de discursos efetivamente
enunciados e, como processo, são capazes de atualizarem e configurarem os enunciados. Por
isso, não pode ser entendido apenas como o local físico onde se guardam memórias
(documentos e informações). Ele ultrapassa esse sentido ao criar a possibilidade de
transformação dos dados armazenados. Na sociedade soberana, o arquivo estava sempre nas
mãos do rei – ou daquele que tivesse a guarda da soberania do território – e era utilizado como
ferramenta de juízo sobre seus súditos. Na sociedade disciplinar, era concebido como
entrelaçamento entre poder e saber, permanecendo restrito a determinadas instituições e
discursos que os legitimava. Na sociedade do controle, o arquivo estende-se aos sujeitos,
podendo ser utilizado e manipulado por todos. Porém, a facilidade de acesso e uso esconde a
subjugação do sujeito pelo dispositivo.
Com o advento da cibercultura, os limites são anulados e o arquivo pode ser
alcançado com mais facilidade, ao mesmo tempo em que atinge todos os indivíduos com
eficiência. Os bancos de dados e registros são igualmente globais e múltiplos, busca-se
79
informações sobre pessoas em plataformas de crédito; tem-se acesso a currículos de candidatos
em ferramentas digitais produzidas para esse fim; as redes sociais transformam-se em dossiês
da vida privada dos indivíduos, favorecendo o controle sutil, porém, não menos opressor. No
arquivo, reside o poder disciplinar foucaultiano, uma vez que nada mais fica no reduto do
privado, tudo pode virar público e visível aos olhares, julgamentos e punições sociais. O
pressuposto de maior valor, imposto pela velocidade característica da época, é a capacidade de
armazenamento infinito, possibilitando apropriação total do passado, daquilo que já foi visto e
vivido. É passível de ser resgatado e atualizado, numa constante fúria colecionista, levando o
sujeito ao arquivamento imediato do presente, para ser desfrutado quando for passado.
Nessa perspectiva crítica, encontra-se o dispositivo pensado por Agamben
(2009). O autor amplia e aprofunda a temática foucautiana, elaborando uma divisão simples da
sociedade: os seres (ou as substâncias) e os dispositivos que os governam e os orientam. A
cidadania, as redes sociais, a linguagem, a dromocracia e o fenômeno glocal são alguns dos
inúmeros exemplos de dispositivos que regulam o ser e o fazer humano na atualidade. Do
embate entre seres e dispositivos, surgem os processos de subjetivação, uma vez que os seres
naturalmente se sobrepõem – em alguns momentos – aos dispositivos. Os sujeitos podem ao
mesmo tempo habitar diversos processos de construção de subjetividade, sendo um internauta,
um cidadão, um motorista, um escritor, ou exercendo qualquer atividade humana. Atualmente,
a proliferação de dispositivos origina a simétrica proliferação de processos de subjetivação,
podendo causar a perda da identidade pessoal.
Vive-se na fase de proliferação dos dispositivos devido a fase extrema do
desenvolvimento capitalista que estamos vivendo. Certamente, desde que
apareceu o homo sapiens havia dispositivos, mas hoje não há um só instante
da vida dos indivíduos que eles não estejam. (AGAMBEN, 2009, p. 47).
Essa proliferação desenfreada dos dispositivos é, para Agamben, o problema
mais grave enfrentado nesta época. Os dispositivos não mais produzem processos de
subjetivação como na sociedade disciplinar de Foucault (1997), em que, apesar da produção de
corpos dóceis, as subjetivações eram livres. Na sociedade cibercultural, dependente
iminentemente dos dispositivos, a produção é inversa, causa dessubjetivação. A tecnologia, o
arquivo, faz com que a subjetividade desapareça atrás da espetacularização do tempo real. A
dessubjetivação leva ao paradoxo: o sujeito comum, que se submete docilmente aos dispositivos
de controle e tem sua vida revelada aos mínimos detalhes, é o mesmo que controla e revela a
vida do outro, dentro de um processo cíclico e permanente. O governo também encontra
80
dificuldades, a proliferação dos dispositivos fragiliza e mostra o quanto o Estado é incapaz de
controlá-lo. Para Agamben (2009, p. 145), “(...) as sociedades contemporâneas se apresentam
assim como corpos inertes atravessados por gigantescos processos de dessubjetivação que não
correspondem a nenhuma subjetivação real” (AGAMBEN, 2009, p. 145).
Os processos de subjetivação e dessubjetivação são originados no imaginário.
Logo, é possível perceber que o dispositivo pertence à categoria das significações imaginárias
instituídas na sociedade. Ele é invisível aos olhos, mas sentida pela racionalidade humana, por
meio de regras que orientam e organizam o social. A função estratégica dos dispositivos tem
como ferramentas: [1] a manipulação dos elementos sociais – sejam pessoas ou instituições – e
[2] a intervenção racional que ocorre por meio de repressão simbólica ou até mesmo física em
nome da ordem. Como por exemplo, através da linguagem é um dispositivo que consolida no
social-histórico todas as regras, tradições, culturas e modos de vida, além de ser o principal
instrumento de articulação da economia e da política. Por isso, Agamben (2009) ressalta que os
dispositivos se inscrevem numa relação de poder fortalecido pela aceitação dos sujeitos as suas
regras que agem, primeiramente, no imaginário. Desse modo, é possível perceber que os
dispositivos se instituíram no imaginário social e passaram a vigorar como magmas. Uma vez
que se atualizaram e ganharam novos sentidos, sem perder a lógica conjuntista identitária que
o legitima.
Enfatizando, os dispositivos nascem no imaginário, ou seja, são produtos da
criação humana e se legitimam pela crença instituída pelo imaginário. São poderes instituídos
e instituintes, como diria Castoriadis (1986) com o objetivo de ordenar a vida dos sujeitos. Isso
ocorre, segundo Agamben, porque “dentro de todo e qualquer dispositivo reside um desejo
demasiado humano de felicidade, captura e a subjetivação deste desejo, numa esfera separada,
constituem a potência especifica do dispositivo” (AGAMBEN, 2009, p. 47). Essa felicidade,
não está ligada somente à esfera individual, mas, sobretudo, à coletividade. Como as
metanarrativas – significações imaginárias da modernidade – que estavam presentes nos
dispositivos de poder daquela época. Quando ruíram, os magmas instituintes dos dispositivos
se alteraram, bem como as próprias metanarrativas ganharam novas significações no contexto
da pós-modernidade, sem perder o objetivo de controle dos processos de subjetivação.
Pode parecer contraditório, os sujeitos produzirem dispositivos que possuem a
função de controlar a própria sociedade. Contudo, a manutenção do poder e do controle social
faz parte da lógica conjuntista identitária que organiza o social-histórico. O indivíduo sempre
teve seus corpos conformados numa domesticação invisível necessária ao controle do sistema
vigente. No Império Romano, por exemplo, instituiu-se como magma a instrumentalização da
81
tortura física com objetivo de punir todos aqueles que desrespeitassem a lei, como foi o caso de
Cristo. Porém, a legitimação dessa prática de violência se dava, primeiramente, no imaginário
social, fazendo com que a população tivesse medo do poder do Imperador. O corpo domesticado
pela força do dispositivo no imaginário fortalecia o controle do estado sobre a população. A
partir do século XVII, um novo magma se institui – mas, mantendo a mesma lógica identitária
– logo após a descoberta da dimensão metafísica do corpo e do conjunto de técnicas e processos
empíricos que controlam suas operações, tornando a dominação do corpo mais sutil. Desse
modo, os dispositivos de poder também vão sendo atualizados acompanhando a evolução da
sociedade.
Nesse sentido, no contexto cibercultural, a sociedade encontra-se domesticada,
como jamais se testemunhou na história da humanidade. O sistema dromocrático, de maneira
sutil, controlou, dominou e fragilizou os corpos. Como reflete Agamben (2009), o cidadão vive
num constante paradoxo na democracia contemporânea. Pois, ele executa tudo o que é
determinado e corresponde às informações com velocidade, ao mesmo tempo em que é
comandado e controlado pelos dispositivos, inclusive, no reduto da vida privada. E, quanto mais
os dispositivos se proliferam ou se fundem, maior o poder deles sobre a vida do sujeito que,
cada vez mais, fica imerso em novos magmas de significações imaginárias.
4.2. Dispositivo, cidadania e a cibercultura
A cidadania vigora como magma de significações imaginárias, por carregar em
si a lógica conjuntista identitária que possibilita os sujeitos criarem laços de pertencimento, seja
com a polis, seja com o Estado. Por meio da lógica conjuntista consolidada no social-histórico,
é possível perceber que a cidadania já foi gerada como dispositivo de controle fundamental para
instituição das sociedades disciplinares. De acordo com Foucault (1997), numa sociedade
disciplinar, os dispositivos visam, por meio de práticas e de discursos, saberes e exercícios, à
criação de corpos dóceis, porém livres. Esses sujeitos de corpos “docilizados” assumem a sua
liberdade dentro do próprio processo de assujeitamento necessário para manutenção das
relações de poder (AGAMBEN, 2009, p. 46).
O poder vindo do dispositivo disciplinar permite encontrar o ponto de
intercessão entre o controle das máquinas de governo e o corpo. Esse exercício de dominação
possui caráter político que favorece o assujeitamento do indivíduo em espaços disciplinares
públicos e privados. Na antiguidade Clássica, se instrumentalizou a tortura física como forma
de objetificação do criminoso – como aconteceu com Cristo – produzindo o efeito duplo de
82
inspirar medo e respeito pelo poder do governante. A partir do século XVII, inaugurou-se
controle mais minuncioso e sutil do corpo, por meio de uma coersão initerrupta voltada para os
processos de atividades, possibilitando o esquadrilhamento ao máximo do tempo, do espaço,
dos movimentos e do discurso. Foucault (1997), afirma que o controle sutil permite aumentar
as forças do corpo, provocando aumento da produtividade – em termos econômicos e de
utilidade –, ao mesmo tempo em que o corpo se torna mais passivo e obediente, no âmbito
social e na interação política (FOUCAULT, 1987, p 127).
Nesse sentido, Agamben (2009) reflete que, após a ascensão do capitalismo, os
dispositivos e suas formas de controle são facilmente incorporadas às democracias, fazendo
com que os cidadãos nem sintam que estão, permanentemente, sob as suas regras. O cidadão
“executa pontualmente tudo o que lhe é dito e deixa os gestos do cotidiano sejam comandados
e controlados por dispositivos até os mínimos detalhes”. Principalmente, após o surgimento da
tecnologia. Inclusive, Marshall (1967), afirma que, devido o processo de modernização, o modo
de controle da sociedade necessitou se reestruturar, formalizando em torno de três noções de
direitos – onde também estão implicados deveres – do cidadão para o Estado e vice versa.
