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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIS
PR-REITORIA DE PESQUISA E PS-GRADUAO
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS AMBIENTAIS
(IM)POSSIBILIDADES DA PRTICA TURSTICA E
COMPLEXIDADE AMBIENTAL: UM ESTUDO DE CASO EM
PIRENPOLIS (GO)
MARCO AURLIO FERNANDES NEVES
GOINIA-GO
2017
2
3
UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIS
PR-REITORIA DE PESQUISA E PS-GRADUAO
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS AMBIENTAIS
(IM)POSSIBILIDADES DA PRTICA TURSTICA E COMPLEXIDADE AMBIENTAL: UM ESTUDO DE CASO EM
PIRENPOLIS (GO)
MARCO AURLIO FERNANDES NEVES
Texto apresentado Banca de
Defesa de Dissertao do
Programa de Ps-Graduao em
Cincias Ambientais, como parte
dos requisitos para obteno do
ttulo de Mestre em Cincias
Ambientais.
rea de Concentrao: Estrutura e
Dinmica Ambiental.
Linha de Pesquisa: Conservao,
Desenvolvimento e Sociedade.
Orientador: Prof. Dr. Fausto Miziara
GOINIA-GO
2017
4
MARCO AURLIO FERNANDES NEVES
6
7
AGRADECIMENTOS
minha me e meu pai, Dra e Valdir, que sempre se desdobraram para que
momentos como este de agora fossem possveis em minha vida.
Aos meus irmos, Andr Gustavo e Luiz Felipe, companheiros desde a
infncia, que com seus exemplos de luta me ajudaram a vencer minhas
batalhas.
minha querida irm Paula, alegria na minha vida desde seu nascimento.
Agradeo suas leituras e releituras dos meus textos e as infindveis e
apaixonadas conversas acadmicas.
Ao meu orientador Fausto Miziara, obrigado pelas sensatas orientaes e
crticas ao meu texto, resultado principal de sua sria carreira acadmica.
Aos professores do CIAMB e tcnica-administrativa do Programa, Juliana,
obrigado pelo apoio.
FAPEG pelo apoio financeiro por meio da bolsa estudantil concedida.
A todo corpo docente e tcnico-administrativo da Faculdade de Histria da
UFG, obrigado pelo apoio e pela viabilidade da licena.
Aos professores Leandro Gonalves Oliveira e Alexandre Martins de Arajo,
pelas crticas e sugestes no exame de qualificao.
minha companheira de vida, Joana Dark, obrigado por (re)construir o meu
mundo todos os dias. Sabes que sem voc nunca teria chegado aqui.
8
Viajar trocar a roupa da alma.
Mrio Quintana
9
RESUMO
Esta pesquisa versa sobre as interseces entre complexidade ambiental e
turismo. A complexidade ambiental um constructo terico do socilogo
ambientalista mexicano Enrique Leff, que faz frente crise ambiental de nosso
tempo, crise de racionalidade, de (des)construo das possibilidades de vida.
Ao interpelar sobre uma possibilidade de se colocar em funcionamento a
complexidade ambiental, por meio de outras racionalidades e saberes, ditos
ambientais, esta pesquisa enveredou-se pelo campo terico-prtico do turismo,
buscando descortinar tanto sua singularidade epistmica quanto sua
complexidade prtica. Elementos tericos dos estudos do turismo foram
levantados e forjou-se uma interface entre turismo e complexidade ambiental,
em que a impossibilidade terica disciplinar de ambos, abriu campo para a
possibilidade prtica de dilogo dos saberes. Assim, por meio do estudo
emprico das dimenses econmicas, ambientais e socioculturais do turismo,
da cidade de Pirenpolis-Gois, foi possvel constatar a perspectiva do turismo
se apresentar como um lcus propcio arregimentao de elementos para
efetivao de uma complexidade ambiental.
Palavras-chave: complexidade ambiental; turismo; teoria do turismo;
Pirenpolis.
10
ABSTRACT
This research deals with the intersections between environmental complexity
and tourism. Environmental complexity is a theoretical construct of the Mexican
environmental sociologist Enrique Leff, who faces the environmental crisis of
our time, crisis of rationality, (de) construction of life possibilities. When
questioning about the possibility of putting environmental complexity into
operation, through other rationalities and knowledges, environmental, this
research was undertaken by the theoretical-practical field of tourism, seeking to
uncover both its epistemic singularity and its practical complexity. Theoretical
elements of tourism studies were raised and an interface between tourism and
environmental complexity was forged, in which the theoretical impossibility of
both disciplines opened the possibility for the practical possibility of a dialogue
of knowledge. Thus, through the empirical study of the economic, environmental
and socio-cultural dimensions of tourism in the city of Pirenpolis-Gois, it was
possible to verify the tourism perspective as a propitious locus for the
regimentation of elements for the accomplishment of an environmental
complexity.
Key-words: environmental complexity; tourism; tourism theory; Pirenpolis.
11
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 - Consumo mundial de energia (sc. XIX e XX)................................... 21
FIGURA 2 - Fases tericas do turismo................................................................... 40
FIGURA 3 - Modelo de sistema de turismo proposto por Leiper............................ 48
FIGURA 4 - Modelo SISTUR de Beni..................................................................... 49
FIGURA 5 - Modelo existencial na sociedade industrial......................................... 54
FIGURA 6 - Conjunto de percepes dos estudos tursticos................................. 57
FIGURA 7 - Indissociabilidade dos campos disciplinares nos estudos tursticos... 59
FIGURA 8 - Criao do conhecimento em turismo de Tribe.................................. 62
12
LISTA DE GRFICOS
GRFICO 1 - Produto Interno Bruto a preos correntes (R$ MIL)...................... 79
GRFICO 2 - PIB do municpio de Pirenpolis por setores da economia (2013) 80
GRFICO 3 - Renda Familiar.............................................................................. 80
GRFICO 4 - Gasto dirio................................................................................... 81
GRFICO 5 - Turismo receptivo por motivao da viagem................................. 82
GRFICO 6 - Motivao da viagem..................................................................... 82
GRFICO 7 - Atividades realizadas..................................................................... 83
GRFICO 8 - Percepo da preservao............................................................ 83
GRFICO 9 - Atrativos tursticos......................................................................... 84
GRFICO 10 Como avalia seu conhecimento sobre o meio ambiente
local?..................................................................................................................... 84
GRFICO 11 - Conhece a vegetao tpica da regio?....................................... 85
GRFICO 12 - Qual a maior importncia do cerrado?......................................... 85
GRFICO 13 - Avaliao da percepo dos impactos do turismo: degradao
ambiental.............................................................................................................. 86
GRFICO 14 - Tem interesse pela cultura local?................................................ 88
GRFICO 15 - Avaliao da percepo dos impactos do turismo: valoriza a
cultura local?......................................................................................................... 88
GRFICO 16 - Avaliao do conhecimento sobre a cultura de Pirenpolis........ 89
GRFICO 17 - Elementos cultura local: Culinria................................................ 89
GRFICO 18 - Elementos cultura local: Festas populares.................................. 90
GRFICO 19 - Elementos cultura local: Patrimnio histrico.............................. 90
GRFICO 20 - Cidade de origem dos turistas..................................................... 91
GRFICO 21 - Contato com a populao local................................................... 91
13
LISTA DE ABREVIATURA E SIGLAS
ANA Agncia Nacional de guas
CAPES Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica
IEA International Energy Agency
IPCC Intergovernmental Panel on Climate Change
IPTur Instituto de Pesquisa em Turismo e Eventos Gois
OMT Organizao Mundial do Turismo
PIB Produto Interno Bruto
UNTWO World Tourism Organization
14
SUMRIO
1 INTRODUO...................................................................................................... 16
2 PRESSUPOSTOS DA COMPLEXIDADE AMBIENTAL......................................
20
2.1 A crise de nosso tempo: a crise ambiental........................................................ 20
2.2 Delineando conceitos: a Complexidade Ambiental............................................ 29
2.3 Os elementos constitutivos da Complexidade Ambiental.................................. 31
2.3.1 A Racionalidade Ambiental............................................................................. 31
2.3.2 O Saber Ambiental.......................................................................................... 35
3 AS (IN)DEFINIES DO TURISMO...................................................................
39
3.1 Epistemologia do turismo................................................................................... 39
3.1.1 O turismo como objeto cientfico compreendendo-o por meio de fases...... 39
3.1.2 Os estudos iniciais e a fase pr-paradigmtica............................................... 41
3.1.3 A gnese de um alinhamento paradigmtico: Sistemas................................. 45
3.1.4 A transio e as novas fases de abordagem do turismo................................ 48
3.2 Agregando os conceitos.................................................................................... 51
3.3 As (in)definies do turismo e as possibilidades indisciplinares........................ 60
4 O TURISMO E AS (IM)POSSIBILIDADES DE UMA COMPLEXIDADE
AMBIENTAL............................................................................................................
64
4.1 Construo metodolgica da pesquisa.............................................................. 64
4.1.1 Peculiaridades da pesquisa emprica no turismo............................................ 67
4.1.2 A formulao dos questionrios...................................................................... 70
4.1.3 A concepo das entrevistas.......................................................................... 74
4.2 Caracterizao de Pirenpolis e a turistificao de seu espao....................... 75
4.3 Os aspectos econmicos do turismo na cidade de Pirenpolis......................... 77
4.4 Os aspectos ambientais do turismo na cidade de Pirenpolis........................... 81
4.5 Os aspectos socioculturais do turismo na cidade de Pirenpolis...................... 86
4.5.1 Festa do Divino uma possibilidade de interao.......................................... 92
4.5.2 As percepes em tempos comuns.............................................................. 104
5 CONSIDERAES FINAIS..................................................................................
108
15
REFERNCIAS........................................................................................................ 111
APNDICES............................................................................................................. 117
Apndice A............................................................................................................. 117
Apndice B............................................................................................................. 118
16
1 INTRODUO
Grande parte da produo intelectual j produzida sobre turismo
perpassada por um marcante reducionismo dualista: se por um lado o turismo
visto como um "osis econmico"1 salvador de comunidades empobrecidas,
por outro tachado de "agente de aculturao"2 dessas mesmas comunidades.
Segundo Moesch (2000), h na abordagem cientfica do turismo um
reducionismo epistemolgico, em que os aspectos econmicos predominam
sobre outras abordagens, uma vez constatada que a prtica dessa atividade
em algumas regies foi uma forte influncia no desenvolvimento econmico.
