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    temas portugueses

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    Título: História da Literatura Portuguesa(Recapitulação)Vol. III — Os Seiscentistas3.ª edição

     Autor: Teófilo BragaEdição: Imprensa Nacional-Casa da Moeda

    Concepção gráfica: Departamento Editorial da INCMCapa:

    Revisão do texto: Gabriela CorvoTiragem: 800 exemplares

    Data de impressão: Novembro de 2005ISBN: 972-27-1447-3

    Depósito legal: 234 248/05

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    HISTÓRIA DA LITERATURAPORTUGUESA(RECAPITULAÇÃO)

    OS SEISCENTISTAS

    Vol. I I I

    3.ª Edição

    Teófilo Braga

    IMPRENSA NACIONAL-CASA DA MOEDA

    LISBOA

    2005

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    ACTUALIZAÇÃO DO TEXTO

    por  J ORGE  DE  FIGUEIREDO

    A parte poética e as transcrições de obras portuguesas, feitas peloautor, são respeitadas, na sua maioria, por razões óbvias. As citações deobras estrangeiras sofreram, porém, as convenientes actualizações.

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    O plano da incorporação de Portugal na unificação ibérica,prosseguido pelo  germanismo  da Casa de Áustria pelos casamen-tos reais, Filipe II realizou-o habilmente, fazendo-se aclamar porcláusulas de parentesco nas cortes de Tomar. Daí a estabilidadedo seu domínio de 1580 a 1598, tendo evitado sempre afrontaro sentimento da nacionalidade.  Por sua morte, o castelhanismo asfi-xiante e absorvente veio acordar-nos o sentimento da pátria, aaspiração da independência nacional, a que o equilíbrio europeudeu o relevo da Revolução de 1640. Este grande fenómeno morale histórico ocupa todo o século XVII  e reflecte-se vivamente naelaboração literária dos Seiscentistas.

    A história deste período não está completa nos feitos dearmas e vitórias gloriosas; houve uma luta do sentimento nacio-nal contra a imposição da língua castelhana  sustentada pelas es-plêndidas obras da literatura espanhola, criações geniais que

    foram continuadamente impressas, às vezes em edições primei-ras, em tipografias portuguesas; e também pela atracção dostalentos lusos para a cooperação das comédias famosas,  escritasnessa linguagem enfática e pomposa, representadas nas cenas deMadrid, Valladolid e Sevilha. O predomínio da língua castelha-na apagou desastradamente as literaturas da Galiza, de Aragão,de Valência; salvou-se a literatura portuguesa pela reacção dosespíritos cultos seiscentistas  apoiando a expressão do sentimento

    nacional pela revivescência dos modelos clássicos quinhentistas.Vinte e sete anos foram precisos para firmar-se a libertaçãode 1640; mas o castelhanismo  infiltrara-se na literatura portugue-sa desde o século XI  (Cancioneiro Geral,  de Resende), e por todoo século XVI por pragmática cortesanesca (poetas bilingues, comoSá de Miranda, Gil Vicente, D. Manuel de Portugal, etc.). Desse

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    envenenamento do culteranismo se libertou uma plêiada de es-critores seiscentistas: FRANCISCO  RODRIGUES  LOBO, que difundiu noCondestabre  a esperança da restauração nacional; FR. LUÍS  DE  SOU-SA, vindicando a supremacia da língua pátria pelo purismo qui-nhentista; D. FRANCISCO  MANUEL  DE  MELO, que sustentou na Eu-ropa com os seus libelos eloquentes a causa da autonomia dePortugal e revelando o alto génio da história; BRÁS  GARCIA  DEMASCARENHAS, acordando a tradição épica de Viriato  e dando-lhevida nas porfiadas lutas de guerrilhas nas fronteiras; o P.E  AN-TÓNIO  VIEIRA, movendo-se entre as intrigas diplomáticas dos ca-

    samentos e sonhos do Quinto Império para sustentar o trono deD. João IV. O estado da alma portuguesa aparece-nos na auste-ridade ascética em FR. ANTÓNIO  DAS  CHAGAS, e na exaltação amo-rosa molinosista de SOROR  MARIANA  ALCOFORADO  desvenda-se ainfluência francesa, conduzindo-nos para um maior contacto como século excepcional.  Esta riqueza de material fez-nos quebrar asproporções de uma recapitulação.

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    SEGUNDA ÉPOCA

    RENASCENÇA

    (continuação)

    2.º PERÍODO: OS SEISCENTISTAS

    (SÉCULO XVII)

    Coordenar a história das ideias, mesmo na sua forma maispróxima das emoções afectivas como as que procuram a expres-são da literatura e da arte, é nada menos que determinar osmotivos da actividade social convergindo para o carácter da ci-vilização. As ideias preponderantes no século XVII  são o desen-volvimento do fenómeno histórico do século anterior, em quepela Renascença clássica e pelo protestantismo se tornou patenteo facto da dissolução do regime católico-feudal, que dirigira aEuropa desde o século XI. Contra o poder temporal do feudalis-mo, compreendendo também sob este nome a realeza, levanta-

    ram-se as comunas, que foram capciosamente submetidas à uni-ficação monárquica das dinastias do século XVI, primeiro peloscódigos romanistas, depois pelos exércitos permanentes; contrao poder espiritual da Igreja, apareceram as descobertas científi-cas da astronomia e reataram-se os estudos da natureza pela con-tinuidade das noções positivas da Grécia, e pelo estabelecimen-

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    to do critério da observação em vez da credulidade autoritária.No século XVII, em verdade, o velho poder temporal sofre umatransformação profunda depois do triunfo da revolução dosPaíses Baixos, depois da desmembração da Casa de Áustria,depois da revolução de Inglaterra, mas subsiste na forma here-ditária e pessoal, em antagonismo contra o poder espiritual daIgreja, que, pela acção retrógrada dos Jesuítas, visava ao resta-

     belecimento da sua absurda teocracia. É esta situação ambígua ehostil dos dois poderes, que nos explica as aparentes contradi-ções da evolução do século XVII. A Renascença, restabelecendo e

    imitando a cultura da Grécia e de Roma, renega toda a IdadeMédia, especialmente na literatura; todas essas criações sentimen-tais e artísticas da transição medieval foram consideradas bár-

     baras, desconhecendo-se as suas relações vitais com a sociedademoderna e proclamando-se a imitação dos modelos clássicos daGrécia e de Roma. A Igreja, que renegara a Antiguidade, tevede adaptar-se ao espírito da Renascença; os Jesuítas, querendofortalecer o papado, e vendo a corrente histórica do estudo das

    humanidades, essencialmente secular, organizaram-se para seapoderarem do ensino público europeu, abriram colégios e ensi-naram as exclusivas disciplinas literárias da civilização que aprópria Igreja condenara. O carácter decadente das literaturasocidentais no século XVII, por isso que é comum e simultâneo,revela também esta causa comum. Os Jesuítas ficaram directoresexclusivos da cultura literária ou humanista, ao passo que o es-tudo das ciências adquiria um desenvolvimento espontâneo alheio

    à sua influência, e até certo ponto em acordo com as monarquiasabsolutas.É esta a segunda fase do século XVII, e a que preponderou

    na civilização europeia; Comte explica a organização científica pelanecessidade consultiva do poder monárquico, que precisava terapoio e direcção na sua acção absorvente e unitária; assim sereconhecia implicitamente a superioridade das ideias científicase positivas sobre as ideias teológicas e metafísicas. «Pouco a

    pouco, o que os reis haviam considerado como uma coisa lou-vável de fazer, foram levados a considerá-lo como um dever, ereconheceram a obrigação de promover as ciências e de se sub-meter às decisões dos sábios. O estabelecimento da Academiadas Ciências, instituída sob Luís XIV pelo ministro Colbert, é umadeclaração deste princípio. — O número de academias multipli-

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    cou-se prodigiosamente desde esta época sobre todos os pontosdo território europeu, e pela acção da competência científicasobre os espíritos, constituem-se de uma maneira regular e le-gal. A sua autoridade política aumentou em uma proporção aná-loga, exercendo uma influência directa, sempre crescente sobrea direcção da educação nacional. — Torna-se essencial observar,que ao mesmo tempo que a acção científica se constituiu e es-tendeu de cada vez mais em cada nação europeia consideradaisoladamente, a combinação das forças científicas dos diferentespaíses efectuou-se também de cada vez mais. O sentimento da

    nacionalidade foi (sob esta relação) totalmente afastado, e ossábios de todas as partes da Europa formaram uma liga in-dissolúvel, que tendeu sempre para tornar europeus todos osprogressos científicos alcançados em cada ponto particular.» 1

    Vencera o espírito crítico da Reforma no campo da ciência expe-rimental; enquanto os Jesuítas estafam a razão com o seu huma-nismo estéril sob as fórmulas do aristotelismo alexandrista, for-mam-se corporações de homens instruídos congregados para as

    observações dos fenómenos da natureza, consignam as descober-tas em gazetas e cartas que circulam pela Europa, e enquanto afalsa ideia do equilíbrio europeu  separa os povos com ódios inter-nacionais, a razão crítica estabelece a unanimidade dos espíritos,sendo Descartes o que, pela audácia das suas sínteses, deu a con-vergência ao espírito científico moderno. A ciência conservava acondenação do teologismo, e por isso fortificava-se nas acade-mias protegidas pela realeza ou nos países democráticos como a

    Holanda.Compreende-se como nos países católicos a corrente cientí-fica devia ser suplantada pelo humanismo  da educação jesuítica.A literatura tornou-se uma ocupação de ociosos, sem relação comos interesses morais e sociais do tempo, formando-se academiasreaccionárias e pedantescas, que, em Espanha, propagaram oculteranismo,  e, na Itália, o marinismo  ou os concetti.  Em Portugal,vemos uma nacionalidade extinta pela ocupação castelhana, de

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    1 Opúsculo de Comte, de 1820, ap. Systeme de Politique positive, t. IV,  Ap. gen., p. 34. Estas ideias aparecem em Cournot, Considerations sur la marche desIdées, t. II, p. 263, não obstante atacar dialecticamente as doutrinas de AugustoComte.