O elemento civil é composto por direitos necessários à liberdade individual –
liberdade da pessoa, liberdade de fala, de pensamento e fé, o direito de
propriedade e de concluir contratos válidos, e o direito à justiça. [...] as
instituições mais diretamente associadas aos direitos civis são as cortes de
justiça. Por direitos políticos eu entendo o direito de participar no exercício do
poder político, como membro de um corpo investido de autoridade política ou
como eleitor de membros de tal corpo. As instituições correspondentes são o
parlamento e os conselhos locais de governo. Quanto ao elemento social
entendo ser toda uma gama de direitos, desde um modicum de segurança e
bem estar econômico até o direito de compartilhar por completo a herança
social e de viver a vida de um ser civilizado conforme os padrões
prevalecentes na sociedade. As instituições mais conectadas a ele são o
sistema educacional e os serviços sociais (MARSHALL, 1967, p. 67).
Cada um desses conjuntos de normas adquiriu velocidade, lógica e ritmo próprio,
se institucionalizando e passando a vigorar no imaginário social da sociedade. Ficando muito
mais fácil do Estado manter o controle sob os corpos dos sujeitos, uma vez que os próprios
sujeitos vigiam uns aos outros. No entanto, a institucionalização dos três tipos de direitos
ocorreu de maneira lenta dentro da dinâmica social, principalmente, em impulsionadas por
pressões e demandas provenientes de atores sociais e políticos. Vale ressaltar que não coube a
Marshall inaugurar a reflexão sobre cidadania e seus aspectos. Marx, Weber, Durkheim deram
sólidas contribuições sobre o tema no campo sociológico. Contudo, Marshall permitiu que a
discussão ganhasse novamente fôlego no âmbito da sociologia política, por buscar o retorno –
83
apesar dos avanços da história – na compreensão da episteme do termo cunhado na era clássica,
percebendo o modo como essa lógica conjuntista identitária – ressignificada ao longo do tempo
– age como dispositivo no imaginário social contemporâneo.
Em caráter de ênfase, o imaginário social da cidadania presente na pós-
modernidade, após todas as transformações ocorridas pelo impacto do sistema capitalista, ainda
carrega em si a necessidade de frequente luta pela sua própria consolidação. Mesmo que para
isso, os sujeitos necessitem de controle frequente dos dispositivos. Isso ocorre porque a lógica
conjuntista permanente é de organização e de crescimento do Estado. Assim como era nas polis.
Claro, guardada as devidas diferenças de tempo e de visão de mundo. Porém, quando o Estado
se organiza e cresce economicamente – aqui, localizando a reflexão no contexto capitalista – os
cidadãos deveriam receber benefícios em troca, uma vez que são os mantenedores desse
crescimento. Tais benefícios poderiam vir por meio da expansão e da consolidação dos seus
direitos.
Então, Marshall (1967) ao propor a segmentação dos direitos, permite mapear a
cidadania observando as suas estruturas sociais respeitando as diferenças a sua dinâmica de
crescimento. Além de favorecer ao cidadão conhecimento mais profundo do seu papel e da
função do Estado. Outros dois aspectos relevantes são: [1] o melhor reconhecimento dos
aspectos que envolvem cada direito, a fim de impulsionar a institucionalização deles na forma
da lei, racionalmente justificadas, amparadas em princípios universais e garantidas em última
instância pelo aparelho político administrativo; e [2] compreender que os dispositivos legais
vão reger a vida de indivíduos dotados de subjetividade que, cada vez mais, necessitarão que
as leis vigentes se adaptem às mudanças sociais, tendo em vista a proteção do cidadão em todas
as esferas públicas.
Compreender a cidadania como elemento chave das organizações políticas, em
se sentido lato, é fundamental para os Estados democráticos e para suas constituições. A
complexidade da cidadania está na corporificação de normas universais através de direitos
subjetivos que devem ser constitucionalmente garantidos e igualitariamente aplicados. De
acordo com Marshall (1967), a cidadania, em última instância, deve implicar em leis que
deixem de ser mero instrumento de uma reduzida política do Estado para se tornar uma
“interface de mediação” entre o aparato estatal e a comunidade. Mediante a esse complexo
normativo, a pluralidade e a diferenciação existente nas classes das sociedades capitalistas, não
apenas ganham garantia legal como também provoca nas massas o reconhecimento da
importância da integração social. Dessa forma, ainda de acordo com o autor, a cidadania
contemporânea passa assumir funções normativas que, dentro da lógica identitária de
84
pertencimento, devem ser garantidas de modo a atender a evolução social-histórica: [1] garantir
o acesso igualitário aos direitos subjetivos. Os direitos civis fixam as fronteiras entre a
sociedade e o Estado, de forma a proteger a primeira de possíveis incursões estatais. [2]
proporcionar de maneira direta ou indireta o acesso igualitário à participação nos negócios
públicos. Os direitos políticos são os dispositivos que estabelecem o elo entre os cidadãos e o
Estado sem aniquilar as fronteiras entre um e o outro, por serem necessárias para manter as
relações de poder. [3] proporcionar os recursos para que os sujeitos atuem autonomamente. Os
direitos sociais vigoram como dispositivos que produzem subjetividade, ao garantirem dos
direitos que tornam efetivos os diretos subjetivos.
Com o advento da Cibercultura, surgem novos modos de controle do corpo social
com a utilização dos dispositivos capazes de fazer conexão com a web. O dispositivo cidadania,
fundado no território da polis e, posteriormente, ampliado e aprofundado nos Estados
democráticos – por meio das lutas históricas dos sujeitos pelos seus direitos – se ver imerso e
ressignificado nos ambientes virtuais. As três categorias de direitos apresentado por Marshall
podem ser percebidas claramente nos discursos das redes sociais. O ciberespaço acabou se
transformando em local para a efervescência das discussões políticas devido a sua potência na
emissão, na conexão e reconfiguração, características da própria época cibercultural. Protegido
pelo bunker tecnológico, o sujeito aciona o dispositivo glocal e utiliza-se do neo nomadismo
para se fazer presente em questões que envolve o diretamente o Estado, a política e a sua própria
participação como cidadão no contexto social. Mas como tudo o que ocorre na cibercultura está
implicado no sistema dromocrático, a cidadania sofre impacto ao ter o seu poder potencializado,
ao mesmo tempo em que se fragiliza, passando por um processo de ressignificação como será
apresentado na parte a seguir.
85
PARTE III
O FENÔMENO GLOCAL E A CIDADANIA
GLOCALIZADA
86
O preâmbulo desta III Parte não será extenso, pois os dois capítulos analíticos
que se seguem dão conta das reflexões que fundamentam a Tese. Como as partes anteriores,
esta também se subdivide-se em dois capítulos. O quinto que trata do fenômeno glocal
ampliando e aprofundando os conceitos à luz da teoria do imaginário de Castoriadis (1986) e
do conceito de dispositivo de Agamben (2005), tendo como objetivo mostrar que a
ressignificação da cidadania ocorre pela interferência do dispositivo glocalizado. Dispositivo,
fenômeno glocal e cidadania são magmas sobre magmas que vão se consolidando no imaginário
social, se instituem e são instituídos na sociedade. O sexto capítulo dedica-se a cidadania
glocalizada, trazendo exemplos de como ela ocorre nos ambientes de rede. A seleção desses
exemplos se deu a partir dos seguintes critérios: extraídos do Twitter e Facebook, no período
de 2016 a 2018, mensurando o número de engajamentos por meio de hashtags que
apresentassem conteúdo referente aos direitos políticos, civis e sociais.
Os dois capítulos foram fundamentados, principalmente, em Trivinho (2007;
2012), Agamben (2005); Foucault (1987), Virilio (2001) e Marshall (1967).
87
CAPÍTULO 5 – O GLOCAL
5.1. O dispositivo glocal
Como abordado anteriormente, Agamben (2009, 2011) reflete sobre o
dispositivo levando em consideração a sua abrangência empírica, conjectural e social-histórica,
possibilitando a aproximação com as reflexões de Trivinho (2007) sobre o fenômeno glocal. A
conjunção de conceitos enriquece o pensamento crítico sobre a vinculação do glocal aos
magmas de significações imaginárias da contemporaneidade, potencializada pelas
peculiaridades do conceito de dispositivo como ferramenta capaz de orientar e capturar
comportamentos e discursos dos indivíduos (AGAMBEN, 2009, p. 40). Contudo, mesmo que
as obras de Agamben abranjam, de certo modo, reflexões sobre os dispositivos digitais, ainda
assim é urgente aprofundar a análise da influencia das ferramentas infotecnológicas como
dispositivos fundamentais por garantirem o pertencimento do sujeito a viver na cibercultura.
O glocal é composto por fluxos bidirecionais inerente às tecnologias
informáticas capazes de rede (TRIVINHO, 2007) que permitem a instantaneidade da
comunicação. No fluxo dessa comunicação em tempo real, mediada pelo dispositivo tecno-
informático, potencializam-se as atividades sociais e as atividades de governo, pautadas em
atitudes de caráter interativo às quais os indivíduos passam a vincular todas as tarefas do
cotidiano, inclusive o modo de pensar e agir. O envolvimento que se estabelece por meio da
comunicação como dispositivo se expande para todas as dimensões da vida em sociedade,
legitimando-se como constructo sociotécnico resultado da lógica conjuntista identitária dos
pensamentos mecanicistas e cibernéticos que constituem a gênese do imaginário de
glocalização.
O fenômeno glocal, de Trivinho (2012), é entendido como intervenção
tecnocultural, guarda correlações com o conceito de dispositivo de Agamben (2009), tanto na
condição empírica – uma vez que ambos são produtos do imaginário –, quanto nos aspectos
sígnicos e socioculturais. A natureza do glocal também se forma como magma de significações
imaginárias que resultam em estratégias de mercado, passando pela articulação e circulação de
conteúdos informacionais da sociedade mediática, até chegar aos consumidores ávidos por se
sentirem dentro do processo de glocalização. Esse processo se faz por meio do dispositivo que
disciplina corpos e os mantem sob regras e normas que capturam, interceptam, orientam,
controlam comportamentos, opiniões e discursos. É possível perceber a presença do dispositivo
88
glocal7 nas estratégias de marketing, nas produções publicitárias, nos conteúdos televisivos, nos
programas radiofônicos, sobretudo, na navegação no ciberespaço que implica nas adesões às
redes sociais, participação em jogos online e todas as outras formas de interatividade que o
ambiente de rede permite. Além disso, também estão implicadas as agendas mediáticas
vigentes, as intenções de aquisição deste ou daquele acessório multimediático, bem como, o
desejo de atualizações infotecnológicas tanto no que se refere aos aplicativos, quanto aos
equipamentos capazes de conexão com a rede.