Desse modo, Moesch (2000) tambm afirma que a produo do saber turstico
foi amplamente dominada por setores empresariais que destacavam
sobremaneira os aspectos produtivos do fenmeno turstico. Devido a isso, boa
parte da academia recebeu o turismo com certas ressalvas, principalmente as
reas vinculadas s cincias sociais, pois havia uma pressuposio de que a
importncia do turismo residia, quase que completamente, no fator econmico.
Como diz Siqueira (2005), a rea de estudos sobre turismo passou a ser
menosprezada na academia [...] justamente pela carncia de um corpo
terico-metodolgico prprio (SIQUEIRA, 2005, p. 121). Tal circunstncia
produziu uma espcie de ciclo vicioso, em que uma situao (abordagem
econmica) justificaria a outra (desdm pelos estudos do turismo) e elas se
retroalimentam, pois o desdm acadmico pelos estudos do turismo provoca a
preponderncia da abordagem econmica.
Ao no conseguir escapar do reducionismo dualista de nossa cincia, as
abordagens das cincias sociais sobre turismo, muitas vezes, se transmutaram
em crticas maniquestas em relao exacerbada exaltao econmica dessa
atividade, entre as quais esto aquelas que relatam uma possvel aculturao
da populao local, ou a produo de um no-lugar ou a fetichizao dos
lugares. Todas essas abordagens destacam aspectos negativos da presena
1 Essa caracterstica um forte vestgio dos estudos iniciais do turismo, voltados, sobretudo, ao aspecto econmico (no Captulo 02 desta pesquisa h um delineamento sobre a construo dos estudos acerca do turismo). tambm importante ressaltar que a prpria Capes guarda essa perspectiva economicista do turismo na medida em que a rea de avaliao do turismo na referida agncia est alocada no grupo Administrao, Economia e Turismo. 2Santos e Barretto (2006) trazem em seu texto, exemplos de autores que abordaram os temas aculturao e turismo: Nash (1996); Burns (2002); e tambm impacto cultural e turismo: Smith (1989); Santana (1997).
17
do turismo nas regies onde ocorrem. Carlos (2007), por exemplo, cita o
turismo como um agente transformador dos espaos em cenrios
espetacularizados. Segundo a autora, o real seria metamorfoseado para [...]
seduzir e fascinar (CARLOS, 2007, p. 64). A partir dessa venda dos espaos,
criam-se locais sem identidade e, portanto, no-lugares. Sob uma perspectiva
semelhante, h autores que destacam que a produo desses (no) lugares
tursticos fortemente permeado por um discurso de mercado, que fetichizam
determinados espaos (SILVEIRA, 2002). Existem ainda abordagens que
problematizam o contato entre diferentes culturas a partir das viagens
tursticas. Nesses estudos, palavras como aculturao e impactos culturais
transmitem a ideia de uma invaso da cultura do turista sobre a cultura do
local visitado (SANTOS; BARRETO, 2006).
Todas as anlises sumariamente descritas so lcidas e retratam um
panorama verossmil com aspectos gerados pela atividade turstica. Mostram,
sobretudo, impactos negativos sofridos pela populao local, gerados aps o
turismo ser incorporado como atividade de uma regio. Apesar disso, a
resposta contrria a essa abordagem economicista do turismo a expresso
da dicotomia extrema presente nas anlises e minimizam a complexidade
apresentada pelo turismo.
Essas dicotomias analticas que reduzem os aspectos estudados em
campos bastantes especficos so, dentre outras coisas, produto de uma
racionalidade ocidental modernizante, marcadamente logocntrica e
instrumental, segundo Leff (2004). Sob o manto dessa racionalidade, a
contiguidade do mundo exacerbadamente fragmentada e, por isso mesmo,
as anlises gestadas sob esse modelo so tambm excessivamente
fragmentadas. Nossas categorias de anlise so muito reducionistas
(SANTOS, 2007), pois provm dessa racionalidade dicotmica, dualista. Nota-
se que a esse campo do conhecimento turismo relega-se essa feio
dualista, que minimiza sua dinmica complexa.
Alm disso, essa racionalidade provoca, dentre outras coisas, a crise
ambiental (LEFF, 2007) de nosso tempo, pois ela (des)constri o mundo em
seu reducionismo utilitarista: sempre constri algo em detrimento da
desconstruo de outra enormidade de coisas. Soma-se a isto, segundo Leff
18
(2004), o fato de a maioria das medidas mitigadoras da crise ambiental ser
concebida no interior dessa racionalidade, provocando, desse modo, aquilo que
intentam combater.
Nesse sentido, Leff (2007) prope que racionalidades e saberes que se
encontram nas culturas de todo o mundo e que no operam em uma dinmica
de alinhamento exclusivo com os propsitos da racionalidade ocidental devem
ser colocadas em funcionamento como alternativas a esse modelo
reducionista. Essa dinmica retratada sumariamente, em que h um forte
questionamento a essa racionalidade reducionista homogeneizante e que se
prope conjugao de novas racionalidades e saberes no jogo de poder,
aquilo que no trabalho de Leff nomeou-se Complexidade Ambiental.
Apesar da flagrante importncia da proposta da complexidade ambiental
de Leff, principalmente na mitigao da crise ambiental, a sociedade se esbarra
na grande dificuldade em colocar em prtica tal proposta. Isto ocorre, em boa
medida, pois no exerccio da maioria de nossas atividades encontramo-nos
mergulhados nessa racionalidade logocntrica, que gera a crise ambiental e
nos impele a sustentar o modo insustentvel de vida.
Do nosso lado, no acmulo das experincias terico-prticas no campo
do turismo, o que se tem observado que essa atividade pode agir como uma
oportunidade propcia reflexo no dicotmica ou fragmentria. No seu
aspecto terico, mesmo aqueles autores que caminham em direo a uma
anlise menos reducionista do turismo, h uma dificuldade em trat-lo sob um
paradigma disciplinar, o que levanta a hiptese de o prprio turismo no ser um
tema adequado para ser abordado pelo vis cientfico tradicional. J no campo
prtico, o que se nota uma peculiar atividade econmica com estreita
vinculao ao meio ambiente natural e cultural humano, que rene em um
mesmo espao-tempo pessoas com diferentes percepes de construo
social da vida.
Em vista disso, por essas caractersticas terico-prticas apresentadas
pela atividade turstica, este trabalho problematiza o turismo um lcus
apropriado para reflexo sobre a complexidade ambiental proposta por Leff?
Nesse sentido, este trabalho tem por objetivo analisar a interpenetrao dos
pressupostos conceituais entre complexidade ambiental e turismo, tanto no
campo terico como no campo prtico. Alm disso, este trabalho procura
19
colaborar no aprimoramento do campo de estudos do turismo, ao contribuir na
construo de uma teoria do turismo mais crtica e complexa.
Isto posto, no primeiro captulo desta dissertao privilegiamos o
aprofundamento sobre a explanao terica dos fundamentos da
Complexidade Ambiental. Trilhamos a anlise feita nos trabalhos de Leff que se
baseiam, em um primeiro momento, no diagnstico de nossa realidade, por
meio da exposio da singular crise ambiental de nosso tempo. Ao entender as
motivaes e causas dessa crise ambiental, consegue-se, quase em um
encadeamento lgico, expor a tentativa de contraposio ao quadro de crise
a complexidade ambiental. A partir desse ponto, no somente a complexidade,
mas tambm outros conceitos da teoria de Leff sero pormenorizados, tais
como racionalidade, saber ambiental e dilogo dos saberes.
O segundo captulo ser reservado anlise terica da atividade objeto
desta pesquisa o turismo. Neste captulo haver o delineamento da
peculiaridade terica intrnseca dos estudos do turismo. Dessa maneira, esta
parte da pesquisa se constituir em uma explicao conceitual do turismo, ao
mesmo tempo em que procurar deslindar a interconexo terica entre turismo
e complexidade ambiental.
No terceiro captulo ser feito um estudo emprico do turismo,
conjugando os aspectos de sua fluidez terica, estruturados no segundo
captulo, que contriburam para a composio das categorias de anlise da
prtica turstica, que perpassam os aspectos econmico, socioambiental e
cultural. Dessa maneira, no terceiro captulo ser feito o estudo experimental
de nossa pesquisa, que tem como campo emprico o turismo na cidade de
Pirenpolis, no estado de Gois. Haver o levantamento de informaes
estatsticas do municpio relacionados ao turismo, bem como o recolhimento de
dados junto aos turistas, por meio de questionrios e entrevistas semi-
estruturadas, que nos possibilitaro examinar como a prtica turstica est
associada a uma complexa dinmica econmica, cultural e socioambiental.
20
2 PRESSUPOSTOS DA COMPLEXIDADE AMBIENTAL
2.1 A crise de nosso tempo: crise ambiental
Apesar de existirem relatos e registros sobre aes voltadas
preservao do ambiente natural em sculos anteriores ao sculo XX3, os
problemas ambientais somente comearam a receber destaque na agenda
internacional a partir de meados da dcada de 1960 do sculo passado. Foi
nessa poca que Rachel Carson, com sua Primavera Silenciosa4, inaugurou a
anlise das questes ambientais contemporneas.
A questo ambiental amplamente discutida a partir de ento no
produto de meros desastres ecolgicos naturais. Ela no fruto de intempries
csmicas ou de rearranjos estruturais no interior do planeta Terra. Ao contrrio,
no foi o acaso das causas que conduziu as questes ambientais a
conquistarem importncia crescente desde ento. A intencionalidade da causa
a ao antrpica foi a geradora da relevncia abrangente alcanada pelo
tema.
Logo aps a Segunda Guerra Mundial, Europa e Estados Unidos
registraram suas maiores taxas de crescimento econmico5. A Amrica Latina
e outras regies subdesenvolvidas do globo, do ponto de vista da economia de
mercado, tambm embarcaram em uma era desenvolvimentista, aumentando,
mesmo que de forma mais moderada e dependente das grandes potncias
econmicas, suas taxas de crescimento econmico. As taxas de urbanizao
desses lugares elevaram-se desde ento. Um importante reflexo desse amplo
crescimento econmico prontamente perceptvel na alta demanda por
3 Os Parques de Yosemite e Yellowstone nos Estados Unidos, por exemplo, foram criados respectivamente em 1864 e 1872. (GODOY, 2000, p. 129-130). Apesar de motivos diversos daqueles concebidos hoje como preservao ambiental, a criao dos referidos parques foi uma forma de conservao de ambientes naturais. 4 No vero de 1962, a revista New Yorker publicou trs edies seguidas com trechos de Primavera Silenciosa, quarto livro de Rachel Carson (1907-1964), obra que s seria lanada trs meses depois, em setembro. Em linhas gerais, o livro explica como o uso desenfreado de pesticidas nos EUA alterava os processos celulares das plantas, reduzindo as populaes de pequenos animais e colocando em risco a sade humana (BONZI, 2013, p. 208). 5 Entre 1950 e 1973 a economia mundial cresceu 4,9%, em mdia anual, recorde histrico. Tal crescimento foi puxado pela Frana e Alemanha, na Europa, que cresceram 5,0% e 6,0%, respectivamente; pelo Japo, na sia, que cresceu 9,2%; e pelo Brasil, na Amrica Latina, que cresceu 6,8% (GONALVES, 2002, p. 108).