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    1580; vemos essa nacionalidade recuperar a sua independênciaem 1640; lutar pela sua autonomia nas campanhas do Alentejo,mas a literatura cultivada em numerosas academias é totalmen-te estranha a estes interesses. Portugal, liberto pelo influxo daFrança do domínio castelhano da Casa de Áustria, ficou sob osBraganças uma colónia dos Jesuítas; a história da nossa literatu-ra no século XVII  é síntese desta decadência.

    § I

    SINCRETISMO DA INFLUÊNCIA ITALIANAE ESPANHOLA EM PORTUGAL

    O exagero da imitação clássica, quer por via do estudo di-recto das literaturas greco-romanas, quer pela admiração refle-xa dos poetas italianos, produziu uma natural reacção que seobserva em França com Malherbe reagindo contra os neologis-

    mos eruditos de Ronsard, com Balzac procurando o purismo dafrase, com Du Bartas adoptando uma desusada liberdade noemprego das figuras retóricas. Porém, essa reacção apresenta oseu maior vigor em Espanha, onde o génio oriental irrompe naimaginação andaluza de Góngora, e se impõe pela pompa des-lumbrante das imagens poéticas exprimindo as ideias vulgares.O novo gosto inspira-se na natureza, mas embelezando-a con-vencionalmente; e esse artifício procurado com estudo é um si-

    nal de cultura do espírito, que não sente a graça sem lhe dar aforma pitoresca do conceito. A nova corrente literária propagou--se a toda a Europa; na Itália, Marini, «espanhol de origem eeducação» como diz Cantu, é o chefe dos concettiste,  e na Françaos culturistas  ditam as leis do gosto afectado nas intimidades dohotel Rambouillet, que Molière retratou nas Preciosas Ridículas; emInglaterra, Lyly propaga este falso estilo literário com o nomede Eufuísmo. À universalidade da influência italiana da Renas-

    cença, corresponde esta reacção do culteranismo espanhol, sistema-tizado em regras dogmáticas pelo jesuíta Baltasar Gracian nassuas  Agudezas de Ingénio.  Dava-se o nome de ingénio  à vã habili-dade de converter em figuras de retórica todas as situações mo-rais ou materiais, corrigindo a realidade não por um ideal maspelo equívoco, pelo paralogismo, pela redundância, pelo eufuísmo.

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    O culteranismo  provinha de uma verdadeira intuição da ne-cessidade de independência de espírito para a concepção artísti-ca; infelizmente, os escritores que reagiam contra o predomínioda Itália estavam separados do povo ou não conheciam o valorestético do elemento tradicional, de sorte que na impossibilida-de de acharem o carácter nacional da literatura, caíram no des-vairamento de uma fantasia sem disciplina. La Bruyère notou acausa dos desconcertos da linguagem culteranista, referindo-se aosmembros do palácio Rambouillet: «Eles deixam ao vulgo a artede falar de uma maneira inteligível.» A Espanha era o centro

    donde irradiava o prurido deste novo gosto literário; e no sé-culo XVII  vemos a literatura francesa inspirar-se para a criaçãopoética dos seus principais génios da imitação da literatura es-panhola. Scarron, no Roman Comique, imita o género picarescoespanhol; principalmente no teatro é onde se observa uma imi-tação mais evidente, como em Corneille no Cid,  no  Menteur  e noDon Sancho d’Aragão;  em Molière, no Festin de Pierre,  imitado doBurlador de Sevilha  de Gabriel Tellez, na Princeza d’Elida,  no

    D. Garcia de Navarra;  Quinault, Hardy, Rotrou seguem a mesmasenda, e Lesage  transforma os esboços de Velez de Guevara noseu belo Gil Blas,  e no Diable Boiteux. Quando a fecunda literatu-ra francesa obedecia ao influxo prestigioso da literatura espanho-la, e o próprio Richelieu considerava a admiração pelo Cid  deCorneille «como se os espanhóis tivessem tomado Paris», era im-possível que o culteranismo não dominasse de um modo abso-luto em Portugal, no século XVII. Estávamos sob o domínio caste-

    lhano, tanto em política como em literatura. A língua portuguesa,como se sabe pela declaração de Manuel de Gallegos, que se de-fende de haver escrito na língua pátria, era considerada pelasclasses elevadas como própria para ser falada nas praças e pelovulgo rude. Os escritores portugueses preferiam o castelhanopara a poesia e para a história, e concorriam para a riqueza doteatro espanhol compondo comédias famosas  no estilo de capa eespada.  Muitas das obras dos grandes génios da literatura espa-

    nhola tiveram as suas primeiras edições em Portugal, e ocuparam--se de assuntos portugueses. Quem organizasse os anais da im-prensa portuguesa neste período, concluiria que três quartaspartes das suas obras publicadas foram em castelhano. A faltade participação de Portugal no extraordinário movimento cien-tífico do século XVII, fez com que a actividade intelectual se des-

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    pendesse em um exercício disparatado da retórica, que vicioutudo, a linguagem, a poesia, o teatro, a história e a própria elo-quência do púlpito. As academias italianas, que de literárias seconverteram em científicas no século XVII , na Espanhaimobilizaram-se em tertúlias e com esse carácter se reproduzi-ram em Portugal 2. Sob a influência do culteranismo,  a poesia lí-rica retoma os velhos metros de redondilha, e Sá de Miranda, ovenerando chefe da escola italiana, é lido, estudado e imitadona sua parte antiquada, nas cartas em quintilhas de medida velha.E aqueles mesmos que voltavam aos metros de redondilha, do

    lirismo espanhol, não achavam emprego mais azado para as re-dundâncias e equívocos de linguagem do que as novelas pasto-rais do gosto italiana contra o qual reagiam inconscientemente.

    Os críticos italianos Bettinelli e o jesuíta Tiraboschi acusavamo mau gosto ou o conceptismo  na literatura italiana devido aocontágio de mau gosto ou culteranismo,  do tempo da dominaçãoespanhola; replicaram-lhes fortemente o abade Andrés e o jesuí-ta Lampillas. Porém, esse carácter artificioso e falso da expres-

    são literária predominava também em Inglaterra e França; do quese pode concluir, que essa perversão do gosto literário resulta-va do estado geral da mentalidade de uma época. Escreve omarquês de Valmar, na sua  História Crítica da Poesia Castelhana noSéculo XVIII: «Por aqueles mesmos tempos em que se achava tãopreponderante em Espanha a poderosa mania do  gongorismo,Inglaterra, cujas influências de raça, de clima e de costumes di-ferem tão essencialmente das influências análogas de Espanha,

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    2 No século XVII desenvolveram-se as academias particulares em casa dosfidalgos e pessoas opulentas; precederam, assim, a existência oficial, quedando-lhes importância social também lhes imprimia o cunho do pedantismocom que ficaram. Em volta de Ménage, reuniam-se vários amigos àssegundas-feiras para palestras literárias; nesta espécie de academias, em que

    figuravam Chapelain, Bautru, Furetière, Perrault, Galland, o nome por ondeeram conhecidas era o de mercuriais (mercredi); também se celebravam academiasem casa do abade Dangeau às terças-feiras (mardi, dies Martis) e chamavam-sepor isso marciais; as que se celebravam no palácio da rainha Cristina da Suécia,eram às quintas-feiras (jeudi, Jovis dies) e eram denominadas  joviais. O célebrepalácio de M.lle Rambouillet era também uma academia aristocrática, que ditavaleis ao gosto e ao estilo literário.

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    achava-se inundada pela torrente do eufuísmo,  algaravia simbóli-ca, composta de metáforas e conceitos, que podiam disputar aosconceptistas italianos e espanhóis a palma da extravagância. Es-cassos seriam então os influxos e comunicação recíproca das li-teraturas inglesa e castelhana, e não obstante isso, fere a aten-ção a semelhança dos desmandos em que ambas caíram,caminhando ao que parece por distinto rumo. O famoso JohnLyly foi em Inglaterra o legislador do estilo metafórico e figu-rado, como o foi Gracian em Espanha, como o foi na Itália oconde Manoel Thesauro no seu Cannocchiale  Aristotelico. O pedan-

    tesco livro de Lyly Euphues and his England,  ainda que de formadiferente, é digno companheiro da  Agudeza y Arte de ingenio,  eoutros códigos do estilo culto.