Esses exemplos permitem compreender o modo como o glocal, seja em sua
dimensão lato ou stricto sensu8, está presente nas escolhas, nos discursos e nos posicionamentos
carregados de uma emoção característica da interação glocalizada que domina o imaginário do
usuário. E, para viver plenamente essa experiência, é imprescindível a apreensão do uso dos
equipamentos, acessórios e estruturas telecomunicacionais que dá suporte e capacita o
dispositivo na dominação completa da civilização tecnológica. No entanto, vale ressaltar, que
os dispositivos já configuravam – por comporem os magmas das significações sócio-históricas
– como constructo social e de forma rudimentar de ferramenta de governo, controle e
orientação, antes mesmo de se desdobrarem em fenômeno glocal. Vale ressaltar que o glocal,
devido sua natureza descentralizada, permite que os aspectos gerenciais de ordenamento do
dispositivo também passem a vigorar de modo descentralizado, facilitando a inserção de
mecanismos de controle em todas as esferas da vida cotidiana.
Apesar de o dispositivo glocal permanecer exercendo “pura atividade de
governo, que visa à própria reprodução” (AGAMBEN, 2009, p. 49), amplia-se por meio de uma
práxis gerencial ordenada e descentralizada, em que o tempo real passa ocupar o centro da
vivencia humana quase sempre mediada por tecnologias comunicacionais baseadas na
instantaneidade dos ambientes de rede. Então, os dispositivos glocais passam a vigorar como
mecanismos do sistema dromocrático que institui a velocidade como principal vetor de
articulação da sociedade cibercultural. Esse sistema invisível de poder sempre esteve presente
em toda a história da humanidade. Porém, Virilio (1993b, 1996b, 2000) e Trivinho (2001, 2007,
2013), destacam que após a revolução dos transportes, deu-se a revolução da transmissão,
iniciada no fim do século XIX e, rapidamente, desenvolvida no século XX. Com ela surgiu a
7 Recorda-se, neste ponto, que a conceituação referente à apreensão da natureza dispositiva relacionada ao glocal
tem fundamentação na categoria do glocal, de Trivinho (2007), abordado no Capítulo I, desta reflexão. 8 Vale frisar que, ao se tratar de dispositivos de natureza glocal, está-se fazendo referência aos suportes
infotecnológicos que formam os contextos glocais (isto é, na dimensão stricto sensu), enquanto que, ao se referir
à natureza dispositiva do glocal, busca-se dar ênfase também ao que o glocal abrange em sua dimensão lato sensu
(mass media).
89
transmissão em tempo real, proporcionando a experiência da “telepresença” e da “telexistencia”
(VIRILIO, 2000, p. 32), a partir da utilização dos media capazes de suprimir o “tempo presente”
em favor de um alhures que não remete à “presença concreta”, mas à “telepresença discreta”
(VIRILIO, 2000, p. 33). No entanto, o sistema dromocrático é levado às últimas consequências
com o advento da cibercultura, potencializado pelo fenômeno glocal interativo.
Vale ressaltar que o aspecto gerencial do dispositivo sofre alteração do processo
de glocalização interativa, pois não apenas se torna mote das práticas cotidianas, como também
passa a gerir uma vida ritmada pelo tempo real e ordenada descentradamente em conformidade
com o glocal dispositivo. Por isso, é importante destacar que, sob a perspectiva de Agamben
(2009, p. 35), o dispositivo remete “a um conjunto de práticas e mecanismos (...) que têm o
objetivo de fazer frente a uma urgência e de obter um efeito mais ou menos imediato”. Esse
feito “imediato” e “urgente” citado pelo autor é ampliado pelo glocal, devido sua natureza ser
constituída pela velocidade, fazendo com que os mecanismos de controle e de dominação do
corpo sejam acelerados, facilitando a sua introdução e expansão em todas as esferas do
cotidiano. Provocando, assim, alteração na forma de viver o tempo real, agilizando processos
socioculturais, tecnológicos e científicos que, ao longo do tempo, foi exigindo maior urgência
na gestão das coisas e imprimindo também maior ingerência sobre o ritmo da vida humana9.
O ritmo da vida humana passa a ser orientada pela união do caráter de urgência
que faz parte da natureza dos dispositivos somada a velocidade existente no fenômeno glocal.
Assim, conduzindo os sujeitos a viver sob a égide das emergências propriamente glocais
presente no âmbito político, econômico, social, bem como, nas relações interpessoais, no
trabalho, no lazer etc. Ou seja, é a própria existência do sujeito que passa a estar imbricada às
experiências proporcionadas pelo dispositivo glocal. Por isso, Virilio (2000, p. 34-35) afirma
que a velocidade não é apenas um fenômeno em si mesmo, mas a união e a relação entre vários
outros fenômenos. Essa capacidade de abrangência característica da velocidade permite que o
sistema dromocrático se consolide e amplie ainda mais os mecanismos de controle do
dispositivo glocal.
No que toca a produção de subjetivações, Agamben (2009) afirma que o
processo decorre da relação que se estabelece “corpo a corpo entre os viventes e os dispositivos”
(AGAMBEN, 2009, p. 41). Entretanto, na cibercultura, as quantidades de dispositivos
9 Vale ressaltar que a esta aceleração está assentada no mecanicismo desenvolvido ainda na época moderna, cuja
culminância é o pensamento cibernético, surgido em meados do século XX, podendo ser consultados os seguintes
autores acerca do tema: Trivinho (2001, 2007); e, para aprofundamentos sobre a relação entre aceleração e seu
impacto nos processos social-históricos e culturais do humano, veja-se Virilio (1993b, 1996b, 2000).
90
aumentam consideravelmente, por causa da tecnologia. Assim, contribuindo para que ocorra,
igualmente, a proliferação de processo de subjetivação e, ao mesmo tempo, de dessubjetivação.
Essa dinâmica, para o autor, acaba não engendrando uma recomposição do sujeito, apenas
favorece a emergência do que ele chama de “caráter espectral” 10. O caráter espectral refere-se
à expansão de subjetivações que só podem emergir do dispositivo glocal, pois, a experiência do
tempo real provoca subjetivações/ dessubjetivação de modo aleatório que se adequam as
necessidades próprias da condição pós-moderna.
Esse processo de subjetivações/dessubjetivações produzidas pelos dispositivos
glocais causa enorme satisfação nos sujeitos. Por isso, Agamben (2009) parte da premissa que
todo dispositivo traz em si o desejo humano de felicidade. O teórico ainda conclui que “a
captura e a subjetivação deste desejo, numa esfera separada, constituem a potência específica
do dispositivo” (AGAMBEN, 2009, p. 44), fazendo com que a felicidade se origine da
capacidade de restituir aquilo que teria sido separado da esfera comum. Exatamente o que o
dispositivo glocal faz, resgatando metanarrativas perdidas, sonhos dos sujeitos e todas as esferas
da vida humana que passam a estar presente em um só tempo: o tempo real. O tempo real, o
corpo dromocrático, do ambiente real ou virtual, compõe o ápice da potencialidade em capturar
os indivíduos pelo desejo de ser feliz por meio da emergência da velocidade. Os indivíduos a
compartilhar do imaginário social do processo de glocalização passam a experimentar o que há
de melhor da vivência cibercultural: a praticidade, a rapidez e a interatividade.
O fenômeno glocal, com seu alcance planetário em rede, possui a capacidade de
“capturar” os sujeitos onde quer que eles se encontrem. Sobretudo, porque o próprio sujeito
mantem relação de dependência com os processos de glocalização, fazendo com que o corpo
físico e a subjetividade estejam sempre conformados ao controle do dispositivo glocal.
Presume-se que o controle tenha a ver com ordenamento centralizado de uma determinada
situação. Porém, como já abordado anteriormente, o dispositivo glocal possui um ordenamento
descentralizado, no qual o controle se dá em níveis variados, desde o conteúdo informacional
presente na rede até as produções de subjetividades. O ordenamento permite que, a partir de
qualquer ponto da rede, os usuários possam acessar mecanismos que favoreçam observar e
serem observados, segmentarem grupos e pessoas, bem como, mapear perfis, levando em
consideração o consumo, os costumes e as preferências. A descentralização, por sua vez, está
presente nos processos de subjetivações/dessubjetivações aleatórias que demonstram a
10 O principal questionamento de Agamben (2009, p. 41-42) a respeito da proliferação dos processos de
subjetivação é a maior intensidade do “mascaramento que sempre acompanhou toda identidade pessoal”.
91
facilidade dos indivíduos de serem capturados pelos dispositivos e de se moldarem ao
ordenamento do glocal. Cabe ainda ressaltar que o ordenamento do dispositivo glocal passa
pela adequação da exigência à articulação do cotidiano, por meio das práticas sociais em tempo
real, na mesma medida em que alimentam dados e informações pessoais e/ou coletivas nos
ambientes virtuais.
Pode-se afirmar, a comunicação é o principal meio de gestão da vida humana.
Principalmente, por agregar em si – após a cibercultura – os dispositivos glocais interativos.
Assim, é possível considerar a existência de um processo social globalizado, conjuntural, que
é gerador de necessidades, desejos, interesses, modos de vida e, também, instiga os sujeitos a
participarem dessa estrutura e colaborar para manutenção dela. Atualizando o pensamento de
Agamben (2009, p. 40) para o âmbito das características intrínsecas presente nos fluxos
comunicacionais, é possível compreender que a comunicação vinculada ao contexto glocal,
como rede de atração humana aos dispositivos glocais, passa impor ritmo das práticas
cotidianas, capturando os sujeitos de modo sutil e sedutor, ressignificando e condicionando os
comportamentos, as opiniões e os discursos dos indivíduos por se consolidar no imaginário
social.