21
energia registrada a partir dos anos 1950 (Figura 1). Apesar do sempre
crescente consumo energtico dos ltimos 200 anos, desde a Revoluo
Industrial, foi somente no ps-Segunda Guerra que esses nveis de consumo
se amplificaram de forma vertiginosa. Essa demanda energtica, reflexo da alta
produo industrial e da crescente urbanizao mundial, aliada quase
nulidade das preocupaes de seus impactos, comearam a tornar altamente
perceptveis os problemas ambientais advindos dessa lgica produtivista. E
como no poderia ser diferente, foi a partir de ento o incio das discusses
acerca das relaes homem-meio ambiente.
Figura 1 - Consumo mundial de energia (sc. XIX e XX)
Fonte: La herencia del planeta. Metode - Universitat de Valencia (2012).
Esse o panorama no qual se desenrola a crise ambiental de nosso
tempo. Crise para a qual, pela primeira vez, no foi atribuda explicao sobre
nenhum ente mitolgico ou ao divina e que tambm certificou-se no fazer
parte de uma ao do prprio ambiente em mudana, mas sim uma crise
totalmente originria do prprio homem, das relaes que ele estabelece com o
meio a sua volta. Por isso mesmo Leff (2002, p. 194) nos diz:
Mais do que uma crise ecolgica, a problemtica ambiental diz respeito a um questionamento do pensamento e do entendimento, da ontologia e da epistemologia pelas quais a civilizao ocidental tem compreendido o ser, os entes e as coisas; da cincia e da razo tecnolgica pelas quais temos dominado a natureza e economicizado o mundo moderno.
22
A crise ambiental est calcada na racionalidade que permeia as relaes
homem-meio ambiente. Esta que uma racionalidade objetivista e
fragmentria, que reserva ao ambiente natural o papel exclusivo de recursos
naturais. Sob a tica economicista, o recurso despersonificado e
desqualificado ele se torna um objeto, que pode ser usado em nico e estrito
benefcio do sujeito.
Este tipo de racionalidade que permitiu colocar em funcionamento tal
sistema relacional com o meio ambiente no foi formada estritamente nas
dcadas de crescimento ps-Segunda Guerra. O que ocorreu a partir desse
perodo foi a coadunao dessa racionalidade com o alto desenvolvimento
tecnolgico, proporcionando uma produo massificada nunca antes vista na
histria.
A racionalidade ocidental foi construda ao longo de sculos, sobretudo
na formao da modernidade, com influncia principal do pensamento
cartesiano. Ren Descartes, no sculo XVII, sintetizou o pensamento vigente
poca: a busca da verdade em seu interior, na luz de sua razo. Segundo
Descartes, somente o cogito comprovadamente existe, ou seja, todo o resto
passvel de dvida. Assim, esse autor pressupe a existncia ao pensamento:
tudo o mais pode ser falseado.
Descartes hierarquiza ainda mais a j dicotomizada mente e corpo
(PORTO-GONALVES, 2006), dividindo-os naquilo que verdadeiro
(pensamento) daquilo que pode ser falseado (corpo).
No podemos sequer afirmar a existncia do corpo, porque, sendo este material, de fato um objeto no mundo externo, sobre o qual no podemos ter certeza. O cogito, portanto, nos revela apenas isso: a existncia do pensamento puro, o que possvel pela evidncia do prprio ato de pensar. (MARCONDES, 2001, p. 169)
Sob esta diviso entre mente e corpo, subjazem diversas outras que
construram nossa racionalidade ocidental maniquesta, tais como sujeito-
objeto e homem-natureza (PORTO-GONALVES, 2006). Esta ltima
caudatria do paradigma de que somente o homem possui o cogito ou
pensamento e, portanto, a verdade emana dele. O homem o sujeito,
23
enquanto a natureza o objeto, ou seja, somente o sujeito pode agir sobre o
objeto.
O logocentrismo da racionalidade ocidental moderna possibilitou a
tecnologizao do mundo e o transformou em objeto. Somente esta
racionalidade pode transformar a natureza em objeto a ser dominado pelo
sujeito-homem. Foi nesse sentido que a razo ocidental e sua principal
representante a cincia colocaram-se em um local privilegiado de anlise,
como se se constitussem a partir de um local atemporal e universal de
observao (CAJIGAS-ROTUNDO, p. 171, 2007). Castro-Gomez denominou
tal caracterstica de hybris del punto cero, que significa:
Refiro-me a uma forma de conhecimento humano que eleva pretenses de objetividade e cientificidade, partindo do pressuposto de que o observador no forma parte do observado. Esta pretenso pode ser comparada com o pecado da hybris, do qual falavam os gregos, quando os homens queriam, com arrogncia, elevar-se ao estatuto de deuses. Localizar-se no ponto zero equivale a ter o poder de um Deus absconditus, que pode ver sem ser visto, ou seja, que pode observar o mundo sem ter que dar conta a nada, nem sequer a si mesmo, da legitimidade de tal observao. Equivale, portanto, a instituir uma viso de mundo reconhecida como vlida, universal, legtima e garantida pelo Estado. Por isso, o ponto zero o do comeo epistemolgico absoluto, mas tambm o do controle econmico e social sobre o mundo. (CASTRO-GMEZ, 2005, p. 63 apud CAJIGAS-ROTUNDO, 2007, p. 171, traduo nossa6)
A razo ocidental se constituiu como uma pretensa forma estril de se
pensar o mundo. Uma forma de observao que proclama a distncia entre
observador e observado, til na neutralizao das paixes emanadas do
observador. Ao se construir discursivamente como algo que no um ideal
sem paixes a racionalidade ocidental se colocou acima de outras
6Me refiero a una forma de conocimiento humano que eleva pretensiones de objetividad y cientificidad, partiendo del presupuesto de que el observador no forma parte de lo observado. Esta pretensin puede ser comparada con el pecado de La hybris, del cual hablaban los griegos, cuando los hombres queran, con arrogancia, elevarse al estatuto de dioses. Ubicarse en el punto cero equivale a tener el poder de un Deus absconditus que puede ver sin ser visto, es decir, que puede observar el mundo sin tener que dar cuenta a nadie, ni siquiera a smismo, de la legitimidad de tal observacin. Equivale, por tanto, a instituir una visin del mundo reconocida como vlida, universal, legtima y avalada por el Estado. Por ello, el punto cero es el del comienzo epistemolgico absoluto, pero tambin el del control econmico y social sobre el mundo.
24
racionalidades, um deus absconditus que podia ver sem ser visto. Tal
estratgia tornou inquestionveis suas aes, dentre as quais a
economificao sempre crescente do mundo.
As cincias no vivem num vazio ideolgico e semntico. Tanto por sua constituio a partir das ideologias tericas e as cosmovises do mundo no terreno conflitivo das prticas sociais dos homens, como pelas transformaes tecnolgicas que se abrem a partir das condies econmicas de aplicao do conhecimento, as cincias esto inseridas em processos discursivos onde se debatem num processo contraditrio de conhecimento/desconhecimento que mobiliza o lugar da verdade (BALIBAR, 1995), de onde derivam sua capacidade cognoscitiva e seu potencial transformador da realidade. A articulao desses processos de conhecimento com os processos institucionais, econmicos e polticos que condicionam o potencial tecnolgico e a legitimidade ideolgica de suas aplicaes, est regida pela confrontao de interesses opostos de classes, grupos sociais, culturas e naes pela apropriao diferenciada e pelas transformaes alternativas da natureza. (LEFF, 2000, p. 28)
A cincia ocidental auxiliou na produo da crise ambiental: em seu af
de objetividade e tecnologizao, empurrou para fora de seus domnios o meio
ambiente. O ambiente o campo de externalidade das cincias (LEFF, 2000,
p. 31). O ambiente at bem pouco tempo atrs no fazia parte do horizonte de
perspectivas tericas e campos conceituais que formam um campo disciplinar7
(LEFF, 2000).
A exausto ambiental refletida nos nveis de qualidade da vida sobre a
Terra o indcio da problemtica racionalidade pela qual a humanidade
promove, com xito, sua prpria decadncia. Ou seja, estamos produzindo
nossa existncia por meios que indubitavelmente, como vemos na atualidade,
nos levaro a um amplo colapso8. Apesar disso, no inferimos a exclusividade
7 A ttulo de exemplo, os estudos na rea da cincia agronmica elevaram as possibilidades de plantio em reas aparentemente no produtoras como no Bioma Cerrado. Se por um lado conseguiu-se aumentar a produo agrcola, por outro o desmatamento do Cerrado cresceu vertiginosamente. Na atualidade, aproximadamente 50% do territrio do Cerrado encontra-se convertido em reas de pastagens e agricultura. (SANO et al., 2010 apud FERREIRA et al., 2011) 8 A crise hdrica de So Paulo, ocorrida a partir de 2014, um exemplo da gnese de um colapso. No referido ano, a maior metrpole brasileira apresentou problemas graves de abastecimento de gua para sua populao. Tal situao reflexo de um conjunto de fatores onde se misturam, alta concentrao de demanda (a macrometrpole paulista corresponde a 50% da rea urbanizada do estado de So Paulo, e mais de 30 milhes de habitantes
25
do homem moderno ocidental capacidade de encurralar-se em um colapso
produzido por si mesmo9. Entretanto, o que faz a crise ambiental de nossos
dias adquirir caracterstica singular a produo de um colapso em escala
global, com riscos drsticos inclusive espcie humana.
O caminho unidirecional do progresso no Ocidente foi construdo sob a
propagao do valor sempre positivo aliado s ideias sobre consumo e cincia.
Isso revela-nos que concepes diversas de construo da realidade foram
muitas vezes violentamente desconsideradas, mesmo que estas tivessem sido
construdas em dinmicas complexas de relaes socioambientais milenares10.