    A causas gerais, que se observam em certos períodos dahistória literária de todas as nações, e não a influências deter-minadas e locais, se devem atribuir os grandes vícios que emtempos infelizes alteram e depravam as letras. […] o eufuísmo  deInglaterra, o conceptismo de Ledesma, o culteranismo de Góngo-

    ra, as primorosas e cortesãs subtilezas do cavallier Marini, a afec-tação da Pleyade  francesa do tempo de Luís XIII, e ainda o bel--esprit das Précieuses do Hotel de Rambouillet, e da refinada cortede Sceaux, têm afinidades incontestáveis, laços visíveis, que asirmanam e confundem.» 3

    Falando da influência da Espanha sobre a literatura france-sa, Baret precisa as causas imediatas: «A Espanha afinal pacifi-cada, reunida desde 1492 em um conjunto potente, ganhou o

    tempo que nós perdemos a lutar contra os Ingleses e mais tardenas nossas longas discórdias religiosas.» (Les Troubadours, p. 286.)«Em França, especificadamente, esta preponderância durou

    perto de um século. Formar-se-ia uma biblioteca com os livrosespanhóis traduzidos em francês, desde a batalha de Pavia atéao cativeiro do rei de França em Madrid, até Voltaire, que imi-ta, sem o dizer, os trocadilhos e as cartas de Quevedo, e deAntónio Peres; até Balzac, que copia frases castelhanas; até Cor-

    neille que deu o primeiro exemplo da comédia de carácter, tra-duzindo no  Menteur  a Verdad sospechosa, de Alarcon; até Molière,

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    3 Op. cit., vol. I, pp. 7 a 9, Madrid, 1893.

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    que tomou aos espanhóis o assunto do  Medecin malgré lui,  doDon Juan e da Princesse d’Elide;  até Lesage, que tanto se aprovei-tou deles na composição do Gil Blas,  que o P.e  Isla, vivamentemas inutilissimamente reivindicou para a Espanha esta obra-prima;por último, até Beaumarchais, que no Barbeiro de Sevilha  se inspi-rou tão felizmente do movimento, do brio,  para empregar o ter-mo espanhol, que caracterizam de uma maneira tão notável ascomédias de Lope de Vega.» (Ib.,  p. 287.)

    «Apesar da afirmação de Voltaire e do trabalho de lordHolland, as tiradas mais eloquentes do Cid  de Corneille, estão

    com as mesmas palavras no Cid de Guilhem de Castro, expres-sas em uma linguagem igualmente bela; que, mesmo na cena emque se encontram o pai e o filho, o autor espanhol está acimado trágico francês.» (Ib., p. 288.)

    Baret também determinou um paradigma castelhano no Po-lyeuete  de Corneille: «É com um vivo interesse e assombro querecentemente descobrimos que uma das cenas mais animadas datragédia de Polyeuete  se acha em germe na cena análoga da Es-

    trella de Sevilla  de Lope de Vega.» (Ib.,  288.)Baret explica as causas sociais que determinaram a influên-cia da cultura espanhola em França no século XVII: «Vê-se a Es-panha activa e estreitamente envolvida nos negócios da França,no século XVI. A Espanha pesa sobre nós com o seu ascendente.Por um momento alentou a esperança de assentar a infanta Cla-ra Eugénia no trono de S. Luís. Guerras, tratados de paz, alian-ças matrimoniais, unem ou misturam os dois povos. A necessi-

    dade de saber o castelhano fazia-se sentir, principalmente nacorte. Multiplicam-se as gramáticas. Brantôme, que acompanhoua Madrid a filha de Henrique II, é muito familiarizado com ocastelhano, e vê-se nas suas narrativas a corte dos Valois muitopreocupada da literatura castelhana. Em 1615, Cervantes podiadizer no prefácio de Persiles e Segismundo:  ‘En Francia, ni varon nimujer deja de aprender la lengua castellana.’ Efectivamente, M.me  deMotteville em um opúsculo dirigido a M.lle  de Montpensier, in-

    voca autoridades espanholas e italianas, citando textos sem ne-nhuma explicação ou comentário.» 4  É ainda por circunstâncias

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    4 Les Troubadours, p. 321.

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    políticas que o teatro espanhol se revela à França; a rainha Ma-ria Teresa levou para Paris em 1661 a companhia de Sebastiãode Prado, que se demorou doze anos, representando com ascompanhias italianas e de Molière no teatro do Palais Royal, eno do Petit-Bourbon. Baret chega a afirmar: «A grandeza do rei-nado de Luís XIV é em muitos aspectos um reflexo da grande-za castelhana, cujo abaixamento ninguém acelerou mais do queeste monarca. Espanta-nos que esta observação escapasse à saga-cidade de Voltaire, tão conhecedor em outros pontos. — É certoque a pompa desta corte, que não foi sem influência sobre o

    estilo de Racine e de Bossuet, este gosto de festas, o própriocarácter destas festas, os brilhantes carrousels,  as danças e os es-pectáculos nos jardins de Versailles, para os quais Molière com-punha improvisos, Luís XIV com certeza os tomou da Espanhapor intermédio de sua mãe, a nobre Ana de Áustria, uma dasmais completas, das mais amáveis personificações do carácter es-panhol que se possa imaginar.» 5

    As liberdades de elocução poética, chamadas o culteranismo,

    tanto na Itália, França, Inglaterra e Espanha, que caracterizam oséculo XVII  não são uma perversão na literatura, mas sim refor-ma ou renovação desordenada e mal compreendida. A reacçãoque se operou nas ideias filosóficas pelo cartesianismo contra oformalismo da escolástica também se reflectiu nas doutrinas li-terárias na célebre questão da querela dos antigos e modernos  e noabandono da Poética  de Aristóteles. Dizia o barão Taylor nocongresso histórico de 1840: «A mesma reacção que se opera

    contra a antiguidade filosófica, não tarda a manifestar-se contraa antiguidade literária, e a Poética  de Aristóteles é atacada comtanta vivacidade como a Lógica.  Perrault, Lamothe e Fontenellesão os campeões das ideias modernas, e ouso dizê-lo, apresen-taram melhor a fórmula romântica, do que a escola actual, doque o próprio Chateaubriand, que quis fechar a literatura no ciclocristão. A literatura deve ser a expressão de uma sociedade in-teira, e não apenas de uma das suas faces. Não há somente o

    elemento cristão no mundo moderno, posto que nele ocupe um

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    5 Ib., p. 329.

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    lugar importante; há também o elemento bárbaro e, sobretudo,o elemento grego e romano, por que nós somos filhos da Gré-cia e de Roma. Quem nos libertará dos Gregos e Romanos?, diz--se frequentemente. Ninguém, porque não se pode eliminar umaporção do nosso ser. Importa não circunscrever a literatura nocampo do cristianismo; ficaria incompleta. Digo, portanto, queos românticos do século XVII  compreenderam melhor a questãodo que os românticos do século XVIII. Eles sustentaram que ossentimentos, as ideias contemporâneas, eram superiores aos sen-timentos e ideias dos antigos; consequentemente, que a literatu-

    ra devia deixar estas para exprimir aquelas, e que apresentar emcena os heróis de Homero com as suas paixões e os seus costu-mes, era fazer recuar o mundo à queda de Tróia, isto é, trêsmil anos. Compreendiam a lei do progresso, e queriam que omundo literário lhe fosse submetido como o mundo filosófico;eles tinham evidentemente razão.» 6

    1.º OS POETAS LÍRICOS

    Acentuam-se dois aspectos no lirismo seiscentista; uma vivacompreensão do estilo camoniano,  continuando-o com felicidade,conciliando-se com a renovação das formas velhas da redondi-lha agora admiradas na primeira fase mirandina.  Estas duas cor-rentes do gosto quinhentista suscitaram os antagonismos entrecamoístas e tassistas, pela preocupação da linguagem figurada, das

    imagens deslumbrantes e fantasiosos tropos, prevalecendo noslíricos culteranistas os romances assonantados, amorosos, místi-cos, picarescos e granadinos, na epopeia a narrativa dos falsoscronicões, e no teatro, a comédia famosa de capa e espada. Nestaincoerência estética, salvaram-se as verdadeiras organizaçõespoéticas, vegetando nesse sincretismo uma efémera eflorescênciade mediocridades, meramente aproveitáveis quando conduzema alguma inferência histórica.

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    6 Congrès historique (IXme), p. XVIII, Paris, 1843.

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     A) OS LÍRICOS CAMONIANOS

    FRANCISCO RODRIGUES LOBO

    Este incomparável poeta, que no fim do século XVI, sob adepressão do sentimento nacional, e no derrancamento do gos-to das pastorais italianas, brilha com a verdade da sua inspira-ção a par de Bernardim Ribeiro, de Cristóvão Falcão e de Ca-mões, é um fenómeno que só se compreende pelo meio em quefoi nascido e criado e pela realidade de uma emoção amorosa.