O dispositivo e o glocal são produtos originados, fortalecidos e disseminados por
meio do imaginário social e que precisam da comunicação e de seus instrumentos para
proporcionar a experiência concreta das interações virtuais, cuja aceleração remete ao tempo
real e a instantaneidade que suprime o limite tempo-espaço, apontado por Virilio e Trivinho. O
contexto comunicacional, que se expande com a web, contribui para a proliferação de
dispositivos glocais que ampliam a vivência glocalizada e conjuntizam todas as práticas do dia
a dia, desde a esfera do trabalho ao do lazer. Ampliando os processos comunicativos que
mantem não apenas as relações humanas, mas também todos os elementos presentes no mundo
e fora dele (como os satélites em órbita, os robôs lançados em exploração espacial, as
tecnologias que gerenciam os fenômenos da natureza etc.). Desse modo, constata-se que as
significações imaginárias da cibercultura são compostas por magmas que se consolidam e
articulam a sociedade. Esses magmas são compostos pelo dispositivo e pelo fenômeno glocal
que, por meio da comunicação tecnológica, sofrem imbricação, causando dependência
estrutural (BARBOSA, 2016) na humanidade. A vivência em tempo real e as produções de
subjetivações/ dessubjetivações conduzem os sujeitos para submissão sutil aos dispositivos
glocais que dominam os corpos e o imaginário, introduzem novas formas de pensar, agir e se
relacionar e ressignificam a história.
92
5.2. O dispositivo cidadania e o dispositivo glocal
Como já abordado, a cidadania e o fenômeno glocal constituem um dos magmas
das significações imaginárias da sociedade. A cidadania carrega consigo a lógica-identitária da
manutenção da ordem social necessária para a instituição e permanência do Estado (ou da
polis). O fenômeno glocal, por sua vez, possui a sua lógica fincada na velocidade que controla
a civilização cibercultural. Logo, ambos, passam a vigorar – cada um na sua esfera ou magma
– como dispositivos de produção de subjetivações, de dominação de corpos e controle dos
indivíduos.
Historicamente, o dispositivo de cidadania remete-se à noção de civilidade
exercida pelo cidadão. Essa noção é óbvia e faz parte do senso comum ligar o conceito de
cidadania à existência da cidade (espaço territorializado) e ao papel dos cidadãos. Em primeiro
lugar, essa constatação que parece ser simplista carrega a possibilidade de múltiplas
interpretações ao se refletir a relação existente entre o espaço geográfico e seus habitantes. O
convívio social está, quase sempre, ligado ao desejo de satisfação entre todos os participantes
do grupo. Lapierre (2014) destaca, para que os homens permaneçam juntos e viverem de modo
razoável, respeitando os limites uns dos outros, é necessário haver um pacto coercitivo entre
eles. A reflexão de Lapierre se aproxima do pensamento Rousseauniano (2009). De modo
genérico, Rousseau, ao fazer referência à saída do homem do estado primitivo para a fase da
agregação de indivíduos, lembra que os desejos particulares chocam-se com os desejos dos
outros membros grupo, tendo a necessidade de implementar um “contrato social”. A ideia de
convenção social também está presente na obra de Hobbes (1974), como possibilidade de
parametrizar o convívio de pessoas em um mesmo local.
A cidadania – nesta Tese, é entendida como a ação protagonizada pelo indivíduo
dentro das cidades –, carece de normativas para sua existência. Marshall (1967), Carvalho
(2013) e Meksenas (2002) relacionam o dispositivo da cidadania à posse de obrigações que
precisam ser respeitadas e cumpridas por todos os sujeitos, sob pena de sofrer sanções. Carvalho
(2013), afirma que a condição de cidadão está associada à posse de direitos e deveres civis,
políticos e sociais. Marshall (1967, p.76), apreende o conceito de jus soli11 , afirmando que a
11 Termo latino que significa “direito ao solo”, indicando o princípio racional de reconhecimento do indivíduo pelo
local de nascimento. O jus soli se contrapõe ao jus sanguinis que determina o “direito ao sangue”. As duas
expressões correspondem ao modo de reconhecimento da cidadania em países que viveram o processo de
colonização, como é o caso do Brasil.
93
cidadania é “um status concedido àqueles que são membros de uma comunidade”. Ressalta-se
que, para o autor, todos devem gozar das mesmas vantagens, dos mesmos direitos, por fazerem
parte da mesma sociedade. Nesse sentido, Rossueau (2009) e Hobbes (1974), refletem que, para
haver harmonia, é necessário o surgimento de alguma instituição que possa exercer de forma
justa o árbitro sobre todo tipo de conflito. O Estado e suas instituições de controle assumem a
responsabilidade de validar ou desqualificar atitudes dos cidadãos, promovendo ou coibindo
ações em prol da ordem da sociedade. Em nome dessa ordem, Weber (2013) afirma que cabe
ao Estado o uso legítimo da violência como forma de punição.
Sabe-se que os Estados nunca conseguiram manter em harmonia a justiça e a
igualdade. Tanto que, ao longo da história, a má condução dos governos contribuiu para tensões
sociais que acabaram desencadeando movimentos – até guerras – com o objetivo de ampliar os
direitos civis, políticos ou sociais. Então, a cidadania foi construída por meio de luta. Mas, essa
“luta” está atrelada a instrumentos de poder institucionalizados no imaginário social e que são
instituídos na sociedade. O cidadão conquista direitos, ao mesmo tempo em que adquire
obrigações, não apenas para manter a vida satisfatória na comunidade, mas por estar “preso” a
determinação normativa e pelo “pacto” forjado entre os indivíduos. Desse modo, cabe ao Estado
manter as estruturas hierárquicas de controle, enquanto na base os sujeitos passam a controlar
uns aos outros numa vigilância panóptica.
Quando evoca-se esse termo, lembra-se do projeto arquitetônico criado por
Jeremy Bentham para controlar doentes insanos, detentos etc, que serviu de base para reflexão
foucaultiana sobre os instrumentos de disciplina em manicômios, hospitais, escolas, indústrias,
presídios ou casas de correção, levando-o a compreender a importância do panóptico como
ferramenta de poder, afirmando: “quanto maior o número de informações em relação aos
indivíduos, maior a possibilidade de controle de comportamento desses indivíduos”
(FOUCAULT, 2008 ). Assim, Estado e os seus microrganismos fazem a gerencia centralizada
(característica do dispositivo) das estruturas políticas (sentido lato e strictu) responsáveis em
organizar a vida da sociedade, enquanto a sociedade se responsabiliza em garantir a ordem das
micro-estruturas no dia a dia. Desse modo, o cidadão não é somente aquele que faz parte do
Estado que lhe confere status de cidadania e reconhecimento entre seus concidadãos, mas é
aquele que gere as pequenas estruturas do cotidiano de modo vigilante em prol na manutenção
da ordem social. O dispositivo de cidadania controla e regula a vida cidadão, exigindo que não
seja passivo diante de um conjunto de variáveis que lhe ditam como existir, ao mesmo tempo
em que domina o corpo do sujeito sob a penalidade de perder a liberdade e os benefícios de ser
um cidadão.
94
No entanto, sob o impacto do fenômeno glocal (TRIVINHO, 2007, 2012),
ampliado sobremaneira com a cibercultura, as ações políticas, civis e sociais expandem-se no
ambiente de rede. A esfera pública digital não é mais recortada por fronteiras geográficas. A
dicotomia público/privado são anulados pelo sistema dromocrático que reduz o Estado
(territorial), ao agregar em si todos os dispositivos de controle, vigilância e punição necessários
para manutenção do poder centralizador das estruturas governantes.
Segundo Manuel Castells (2003), tudo (absolutamente tudo) vigora como se
apenas ou predominantemente global (isto é, sem relação sociotecnológica
estrita com os lugares – sobretudo urbanos, já amplamente desterritorializados
pelo tempo real): a economia, como de resto os mercados (de bem e de
capital); as cidades; a ciência e a tecnologia, e assim por diante (mas não ainda
a mão de obra, segundo dados da última década do século passado).
(TRIVINHO, 2012, p. 62).
Antes, a cidade (polis) ou o Estado era o lugar para o exercício da cidadania e as
ruas os espaços de manifestações dos cidadãos. O debate prosaico entre grupos sociais era uma
das formas de atividade política, da ação interessada do indivíduo sobre assuntos que
impactavam sua vida e a vida da comunidade. Com o advento da civilização tecnológica, todo
o modo de viver sofre alteração. O ambiente do tempo real, promovido pelo dispositivo glocal,
que passa a ser, mais efetivamente, o “local” de encontro dos sujeitos, cidadãos do território
citadino, agora são os cidadãos-usuários de interação glocalizada. O debate, a manifestação, os
movimentos em prol de melhorias, ora restrito ao reduto público da cidade, passa a ser discutido
no “não lugar” (VIRILIO, 2000) da rede. Canclini (2008) reflete que os mecanismos de
informação fazem vir à tona tudo aquilo que acontece no Estado. Os veículos de comunicação,
desde os mass media, reconfiguraram os espaços políticos, os espaços públicos e os próprios
discursos, ao passarem a ocupar o lugar que, anteriormente, eram exclusivos do Estado e de
seus representantes nas relações com os cidadãos.
Não foram tanto as revoluções sociais, nem o estudo das culturas populares,
nem a sensibilidade excepcional de alguns movimentos alternativos na
política e na arte, quanto o crescimento vertiginoso das tecnologias
audiovisuais da comunicação, o que tornou patente como vinha mudando
desde o século passado o desenvolvimento do público e o exercício da
cidadania. Mas estes meios eletrônicos que fizeram irromper as massas
populares na esfera pública foram deslocando o desempenho da cidadania em
direção às práticas de consumo. Foram estabelecidas outras maneiras de se
informar, de entender as comunidades a que se pertence, de conceber e exercer
os direitos. Desiludidos com as burocracias estatais, partidárias e sindicais, o
público recorre à rádio e à televisão para conseguir o que as instituições
cidadãs não proporcionam: serviços, justiça, reparações ou simples atenção.
95
(CANCLINI, 2008, p. 38)
Desde a interferência das cadeias de televisão especializadas em informação
contínua que criam uma espécie de câmara eco planetária, permitindo que todos os
acontecimentos sejam filmados, retransmitidos em tempo real para todos os continentes,
comentados em ampla escala por especialistas de todas as nacionalidades, até a potência das
tecnologias móveis conectadas à web que permitem a produção de conteúdo pelo próprio
usuário, contribuíram para que o comportamento dos cidadãos fosse modificado, assim como
modificou o modo de exercício da cidadania. As relações cidadãs passam a ser mediadas por
dispositivos glocais, tanto para o exercício do voto com urnas eletrônicas que processam os
dados e divulgam resultados com menos de 24h do término do pleito eleitoral, quanto para
publicação de vídeos e comentários mostrando situações problemáticas do cotidiano do país,
das cidades ou dos bairros.
À luz da comunicação glocal, a opinião pública torna-se opinião “publicizada”.