O monologismo e o desenho monotpico global do Ocidente relacionam-se com outras culturas e povos a partir de uma posio de superioridade e so surdos s cosmologias e epistemologias do mundo no-ocidental. (GROSFOGUEL, 2009, p. 406)
Dentre os maiores exemplos de tal epistemicdio11, pode-se considerar
aquele ocorrido nas Amricas, no qual os povos nativos desse continente
foram exterminados fisicamente12 ou tiveram seus saberes e modos de vida
violentamente subjugados.
Emplasa, 2012) m gesto pblica e mal uso dos recursos hdricos, alm de secas prolongadas (JACOBI et al., 2015). Aliado a isto a Agncia Nacional de guas publicou em seu relatrio em 2013 que 80% das guas no Brasil se situam na regio menos povoada de nosso territrio, a Amaznia e que as cidades densamente povoadas apresentam quase metade de seus recursos hdricos em nveis ruins ou pssimos (44%). 9 O denso livro Colapso como as sociedades escolhem o sucesso ou o fracasso (2005), do professor de geografia da Universidade da Califrnia Jared Diamond, nos fornece exemplos de povos ou civilizaes, tais como os famosos Maias ou os povos da Ilha de Pscoa, que se extinguiram devido convergncia de uma srie de pequenas catstrofes socioambientais. No entanto o professor Diamond ressalta em seu livro que as escolhas equivocadas dessas sociedades tiveram um peso determinante na derrocada das mesmas. 10 Tambm no livro Colapso h um exemplo que ilustra como a racionalidade ocidental age, na maior parte das vezes, quando em contato com culturas diversas. Nas terras altas da Nova Guin a iluso de primitiva tcnica agronmica fez com que os europeus convencessem os nativos a alterarem suas formas de plantar em declives acentuados. O resultado foi que nas primeiras chuvas aps a implantao da nova tcnica, a encosta desmoronou e toda plantao foi perdida. Na safra posterior, os nativos das terras altas da Nova Guin retomaram sua forma tradicional de plantar nas encostas. 11 Segundo Santos (2005, p. 22) o epistemicdo um conceito que designa a morte de um conhecimento local perpetrada por uma cincia aliengena. 12 O genocdio nas Amricas resultou em um nmero em torno de 70 milhes de mortes. (BAEZ, 2010, p. 35)
26
Esta razo excludente, ao buscar seus objetivos, compromete o meio
ambiente de forma decisiva, pois se baseia em dois aspectos principais: 1 ela
possui uma viso gulosa da realidade13 e 2 ela altamente racista.
A viso gulosa est presente nas possibilidades de consumo que se
construram com a expanso do capital. Segundo Escobar, este consumo
continuamente alimentado no imaginrio mundial a partir da propagao da
ideia de conforto associada a ele (ESCOBAR, 1996 apud CAJIGAS-
ROTUNDO, 2007). Esta viso gulosa, sempre crescente, esbarra nos limites
biofsicos de nosso planeta, tanto quando consideramos a produo dos
produtos quanto ao seu descarte14.
Alm disso, grande parte das propostas ambientais surgidas nas
dcadas de 1970 e 1980, apesar de reconhecer tal viso gulosa, no consegue
contrap-la. Ao contrrio, a refora em certo sentido, pois medida que
propagou a sustentabilidade combinada ao desenvolvimento econmico, fez
surgir o famigerado desenvolvimento sustentvel. Ou seja, tal medida
procurou manter os nveis crescentes da economia e do consumo das
potncias econmicas mundiais, aliado a medidas de diminuio de impactos
ambientais.
O discurso da sustentabilidade busca reconciliar os contrrios da dialtica do desenvolvimento: o meio ambiente e o crescimento econmico. Este mecanismo ideolgico no significa apenas uma volta de parafuso a mais da racionalidade econmica, mas opera uma volta e uma torcimento da razo; seu intuito no internalizar as condies ecolgicas da produo, mas proclamar o crescimento econmico como um processo sustentvel, firmado nos mecanismos do livre mercado como meio eficaz de assegurar o equilbrio ecolgico e a igualdade social. (LEFF, 2004, p. 27)
13 Cajigas-Rotundo (2007) usa este termo para demonstrar a busca insacivel de novas fontes de consumo geradas na dinmica do capitalismo. 14 O exemplo mais associado aos limites biofsicos do planeta frente ao consumo desenfreado de nosso tempo relaciona-se a alta quantidade de Gs Carbnico (CO2) contido na atmosfera na atualidade. Isto o que nos expe os relatrios do IPCC Intergovernmental Panel on Climate Change (Painel Mundial Intergovernamental sobre Mudanas Climticas). O CO2 dissolvido na atmosfera causa o efeito estufa, que provoca o aumento da temperatura global e consequentemente catstrofes naturais (tornados muito fortes, aumento do nvel dos mares, extremos climticos prolongados). O aumento de CO2 atmosfrico na atualidade produto direto da queima de combustveis fsseis, tais como carvo e petrleo, usados em abundncia desde meados da dcada de 1950 do sculo XX. Aliado a isto, outro fator do aumento de CO2 atmosfrico a derrubada de florestas que poderiam agir no sequestro (remoo) do gs carbnico atmosfrico.
27
O que se pode ver a hybris del punto cero se reinventado e agindo
continuamente, pois a propagao da ideia de desenvolvimento sustentvel foi
produzida pelos causadores dos problemas: os pases altamente
consumidores. Novamente se cai no erro de generalizar um conceito com base
numa viso nica sobre o mundo. Tal estratgia reflete mais uma vez o
racismo epistmico da viso do norte global, pois o desenvolvimento
sustentvel exclui os povos economicamente subdesenvolvidos do processo
de formulao de alternativas aos problemas socioambientais.
Alm do exposto, h outro fator, um conceito implcito de escassez que o
termo desenvolvimento sustentvel carrega consigo. Tal caracterstica gera,
principalmente aos pases centrais do capitalismo, a afetao da expectativa de
consumo. Mas o que surge dessa expectativa e o que relativamente pouco se
pergunta quem consome, j que a possibilidade de consumo dos pases
perifricos do capitalismo sempre se encontrou afetada. Ao desconsiderar a
escassez de que para quem, a razo ocidental age, como sempre, de forma
excludente. Tal racismo esconde as solues no-ocidentais e
[...] est relacionado com a poltica e a sociabilidade. O racismo epistmico descura a capacidade epistmica de certos grupos de pessoas. Pode basear-se na metafsica ou na ontologia, mas os resultados acabam por ser os mesmos: evitar reconhecer os outros como seres inteiramente humanos. (MALDONADO-TORRES, 2009, p. 345).
Este racismo epistmico provm de uma razo preguiosa, indolente,
como noz diz Boaventura de Souza Santos. Esta razo indolente aquela que
no quer ver as possibilidades inesgotveis no mundo, dentre outras razes,
porque no quer perder o domnio sobre o mesmo. Ela uma razo
[...] preguiosa, que se considera nica, exclusiva, e que no se exercita o suficiente para poder ver a riqueza inesgotvel do mundo. Penso que o mundo tem uma diversidade epistemolgica inesgotvel, e nossas categorias so muito reducionistas. (SANTOS, 2007, p. 25)
Este mesmo autor, ao explicar melhor o modelo pelo qual a razo
indolente opera, divide-a em duas razes: uma dita metonmica e outra
28
prolptica. A razo metonmica age no sentido de homogeneizar as
experincias, diminuindo o presente:
Ento esse conceito de razo metonmica contrai o presente porque deixa de fora muita realidade, muita experincia, e, ao deix-las de fora, ao torn-las invisveis, desperdia a experincia. (SANTOS, 2007, p. 26)
Ao fazer isso, a razo ocidental opera em direo a um tipo nico de
realidade. Tudo o que est fora do referido presente ocidental est fora do
presente e, por conseguinte, desconsiderado. Por isso nosso presente
fulgaz e diminudo. No mesmo raciocnio, Santos (2007, p. 26) tambm nos fala
sobre a razo prolptica:
Nossa razo ocidental muito prolptica, no sentido de que j sabemos qual o futuro: o progresso, o desenvolvimento do que temos. mais crescimento econmico, um tempo ideal linear que de alguma maneira permite uma coisa espantosa: o futuro infinito.
Nesse mesmo sentido, Santos (2009, p. 445) expe:
Trata-se de uma histria que pe fim a todas as teleologias porque estas pressupem sempre a eleio de um passado especfico como condio da legitimao de um futuro nico.
A razo indolente homogeneizante exclui, dessa forma, as experincias
gestadas em diversos lugares do mundo, que no esto alinhadas ao
desenvolvimento econmico ilimitado. Aqui se confirma no somente a viso
gulosa do ocidente bem como o racismo epistmico no qual ele engendra sua
lgica.
A dificuldade que temos em colocar alternativas interrogadoras a essa
razo indolente advm do fato de ela possuir uma base slida, conformada em
longos perodos histricos. Para alm das contradies intrnsecas prpria
lgica mercadolgica, onde as relaes de poder so extremamente desiguais,
essa razo moderna produziu desenvolvimento econmico e tecnolgico de
larga aplicao pela humanidade. Tanto assim que estamos chegando a
29
nveis populacionais nunca antes vistos, devido principalmente evoluo na
rea de sade e certa distribuio desses recursos15.
No entanto, ao colocar-se em funcionamento, essa razo tambm
produziu a crise ambiental, a crise de nosso tempo, a crise civilizatria e de
modos de conhecimento. Uma crise que anuncia realmente o fim da
histria16. A cincia e a tecnologia se converteram na maior fora produtiva e
destrutiva da humanidade (LEFF, 2000, p. 23). a partir dessa crise que
diversos pensamentos tomam forma, ganham fora e se apresentam como
possibilidade alternativa ao propalado unvoco crescimento econmico. Nesse
bojo de sentimentos forjados nessa crise que Enrique Leff no se deixa tomar
pelo niilismo e prope, de forma contundente, uma guinada rumo a uma
complexidade ambiental.