    Lereno,  como o poeta a si se chama, formando este nome deLeiria, descreve a terra que é verdadeiramente uma arcádia emque a vida rural não carece de ser imaginada, em que os qua-dros idílicos são todo o ambiente em que se respira e a vistaalcança. É dali que ele tira todas as suas representações objecti-vas e os lances da vida sem artifício ou convencionalismo bucó-lico. As primeiras linhas da Primavera revelam esse meio que ofez poeta: «Entre as fragosas montanhas da Lusitania, na costa

    occidental do mar Oceano, onde se vêem agora com maior no- breza levantadas as ruinas da cidade antigua Colippo, ha umespaçoso sitio partido em verdes outeyros e graciosos valles, quea natureza com particulares graças povôou de arvores e fontesque fazem n’elle perpetua primavera, em meio do qual se levantaum monte agudo de penedia, cercado como ilha de dois rios,que pela fralda d’elle vão murmurando, até que ajuntando-se noextremo da sua altura levam ao mar em companhia a vagarosacorrente, e assim da parte do rio Lis,  que na copia das aguas éprincipal, como pela do claro Lena,  que escondido entre arvore-dos faz o caminho, é cultivada a terra de muitos pastores, quen’aquelles vales e montes apascentam, passando a vida conten-tes com seus rebanhos e com os fructos que a terra em abun-dancia lhe offerece […]. Aqui aonde Amor costuma conservar seusenhorio, mostrava cada dia maiores effeitos d’elle […]. Uma en-

    trada do verão, quando pelo costume dos naturaes do valle epor ajuntamento de outros pastores estrangeiros que alli traziamseu gado pela abundancia dos pastos d’aquella ribeira, havia entretodos muitos exercicios de alegria costumados dos pastores, comoeram musicas em porfia, duvidas amorosas, bailes e luctas detoureiro e outros jogos, em que havia na montanha guardado-

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    res estremados. Lereno,  que na musica a muitos do valle tinhavantagem, um dia, que com o novo sol sobre os floridos ramos,começavam as aves a celebrar a entrada do Verão e as aves e

     boninas a se levantar da terra […] escolhendo um logar aparta-do, a que o inclinava a propria condição, se foi assentar juntode uma fonte que está perto do rio, á sombra de um alto frei-xo, entre duas faias, e alli cantou.» Era a iniciação do seu géniopoético, suscitado pela entrada do Verão,  como os apaixonadostrovadores cantando pela  reverdie;  e esta precocidade, que cedodistinguia o jovem Lereno, floresceu esplendidamente pela psi-

    cose de um amor exaltado, que foi o tema exclusivo da sua obraliterária. A beleza dessa idealização subsiste, por si, mas melhorse aprecia determinando a realidade que lhe dá um relevo ob-

     jectivo. Os efeitos desse meio no desenvolvimento da organiza-ção poética de Francisco Rodrigues Lobo ainda hoje são verifi-cáveis; são esses os sítios  da perspectiva pitoresca de Leiria, empermanente idílio natural, mas para aspirar a atmosfera moralda floração psíquica de Francisco Rodrigues Lobo, que vivifica

    toda a sua poesia, importa pedir à sua obra a revelação do mis-terioso amor. A terra, que lhe foi berço, esclarece o espontâneo bucolismo em que despendeu o seu temperamento artístico; sóo misterioso amor realça a beleza e sentido dos versos, admira-dos apesar de se acharem velados estranhamente.

    Por circunstâncias das tremendas crises sociais e políticas defins do século XVI  e começos do XVII, ficaram ignoradas as prin-cipais datas da sua vida: são elementos para essa reconstrução

    as referências de escritores contemporâneos, as tradições literá-rias colhidas pelos bibliógrafos Nicolau António, Barbosa Macha-do e o bispo do Grão-Pará Fr. João de S. José Queirós, com oselementos pessoais que se encontram pela sua obra, como o sin-cronismo das individualidades preponderantes contemporâneascom quem conviveu. Pela coordenação de todos estes esparsossubsídios, a vida do inspirado poeta é um verdadeiro poema.

    1.º Nascimento, mocidade e amores de Francisco Rodrigues Lobo(1579 a l604) — Na cidade de Leiria, que ainda no fim do séculoXVI  conservava os vestígios da sua cultura intelectual, onde até1496 a tipografia hebraica ali fundada pelos Soncinos, publicavaobras como o  Almanach  de Zacuto, e a versão da novela do

     Amadis de Gaula,  nasceu Francisco Rodrigues Lobo, que poetas

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    satíricos feriam vilmente denunciando-o por cristão-novo. Foramseus pais André Luís Lobo 7 e D. Joaquina de Brito Gavião, abas-tados, nobres, em boas relações com as famílias fidalgas,proporcionando-lhe condições para adquirir uma superior cultu-ra na Universidade de Coimbra e poder renunciar ao exercíciodas honoríficas e rendosas funções públicas. A data do seu nas-cimento em 1579 é pelo poeta apontada na dedicatória dos seusdiálogos da Corte na Aldeia  a D. Duarte, irmão do duque de Bra-gança, D. Teodósio, justificando o título do seu livro: «e se al-guem julgar por atrevido tratar de cousas de  Côrte, nascendo em

    edade em que já a de Portugal era acabada». Evidentemente neste tre-cho referia-se à catástrofe de Alcácer Quibir, em Agosto de 1578,em que o rei D. Sebastião e toda fidalguia da corte portuguesasucumbiram nos areais de África. No ano do governo do car-deal D. Henrique já não havia corte, ocupada por Jesuítas e cas-telhanistas intrigantes exclusivamente. Como essa edição da Cortena Aldeia  de 1619 foi algum tempo tida como hipotética, trans-crevo alguns trechos da dedicatória «Ao Senhor D. Duarte, Mar-

    quez de Frechila e de Malagan»:«Depois que faltou a Portugal a Côrte dos seus serenissimosReys, ascendentes de V. Excellencia […] retirados os titulos pe-las vilas e logares do Reino; e os Fidalgos e cortesãos por suasquintãas e casaes, vieram a fazer Côrte nas Aldeias, e renova-ram as saudades do passado, com lembranças devidas a aquelladourada edade dos Portuguezes, e até V. Excellencia, que na deHespanha podia aventajar de toda sua grandeza, escolheu para

    morada essa cidade de Evora […] cujos cahidos muros e edifí-cios, desamparados Paços e incultos jardins parece que agrade-cidos á assistencia e favores de V. Excellencia resuscitamagora […].

    Com a mesma confiança busca a V. Excelencia esta Côrte na Aldeia composta dos riscos e sombras que ficaram dos cortesãosantigos e tradições suas; para que V. Excellencia a ampare comoprotector da lingua e nação portugueza […].

    E se alguem me julgar por atrevido em tratar de cousas deCôrte, nascendo em edade em que já a de Portugal era acabada,  saben-

    ——————————————

    7 Ratificado pela matrícula de seu filho nas escolas menores em Coimbraem 8 de Outubro de 1594.

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    do que na de V. Excellencia fui muitas vezes favorecido demercês suas e honras, com ellas na do Ex.mo  Snr. DuqueD. Theodosio, irmão de V. Ex.ª […].

    Ante quem em tudo é tão grande, nada o pode parecer se-não esta confiança na benignidade com que V. Excellencia sem-pre authorisou minhas obras.

    Lisbôa, 1 de Dezembro de 1618.»É valiosa esta página em que Rodrigues Lobo nos faz sentir

    como em Leiria se concentrara a aristocracia dos Meneses, apoderosa família, que, como a de Bragança, era aparentada com

    o rei D. Manuel. O Castelo de Leiria, assentado sobre um enor-me rochedo na parte meridional da cidade, e pela parte dopoente a grande muralha, o palácio e a torre de homenagem,tinha então por alcaide-mor D. Manuel de Meneses, que sendo5.º marquês de Vila Real, em 1580 Filipe II, por ele se confor-mar com a sucessão castelhana concedeu-lhe o título de duquede Vila Real. Vivia com grandeza no seu paço ducal com umanumerosa família: D. Miguel Luís de Meneses, 6.º marquês de

    Vila Real, D. Brites de Lara, D. Juliana de Lara, e D. Luís deNoronha de Meneses, que nascera em 1589. O jovem poeta tevemuito cedo relações de convivência com a poderosa família doduque de Vila Real, que sabia apreciar a sua precocidade, dedi-cando ele versos ao já marquês de Vila Real, capitão em Ceuta,e a sua Primavera a D. Juliana de Lara, a qual casada desde 1598,com D. Sancho de Noronha, 4.º conde de Odemira, teria assisti-do à elaboração dessa pastoral, apreciando pelas alusões secre-

    tas o sentido das poesias, dos anagramas pessoais e situações no-velescas. Este meio íntimo e de alta distinção é que formara oque ele exprimiu pelo título de Corte na Aldeia, dado inten-cionalmente a um bom livro enciclopédico-moral. O aspecto daregião leiriense na sua beleza idílica também acorda as recorda-ções cavalheirescas ostentando o forte castelo fundado sobre umrochedo contíguo à cidade, com a bem conservada torre dehomenagem. Esse castelo ainda tinha alcaide-mor, cargo que no

    tempo do rei D. Manuel andava na família dos Barbas de Alar-do, da casa do Amparo, e por D. João III passado ao marquêsde Vila Real, seu parente dilecto. Havia antagonismo senhorialentre os Barbas e os Meneses, voltando depois das execuções pelaconjuração de 1641 a alcaidaria-mor do Castelo de Leiria aosBarbas de Alardo. Na mocidade de Francisco Rodrigues Lobo,