Os sensos comuns, os preconceitos, os estereótipos, os “achismos” e as mentiras tomam
dimensão global, transformando-se em pauta de uma grande agenda planetária. O sentido dessas
opiniões públicas que emergem na visibilidade mediática, não é a criação de consenso, muito
pelo contrário. O poder descentrado do dispositivo glocal interfere nos mecanismos de acordo
das ideias, colaborando para que a dinâmica das relações seja conflituosa, com opiniões
fragmentadas, discussões acaloradas que surgem de qualquer ponto do globo, manifestações e
reclamações de direitos feridos que deixam vir à tona sofrimentos do reduto da vida real, mas
que são abafados com comentários reducionistas da dor do outro. Vale ressaltar, os dispositivos
glocais, ao mesmo tempo em que integra, também provoca afastamentos e segmentações de
modos de pensamentos.
Nesse sentido, o panoptismo reaparece sob as bases do dispositivo glocal com
novos sistemas de monitoramento, controle e vigilância dos indivíduos e, consequentemente,
da opinião pública, agora, publicizada. Qualquer movimento de pessoas, coisas ou informações
deixam rastros que podem ser monitorados eletronicamente para fins mercadológicos, políticos
ou policiais. A ameaça difusa e invisível disseminada por câmeras de vigilância ou de celulares,
perfis de usuários, em logs de navegação e em hastags tudo altamente protegido pelo bunker
glocalizado. Trivinho afirma que “O bunker parasitário da rede é a configuração tecnológica,
sociocultural e civil universalizada – espaço ambiental e psíquico corporal – do glocal, no qual
se preserva a militarização velada da existência e da experiência cotidianas” (TRIVINHO,
2012, p. 25). O panoptimo bunkerizado glocal permite não apenas o controle disciplinar e de
96
confinamento do panóptico foucaultiano, mas de controles ainda mais sutis dos movimentos de
uma sociedade dromocrática.
Na sociedade dromocrática, o dispositivo da cidadania ressignifca-se ao sofrer
interferência dos dispositivos glocais. A visibilidade mediática e o tempo real agem no
imaginário social dos sujeitos, colaborando para o surgimento de uma nova forma de ação
cidadã em que usuários-cidadãos, de diversos pontos do país e do mundo, criam ou desfazem
comitês de discussões de pauta social relevante, formam eficazes manifestações utilizando
todos os recursos disponíveis na rede, organizam – sem coordenação central – mobilizações no
Facebook, Twitter, Instagram, Whatsapp e YouTube , alcançando números altos de adesão que
acabam repercutindo no ambiente real. Como foi o caso da Primavera Árabe, movimento
iniciado, em 2010, nas redes sociais contra a ditadura nos países árabes, impulsionaram uma
série de manifestações públicas em diversos países e trouxeram significativas implicações
geopolíticas. O resultado foi à derrubada de três chefes de Estado, Zine El Abidine Bem Ali, da
Tunísia; Hosni Mubarak, do Egito; e Muammar al-Gaddafi, da Líbia, torturado e morto
publicamente, após 30 anos de mandato. No Brasil, o movimento Passe Livre, em 2013,
também originado nas redes sociais, levou às ruas milhares de brasileiros pedindo a redução da
tarifa do transporte público, justificando-se apenas como manifestação social sem “apoio
partidário”, mas que acabou gerando consequências ao país, como o impeachment da presidente
Dilma, em seu segundo mandato, no ano de 2016. Nos Estados Unidos, Edward Snowden, ex-
administrador de sistemas da CIA, tornou público nos jornais The Guardian e The Whashington
Post, detalhes de programas norte americanos de vigilância global, ferindo a soberania dos
países vigiados. Esse fato ilustra perfeitamente a dimensão do panoptismo bunkerizado do
dispositivo glocal que atinge todas as esferas – das governamentais até a civil – em escala
planetária, fazendo os cidadãos viverem sob uma vigilância permanente, descentralizada, que,
além de controlar, também parametriza o exercício da cidadania.
A perda da privacidade, concebida como uma tríade de direitos: direito de não
ser monitorado, direito de não ser registrado, direito de não ter dados publicados, são superados
em nome da transparência necessária para garantir a segurança do cidadão. Essa mesma
transparência – característica da vigilância panóptica glocalizada – também favorece que os
sujeitos criem parâmetros de cidadania, comparando as ações desenvolvidas nos mais diversos
Estados, seja por meio de canais oficiais do governo, fontes jornalísticas ou até pelas redes
sociais. Desnudando problemas, de toda ordem, em tempo real. Deixando emergir que os
direitos que garantem a plenitude da cidadania ainda não foram capazes de atender a todos,
principalmente, as minorias. Outra questão importante é a influência do controle
97
descentralizador do dispositivo glocal na fragmentação da percepção política da sociedade.
Vive-se uma onda global de polarização da politica, sendo: de um lado os “democratas” com
discurso de inclusão social e respeito às diversidades culturais, sexuais e religiosas, visando a
expansão da cidadania; e do outro lado, os conservadores, opositores à corrente democrática, e
adeptos a uma sociedade mais fechada, resistente ao pluralismo das ideias e dos modos de vida,
tornando a cidadania acessível a poucos e deixando os que vivem à margem na busca constante
por ela.
Então, sob a interferência do dispositivo glocal, a cidadania ressignifica-se,
passando a ser exercida no ambiente de rede e se transformando em cidadania glocal. A
cidadania glocal expande o conceito de cidadania, antes vinculado às atividades públicas da
polis ou do Estado, para ser vivida pelos sujeitos nos espaços virtuais à luz da velocidade
mediática. As pessoas podem reivindicar seus direitos, denunciar seus pares por não
corresponder aos seus deveres, tomar conhecimento das lutas das minorias (podendo aderir ou
não), promover manifestações ou boicotes, tecer críticas ao governo vigente, tudo isso favorece
o aparecimento de uma nova maneira de relacionamento com a política e com o espaço público.
Contudo, a cidadania glocalizada, por ser magma de significações imaginárias, carrega consigo
a lógica identitária mercadológica que mantem a cibercultura. Ao mesmo tempo em que o
cidadão ganha espaço para atuação “democrática” na rede, atrela-se ao cerne do capital e, com
isso, continua alimentando o processo de dominação e de exclusão característico do sistema.
No entanto, vale ressaltar que a cidadania glocalizada pode, em alguma medida, resultar em
benefícios concretos à sociedade, forçando tomada de decisões, sensibilizando os governantes
diante de uma causa relevantes para o benefício da sociedade, como, até mesmo, alterar leis do
país.
98
CAPÍTULO 6 – A CIDADANIA GLOCAL
6.1. Cidadania ressignificada
A ressignificação da cidadania pelo fenômeno glocal ocorre tanto no modo como
passa a ser exercida, como no próprio conceito. O conceito e o exercício da cidadania,
anteriormente, limitavam-se à participação efetiva dos cidadãos no território citadino. No
entanto, para que o sujeito pudesse participar, era necessário que fosse reconhecido como
membro da polis ou do Estado. Esse reconhecimento garantia deveres para com a comunidade,
bem como, gozo de direitos que beneficiavam a sua vida (MARSHALL, ...). Após o fenômeno
glocal, potencializado com o advento da cibercultura, a cidadania amplia-se conceitualmente e
modifica a maneira como é exercida. Pois, ao sofrer imbricação com os dispositivos glocais,
supera o limite do território e expande-se no ambiente de rede. E nesse ambiente, os cidadãos-
usuários não necessitam de reconhecimento do Estado para participar dos assuntos relacionados
à comunidade. Assim como, interferem, dando seu parecer, sobre agendas dos Estados dos
quais não seriam reconhecidos como “cidadãos”.
Descentralizadamente, os sujeitos, protegidos por bunkers, montam estratégias,
organizam manifestações, publicizam opiniões que se pulverizam nas redes sociais, mobilizam
discussões sobre os direitos cidadãos, incluindo na pauta a luta das minorias e debatem sobre
as questões políticas, com visões polarizadas alimentadas por notícias fakes, que se transforma
em assunto diário nas plataformas online. Assim, a cidadania glocal pode ser conceituada
como participação imaginária em tempo real, instrumentalizada pelo bunker, que favorece os
cidadãos teleinteragentes a deixarem vir à luz da visibilidade mediática as questões que
envolvem a vida em sociedade atravessada pela condição transpolítica. Sobre a transpolítica,
Trivinho afirma:
A transpolítica não representa, portanto, a substituição da política, mas a
flacidez e comprometimento completos [...] é a corrosão da política sem
permitir que ela desapareça, mas sem estar sujeita diretamente à jurisdição
executiva, legislativa e penal, e, portanto, sem ser por ela integralmente
apanhada, gerenciada e controlada (TRIVINHO, 2012, p. 129)
Devido esse caráter transpolítico, a cidadania glocal se distancia da cidadania
tradicional, porque não está subordinada ao governo vigente nos países. Uma vez que constrói
o seu próprio mecanismo de política, de luta e de percepção de mundo. Não por outro motivo,
99
a cidadania glocal pode ser contraditória, ao facilitar que os cidadãos, no ambiente de rede,
manifestem discursos que ferem os princípios dos direitos humanos, em prol do resgate de
valores morais e religiosos consolidados pela lógica conjuntista identitária no imaginário de
algumas classes sociais, na mesma medida que pode impulsionar causas relevantes para o bem
estar social, à luz do próprio direitos humanos.
O mundo vem sofrendo os impactos da cidadania glocal sem estar preparado
para as consequências dela. Esse modo de ação cidadã que ocorre ao largo do Estado, possui
mecanismos de controles descentralizados, ambientados no “não lugar” da rede, vinculado à
condição transpolítica, sendo difícil de ser gerido por mecanismos tradicionais. Uma vez que a
ação acontece por meio do imaginário, consolidando novos magmas de significações
imaginárias que serão instituídos na sociedade. Fake news, pós-verdades e bolhas, termos que
se tornaram comuns, apesar de ainda ser pouco estudado nas academias, são consequências da
cidadania glocalizada.
A cidadania glocalizada se faz pela atuação direta do cidadão nas redes. Não
estando ligada às ações em plataformas oficiais de governo, de comunicação ou ong’s. Ela
acontece durante a rotina, no acesso rápido às redes sociais, na adesão a grupos e comunidades
virtuais, no post que pode ser descomprometido ou responsável, ambos marcados pela hashtag,
ou até mesmo no repost. Por isso, a cidadania glocalizada difere-se do conceito de
ciberdemocracia e cibercidadania. Primeiro, porque ambos remetem a atitudes inclusivas em
rede que beneficiam a sociedade; segundo, estão ligadas à percepção de cidadania e de
democracia já institucionalizadas, como se fosse uma versão delas nos ambientes online.