2.2 Delineando conceitos: a Complexidade Ambiental
Como vimos, a crise ambiental de nosso tempo se apresenta como um
fato impregnado em nosso cotidiano e no mais como alguma especulao
mirabolante e longnqua. Desse modo, o enfrentamento dessa crise no
somente necessrio, mas, sobretudo, urgente. No entanto, essa crise de
civilizao, de nossa maneira de produzir a vida, no deve ser enfrentada a
partir da proposio de alternativas de desenvolvimento, mas, ao contrrio, a
partir do desenvolvimento de alternativas ao desenvolvimento. Na nsia de
entender e estruturar uma possibilidade para essa alternativa, Enrique Leff
Zimmerman, socilogo ambientalista mexicano17, forjou o conceito de
complexidade ambiental:
Na confluncia dos mltiplos interesses em jogo na transio para uma ordem econmica sustentvel, abre-se um amplo
15 Segundo a ONU, os trs fatores principais para o aumento da populao mundial nos ltimos anos so: as taxas de fecundidade, o aumento da longevidade e a migrao internacional. Os dois primeiros, taxas de fecundidade e aumento da longevidade esto intimamente
relacionados a evolues na rea de sade (World Population Prospects, The 2015 revision). 16 A inteno aqui fazer uma ironia ao citar o fim da histria, pois em seu sentido original este termo esteve relacionado ao fim das agonias da histria e vemos que a crise ambiental provocou o contrrio. 17 A referida denominao ao professor Leff foi retirada do Curriculum do docente na pgina da UNAM Universidade Autnoma do Mxico. Disponvel em: .
30
espao de concordncias e um espectro de modelos sociais alternativos. Neste processo, parece pouco realista enfrentar o projeto neoliberal to-somente com os valores de uma tica conservacionista. Um dos grandes desafios que a sustentabilidade enfrenta a construo do conceito de ambiente como um potencial produtivo sustentvel; isto , materializar o pensamento complexo numa nova racionalidade social que integre os processos ecolgicos, tecnolgicos e culturais, para gerar um desenvolvimento alternativo. (LEFF, 2004, p. 60)
Diante do quadro de grave crise e riscos extremos que se apresentam
medidas tpicas por vezes bem-intencionadas, como plantar uma rvore ou
cuidar dos animais (PORTO-GONALVES, 2004, p. 19). Tais iniciativas soam
como uma gota dgua no oceano e empresas e governos as utilizam como
aes de desenvolvimento sustentvel, gerando um campo de aspecto
positivo nas prticas predatrias por eles perpetradas, sobretudo em
consumidores mais desavisados. Por outro lado, em uma via mais crtica,
essas aes de carter tpico geram mais angstia e questionamentos. a
partir desse segundo eixo questionador que a complexidade ambiental se
forma.
Mas, ao mesmo tempo em que a complexidade ambiental se forja na
utopia de minimizao das angstias, ela se forma no exerccio de desmonte
das certezas modernas. Ao mesmo tempo em que intenta fornecer alternativas
ao modelo vigente, ela implode o aparentemente impenetrvel alicerce dos
valores modernos.
Nesse sentido, apreender a complexidade ambiental implica um processo de desconstruo do pensado para se pensar o ainda no pensado, para se desentranhar o mais entranhvel de nossos saberes e para dar curso ao indito, arriscando-se a desmanchar nossas ltimas certezas e a questionar o edifcio da cincia. (LEFF, 2002, p. 196)
O principal exerccio da complexidade o questionamento da aparente
inevitabilidade do modelo nico. Tal questionamento no deve partir da
unicidade discursiva da cincia, pois esta foi formada no bojo da (e para) a
racionalidade modernizadora.
[...] a complexidade ambiental implica uma nova compreenso do mundo que problematiza os conhecimentos e saberes
31
arraigados em cosmologias, mitologias, ideologias, teorias e saberes prticos que se encontram nos alicerces da civilizao moderna, no sangue de cada cultura, no rosto de cada pessoa. (LEFF, 2002, p. 196)
Apesar de contrapor a situao fragmentria formada na racionalidade
modernizadora, que reserva ao ambiente o campo das externalidades, e a
despeito do que seu nome possa deixar a entender, a complexidade ambiental
no uma compiladora holstica das disjunes modernizantes.
Esta perspectiva do saber ambiental questiona o pensamento da complexidade (Morin, 1993), concebido como resultado da evoluo ntica do ser, como um processo de auto-organizao da matria que, com a emergncia de uma conscincia ecolgica na noosfera, viria completar e recompor o mundo fragmentado e alienado, herdado desta civilizao em crise, atravs de uma viso sistmica. (LEFF, 2004, p. 418)
Nesse sentido, Leff (2016, p. 300) ainda nos diz que tal complexidade
reflexiva, baseada nas cincias da complexidade e nos sistemas
autorreguladores, se constitui numa cincia ps-normal, que busca superar a
pretensa objetividade da cincia. Contudo, mesmo a partir dessa nova
perspectiva cientfica, Leff (2016, p. 301) questiona: para alm da eficcia
desses processos [...] teramos que nos perguntar: como surge a agncia
social?.
Entende-se que o conceito de complexidade ambiental forjado por Leff
uma tentativa de encontrar resposta ao questionamento acima, pois a
complexidade ambiental indica uma perspectiva de transformao do
conhecimento na interveno do mundo. Ou seja, para que isso ocorra,
necessria a criao (ou reativao) de saberes e racionalidades outras, que
no somente aquelas geradas no (e pelo) desenvolvimento econmico (LEFF,
2004, p. 418).
2.3 Os elementos constitutivos da Complexidade Ambiental
2.3.1 A Racionalidade Ambiental
Gerar uma racionalidade alternativa racionalidade vigente uma das
premissas da complexidade ambiental. A tentativa de incrementar aes
ambientais no interior de uma racionalidade predominantemente economicista
32
e instrumental leva internalizao de algumas normas ecolgicas para o
centro da lgica capitalista. O desenvolvimento sustentvel aplicado pela
maioria das empresas no mundo parte do princpio de que a sustentabilidade
apenas mais um dentre os vrios custos de produo. Reitera-se que nessa
perspectiva a sustentabilidade usada tal qual um engodo, pois ao assimilar
mais este custo produo e desenvolver medidas ecolgicas compensatrias,
cria-se a iluso de uma ao que controle a crise ambiental.
O conceito de racionalidade ambiental pe em relevo o fato de que a construo da sustentabilidade no a fuso de duas lgicas ou a internalizao da lgica ecolgica na lgica do capital. (LEFF, 2004, p. 51)
Por detrs dessas prticas sustentveis est presente, na maior parte
das vezes, um estratagema ideolgico: as empresas prometem uma
sustentabilidade que de antemo elas j sabem que no podem (ou no
querem) cumprir, pois isso atrapalha o crescimento econmico almejado. Isso
porque a racionalidade que fundamenta o funcionamento das empresas
caminha em direo diametralmente oposta quela preconizada pelos
fundamentos da sustentabilidade. O que torna tais prticas empresariais
sustentveis ainda mais perversas o verniz cientificista que carreiam
consigo. Por possurem essas caractersticas, so entendidas pelos seus
consumidores como formas ideais de resoluo das irracionalidades e conflitos
gerados pelo sistema. Nada mais ilusrio:
Ao contrrio, a racionalidade cognitivo-instrumental da modernidade aparece como a causa principal da crise ambiental, reclamando a constituio de uma nova racionalidade social [...] (LEFF, 2004, p. 54)
A racionalidade instrumental oferece para o enfrentamento da crise
ambiental a sada da resoluo tcnica, que mais cmoda e aprisiona a
humanidade na manuteno dessa racionalidade.
H uma crena acrtica, de que existe, sempre, uma soluo tcnica para tudo. Com isso ignora-se que o sistema tcnico inventado por qualquer sociedade traz embutido nele mesmo a sociedade que o criou, com as suas contradies prprias traduzidas nesse campo especfico. (PORTO-GONALVES, 2011, p. 15).
33
Como visto acima, no se pode almejar um cientificismo exclusivista na
resoluo da crise ambiental, pois o campo cientfico , ao mesmo tempo, parte
do produto e produtora da racionalidade que (des)constri o mundo. Os
saberes cientficos [...] serviram de suporte terico e meios instrumentais ao
processo civilizatrio, fundado no domnio do homem sobre a natureza (LEFF,
2004, p. 155). O caminho em direo a uma racionalidade ambiental passa
pelo questionamento da cincia, sobre sua negao e externalizao do
ambiente (LEFF, 2004).
Alm de embasar a superao dos paradigmas do conhecimento, a
racionalidade ambiental deve transcender a estrutura social (LEFF, 2012).
Essas superaes cientficas e sociais no podem limitar-se formulao de
novos paradigmas e incluses sociais. A sustentabilidade almejada pela
racionalidade ambiental perpassa
[...] um objetivo que transborda a capacidade das cincias, para converte-se num projeto poltico mediante a constituio de atores sociais movidos por propsitos e interesses inscritos dentro de matrizes de racionalidade, orientados por saberes e enraizados em identidades prprias e diferenciadas. (LEFF, 2012, p. 53)
H de fato uma necessidade de ruptura dessa racionalidade.
necessrio reconfigurar a compreenso do mundo, [...] ressignificando os fins
e os meios os quais se dirigem as aes sociais (econmicas, polticas),
iluminando novas teorias e renovando os sentidos de existncia (LEFF, 2012,
p. 50).
O que se almeja com a complexidade ambiental a construo de um
tipo alternativo de racionalidade, baseado na [...] transformao dos processos
econmicos, polticos, tecnolgicos e educativos [...] (LEFF, 2004, p. 133).
Nesse sentido, a racionalidade ambiental
[...] no a expresso de uma lgica, mas o efeito de um conjunto de interesses e de prticas sociais que articulam ordens materiais diversas que do sentido e organizam processos sociais atravs de certas regras, meios e fins socialmente construdos. (LEFF, 2004, p. 134)
34
A racionalidade ambiental no anseia o fim das contradies, nem muito
menos a extino da racionalidade econmica e instrumental18, mas sim a
instaurao de [...] um conjunto de processos que integram diferentes 'esferas
de racionalidade' (LEFF, 2004, p. 142). A racionalidade ambiental no busca a
aplicao de um modelo, ao contrrio,
[...] desloca a hegemonia homogeneizante da racionalidade moderna (econmica, terica e instrumental), fazendo valer a categoria de racionalidade substantiva, que no campo da norma, seno dos valores [...]. (LEFF, 2012, p. 57)
A racionalidade ambiental fragmenta o bloco monoltico pelo qual se
apresenta o pensamento corrente na atualidade; insere possibilidades no
interior da aparente unicidade de produo da vida.