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    era D. Manuel de Meneses, 5.º marquês de Vila Real o alcaide--mor do castelo, e pela sua adesão à causa de Filipe II nomeadoduque de Vila Real, vivendo no seu palácio junto do rio Lis,diante do campo chamado do Rossio. Em 1588 fundou a ermidade N.a  S.ra  da Encarnação, com confraria, visitada aos sábados,cantando-se a Tota Pulchra,  a órgão, e com a devoção de umaromaria; a filha do fundador, D. Brites de Lara, era a juíza. Rezao nobiliário de Rangel de Macedo que esta dama casara comD. Pedro de Médicis, irmão do grão-duque de Florença, o qualpouco depois se ausentou para Castela e lá morreu, reco-

    lhendo-se ela ao convento de Jesus de Aveiro. O filho do du-que de Vila Real, D. Miguel Luís de Meneses, militou em África,sendo capitão em Ceuta. A ele dedicou Rodrigues Lobo um ro-mance, impresso na sua colecção de 1595 (fl. 54):  A la primera,corrida que hizo en Ceuta el Marquez de Vila Real.  O poeta facetoD. Tomás de Noronha, que celebrou em um soneto burlesco Ro-drigues Lobo, achava-se também em Ceuta servindo sob o go-verno desse seu parente e dirigiu-lhe umas oitavas, pedindo-lhe

    os dez mil réis que lhe prometera:E a pobreza de amigos espantalho,Mal cruel, que até de lei carece,Não sinto eu no mundo egual trabalho,

    Sabe-o só o triste que o padeceQue se pera me livrar d’ella me valhoD’aquella mão que se me offerece

    Com os dez que promettestes, meu senhor,Sois principe,  sois rei e imperador. 8

    O poeta aludia ao parentesco real do capitão de Ceuta, netode D. Brites de Lara, prima do rei D. Manuel. Rodrigues Lobo,de uma família opulenta, lisonjeava-o pela bravura, pelo heroís-mo dos Meneses; e a sua entrada no paço ducal, manifesta-sena dedicatória da Primavera  a D. Juliana de Lara, condessa de

    Odemira, sua irmã. Ainda um outro filho do velho duque de Vila

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    8 Poesias Inéditas, de D. Tomás de Noronha, p. 44.

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    Real, D. Luís de Noronha e Meneses, nascido em 1589, e dego-lado aos 52 anos, pela Conjuração de 1641, manteve a amizadecom Rodrigues Lobo, a quem, segundo tradição, confiara a edu-cação de seus filhos. Diante deste esboço genealógico é que vema impossibilidade de determinar os misteriosos amores de Le-reno segundo a tradição como ela chegou ao bispo de Grão-Pará,que a consignou nas suas  Memórias:  «Este poeta é excellente emo lyrico, ainda que o primeiro se concede em Hespanha ao nos-so Jorge Montemayor,  Morreu afogado no Tejo,  e foi enterrado emS. Francisco da Cidade na capella dos Queimados. Morrendo

    dizia talvez inspirado de melhor nume:Formoso Tejo meu, quam differente…

    Queira Deus tivesse n’aquella corrente a de lagrimas parachorar quanto tinha cantado nas ribeiras do Liz e Lena nos loucos amoresda aia ou Dama do palacio do Duque de Caminha em Leiria, se não

     foram mais altos seus pensamentos,  que emfim, se não for de Icaro,

    pareceram de Phaetonte no sitio da sepultura.» 9Sob esta revelação súbita, do fim do século XVIII, anotou

    Camilo Castelo Branco: «Eis aqui uma evidente novidade bio-graphica; eu de mim não sei de outro auctor. Com estas inducções

     póde ser que um agradavel estudo nas poesias de Lobo colha algumasreferencias.» Camilo achou-se em condições excepcionais para rea-lizar esse estudo, porque possuiu uns magníficos manuscritos deFrancisco Rodrigues Lobo 10, onde com certeza deviam encontrar-se

    dedicatórias a personagens da família ducal de Vila Real e deCaminha. Infelizmente extraviaram-se da sua mão esses manus-critos.

    ——————————————

    9 Memórias do Bispo do Grão-Pará Fr. João de S. José Queirós, p. 124, edição de

    Camilo.10 Em carta de 29 de Novembro de 1866 escrevia Camilo ao visconde deAzevedo, fervoroso bibliófilo: «Estou de pósse de uns magnificos manuscriptosde Francisco Rodrigues Lobo. Tenciono publical-os. O pobre Visconde de

     Juromenha deu como ineditas de Camões poesias que eu tinha no meu codicede Rodrigues Lobo. Que deploravel edição a do Visconde de Juromenha!»( A Revista, ano III, n.º 5, p. 65, Porto, 1908.)

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    A primeira condição para interpretar o sentido autobiográficoou a realidade da emoção amorosa de Lereno  é determinar niti-damente que essa paixão ficou bem definida nos Romances Caste-lhanos  de 1596 e na Primavera  de 1601. Esses loucos amores  visa-vam uma dama do palácio ducal, que não era uma aia, nemduquesa, porque nenhuma existia aí então; contudo, o poetadescreve esse perigoso amor:

    Atrevido pensamento,Não me ponhaes em perigo,Que para ser venturoso

    Não basta ser atrevido.

    Se sahis por levantar-me,Vede quanto atraz me fico,Que para quem não descançaÉ muito largo o caminho…

    Vós tendes culpa de ousado,E eu de todas o castigo.Que nasce só para penasQue das vossas azas tiro.

    Porfiaes com a esperança,E eu com a razão porfio,Té que vencida de todo,Fiquemos ambos vencidos…

    Encolhei um pouco as azasE estae a conta commigo,Que de muito experimentado Já nos males adivinho.

    Fiae-vos no desengano,Vereis se é melhor partidoDe um covarde acautelado,Que de ousado arrependido…

    Contentae-vos, pensamentoSer de uma parte divino,Conhecei minha esperança,Deixareis de ser altivo.

    (Primavera, Floresta V.)

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    E ao atrevido pensamento, o poeta materializa o óbice que osepara da mulher que ama, pelas convenções heráldicas:

    Vae o rio de monte a monte,Como passarei sem ponte?

    É o váo mui arriscado,Só n’elle é certo o perigo;O tempo como inimigoTem-me o caminho tomado.N’um monte está meu cuidado,

    E eu posto aqui n’outro monte,Como passarei a ponte?Tudo quanto a vista alcançaCoberto de males vejo,De áquem fica meu desejoE d’alem minha esperança;Esta, contínua, me cançaPorque está sempre defronte,Como passarei sem ponte?

    (Primavera,  Floresta V.)

    Há aqui a cor local; Leiria estende-se ao longo do Rossio,que a separa do Lis, comunica com a outra margem por duaspontes, uma ao centro e outra ao fim. Como o poeta representapela situação material a ansiedade moral que se conflagra como impossível imposto ao seu sentimento! Na Égloga VII des-creve-nos a altivez e orgulho daquela  a quem elevara o pensa-mento, o que ajuda a definir a situação que ocupava no paláciode D. Miguel Luís de Meneses, que regressara de Ceuta a Lei-ria, onde descansava patriarcalmente:

    Aquella, tão desegualNo trato, modo e cautellasDas mais pastoras, que entre ellas

    Vencia a lei natural;

    Aquella, sempre queixosaPor quem anda entre a gente,A alegria descontenteDe a vêr triste tão formosa.

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    Aquella que por empreza,Por bem poucos escolhida,Despresou glorias da vida

    Pelo gôsto da tristeza.

    Quiz assim minha venturaOu eu quiz o que não tinha,Que veiu a ser cousa minhaPara ser pouco segura.

    Mostrava-lhe eu affeição,

    (Vê tu quem lh’a negaria)Porém nada pretendia,Com receio ou com rasão.

    Metteu-se o Amor de permeioE com o trato costumado,Descobriu-se o meu cuidado,E acabou-se o meu receio.

    Queria-me ou me enganava,Fallava-me a meu sabor,E com mil mostras de amorAtrevimento me dava.

    Creceu n’isto o meu querer,E n’ella com o mesmo effeito,

    Não perde nunca o respeitoNem ella o seu proceder.

    E assim no tempo continoQue segui tão doce emprêgo,Nunca fiz desasocêgo,Sendo Amor um desatino.

    Era emfim esta pastora,

    Ou presente ou apartada,Como os meus olhos amada,Temida como senhora.

    E o que eu sentia mais eraSer-lhe a sorte tão avara,

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    Que em minha fé lhe trocaraA ventura que perdera. 11

    D. Miguel Luís de Meneses, quando regressou de Ceuta,trouxe uma filha natural, chamada D. Antónia de Meneses, comquem vivia no seu palácio em Leiria, ainda celibatário, casandoem 1604, com D. Isabel de Alencastre, filha de D. Teodósio,5.º duque de Bragança, e de sua 2.ª mulher, D. Brites de Len-castre. Vivia D. Antónia de Meneses na alegre desenvoltura damocidade, e nesses passeios à Fonte Quente, onde se ia banhar;nas excursões ao castelo, à ermida da Senhora do Monte e à Se-nhora da Pena, eram ocasiões para encantar pelo seu exotismoo juvenil poeta. No romance em que lhe fala de amor empregao criptónimo, ou melhor, o anagrama de Theonia:

    Ay haze señora miaaun que el ser tu mi señora

    ——————————————

    11 A estas coplas apaixonadas parece referir-se o poeta satírico D. Tomásde Noronha, que estivera em Ceuta sob o governo do marquês de Vila Reale conhecia a sua filha natural:

     A um namorado que quando fallava na Dama não a nomeavase não por Ella, e dizia que era mais formosa quesuas visinhas.