A cidadania glocalizada é um novo modo de se “fazer” cidadão. Acontece,
potencialmente, via redes sociais, dividindo espaço com assuntos de todas as ordens, imagens
e publicidades. Ela é disseminada de um ponto e ganha adesão do coletivo por contágio, devido
o seu conteúdo estar, quase sempre, associado aos direitos dos cidadãos. Isso ocorre porque os
direitos são significações consolidadas no imaginário social como componentes que definem o
sentido de igualdade (MARSHALL, 2002). O sentido de igualdade é a lógica identitária que
constitui a base da cidadania desde a sua origem, apenas se altera de acordo com o modelo de
sociedade. Uma vez que a igualdade na polis é completamente distinta da noção de igualdade
nos sistemas democratas atuais. Nesse sentido, é válido retornar ao pensamento castoriano
(1986) que ressalta o quanto as significações imaginárias conferem sentido à existência e se
alteram de acordo com a importância que cada época lhes atribui. Essas significações são
responsáveis por definir a forma de vida dos sujeitos na comunidade. O que ocorre, na
civilização mediática, é o alargamento das significações que compõe o escopo dos direitos já
100
existentes, numa tentativa de fazer com que todos os grupos possam se fazer presente no debate
glocal. Das feministas até os mais conservadores “lutam” de modo teleinteragente para que seus
direitos sejam garantidos.
Para que o cidadão possa exercer a cidadania glocal é necessário que, segundo
Trivinho (2007; 2012), haja atuação do sujeito em dois espaços, no domus (recinto doméstico
e espaço privado/público da cidade) e no não-lugar da rede, mediado pela velocidade
tecnológica que faz parte da condição glocal. Então, baseado no autor pode-se dizer que a
cidadania glocalizada está condicionada a quatro fatores: [1] Infra-estrutura e equipamentos:
a cidadania glocal faz parte do sistema dromocrático que vigora na cibercultura. Logo, para
acessar as comunidades virtuais, os sujeitos precisam ter capital financeiro e cognitivo para
manter a lógica de reciclagem estrutural12, adquirindo novos aparelhos eletrônicos informáticos
que permitam usar aplicativos atualizados diariamente, com o objetivo de participar ativamente
da recepção como da provisão dos conteúdos que circulam nas redes (TRIVINHO, 2007). [2]
Condição neo nômade: a ação teleinteragente do cidadão glocal está implicada na capacidade
de deslocamento rápido do corpo espectral nos ambientes de virtuais, passando teleexistir em
várias plataformas, engajando-se, simultaneamente, tanto em manifestações da internet, quanto
nas tarefas triviais (BAITELLO, 2012; VIRILIO, 2000). [3] Dromoaptidão: domínio das
senhas infotécnicas de acesso, para compreender os conteúdos e o modo como as manifestações
cidadãs serão promovidas (TRIVINHO, 2007, 2012). [4] Percepção dos direitos civis,
políticos e sociais: os três itens anteriores estão ligados ao uso dos dispositivos glocais, esse
último difere a cidadania de qualquer outra expressão na rede. Uma vez que os direitos sociais,
políticos e civis estão legitimados como base característica da cidadania (MARSALL, 1967).
Para se tornar mais compreensível, a seguir, serão apresentados alguns exemplos
de cidadania glocalizada. Esses exemplos obedeceram aos seguintes critérios: a) As postagens
foram extraídas das redes sociais Facebook e Twitter, no período entre 2016 a 2018. A escolha
pelo Facebook e Twitter deve-se ao maior número de engajamentos com a temática da
cidadania, mensuradas pelo uso de hashtags; b) os posts se referem a assuntos do contexto
brasileiro, separados pela categoria dos direitos políticos, sociais e civis.
12 Segundo Trivinho
101
6.2. A tríade dos direitos na cidadania glocal
Como abordado ao longo desta Tese, Marshall (2002) desenvolveu a ideia de
cidadania a partir do conjunto de três elementos de natureza normativa: civil, política e social,
criadas e firmadas em séculos diferentes. Os direitos civis se formaram no século XVIII; os
direitos políticos, no século XIX, e os direitos sociais, no século XX. Por isso, o autor faz essa
separação didática da tríade dos direitos, considerando a construção histórica de cada um deles.
De acordo com o Marshall, foi a partir do século XVIII, na Europa Ocidental,
que surgiram condições favoráveis à conquista dos direitos civis, permitindo ao cidadão – a
todos os membros da sociedade, de modo abstrato; e, mas concretamente, somente à burguesia
– a capacidade jurídica de lutar pelos direitos necessários à liberdade individual. Ainda não se
tratava da posse concreta desses direitos pelas pessoas, apenas a possibilidade de alcançá-los.
Com a consolidação do primeiro grupo de direitos, surgiram, no século XIX, os direitos
políticos. Porém, a participação política se estruturou na Inglaterra após a consolidação dos
direitos civis. Ou seja, a partir dos direitos políticos houve a possibilidade da criação do direito
social, ao mesmo tempo em que permitiu ampliar os direitos civis a um maior número de
pessoas, sobretudo, com a emergência das sociedades democráticas. No século XX,
consolidam-se os direitos sociais, os quais se referem ao direito mínimo de bem-estar social.
Iniciam ainda no século de XIX, com os primeiros movimentos em prol de melhores condições
de trabalho. No entanto, foi, no século XX, que as conquistas foram alcançadas e o tripé dos
direitos passou a coexistir.
Vale ressaltar que o autor não tem a pretensão de “descartar” todo o processo
pelo qual a cidadania passou até chegar ao século XVIII. Essa delimitação temporal baseia-se
na premissa de que, até esse período, não havia como perceber a separação dos direitos, pois as
funções estatais faziam com que os eles fossem entendidos como se estivessem fundidos em
um só (MARSHALL, 2002, p. 10). Logo, os direitos não se distinguiam porque as instituições
também não eram distintas. Assim, a evolução da cidadania “envolveu um processo duplo, de
fusão e de separação. A fusão foi geográfica e a separação, funcional” (MARSHALL, 2002, p.
10). Quando as instituições que abarcavam os três elementos da cidadania se separaram, tornou-
se possível cada um dos direitos “seguir um caminho próprio, viajando numa velocidade própria
sob a direção de seus próprios princípios peculiares” (MARSHALL, 2002, p. 11); e, por
conseguinte, a fusão geográfica, por meio do nacionalismo das instituições não podia mais
pertencer totalmente à vida dos grupos sociais. Com esse sentido duplo que o tripé dos direitos
que compõem a cidadania se confirmou, tornando-se distintos entre si, e permitindo a Marshall,
102
então, construir conceito para cada um deles (MARSHALL, 2002, p. 12).
No contexto brasileiro, é a partir da Constituição Federal de 1988, popularmente
conhecida como “constituição cidadã” que o tripé de direitos fica mais evidente, devido a
abrangência de aspectos tanto da ordem capitalista, com ênfase nos direitos civis, quanto na
ordem socialista, com foco nos direitos sociais, ambos implicados com a democracia, garantida
pelos direitos políticos. A Constituição corresponde, em certa medida, a vontade dos cidadãos
verem legitimada a ampliação dos direitos. Depois de 21 anos sob a ditadura militar e do cenário
internacional incerto, imerso na Guerra Fria, com o muro de Berlim ainda símbolo da divisão
geopolítica do mundo e da percepção de que o socialismo precisava ser vencido pelo
capitalismo, impulsionou o surgimento de pautas positivas de caráter social que contribuíram
para organização de grupos políticos, sindicatos e movimentos sociais. Contudo, na prática, a
cidadania brasileira foi sendo conquistada por meio de concessões do Estado à população, numa
sequência de programas assistencialistas que implementaram, pouco a pouco, os direitos e
criaram uma rotina na relação entre Estado-cidadão baseada na troca entre voto e direito social,
desfavorecendo o amadurecimento da cidadania. Uma vez que condiciona a sociedade enxergar
somente no ato de votar o mecanismo de ampliação de seus direitos.
Porém, nos últimos anos, o Brasil e o mundo começaram a experimentar, via
ambientes de rede, uma nova forma de cidadania, denominada de cidadania glocal. Como dito
anteriormente, a cidadania glocal vai para além da “cibercidadania” ou “ciberdemocracia” –
que possuem conotação info-inclusivas de acesso a canais institucionais – porque não necessita
de nenhuma instituição governamental ou não governamental para existir. A cidadania glocal é
o dispositivo de poder, vigilância e controle descentralizado que não está hospedado em
nenhuma plataforma institucional. Muito pelo contrário, o seu caráter transpolítico permite que
as ações cidadãs originem-se de qualquer ponto da rede e sejam mantidas pelo imaginário
bunker entendido, por Trivinho, como “um imaginário de desconfiança e refúgio” (2012, p.
156). Por isso, a cidadania glocal pauta-se nos direitos dos cidadãos. Afinal, o sistema
dromocrático que vigora na cibercultura, emergido da condição pós-moderna, conduz a
sociedade para um futuro repleto de incertezas e de desesperanças. E, garantir os direitos dos
cidadãos, garante a permanência do imaginário social que alimenta o sentimento de
pertencimento e de participação que compõe a lógica conjuntiva identitária da cidadania.
No entanto, essa lógica de participação e de pertença em grupos sociais é levada
às últimas consequências nos ambientes glocais interativos. Milhares de usuários se unem
construindo redes de produção e de compartilhamento de conteúdo de todos os tipos,
procurando dar visibilidade às suas causas, bem como, ser ouvido em suas necessidades. As
103
vozes que ecoam nas redes sociais, mesmo muitas vezes confusas, ganham apoio de milhões de
usuários que enxergam nessa adesão a oportunidade de manifestar insatisfações, sugestões e
preocupações reais que partem da experiência real do dia a dia. E, num cenário político repleto
de instabilidade, com sistemas de governo desacreditados, mídia tradicional enfraquecida e
economia instável, as desigualdades e os problemas de todas as ordens da sociedade ficam ainda
mais evidentes, passando a virar motivo de pauta de discussões nas redes sociais. Pode ser que
as discussões impulsionem criação de leis ou mudanças de ideologias, mas a certeza é de que o
imaginário social se transforma e, por consequência, muda o modo de ser e de viver da
sociedade, contribuindo para que o exercício da cidadania se ressignifique.