Aquilo que gera a crise ambiental a homogeneizao do mundo pelo
modo de se produzir a vida foi fruto da desarticulao dos modos de vida
diversos, no intuito de expanso do capital, provocado pela instaurao da
racionalidade instrumental. A racionalidade ambiental intenta rearticular esses
modos de vida ao
[...] incorpora[r] um conjunto de valores e critrios que no podem ser avaliados em termos do modelo da racionalidade econmica, nem reduzidos a uma medida de mercado. (LEFF, 2004, p. 136)
A compreenso, ou seja, a racionalidade pela qual se (des)constri o
mundo, no se altera pela autoconscincia do sujeito isolado. Tal
(des)construo emerge do confronto entre racionalidades. Diferentes
racionalidades se edificam por meio da concepo de diferentes saberes,
forjados em consonncia com a singularidade das relaes socioambientais de
cada localidade. Nesse sentido, ao se firmar uma nova racionalidade, na
realidade est se desinvisibilizando um antigo saber. nesse sentido que
racionalidade e saber se convergem na composio de uma complexidade
ambiental.
18 Soaria incoerente exigir a qualquer racionalidade alternativa a aplicao de uma lgica que ela intenta desautorizar, ou seja, aplicar um sistema de extirpao racionalidade econmica e instrumental usar da ttica excludente que esta mesma se valeu para se sobrepujar sobre as outras racionalidades.
35
2.3.2 O Saber Ambiental
A outra ponta que se junta racionalidade ambiental na formulao de
uma complexidade ambiental o saber ambiental. De fato a construo de
uma racionalidade ambiental implica a formao de um novo saber (LEFF,
2004, p. 145).
O saber ambiental problematiza o conhecimento fragmentado em disciplinas e a administrao setorial do desenvolvimento, para constituir um campo de conhecimentos tericos e prticos orientado para a rearticulao das relaes sociedade-natureza. [...] O saber ambiental excede as cincias ambientais, constitudas como um conjunto de especializaes surgidas da incorporao dos enfoques ecolgicos s disciplinas tradicionais antropologia ecolgica; ecologia urbana; sade, psicologia, economia e engenharia ambientais e se estende alm do campo de articulao das cincias (LEFF, 1986/2000), para abrir-se ao terreno dos valores ticos, dos conhecimentos prticos e dos saberes tradicionais. (LEFF, 2004, p. 145)
Racionalidade e saber esto em estreita afinidade na conformao de
um corpo social. H uma relao de complementaridade entre as duas
instncias, em que os saberes do base racionalidade e, por conseguinte, a
racionalidade sustenta os saberes que a formaram. Por isso iluso acreditar
que um processo de degradao ambiental se encerra com aes tpicas que
ecologizam a economia. O estabelecimento de paradigmas diversos de
conhecimento basilar na construo de uma nova racionalidade social (LEFF,
2004, p. 146).
Assim como a racionalidade ambiental, o saber ambiental no
excludente, ao contrrio, procura incluir aquilo que fora deixado de lado na
objetivao do mundo. O saber ambiental no almeja somente alcanar um
novo paradigma cientfico, mais complexo, abrangente e interdisciplinar, mas
almeja um
[...] dilogo e amlgama de saberes, desde os nveis mais altos de abstrao conceitual at os nveis de saber prtico e cotidiano onde se expressam suas estratgias e prticas. (LEFF, 2004, p. 153)
36
O campo do saber aquele que recupera, na prtica, o ambiente
externalizado pela cincia. O saber ambiental prope reoxigenar os saberes
esquecidos e abjetos que circulam no meio social e reintegrar-lhes poder
(saberes indgenas, camponeses, populares) (LEFF, 2012, p. 51). Oferecer um
campo de exerccio, no somente prtico, mas tambm poltico a esses outros
saberes uma democracia ambiental (LEFF, 2016, p. 294) em que haja uma
possibilidade de integrao e contraposio desses diferentes saberes, na
formao de uma realidade socioambiental sustentvel (ARAUJO, 2015).
Enfim, o que se prope o dilogo dos saberes:
[...] [o] encontro (enfrentamento, entrecruzamento, hibridao, complementao, antagonismo) de saberes diferenciados por matrizes de racionalidade-identidade-de-sentido que respondem a estratgias de poder pela apropriao do mundo e da natureza. (LEFF, 2012, p. 55)
O desejo de um saber ambiental emerge do no contentamento da falta
de conhecimento da cincia (LEFF, 2012, p. 59); na falta de sentido que ela
produz ao almejar uma objetividade e uma universalidade que no coadunam
com a situao identitria localizada do ser. Construir um saber ambiental
ambientalizar o saber (conhecimento), localiz-lo, para gerar um feixe de
saberes nos quais se entrelaam diversas vias de sentido (LEFF, 2012, p. 55).
Nessa perspectiva, Santos (2006, p. 32) reprova o discurso unvoco da
cincia na produo da vida e diz que o mesmo gera uma ausncia, ou um
desperdcio de experincia. Experincias estas que poderiam agir em uma
produo mais sustentvel da vida. Vale ressaltar que o referido autor no
dissemina a necessidade de expurgo da cincia, mas sim [...] tentar fazer um
uso contra-hegemnico da cincia hegemnica (SANTOS, 2006, p. 32), ou
uma contra-epistemologia (SANTOS, 2009, p. 51). Nesse seguimento, o autor
coincide com o entendimento de Leff e prope em consonncia com o Dilogo
dos Saberes, a Ecologia dos Saberes:
[...] possibilidade de que a cincia entre no como monocultura mas como parte de uma ecologia mais ampla de saberes, em que o saber cientfico possa dialogar com o saber laico, com o saber popular, com o saber dos indgenas, com o saber das populaes urbanas marginais, com o saber campons. (SANTOS, 2006, p. 32-33)
37
Entretanto valendo-se de Santos (2006, p. 33), ressalta-se que [...] tudo
no vale o mesmo, bem como no estabelecer que a cincia valha para tudo.
Contudo, em lugar de subscrever uma hierarquia nica, universal e abstrata entre os saberes, a ecologia de saberes favorece hierarquias dependentes do contexto, luz dos resultados concretos pretendidos ou atingidos pelas diferentes formas de saber. (SANTOS, 2009, p. 51)
Prosseguindo nesse ponto de vista, Grosfoguel (2009, p. 385) ainda
assevera que se deve estabelecer [...] um dilogo crtico entre diversos
projetos crticos polticos/ticos/epistmicos, apontados a um mundo pluriversal
e no a um mundo universal.
Nessa possibilidade de dilogo dos saberes, dessas diferentes formas
de saber, que o lugar adquire funo precpua. Entre os extremos ilusrios
propagados, de um lado uma atopia difundida pela globalizao, em que o
ente se desvincula totalmente de seu lugar e torna-se global, e de outro da
sabida impossibilidade de uma identidade fixa, monotpica, de identificao
nica e exclusiva com o lugar (ESCOBAR, 2005, p. 133), o espao local torna-
se o lugar onde o saber outro se forma. a partir do local que modelos
alternativos de natureza so forjados.
Uma das vantagens ambientais dos modelos locais de natureza e que
justamente se contrape ao modelo moderno que essas [...] no dependem
da dicotomia natureza/sociedade (ESCOBAR, 2005, p. 136). Dessa premissa
parte a diferena que permite que o espao possa ser gestado de forma
ambientalmente mais sustentvel, pois afasta-se da ideia de natureza o papel
exclusivo de recursos naturais.
Tambm na localidade, no lugar, que podemos enxergar com mais
clareza a possibilidade de construo de imaginrios econmicos alternativos
(ESCOBAR, 2005, p. 139).
O lugar como a cultura local pode ser considerado o outro da globalizao, de maneira que uma discusso do lugar deveria oferecer uma perspectiva importante para repensar a globalizao e a questo das alternativas ao capitalismo e modernidade. (ESCOBAR, 2005, p. 139)
38
Ao preconizar a defesa do lugar para a ocorrncia do dilogo dos
saberes, registramos que esta estratgia est vinculada a [...] uma relao
entre lugar, cultura e natureza (ESCOBAR, 2005, p. 142). um projeto que se
conecta ideia de transmodernidade, cunhada por Enrique Dussel, em que:
Em vez de uma nica modernidade [...] se enfrente a modernidade eurocentrada atravs de uma multiplicidade de respostas crticas descoloniais que partam das culturas e lugares epistmicos subalternos de povos colonizados de todo o mundo. (DUSSEL, 2001 apud GROSFOGUEL, 2009, p. 408)
Segundo Dussel, essa transmodernidade nos proporcionaria [...] uma
diversalidade de respostas para os problemas da modernidade, conduzindo
transmodernidade (DUSSEL, 2001 apud GROSFOGUEL, 2009, p. 408).
Nesse sentido, Santos (2009, p. 472) nos diz que h um deslocamento
pragmtico de hierarquias entre saberes, transformando assim [...] todos
saberes em saberes experimentais (SANTOS, 2009, p. 472).
Quando Dussel preconiza uma transmodernidade, ou quando Escobar
defende o local como alternativa ao global, ou mesmo quando Santos diz sobre
ecologia dos saberes, de fato o que se busca um dilogo dos saberes o
empoderamento local por meio do saber. Neste trabalho, compreender todas
essas alternativas ao modelo unvoco da modernidade tanto essencial
tentativa de expandir os entendimentos acerca do mencionado campo terico
do turismo, bem como nos ajuda a compreender as caractersticas da atividade
turstica que favorecem a possibilidade do exerccio de uma complexidade
ambiental.
A fim de alcanar tais objetivos, no prximo captulo a abordagem
pautou-se no entendimento da construo terica do turismo atravs do tempo
bem como nos desdobramentos sobre as interconexes entre o campo terico
do turismo e a complexidade ambiental.
39
3 AS (IN)DEFINIES DO TURISMO
Ao analisar o turismo como atividade complexa, tanto em seu domnio
terico bem como em seu campo emprico, intencionamos desatar as amarras
analticas que simplificam a referida atividade em uma anlise economicista. Ao
faz-lo, nossa inteno demonstrar que por detrs dessa prtica habitual
contempornea se envolve uma intrincada rede de inter-relacionamentos que
podem convergir em uma possvel complexidade ambiental.
Nesse sentido, em um primeiro momento neste captulo, realizou-se um
apanhado de vrias conceituaes sobre o turismo ao longo do tempo, na
tentativa de apreender os entendimentos cientficos produzidos sobre o tema.
Em seguida, trabalhou-se acerca da variabilidade conceitual,
demonstrando pontos convergentes e divergentes na tentativa de estabelecer a
complexa atuao do turismo.
Logo aps, problematizou-se as possibilidades epistemolgicas do
turismo, ao mesmo tempo buscando-se as compreenses tericas que
sustentam a complexidade ambiental de Leff, explanadas no primeiro captulo,
no sentido de estabelecer no interior da teoria do turismo elementos que atuam
como agentes aglutinadores de uma complexidade ambiental.