    N’ella só vivo, e morro só por ella,

    Porque ella é muito mais formosa que ellas,E se o contradisser alguma d’ellasMente, remente, sim, por vida d’ella.

    Que eu sei quem ellas são e quem é ella,Que val’ mais que ellas, em que pes’ a ellas;E por isso lhe estão roendo ellasOs calcanhares, com inveja d’ella.

    Uma cousa tem ellas melhor que ella,Que ella é dura, sendo brandas ellas;Por isso ellas tem mais cativos que ella.

    Se ella quer ser mais servida que ellas,Acabe ella de ser já tam aquella,E ficarão as môças todas ellas.

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    tanto abaxa tu valor,quanto llevanta a mi gloria.Theonia  discreta y bela,

    pero bastaba Theoniaque en dezir solo tu nombredigo una hermosura sola,si allá te acuerdas de mi,por mas que el tiempo te esconda,te me hade mostrar Amora estes ojos que te adoran.................................................................

    Que adonde no ay resistencia,ni ay combates ni ay victoria................................................................que aya en Amor impossibles,pues le possible amor dobla…

    O anagrama de Latonia  é empregado pelo poeta no PastorPeregrino  (Jornada VI) e na Égloga IX sob a forma de Dionea;

    Rodrigues Lobo tinha o exemplo de Camões, que na sua primeiraégloga celebrou D. António de Noronha, o seu jovem amigo fi-lho do conde de Linhares, morto em Ceuta, com o nome poéti-co de Theonio.  Francisco Rodrigues, levado pelo gosto dominan-te dos romances maurescos e granadinos, que a escola gongóricaexagerou na sua beleza, descreve os seus amores por essa for-ma da moda:

    Por el  jardin de su padrecorre pisando las floresque de altiva en su hermosurapisalas y no las coge;vestido sayo vaquerode dos mesclados coloresde amarillo y de moradodo moran mil sus razones,y en una vanda que saleal braço dientro de un golpe,en letras de oro esta letra:Ni esperes ni te enamores.Como se fuese possibleque viendo sus perfeciones

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    sin esperança y sin vidalos que la ven no la adoren:........................................................

    Vió la al, passar Albayaldosde en cima el muro y parósepara hier tras otra fierauna que tan fiera corre.

    Esta caça de Aldamiro do romance mauresco repete-se coma zagala dos diálogos bucólicos da Primavera,  em que no bosquedesconhecido «habita um antigo Pastor d’esta ribeira  [de Lis] que

     guardou para o fim da sua edade este descanso  tomando como umasecreta sepultura de sua velhice […]. Eu sou uma filha sua,  queem estes trajes e n’estes exercícios gasto os dias com algumaspastoras, que trago na caça por companheiras» (Floresta VI).É evidente a alusão a D. Miguel Luís de Meneses, marquês deVila Real, quando regressou da capitania de Ceuta e foi repou-sar para o seu palácio à beira do Lis com uma sua  filha natural.Dele se lê no nobiliário de Rangel de Macedo: «Houve de Ma-

    ria Soares ou de D. Maria Soeja, filha de Thomé Lamberto aD. Antonia de Menezes, segunda mulher de D. Carlos de Noronha.»Esta última informação do linhagista revela toda a amargura

    da Égloga VII, de 1605, em que depois de desabafar da ansie-dade que lhe causa «Aquela tão desigual», aquela sempre quei-xosa, termina:

    Hoje soube de certeza

    Que já tinha outro cuidado,Outro pastor,  outro gado,Outro gosto,  outra tristeza.

    Outro têrmo differente,Outra afeição mais galante,Outra fé mais inconstanteOutro amante mais contente.

    O linhagista Rangel de Macedo aponta: que este D. Carlosde Meneses era neto de D. Pedro de Meneses, capitão de Ceu-ta, que os Mouros mataram; «foi grande letrado, deputado edepois presidente da Mesa da Consciencia e Ordem» e em se-gundas núpcias casou com D. Antónia de Meneses,  a  filha naturaldo que mais tarde foi 1.º duque de Caminha, da qual houve dois

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    filhos, um com nome do avô, D. Miguel Luís de Meneses, eoutro D. António de Meneses, que se achou na restauração daBaía e morreu na perdição da armada na costa de França em1627. Nestes rápidos traços genealógicos, vê-se todo o dramapassional de Francisco Rodrigues Lobo que se passa entre operíodo de elaboração dos Romances em 1596 e a composição dasÉglogas  publicadas em 1605. A saída de Rodrigues Lobo paraCoimbra, deixando Leiria, quando estava mais exaltado o seuamor, obedeceria a uma imposição do poderoso e orgulhoso fi-dalgo 12. Esta decepção profunda, em que se achou Rodrigues

    Lobo parece ter enternecido a irmã de D. Miguel de Meneses, acondessa de Odemira D. Juliana de Lara, à qual foi feita a de-dicatória da Primavera,  publicada em 1601. A esta luz é que seesclarece o comovente lirismo de Lereno, tão prejudicado pelasprosas poéticas da pastoral. Um verso sintetiza todo o seu so-frimento: «Quão pouco tempo dura uma alegria!» E que belas einimitáveis as oitavas em que glosou esse esto da alma:

    Passa o bem como sombra, e na memoria

    É maior quanto foi mais desejado,A pena ensina a conhecer a gloria,Não se conhece o bem se não passado;Em mim o caso soube d’esta historia,E no que mostrou já o meu cuidado,Vejo no que não vejo e no que via,Quão pouco tempo dura uma alegria.

    Quanto melhor me fôra se não viraUm enganoso e vão contentamento,Que ainda que faltar-me alli sentira,Era muito menor o sentimento;Mas viu minha alma o bem porque suspira,Foi traz elle seguindo o pensamento,Que como era novel, não conheciaQuão pouco tempo dura uma alegria.

    ——————————————

    12 Lê-se no Oriente Português,  vol. IV, p. 10: «Os orgulhosos Duques deCaminha saíram do cruzamento de um Noronha com uma senhora de CeutaD. Maria Soar, e daí talvez o apodo de  Judeu,  lançado pelos frades de Goa aum dos seus descendentes, o Conde de Linhares Miguel de Noronha, Vice-Reida Índia.»

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    Lá n’uma região muito escondidaDizem que gente humana vive e mora,Que por ordem dos céos não corrompida

    Vê cada dia o sol uma só hora;Bem fôra venturosa a minha vida,Se por esta medida o bem lhe fôraMas tive uma hora só em um só dia,Quão pouco tempo dura uma alegria!

    Foy hora, e foi tão breve, que passou,Qual passar sóe o raio transparente,

    Hora que no comêço se acabou,Para se conhecer depois de ausente.O tempo, emfim, por hora má contou,Que sempre esconde, cega, engana e mente,Mas verdade era o que elle me dizia,Quão pouco tempo dura uma alegria.

    Porém, vós, fados meus, que permittistesQue tão cedo este bem se me acabasse,

    E que tão largas horas e tão tristesUm tão breve momento me pagasse;Não me encurteis o bem com que fugistesPois em tempo não vi quem me alegrasse,Vi-o para me vêr n’esta agonia,Quão pouco tempo dura uma alegria.

    (Floresta VII.)

    No Pastor Peregrino, de 1608, que era uma segunda parte daPrimavera, fala a pastora Enália: «não ha pastora n’esta ribeiraque mereça os cuidados de Lereno; salvo se ainda n’ella habitauma dama na qual elle mostrou que os não tinha por mal empregados.A isto mudou Lereno um pouco de côr, e com simulado es-panto respondeu: — Mais quero eu a bôa conta em que me tens,

    que os cuidados alheios. — Não negues, replicou ella, cousa tãoclara; não era Belisa, mas uma estrangeira, cuja formosura te enle-vou tanto os olhos, que te fez perder o sentido de quem só nos teusempregava a vista apoz si, e como estrangeira no nosso valle aque-lla pastora estava com o desejo de saber quem seria, bem alheiade cuidar que havia outrem que commigo se occupasse» (Jor-

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    nada XI). É alusão clara à dama nascida em Ceuta, D. Antóniade Meneses.

    O epíteto de estrangeira contrastava com a dama leiriense queamava Rodrigues Lobo, e fora preferida pela  filha natural deD. Miguel Luís de Meneses. Este dualismo que veio complicar odrama amoroso de Lereno parece depreender-se da tradiçãoconsignada pelo bispo do Grão-Pará: «os loucos amores por umadama dos paços do duque de Caminha, se não  forão mais altos seuspensamentos». Di-lo na Floresta V da Primavera:

    Deixa, deixa o pasto extranho,Torna ao teu natural;Se não te obriga meu mal,Lembre-te o teu rebanho.............................................................Se como eu vou suspirando,Buscas fugitivo amor,Onde acharás melhor,Que onde elle te anda buscando?

    Quem te negará vontade,Tendo na tua esperança?Se só com uma esquivançaMe compraste a liberdade.............................................................Acharás n’outra ribeiraPastora mais graciosa,

    Mais discreta e mais formosa,Porém não que mais te queira.

    Torna, conhece teu êrro,Deixa ora a terra alheia,Que te quer bem toda a aldeia,Ninguem te quer no desterro.