A cidadania glocal se faz, também, por meio de hashtags: palavras-chaves que
ganham novas funções no ambiente tecnológico interativo. Por isso, tomando como base a
reflexão de Trivinho sobre as linguagens tecnológicas e a sociossemiose plena da interatividade
(2007), é possível afirmar que as hashtags estão incluídas nessas linguagens que abrangem o
arco diversificado de signos de fácil identificação nas redes sociais. Elas possuem referencia
pragmática que não se reduz ao que é exposto na tela, pois
No fundo, lateja, nesses e por esses dados, o conjunto de ingredientes
tecnoestéticos responsáveis pela promoção transpolítica (não discursiva, não
explícita e pouco sistêmica) da cibercultura como configuração material,
simbólica e imaginária de época, e que, por isso, se arranjam, historicamente,
na modalidade (do que se pode chamar) de uma sociossemiose plena da
interatividade, linguagem internacional monopolista, de caráter
intencionalmente facilitador – tomada, assim, de maneira equívoca, como
“popular” –, que, legitimada pelo mercado, acompanha e sustenta a produção
e o consumo da interatividade como forma predominante de relação social,
seja com a alteridade humana (outro virtual) e com a alteridade maquínica
(objeto infotecnológico), seja com a alteridade mundo (a rede como ator
teleinteragente de resposta programada e automática), na esfera do trabalho e
na do tempo livre e de lazer (TRIVINHO, 2007, p. )
As hashtags começaram a ser usadas a partir de 2007, como ferramenta de
indexação no site Twitter. Rapidamente, passaram a ser utilizadas nas outras redes sociais como
mecanismo de agrupamento de postagens, articulando palavras, frases ou expressões precedidas
pelo símbolo sustenido “#”. No exercício da cidadania glocalizada, as hashtags são
imprescindíveis, pois os cidadãos-usuários passam a utiliza-la para dar visibilidade a uma
determinada pauta, causando comoção/indignação e fazendo com que as pessoas se agrupem
em torno do mesmo ideal. Tornando público a maneira como se posicionam, direcionando as
informações contidas na web sob os mais variados temas e, assim, possibilitando maior
participação e cooperação dos sujeitos, sobretudo, em assuntos que versem sobre os direitos do
104
cidadão.
Desde o ano de 2016, as pautas feministas e LBTQI se intensificaram e passaram
a repercutir positivamente nas redes sociais, possibilitando a ampliação do debate que transita
entre os direitos civis e sociais. Atos de violência contra a mulher, como assédio em transportes
públicos ou no trabalho, agressões físicas ou temas como aborto e licença maternidade passaram
a ganhar visibilidade por meio da hashtag #MexeuComUmaMexeuComTodas. Essa hashtag
foi criada por Mariana Varella, do blog Chorumelas13, em 2017, e passou a ser utilizada para
engajamento às causas de cunho feminista. A luta feminina pela garantia dos seus direitos civis
e sociais não é recente. Mas, foi por meio da ação glocal que ganhou mais visibilidade, fazendo
vir à tona a lógica conjuntista identitária presente no imaginário social-histórico brasileiro
(CASTORIADIS, 1986), consolidado no período da colonização, que fortalece a naturalização
e a tolerância dos casos de violação contra mulher, mostrando a necessidade urgente de punir o
agressor e de não culpabilizar a vítima. Por isso, a hashtag #MexeuComUmaMexeuComTodas
incentiva as mulheres a não se calarem diante de violências de todas as ordens, permitindo que
outras mulheres se engajem na causa, por meio da sororiedade.
No exercício da função do patriarcal, os homens detêm o poder de determinar
a conduta das categorias sociais nomeadas. Recebendo autorização ou, pelo
menos, tolerância da sociedade para punir o que se lhes apresenta como
desvio. Ainda que não haja nenhuma tentativa, por parte das vítimas
potenciais, de trilhar caminhos diversos dos prescritos pelas normas sociais, a
execução do projeto dominação exploração da categoria homem exige que sua
capacidade de mando seja auxiliada pela violência. Com efeito, ideologia de
gênero é insuficiente para garantir a obediência das vítimas aos ditames do
patriarca, tendo este a necessidade de fazer o uso da violência (SAFFIOTI,
2001, p.115).
A hashtag já foi utilizada mais 324.657.876 vezes, desde quando foi criada,
somando as três principais redes sociais: Facebook, Instagram e Twitter. Os posts a seguir, terão
as identidades dos usuários preservadas, pois o foco é ecomo a cidadania glocal emerge
ressignificando o modelo de cidadania já consolidado, permitindo que o maior número de
pessoas se engaje em discussões sobre a garantia dos seus direitos e do papel do Estado na
proteção deles.
13 Blog dedicado a temática de gênero, disponível em: <http://marianavarella.blogspot.com/>.
105
Imagem 1: #MexeuComUmaMexeuComTodas
Fonte: Twitter
Os posts podem ser analisados sob a perspectiva dos direitos civis e sociais. A
luta e o engajamento das mulheres nas redes sociais visam o reconhecimento do principio da
igualdade – prevista na constituição de 1988 – dos direitos que possibilitem a liberdade de ir e
106
vir com segurança, diminuindo os números de casos de assédios e de estupros, garantindo que
esses crimes sejam punidos de maneira mais efetiva. Caso alguma mulher seja vítima de
violência, cabe ao Estado garantir proteção e auxilio sem expô-la a mais constrangimentos e
sofrimentos. A partir dos anos 2000, houve um significativo avanço no cenário brasileiro com
a conquista de alguns instrumentos legais que reconhecem a necessidade de incentivar o
exercício da cidadania, com o acesso ao direito, à participação política e social da mulher. O
Plano Nacional de Políticas para as mulheres – PNPM/2006, a Lei 11.340/2006 (Lei Maria da
Penha) legitimada, permitiu a implementar políticas de prevenção, de enfrentamento e de
assistência às mulheres em situação de violência. Em 2013, mais uma conquista que veio
através da Política Nacional de Atenção Integral a Saúde da Mulher- PNAISM/2013,
propiciando o atendimento, pelo Sistema Único de Saúde (SUS) – por exigência do próprio
Ministério da Saúde (MS) –, e assistência à mulher vítima de violência doméstica, bem como,
diagnóstico e tratamento do câncer do colo do útero, orientação sobre métodos reprodutivos e
contraceptivos, entre outras ações de promoçap que visassem atenção e promoção dos direitos
que nesse seguimento são demandas específicas do público feminino. Diante dessas pequenas
conquistas, em novembro de 2018, foi votada a primeira versão do projeto de lei que interfere
na interpretação de todas as outras leis e portarias que autorizam serviços de aborto legalizado
no Brasil, tais como: em casos de gravidez originada de estupro, anencefalia e risco à vida da
grávida. Além disso, a conhecida PEC 181/15 modifica outros artigos da constituição que
tratam da licença-maternidade. Diante disso, nova manifestação da cidadania glocal emergiu
na rede, tendo a mesma hashtag #MexeuComUmaMexeuComTodas como indicativo de alerta
de que as mulheres estavam, mais uma vez, com seus direitos fragilizados.
107
Imagem 2: PEC 1818/15
Fonte: Twitter
Vale ressaltar que o movimento feminista, no período de democratização do
Brasil, contribuiu de maneira significativa para que se fortalecessem as políticas de
enfrentamento à violência que havia sido instituída pelo período ditatorial. Esse imaginário
contra todo o tipo de barbárie e de silenciamento das minorias converteu-se em pauta recente
no período eleitoral de 2018. Por isso, pode-se afirmar que a cidadania glocal foi exercida
amplamente durante este período, protagonizada por mulheres na campanha com a hashtag
#ELENÃO.
108
Imagem 3: #ELENÃO
Fonte: Twitter e Facebook
109
Conhecido como movimento #ELENÃO, iniciado no Facebook, teve em menos
de 24h adesão de mais de três milhões de mulheres que se organizaram para manifesto contra
o, até então candidato, Jair Bolsonaro, hoje, presidente eleito. Mesmo não conseguindo atingir
o objetivo de conscientizar sobre a agenda conservadora que compunha o plano de governo de
Bolsonaro, a ponto de mudar a intenção de voto da maioria dos brasileiros, a ação foi
considerada um sucesso, tanto nas redes sociais, quanto nas mobilizações coletivas que levaram
às ruas milhares de pessoas em 114 cidades no Brasil e fora do país, com manifestos nas cidades
de Nova York, Lisboa, Paris, Alemanha e Londres. Essa repercussão positiva deve-se a esse
novo modo de exercer a cidadania que independente das instituições do Estado – apenas
protegido pelo bunker tecnológico –, consegue articular de modo descentralizados mecanismos
de resistência ou, até mesmo, de consolidação da lógica conjuntista identitária vigente no social-
histórico da sociedade contemporânea (CASTORIADIS, 1986; TRIVINHO, 2001, 2007,
2012). Devido avaliação positiva do movimento, uma das páginas criadas no Facebook, cujo
nome é MUCB (Mulheres Unidas Contra Bolsonaro), após a eleição de Jair Bolsonaro, não saiu
do ar e passou a incorporar pautas de resistências contra a perda de qualquer direito do cidadão.
Sendo uma página de cunho feminista em que o feminismo não é reduzido às causas
exclusivamente femininas, como o senso comum imagina que seja. Mas sim, como
protagonismo feminino em defesa da democracia e dos direitos dos humanos.
A cidadania glocal também é exercida de modo efetivo pelo grupo LGBTI que
luta contra o preconceito e pelo reconhecimento como cidadão, garantindo direitos que
respeitem suas diferenças. A Constituição Federal prevê a promoção do bem de todos sem
preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade ou religião. Porém, o Brasil como um país
conservador, a discriminação e o preconceito estão presentes no dia a dia. Muito embora nos
últimos anos alguns avanços foram conquistados no campo civil, com o direito à família
(casamento e adoção de filhos). Mas mesmo assim, no direito social, pouco se avançou. O país
é reconhecido pela violência contra lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e
transgêneros. Os episódios quase diários de agressões físicas e homicídios, reportados pela
imprensa de todas as regiões, são apenas a face mais visível da realidade cotidiana de
preconceito e privação de direitos enfrentada pela população LGBTI nos espaços públicos, no
mercado de trabalho, na mídia, nas escolas e, muitas vezes, até mesmo na própria família.
A luta pela superação do preconceito se fortaleceu com o movimento
#ELENÃO, em setembro e outubro de 2018, que incluiu todas as pautas voltadas para garantia
dos direitos humanos. Uma vez que o candidato Bolsonaro, não apenas propunha uma agenda
conservadora, como também passou a ser conhecido, através da mídia, pelo seu discurso
110
preconceituoso.