3.1 Epistemologia do turismo
Os estudos acerca do turismo possuem um curto perodo histrico. Esse
fato no reside no descuido de estudiosos acerca do tema, mas sobretudo na
relativa novidade histrica da ocorrncia dessa atividade como uma prtica
social. Foi sobretudo em meados do sculo XIX na Inglaterra que um crescente
estilo de vida que coadunava acmulo de tempo livre, capital e
desenvolvimento de transportes proporcionou um movimento de pessoas em
busca de fruio.
3.1.1 O turismo como objeto cientfico compreendendo-o por meio de fases
Nesta seo, vrias definies sobre turismo sero exploradas, desde as
primeiras noes ligadas ao incio das anlises sobre a atividade turstica at
as formulaes mais complexas surgidas no acmulo dos conhecimentos
produzidos. Este exerccio de resgate conceitual possibilitar perceber a
40
pluralidade dos desdobramentos tericos sofridos pelo campo do turismo ao
longo dos anos na tentativa de explicao desse fenmeno.
Para o fim apresentado no pargrafo anterior e como forma de estruturar
didaticamente os conceitos a serem trabalhados neste tpico, dividiu-se esta
anlise em trs momentos epistemolgicos do turismo ou Fases Tericas do
Turismo, tal como proposto por Netto (2005 apud NETTO; TRIGO, 2009, p.
171). O autor tomou por base a teoria dos Paradigmas de Kunh19, e delimitou
as Fases Tericas do Turismo nos grupos abaixo especificados (Figura 2):
Figura 2 - Fases Tericas do Turismo
Fonte: Netto e Trigo (2009, p. 171).
1 Fase Pr-paradigmtica uma fase terica inicial, onde os autores
lanaram uma primeira tentativa de uma anlise terica do turismo;
19 [...] uma constelao de realizaes concepes, valores, tcnicas, etc. compartilhada por uma
comunidade cientfica e utilizada por essa comunidade para definir problemas e solues legtimos
(KUHN, 1997, p. 15).
41
2 Fase Paradigma Sistema de Turismo formada por autores que utilizaram
a Teoria Geral de Sistemas (TGS) para seus estudos na rea do turismo.
rea de Transio nesta fase, Netto (2005) nos informa sobre um grupo de
autores que ainda se apoiam na TGS, mas que j ensaiam outros tipos de
abordagem nos estudos do turismo.
3 Fase Novas Abordagens so autores que centralizam suas atenes s
aes humanas, no interior da atividade do turismo.
Importante ressaltar tambm que tal diviso, mostrada na Figura 2,
apresenta certa ordem cronolgica. Ressalta-se aqui a utilizao da ideia de
diviso feita pelo autor. Entretanto, tal esquema no fator que limita nossa
anlise, medida que autores no listados por Netto (2005) aparecero em
nossas abordagens.
De uma forma geral, quase um consenso entre pesquisadores que
grande parte das anlises na rea de estudos do turismo fornece relevncia ao
carter econmico desta atividade (MOESCH, 2000). possvel entender tal
caracterstica de pesquisa, pois o campo mais aparente do turismo aquele da
flagrante dinamizao econmica que essa atividade mobiliza. Conjuntamente,
a massificao sempre crescente das viagens a partir da segunda metade do
sculo XIX est vinculada, principalmente, ampliao da economia mundial
como um todo. No se pode ignorar tambm o fato de que a reserva de
recursos financeiros para o custeio dos deslocamentos humanos na atualidade
situao sine qua non para que o turismo ocorra. Todas essas questes
colaboraram para que o turismo tivesse boa parte de suas anlises voltadas
para o aspecto econmico.
3.1.2 Os estudos iniciais e a fase pr-paradigmtica do turismo
Quanto mais se recua no tempo para a anlise dos conceitos em
turismo, observa-se que a viso permeada pelo vis econmico ainda mais
marcante. De certa maneira simples entender tal condio, pois o incio da
pesquisa cientfica de qualquer objeto consegue desvelar suas caractersticas
mais aparentes. Alm disso, alguns desses estudos tinham por obrigao
ressaltar a viabilidade do turismo em relao s finanas.
42
No incio do sculo XX, os primeiros estudiosos cientficos do turismo se ocuparam mais da questo estatstica, deste modo, suas primeiras anlises eram relacionadas a quem e quem no turista, de onde vem o turista, quanto gasta em suas viagens e como esse gasto reflete no destino. Entende-se, assim, o motivo de as primeiras abordagens cientficas de turismo e turista terem forte enfoque econmico. (NETTO, 2010, p. 22)
Por meio da anlise dos conceitos cunhados pelos autores da Fase Pr-
Paradigmtica, foi possvel verificar que Netto (2005) no cita em sua lista os
autores dos estudos iniciais do turismo. Esses estudos iniciais possuem
anlises diversas, mas que no conseguem escapar do destaque relevncia
econmica que o turismo alcana. Como podemos ressaltar, um dos primeiros
conceitos cunhados que se conhece sobre turismo, destacado abaixo, aponta
que o:
Turismo o conceito que compreende todos os processos, especialmente os econmicos, que se manifestam na chegada, na permanncia e na sada do turista de um determinado municpio, pas ou estado. (SCHATTENFHOFEN, 1911 apud MOESCH, 2000, p. 10)
Ainda nessa fase bastante inicial de anlise temos as definies dos
estudiosos da denominada escola berlinense20 (FUSTER, 1974, p. 24-28
apud BARRETTO, 2003, p. 09), dentre os quais destacamos Morgenroth:
Trfego de pessoas que se afastam temporariamente do lugar fixo de residncia para deter-se em outro local com o objetivo de satisfazer suas necessidades vitais e de cultura ou para realizar desejos de diversas ndoles, unicamente como consumidores de bens econmicos e culturais. (BARRETTO, 2003, p. 10)
Josef Stradner destaca ainda que o turismo um trfego de viajantes
de luxo e que esses viajantes buscam a satisfao de uma necessidade de
luxo (BARRETO, 2003, p. 10). J fora dos estudos da escola berlinense, o
ingls A. J. Norwall (1936) trouxe o conceito de turista, que em sua viso :
20No final dos anos 1920, ainda na Alemanha, criou-se o Forcshung-sinstituts fur Fremdenverkehr (Centro de Pesquisas Tursticas) na Universidade de Berlim, cuja produo terica passou a ser conhecida como Escola Berlinense (REJOWSKI, 1996, p. 16).
43
[...] a pessoa que entra num pas estrangeiro sem a inteno de fixar residncia nele, ou de nele trabalhar regularmente, e que gasta, naquele pas de residncia temporria, o dinheiro que ganhou em outro lugar. (DE LA TORRE, 1992, p. 17 apud BARRETO, 2003, p. 11)
Nos primeiros conceitos acima, alm do carter de uma atividade que
impulsiona a economia, vemos que h quase sempre uma referncia aos
deslocamentos que o turismo provoca, como nota-se no uso dos termos
chegada e permanncia, trfego de pessoas, deter-se em outro lugar, entrar
num pas estrangeiro. Pode-se eleger tal caracterstica como de segunda
importncia nesses estudos incipientes do turismo, como nos diz Glucksmann,
que o turismo um vencimento do espao por pessoas que vo para um local
no qual no tm residncia fixa. Schwink, da mesma escola berlinense,
destaca o turismo como movimento de pessoas que abandonam
temporariamente o lugar de residncia [...].
Outro centro de estudos importante surgido poca, que tambm deu
destaque aos deslocamentos nos estudos do turismo, foi a escola polonesa.
Lesczyck trouxe que: o movimento turstico aquele [] que durante um certo
tempo residem num certo lugar, como estrangeiros [...].
Um aspecto importante, iniciado no perodo pr-Segunda Guerra, foi o
aumento da percepo dos impactos nas localidades que recebiam turistas
(SANTANA, 2009). Desde ento, agregaram-se aos conceitos tursticos, alm
da propagada movimentao econmica e dos deslocamentos, os olhares
sobre as reas de destino. Logo aps essa etapa inicial das investigaes em
turismo, mas ainda no interior daquilo que Netto (2005) denomina Fase Pr-
Paradigmtica, viu-se crescer os estudos sobre turismo e consequentemente
um aprofundamento das anlises nessa rea, como nos aponta Fuster (1971
apud MOESCH, 2000, p. 11): [...] com a proliferao de monografias sobre a
temtica, depois da Segunda Guerra Mundial, houve uma qualificao nas
novas conceituaes. Assim, na Fase Pr-Paradigmtica, por exemplo,
encontramos a definio de Burkart e Medlik (1974, p. 39-40 apud BARRETO,
2003, p. 12) [...] o turismo uma amlgama de fenmenos e relaes,
fenmenos estes que surgem por causa do movimento de pessoas e sua
permanncia em vrios destinos. Tambm nessa fase Hunziker e Krapf:
44
Turismo o conjunto das relaes e dos fenmenos produzidos pelo deslocamento e permanncia de pessoas fora do seu local de domiclio, sempre que ditos deslocamentos e permanncia no estejam motivados por uma atividade lucrativa principal, permanente ou temporria (HUNZIKER; KRAPF, 1942 apud MOLINA; RODRIGUEZ, 2001, p. 11).
A introduo das localidades receptivas nas anlises tursticas fez com
que as conceituaes, a partir de ento, ganhassem um aspecto de inter-
relacionamento entre pessoas, de fenmeno social, de encontro de culturas,
enfim, um carter sociolgico inserido nessas anlises. Lundberg (1974, p. 25
apud BARRETO, 2003, p. 12) ressalta em seu conceito que o turismo possui
um grande componente econmico, mas suas implicaes sociais so bem
profundas. Beni (1998, p. 36), ao citar Jafari, esclarece que as definies
passam a ficar um tanto quanto mais holsticas e tentam captar o fenmeno
como um todo
o estudo do homem longe do seu local de residncia, da indstria que satisfaz suas necessidades, e dos impactos que ambos, ele e a indstria, geram sobre os ambientes fsico, econmico e scio-cultural da rea receptora. (JAFARI, 1996, p. 11 apud BENI, 1998, p. 38)
As conceituaes intentam abordar toda a complexidade observvel no
turismo, como Fuster relata em extenso conceito:
Turismo , de um lado, conjunto de turistas; do outro, os fenmenos e as relaes que esta massa produz em conseqncia de suas viagens. Turismo todo o equipamento receptivo de hotis, agncias de viagens, transportes, espetculos, guias-intrpretes, que o ncleo deve habilitar, para atender s correntes [...]. Turismo o conjunto de organizaes privadas ou pblicas que surgem, para fomentar a infra-estrutura e a expanso do ncleo, as campanhas de propaganda [...]. Tambm so os efeitos negativos ou positivos que se produzem nas populaes receptoras. (FUSTER, 1973, apud BARRETO, 2003, p. 11-12)
Quando agrupou-se os autores nessa primeira fase de anlise,
denominada por Netto (2005) de Pr-Paradigmtica, condensou-se uma
enorme quantidade de autores, distribudos em longa faixa de tempo do final
do sculo XIX at meados da dcada de 1960 do sculo XX. Realmente no se
nota um paradigma unvoco que rege todos os conceitos delineados, mas isso
45
no foi impeditivo para o empobrecimento do conceito de turismo, ao contrrio,
o que se notou foi o aumento da robustez do conceito de turismo ao longo do
tempo, ao agregar incontestvel viso de impacto econmico que provoca as
questes que envolvem o deslocamento de pessoas e os impactos sociais das
localidades tursticas.