    (Floresta V.)

    Este dualismo representa-se no Lena, ou arrabalde de Leiria,e no Lis,  em cuja margem era o palácio ducal, em que habitavaa estrangeira, vinda de Ceuta. O desterro, a que alude a quadra,

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    era a partida forçada ou repentina para Coimbra, onde o poetafoi frequentar os estudos menores em 1593 13.

    Na Égloga VI condensa na cantiga do pastor Gil toda aimensa amargura da sua repentina decepção:

    O bem tarda e foge,O mal chega e dura;Para que é ventura,Que não passa de hoje

    A minha alegria

    Vinda por enganos,Tardou-me mil annos,Durou-me um só dia.

    Paga bem injustaFoi a de meu mal,Pois que o bem não valeO que uma dôr custa................................................

    Quem o que ora vêjoVira no comêço?Quem vira o successoAntes do desejo!

    Bem, de males cheio,Ide a quem vos deu;Deixae-me ser meuPois vós sois alheio.

    ——————————————

    13 Sobre esta data, escreve o Dr. Ricardo Jorge: «Apanha-se a continuidadeescolar desde 1594, mas da iniciação universitária de Roiz Lobo aparece aindaanterior. Há a sua matrícula em 1593-94, com certidão e exame a 5 de Outubroem Instituta ( Matrículas 1589-600, vol. III, liv. 5, fl. 37) e prova correspondente

    de curso de duas lições da Instituta desde 1 de Outubro de 83 a 26 de Maio de94 (Provas do Curso de 1594-99, vol. IV, liv. 2, fl. 80 v.°).» Revista da Universidadede Coimbra, vol. II, p. 595.

    Só se admitia à matrícula da Universidade de Coimbra com 15 anos deidade, e portanto, Rodrigues Lobo, matriculado em Outubro de 1593, tinhanascido depois de Agosto de 1578, em que pela catástrofe de Alcácer Quibiracabara a corte portuguesa.

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    Do tempo servidoSó tenho alcançado,Que sois desejado

    Mas não possuido.

    Esperança minhaQue o tempo secou,Vêde em que ficouQuanto de vós tinha?

    Sois árvore verdeQue promette muito,

    Quando vem o fructoNas flores se perde.

    Pensamento leve.A vossa ousadiaSempre lhe eu temiaEsse fim que teve. 14

    Na sua ausência em Coimbra, Lereno exprime a ansiedademoral por estas coplas, que Cristóvão Falcão intercalou no Crisfal:

    Não sei para que vos quero,Pois de olhos me não servis,Olhos a que eu tanto quiz?

    Rodrigues Lobo desenvolve-as em ingénuas quintilhas e comconsciência artística do seu modelo:

    N’outro tempo, mal peccado,Quando eu via o que buscava,Era tão acautellado,

    ——————————————

    14 No seu livro Os nossos Poetas — Melodias Portuguesas,  pp. 38 a 41,publicou a Sr.ª Condessa de Proença-a-Velha a ária em que interpretou comgenial intuição estas estâncias de Francisco Rodrigues Lobo, e que ela cantavacom assombrosa expressão. Naquela obra, que ficou interrompida porcircunstâncias dolorosas, realizou-se a mais perfeita e consciente iniciativa narevelação da melodia portuguesa.

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    Que sendo pastor de gado,Té do gado me guardava;Mas essa antiga alegria

    Nem a tenho, nem a espero,E pois vejo o que não via,Se não fôr por companhia,Não sei para que vos quero?

    Eu vos quiz para chorar,(Mas quem ha que á dôr resista)Que se eu pudera aturar

    Em tanto perder de vistaVós houvesseis de cegar;Poupei-vos como inimigo,Pois para o pranto vos quiz,Tendo-o por menos perigo,Mas servir-me-heis de castigoPois de olhos me não servis.

    Muitas vezes ainda agora,Quando á lembrança me entrego,Desejo por meu socêgoDe arrancar os olhos fóra,E ficar de todo cego;Mas torno a cuidar, emquantoMe lembro o mal que vos fiz,E que agora vos levanto,Como posso offender tanto

    Olhos a que eu tanto quis?

    Outra cantiga de Cristóvão Falcão:

    Partido fiz com meus olhosQue vos não quizessem vêr;Não m’o puderam manter,

    aparece na Primavera sob a forma de imposição da namorada:

    Mandaes-me que vos não veja,Dos olhos que heide fazer,Pois lhe não fica que vêr?

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    Lereno glosa este mote com uma intensidade incomparável:

    Tal a vista me ficou,

    Quando vi vossa figura,Que para o mais me cegou,Como quem ao sol olhouE entrou n’uma casa escura.Vi quanto a vida deseja,Fiz d’ella alegre emprêgoApesar da mesma invejaVós, porque eu me vejo cego, Mandaes-me que vos não veja.

    Um remedio me convinhaContra a sem razão que usais,Que era ver-vos n’alma minha,Mas essa alma onde vos tinha,Nem de vista m’a deixaes.Da alma e de seu poder,Dos sentidos e á vidaOrdenou vosso querer,

    E pois só não sois servidaDos olhos, que heide fazer?

    E pois tudo o melhor levastes,E deixaes-me os olhos sós,Tão cegos como os deixastes,Pois levai-os lhe negastes,Deixae-os ir traz de vós.Pois me souberam ganhar,Quando me soube perderCom o gôsto de vos olhar,Não lhe deixeis que chorar,Pois lhe não fica que vêr.

    Em 1597 apareceu a Sílvia de Lizardo com sonetos, rimas e aSegunda Parte do Sonho de Crisfal «postas  em ordem por Alexan-dre de Sequeira»; começou a revivescência dessas trovas bucóli-cas, que empolgaram a mocidade de Lereno.

    No Desenganado (Discurso II) vêm umas redondilhas assonan-tadas, em que Leontino conta como terminaram os seus amores:

    Fez-me o desejo importuno,Porque não soffre tardança,Sendo assim, que quando obrigaTanto quem foge se enfada.

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    Fugiu-me a bella pastoraCujo nome e cuja casaSoube logo no outro dia,

    Antes que rompesse a alva.

    Rompi com isto o segredo,Em que tinha as esperançasQue o amor sem soffrimentoÉ o fogo que não tem brazas.

    Segui meu desasocêgo,Que serviu de envergonhal-o;

    Pois o pejo de ser vistoInda a quem ama acovarda.

    Eram já meus pensamentosTão claros que alguns tomavamD’elles materia de riso,E elles de desconfianças.

    Temos que esta matéria de riso se explica por uma carta queem estilo faceto escreveu o primo do poeta, Fernão RodriguesLobo Soropita, a instância do negro do abadinho Manuel Soares,à filha do marquês de Vila Real, de quem o negro se enamorou e estavaausente 15.  Era um disfrute do velho primo Soropita, que andava

    ——————————————

    15

    Estas composições de Soropita, que além de excelente poeta lírico eraum espírito faceto, acham-se no cancioneiro ms. Flores várias de Diversos AutoresLusitanos, fls. 95 v.° e 96. Tem a importância de autenticar, que a sátira publicadapelo visconde de Juromenha (Obras, t. V, pp. 307 a 309) achada anónima coma rubrica, Contra Camões por causa do amor da escrava, nunca teve referência aopoeta. Os nomes do preto Luís e da sua negra Luísa é que induziram nesteerro, sobre a lenda propalada por Faria e Sousa. O texto assinado por Soropitaé correcto e mais perfeito do que o anónimo. Fica assim como curiosidadeliterária, servindo para afastar do nome de Camões esta gratuita irreverência.

    DE FERNÃO ROIZ SOROPITA

    CARTA

    que escreveu a instancia do negro do Abbadinho ManoelSoares, á filha do Marquez de Villa Real, de quem

    o negro se enamorou e estava ausente.

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    coligindo as Rimas de Camões; em uma carta inédita, belisca-olevemente: «Contemple vossa mercê qual iria o pastor Lerenon’esta Floresta, Riberas del sacro Tejo.» (Ms.  Flores Várias.)

    D. Tomás de Noronha mofava por essa forma da exaltadapaixão do namorado, que mal roçava pelos quinze anos. Esse ape-lido de Soares lembra o da mãe de D. Antónia de Meneses, nas-cida em Ceuta, e a ternura do negro justificada pela cor triguei-ra da menina. Mas esse papel que acompanha uma elegia, hoje

     bem conhecida por uma errada interpretação de Juromenha, nãopassou de uma sarcástica diversão literária.