Imagem 4: #ELENÃO e #LOVEWINS
Fonte: Twitter
O movimento LGBTQI teve inicio no Brasil ainda na década de 70, em plena
ditadura militar. Motivados pela perseguição e torturas provocadas pelo regime, um grupo de
homossexuais se organizou e criou o Movimento Homossexual Brasileiro (MHB) para lutar
contra a discriminação e pela garantia do respeito às diferenças de orientação sexual. Somente
nos anos 90, o movimento foi nomeado como LGBT e passou a incluir pautas de identidade de
gênero e sexualidades. A emergência da AIDS impulsionou o poder público a instituir políticas
positivas de combate à doença, bem como, mobilizou campanhas sobre orientação sexual, tendo
em vista a promoção do direito individual à liberdade de sexualidade e a igualdade dos direitos
111
civis, como a união estável que garante ao cônjuge da relação homoafetiva, os mesmos direitos
dos casais heterossexuais.
Os direitos civis, políticos e sociais também tomaram o centro das redes sociais
com mais duas manifestações consolidadas pela cidadania glocal: o movimento
#NENHUMDIREITOAMENOS em protesto contra a reforma da previdência, reforma
trabalhista, entre outras demandas promovidas pelo governo de Michel Temer, as quais limitam
ou excluem os direitos conquistados em governos anteriores.
Imagem 5: #NenhumDireitoAMenos
Fonte: Twitter
Os direitos trabalhistas e previdenciários estão entre os direitos sociais, civis e
políticos, conquistados tardiamente pelos brasileiros. Segundo Carvalho (2013), o Ministério
do Trabalho foi criado somente em 1930. Em seguida foi implementada legislação trabalhista
e previdenciária, cuja consolidação ocorreu em 1943, com as Leis do Trabalho (CLT). Depois
112
disso, o Brasil viveu processo de estagnação na conquista de direitos. Para em seguida, amargar
retrocessos com o Golpe Militar. Contudo, em 1970, no auge da ditadura, houve a fundação do
Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) que passou a garantir benefício da
aposentadoria, da pensão e da assistência médica. Também foi criado o Fundo de Garantia por
Tempo de Serviço (FGTS), possibilitando ao recém-desempregado apoio financeiro por alguns
meses, tendo em vista o seu retorno ao mercado de trabalho. Esses direitos, quando
institucionalizados, foram compreendidos como a verdadeira ruptura com uma história marcada
pelo trabalho escravo. Então, a perda ou a restrição deles, simboliza, no campo do imaginário,
a negação dessa herança brasileira ainda não superada.
Como abordado anteriormente, a condição transpolítica inserida na cidadania
glocal colabora para o distanciamento da percepção de cidadania institucionalizada,
construindo uma nova percepção de mundo. Isso quer dizer que nos ambientes de tempo real,
a agenda cidadã está ligada às significações imaginárias instituídas no imaginário dos grupos
sociais. Por isso, podem ser percebidas de modo diferente pelos grupos que compõem as redes
sociais. Um exemplo disso é a discussão sobre a implantação da Escola Sem Partido. A
liberdade de expressão e de cátedra, direitos previstos pela Constituição Federal passam a ser
relativizados em detrimento da discussão sobre “o ensino de ideologias dentro da escola”. Esse
tipo de discussão é do reduto do imaginário, das significações que constitui a lógica-consjuntista
identitária presente no magma de significações do povo brasileiro. Por isso, a cidadania glocal
não pode ser confundida como “cibercidadania” ou “ciberdemocracia”. Ela não é extensão do
real para o glocal, nem tão pouco está ligada a inclusão, muito pelo contrário, pois permite que
as ideias divergentes caminhem juntas., como é possível perceber no número de
compartilhamento e reações em uma das páginas da Escola sem Partido, no Facebook , na
mesma medida em que há mais de 67.847 engajamentos por meio da hashtag
#ESCOLASEMMORDAÇA.
113
Imagens 6: #ESCOLASEMPARTIDO e #ESCOLASEMMORDAÇA
Fonte: Twitter e Facebook
A partir desses exemplos, é possível compreender que a cidadania ressignifica-
se no espaço glocal, porque seu exercício está condicionado à lógica da reciclagem estrutural
provocada pelo sistema dromocrático da cibercultura. A cidadania, por ser dispositivo, altera-
se e passa a vigorar dispositivo de poder descentralizado. Uma vez que, protegidos pelo bunker
tecnológico e imaginário, cidadãos teleinteragindo de qualquer ponto da rede, criam pautas
sobre os direitos, utilizando-se das hashtags para dar visibilidade e adesão por contágio as suas
114
ideias e lutas pelos direitos. Contudo, vale ressaltar, que a cidadania glocalizada é apenas mais
um magma de significações imaginárias da cibercultura. Como previsto por Castoriadis, a
sociedade institui e é instituída por magmas. Ou seja, o magma da ressignificação da cidadania
se sobrepõe aos demais magmas presentes na história, fazendo com que sempre venha à tona a
lógica conjuntista identitária do preconceito, da discriminação entre classes do pensamento
herdado pelo processo da colonização brasileira. Por isso, a emergência de pautas sobre os
direitos como mecanismo de reação imaginária as práticas permanentes no dia a dia do país.
115
CONCLUSÃO
A relevância desta Tese se dá pela necessidade de perceber como ocorre a
ressignificação da cidadania pelo fenômeno glocal. O processo de virtualização de todas as
coisas faz emergir o desejo eminentemente glocal de se fazer parte do mundo em rede para
sentir-se cidadão cibercultural – incluindo todas as “prerrogativas” de cidadão do mundo
infotecnológico. Por isso, é imprescindível questionar como se configura a nova forma de
exercício da cidadania ao sofrer implicações do paradigma cibernético. Isso recorda,
sobremaneira, o que Agamben (2009, p. 47-49) pondera sobre a subjetivação em relação aos
dispositivos na atualidade, na qual o sujeito resultante desse processo teria uma forma espectral
que sobrevive permanentemente numa utopia teleinteragente. Essa utopia favorece o uso
frequente de dispositivos glocais em todas as dimensões da vida, desde a esfera do trabalho ao
do lazer. É nesse contexto que a cidadania, sempre entendida pela sua função participativa no
território físico do Estado, passa a ser exercida nos ambientes de rede, favorecendo com que os
cidadãos se sintam motivados a se engajar em causas voltadas para os direitos civis, sociais e
políticos. Como se fosse uma tentativa de não permitir que a fluidez e a desesperança
característica do imaginário pós-moderno fosse capaz de ruir, de vez, com o imaginário
iluminista presente na significação dos direitos conquistados pelo povo.
A cidadania ressignificada é a cidadania glocal que vigora como comprovação
de que a dromocracia vigora como sistema invisível de poder, ao se inserir veladamente em
todas as ações do cotidiano, se transformando em mecanismo imprescindível de sobrevivência
na cibercultura, implicando em transformações significativas na forma das pessoas se
relacionarem uma com as outras e com as instituições. Diante disso, não há como negar que a
cidadania – antes vinculada ao território – passe também a vigorar nos ambientes de rede. A
intensa vinculação do humano ao dispositivo glocal colabora para que as práticas cidadãs
deixem se ser exercidas no território da polis (no sentido figurado) e passem a ser exercidas no
“não lugar” das redes sociais. O cidadão neonômade transforma-se em ativista, manifestando-
se, participando, opinando sobre os mais diversos assuntos, sem sequer sair de casa. Ou se sair,
com certeza, foi impulsionado pelas ações estimuladas nas redes sociais.
Sob as bases da civilização mediática, gerida pelo sistema dromocrático, a
cidadania glocal emerge condicionada a lógica da mais potência. Uma vez que, os cidadãos em
116
modo descentralizado e protegidos por bunkers, montam estratégias, organizam manifestações
e transformam suas opiniões em publicidade. Todas essas ações se misturam e se pulverizam
entre os demais elementos que compõe as redes. Exatamente por isso, as FakeNews que
marcaram o processo eleitoral no Brasil, no ano de 2018, mas que vem sendo usada como
ferramenta escusa que fragiliza as sociedades democráticas, são facilmente disseminadas e
incorporadas no imaginário social dos cidadãos. Porque, elas são a versão violenta e, porque
não, mortal – para fazer memória à Paul Virilio, da cidadania glocalizada.
A cidadania glocal ocorre pela atuação do cidadão nas redes sociais. Devido não
estar ligada a nenhum canal oficial de governo ou de instituições públicas ou privadas, o cidadão
passa a ter controle da pauta do dia. É ele que produz e interfere nas ações de compartilhamento
e na adesão por contágio por meio das hashtags. Então, a cidadania glocal acontece no dia a
dia, em meio à rotina, no acesso rápido às redes. Por isso, mais uma vez, ressalta-se que em
nada tem a ver com os conceitos de ciberdemocracia ou cibercidadania, já amplamente refletido
nos meios acadêmicos. Porque, o elemento fundamental da cidadania glocal é a condição
transpolítica (TRIVINHO, 2007; 2012), que compõe o seu significado. É a transpolítica que a
ressignifica, pois, esvazia o sentido de política que sempre esteve presente no conceito
tradicional de cidadania.
A presente Tese sustentada neste trabalho é que a cidadania glocal promove,
tanto a ressignificação do conceito como no modo em que é exercida. No aspecto conceitual,
pode-se afirmar que a cidadania glocal trata-se da participação imaginária em tempo real,
instrumentalizada pelo bunker, que favorece os cidadãos teleinteragentes a deixarem vir à luz
da visibilidade mediática as questões que envolvem a vida em sociedade atravessada pela
condição transpolítica. Quanto ao modo de exercício da cidadania glocal, o cidadão precisa de
[1] Infra-estrutura e equipamentos;[2] condição neo nômade;[3] Dromoaptidão e [4]
Percepção dos direitos civis, políticos e sociais. Assim, a cidadania glocalizada, por emergir
de uma sociedade “transnacionalmente imaginada”, supera os vínculos com os Estados
Nacionais para se retroalimentar de acordos realizados no ciberespaço, redimensionando o seu
caráter político e exercendo, a um só tempo: [a] a função de poder individual e descentralizado
protegido por um vigilantismo panóptico (FOUCALT, 1987) rentável para o desenvolvimento
da transnação; [b] a busca continua pela privacidade e pela visibilidade; [c] a liberdade, sem
medida e com face democratizante, do compartilhamento de mensagens e de bens simbólicos
que ampliam e geram debates em torno dos direitos dos cidadãos.
Vale ressaltar que, no atual cenário político brasileiro, em que a democracia está
em risco, bem como, as instituições que compõe a República encontram-se fragilizadas, as redes
117
sociais serão ferramentas de articulação da cidadania e de resistência às forças de controle do
poder do Estado, mas do que nunca o Brasil e o mundo passarão a conviver com a cidadania
glocalizada em escala planetária.
118
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