As reas de estudos acadmicos, includo a o turismo, incorporam ao
longo do tempo as inovaes ocorridas na cincia em geral e no somente em
cada disciplina especfica. A produo de novos mtodos ou tcnicas so
bastante comuns em cincia e levam um objeto de pesquisa experimentao
contnua. Nessa perspectiva encontra-se a segunda Fase do Turismo de Netto
(2005), a denominada Fase Sistema do Turismo (Figura 02).
3.1.3 A gnese de um alinhamento paradigmtico: Sistemas
Ao almejar o entendimento sobre a Fase Sistema do Turismo, deve-se
deixar claro que os conceitos e teorias ao fenmeno turstico gestados nessa
fase so caudatrias de um paradigma que percorreu no somente a rea de
estudos do turismo, mas a cincia como um todo. Nesse sentido, foi importante
elaborar um estudo introdutrio, destacando a emergncia cientfica do novo
paradigma sistmico, expresso principalmente na Teoria Geral dos Sistemas
TGS, para posteriormente nos concentrarmos sobre a Fase Sistema do
Turismo.
Em uma viso cientfica micromerista, o ser vivo um mosaico
constitudo da associao de partes estruturais definidas rgos, tecidos,
clulas, genes (BRANCO, 2014,). Comparativamente, essas partes so
estruturas que exercem funes especficas e, tal qual uma mquina em bom
funcionamento, resultado do bom funcionamento de suas engrenagens, ou
seja, dessas partes estruturantes.
Em contraposio a esta viso, decorrente sobretudo das descobertas
subatmicas em fsica, as descries analticas atomsticas [...] de unidades
elementares governadas pelas leis 'cegas' da natureza (BERTALANFFY,
1977, p. 52) foram cedendo espao a vises mais holsticas, integradoras.
Houve a necessidade de
46
[...] estudar no somente partes e processos isoladamente, mas tambm resolver os decisivos problemas encontrados na organizao e na ordem que os unifica, resultante da interao dinmica das partes, tornando o comportamento das partes diferente quando estudado isoladamente e quando tratado no todo. (BERTALANFFY, 1977, p. 53)
Ou seja, estudos estruturalistas no satisfaziam mais a percepo
cientfica a partir daquele momento. Tal situao abriu espao para a
formulao de teorias sistmicas, dentre as quais destacamos aquela
formulada por Bertalanffy (1977, p. 32) que diz que a teoria dos sistemas uma
[...] tentativa de uma interpretao e uma teoria cientfica em assuntos nos quais anteriormente no existiam, e chegar a uma generalizao mais alta do que a das cincias especiais.
A Teoria Geral dos Sistemas21 proposta por Ludwig von Bertalanffy,
segundo o prprio autor, uma cincia geral de totalidade" (BERTALANFFY,
1997 apud CAPRA, 1996, p. 43). Essa totalidade somente pode ser entendida
no seu conjunto. Percebeu-se que entender as partes no possibilitava
entender o todo:
O sistema, [...] implica organizao (e no a mera coleo ou associao) de partes inter-relacionadas, de maneira a garantir o fluxo de energia. Portanto, no apenas uma unidade estrutural, mas, antes de tudo, funcional, e a funo no pode dispensar o deslocamento, o fluxo energtico. Finalmente, o sistema deve ser autorregulvel, de forma que seja mantido um perfeito equilbrio entre as partes, conservando constante o fluxo de energia. O sistema necessita, pois, uma fonte de energia externa, embora a energia possa ser acumulada, de alguma forma, dentro dele. O conjunto de elementos estruturais, perfeitamente inter-relacionados, garante o fluxo energtico e um mecanismo regulador controla o funcionamento geral por meio de processos de retroao. (BRANCO, 2014, p. 104)
De fato, a TGS significou uma necessidade epistemolgica e
metodolgica para explicar as descobertas mais recentes da cincia em seu
tempo. Alm disso, temas j estudados em outras perspectivas de abordagem
21 As ideias de Bertalanffy foram publicadas em vrios artigos e livros, mas o seu livro mais conhecido
Teoria geral dos sistemas, publicado nos Estados Unidos, em 1968, no qual ele apresentou a sua teoria
para os sistemas abertos. Tais sistemas poderiam ser de qualquer natureza, e a sua teoria geral de sistemas
pretendia ser interdisciplinar. (NETTO; LOHMANN, 2008, p. 27)
47
eram submetidos a reanlises sistmicas. Foi nesse sentido, apoiados na
Teoria Geral de Sistemas de Bertalanffy, que surgiram vrios modelos de
anlises sistmicas do turismo.
Segundo Netto e Lohmann (2008, p. 27), a primeira anlise do turismo
utilizando a teoria geral de sistemas foi feita por Raymundo Cuervo (1967).
Para Cuervo (1967, p. 29 apud NETTO; LOHMANN, 2008, p. 30) o turismo
um conjunto bem definido de relaes, servios e instalaes que se geram em
virtude de certos deslocamentos humanos. Segundo o mesmo autor, esse
conjunto turstico um sistema com uma funo precpua de comunicao.
Tal comunicao advinda do turismo pode adquirir tanto um papel positivo
como negativo nas relaes humanas, sendo de evidente incentivo, segundo o
autor, a busca da comunicao positiva do sistema turstico (CUERVO, 1967
apud NETTO; LOHMANN, 2008).
Outro sistema turstico bastante difundido o de Neil Leiper, conhecido
por meio de sua publicao no peridico Annals of Tourism Research, em
1979. A proposta de Leiper abarca cinco elementos, sendo trs de cunho
geogrfico a regio de origem dos viajantes; uma regio de trnsito e a
regio de destino turstico (NETTO; LOHMANN, 2008). Os dois elementos
restantes so os turistas e a indstria de turismo e de viagens (os meios de
hospedagem, os restaurantes, atrativos tursticos etc.) (Figura 03).
48
Figura 3 - Modelo de sistema de turismo proposto por Leiper
Fonte: Netto e Lohman (2008, p. 34).
A novidade na proposta de Leiper est atrelada ao que ele denominou
de fatores ambientais externos fsico, tecnolgico, social, cultural,
econmico e poltico (Figura 03). Segundo o autor, tais fatores no somente
influenciavam a atividade do turismo, mas tambm sofriam influncia dessa
atividade (NETTO; LOHMANN, 2008, p. 33). Segundo Cooper (1998 apud
NETTO; LOHMANN, 2008, p. 33) o sistema de Leiper no somente possui uma
aplicabilidade geral, mas tambm muito simples; caractersticas que
impulsionaram a grande popularidade desse sistema, tornando-o frequente nas
referncias dos trabalhos sobre turismo.
Um brasileiro que se destacou no meio cientfico do turismo com o
conceito SISTUR Sistema de Turismo o professor Mrio Carlos Beni, da
Universidade de So Paulo USP. Assim como em outras anlises sistmicas
do turismo, Beni estava interessado em explicar aos alunos as relaes
existentes entre o turismo e as outras disciplinas e atividades humanas
(NETTO; LOHMANN, 2008, p. 50). Esta afirmao coincide com a de Leiper
(1979, p. 395) quando este encerra o turismo no interior de um sistema que
demarcaria mais facilmente este fazer humano como uma atividade
multidisciplinar:
49
Tal abordagem poderia facilitar os estudos multidisciplinares de aspectos particulares do turismo e de forma mais significativa daria estudos interdisciplinares de vrias facetas e perspectivas de um ponto de referncia comum; a diviso entre os dois campos do conhecimento acadmico poderia ser superada. (LEIPER, 1979, p.395, traduo nossa)22.
O professor Beni reuniu em seu modelo um trip bsico que sustenta a
atividade turstica, no qual denominou conjunto. Os trs conjuntos so:
Conjunto de Relaes Ambientais RA; Conjunto da Organizao Estrutural
OE; e conjunto das aes operacionais AO (Figura 04).
Figura 4 - Modelo SISTUR de Beni
Fonte: Netto e Lohman (2008, p. 51).
O Conjunto de Relaes Ambientais composto pelos subsistemas
cultural, social, ambiental e econmico. O Conjunto da Organizao Estrutural
est dividido nos subsistemas superestrutura e infraestrutura. J no Conjunto
das Aes Operacionais encontra-se a dinmica do sistema de turismo
22 Such an approach would facilitate multidisciplinary studies of particular aspects of tourism and more significantly would give interdisciplinary studies of various facets and perspectives a common point of reference; the division between the two camps of academic scholarship could be bridged.
50
(NETTO; LOHMANN, 2008, p. 52), tomam parte dele os subsistemas oferta,
mercado, demanda, produo, distribuio e consumo.
Em 1985, Roberto C. Boulln publicou no livro Planificacin del espacio
turstico sua teoria do espao turstico. Boulln afirma
[...] que o turismo no uma cincia nem uma indstria, com ou sem chamins [...] o turismo consequncia de um fenmeno social cujo ponto de partida a existncia do tempo livre e o desenvolvimento dos sistemas de transporte. (BOULLN, 2002, p. 37)
Ao conceituar o turismo como um movimento espontneo (BOULLN,
2002, p. 37) sob o qual se agregam estruturas particulares e pblicas dos
viajantes, Boulln marca a importncia de sua definio ao espao que se
forma em torno dos atrativos tursticos. [...] o espao turstico consequncia
da presena e distribuio territorial dos atrativos tursticos que, no devemos
esquecer, so a matria-prima do turismo (BOULLN, 2001, p. 65 apud
NETTO; LOHMANN, 2008, p. 56).