    Nas redondilhas de Leontino vê-se o desfecho do seu dra-ma amoroso:

    E inda que meu nascimento,Meu sangue, minha prosapia,Minha riqueza e valiaA tinham como empenhada;

    ——————————————

    Des que jaço nesta terra forma tam daninhas as saudades que seempoleiraram em mim, que não ha pouso (no meu coração) onde ellas nãoesgaravatassem. E como mo tomassem em ôsso, tenho taes mataduras emmeu contentamento, que só Vossa vista como alveitar de meu desejo poderácural-as; porque como Vossa fermosura seja mais reluzente que a mais simples

     bacia de barbeiro e mais clara que agua fresca em caldeirão arcado, de talmaneira se me escancha no pensamento, que se tivera hum fardel de mil vidas,todas descancarara em vosso serviço; mas pois que não tenho mais que sóuma, e essa ainda desencordoada, de todo prazer que d’antes tinha, com ellana palma da mão estou esperando por resposta vossa, que vindo como confiome será mais saborosa que migas de azeite, que agora acabei de comer comsua vez em cima. Entretanto fazei conta que estou a sentir como cordovamesse pellâme e não o será cousa que me desatolle d’esta tristeza, senão essaque espera vossa em reposta d’esta; e não ha mais senão que o Soneto quecom esta vay me custou a cravejar o que Deus sabe; e porque não ficasse cáentre o retraço da manjadoura, me pareceu melhor envial-o n’esta maré poisestá acabado, ainda que não seja para mais que para se ver nelle muito de

    vagar, como em terra de azeite (que fás mais fermosa) o pouco do muito quepor cá passa. O senhor Soneto diz assi:

    Amor por vosso amor me açouta e pinga,e depois de me ter por vós assado,cada vez contra mim mais emperrado,não sei que birras são as que em mim vinga.

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    Quando me dava um favor,Era com taes esquivanças,Que se n’elle me atrevia,

    Com ellas me desconfiava.Sobejou-me a diligencia,

    Que ás vezes faz grande falta,Que como mãe da venturaTive sempre por madrasta.

    Quando com móres extremos,Traz de uma affeição tão larga,Me tinha a mim por seguroCom ter a ella obrigada;

    Um dia, (oh lembrança duraQue ainda me custa cara),Me mostrou com desenganoO tempo a minha desgraça…

    Quando um triste mensageiro, Me disse que era casada,Por meu mal, no prioprio dia A minha Pastora ingrata.

    ——————————————

    O coração que nunqua lhe respinga,as soltas que lhe poz já costumado,que mais emanquecer n’este coitadoque quanto vem do Congo e da Mandinga.

    Assi morro por vós, e tanto em graça

    tomastes esta dôr que me fastia,que não ha quem de mim lembrar-vos faça.

    Até que em tantos dias venha um diaque queixando-me assi de uma almofaçame acabe de estirar na estrebaria.

    DE FERNÃO ROIZ SOROPITA

    ELEGIADe um negro namorado para sua

    negra dama

    Ao som de um berimbáo Luis cantavaas queixas que uma gralha repetiae d’outra parte um côrvo lhe entoava.

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    Fiquei logo sem juizo,Sem côr, sem sangue, sem alma,Que para os mais desatinos

    Oxalá todo faltára.Esqueci-me de mim proprio,

    De minha nobreza e casa,E d’aquelle amor que tinhaQue em doudice se trocára.

    Cheio de mortal venenoDe dôr, de ira e de vingança,Tratei de tirar a vida,A quem me roubara a alma.

    Por matar ao novo esposo,Antes de poder gozal-aNaquella primeira noiteMe armei das primeiras armas…

    Depois de cobrar meu sisoCorrido d’esta vingança,Sentido do que perde,Deixei triste a minha patria.

    ——————————————

    Por sua negra ausente o perseguiaa saudade que ainda hoje o mal trata,e o pensamento n’ella assi dizia:

    — Inda que teu amor me punja e mata,muito mais Você he que cúscus quente,mais gostoso que inhâme e que batata.

    Que em toda a branqua e a negra gentenão ha de formosura mór thezouro,cara não ha que a mi mais me contente.

    ...................................................................................Mas, inda que mofino com meu mal,

    quero bem á primeira caravellaque trouxe negras cá a Portugal.

    Um ferrete me poz para Castella,vender-me póde, e eu o que desejo

    alforria não é, he poder vêl-a.Mas é mui longe do Mondego ao Tejo;todavia eu me dou por satisfeitose esta chegar lá, já que a não vejo.

    Sáe pois a negra voz do negro peito,leve-te o negro amor a negra dama,negra, de quem estou já negro feito.

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    Pelos loucos amores Rodrigues Lobo foi mandado para osEstudos de Coimbra, afastando-o assim das complicações em quese envolvera em Leiria; aparece matriculado nas Escolas Maio-res em 8 de Outubro de 1594. Na segunda parte da Primavera,que tem por subtítulo Campos de Mondego, escreve: «Lereno comos olhos em sua desejada patria que deixava, tomou o caminhopara os Campos do Mondego, para onde o ia guiando o seudestino por entre incultas charnecas, que já lhe mostravam emsua aspereza a differença dos valles e montes em que se cria-ra […] foi caminhando e chegou á ribeira do Arunca, pequeno

    rio, que em graciosas voltas rodeia uma comprida varzea e de-pois se mistura nas aguas do Mondego, digno de eterna memo-ria pelos pastores e pastoras, que n’aquelle tempo o habitavam,aqui chegou o pastor assás cansado mais de suas lembranças que docaminho.»

    Não foi perdido o tempo nessa iniciação da vida estudantes-ca de Coimbra; em 20 de Novembro de 1595 aparece matricula-do no curso dos legistas (separado dos canonistas). A actividade

    mental expandiu-se na elaboração poética que o arrebatava; co-ligiu os seus versos e imprimiu no ano de 1596, na imprensa deAntónio Barreira, em Coimbra, o pequeno volume de RomancesCastelhanos e Portugueses, em que idealiza na forma dos romancesgranadinos a sua paixão por Theonia, D. Antónia, a filha do

    ——————————————

    Que a quem de negra o negro amor inflamma, bem negra he, e bem negra a venturade quem de negra negramente ama.

    Negragem, negrigonia, negregura,negrura, negraria, negramente,negrança, negração, enegradura,

    São e terão em negro sentimentoem quanto em mi durar amor negreiro,negros azos do meu negro tormento.

    E se eu morrer n’este negral matreiroem negra campa e com negras côrespublique a negra causa este letreiro:

    — Luis, retrato negro dos amoresnegros seus, aqui jaz; endurecidaLuisa negra, o fez com negras doresa quem a negra morte foi homecida.

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    marquês de Vila Real. Nas matrículas de 1596-1597, falha o seunome; todos os cuidados foram para os seus versos, primíciasde um extraordinário lírico. Aí representa ao vivo a vida esco-laresca de Coimbra no Romance de Quexas de un Estudiante al

     Amor:

    No me dexara el traidorsolo en rebolver mis librosde Baldo para  Jason,y de Bartolo a Succino,

    llevantando testimuniosa Seyo, Sempronio e Ticio,que son ciertos en el bailecomo negros al domingo,haziendo mis consequencias,sequelas y solepismospara contra la verdadque Dios le tenga en buen siglo.

    (Fl. 15 v.º)

    A vida desvairada das investidas ou troças, o ruído das es-colas com as lições de ostentação e sabatinas da mais capciosadialéctica coimbrã, as aventuras goliardescas, não lhe apagaramas saudades de Leiria, do seu rio Lis, que tirava o nome daforma de um lírio que circundava a cidade. Sofreu a nostalgia

    do torrão natal, que o debilitava:

    Que feias que son mis carnes,que nudos que estan mis huesos;que juban y que çapatostan puestos en el extremo,y que barrete tan malo bueno para dar consejo,que estava tan gastado,y que gastado manteo…

    Não era exiguidade de recursos, porque seus pais eram abas-tados; mas a sobreexcitação da concentração contemplativa, tran-sitando da delicada imitação dos romances granadinos, postos

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    em moda por Góngora, para as formosas églogas, restauradaspelo sabor mirandino. Traduz as ingénuas revelações do seu amorrepresentando-se como el forçado Amete:

    en la galera realque ese moso Amete rigeun forçado al duro remollorando a las aguas dijo:

    Anoguen-se en la mar mis ojos tristesque antes que al mar fuesen eran libres.

    Na Carta aos Romancistas de Portugal mostra em tom facetocomo essa forma de romance granadino tem a sua beleza artís-tica, que lhe deram os grandes génios, e em que se pode expri-mir o sentimento na sua verdade:

    Mis señores romancistas,

    Poetas da Lusitania,Que hurtastes las invencionesA la lengua castellana;

    Bolved a vuestros papelesEntregadlos á la fama,Que donde hay tan buenas plumasNo es razon que falten alas…

    Y a bueltas de un solo VegaDe un Espinel y de  Arriassa,De un Gongora y de un SalinasMil falsarios se llevantan.

    E vai enumerando os tipos ou figuras convencionais dosromances granadinos e turquescos, que já enojavam pela bana-lidade estafada:

    Que se quexa aora  Azarque,Que dando buelta al Alhambra,Con su nombre y sus divisasTresientos azares halla…

    No haremos en PortugalCada domingo unas canas,

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    Ocho a ocho, diez a diez,Pues  Aliatares no faltan.

    No correremos tambien

    El Alhambra, el Alpuxarra,Do estan Daraja y Celinda Adalifa y Celidaxa…

    Quiçá, vestidos de MorosVós querran las Castellanas,Porque saben que cautivosDe ordinario se resgatan…

     Azarques, Celin, Gazul,

     Musa, Zaide y Abenamar,Templad vuestras bandurriasO enristad ya vuestras lanças,

    Y entremes per el ParnassoCon nuestras varas alçadas…

    O fervor dos romances mouriscos cultos data do fim do

    século XVI  para XVII; generalizado pelo génio lírico de Góngora,correspondia a uma recordação das antigas lutas da libertaçãodo solo da Espanha, mas sem realidade histórica: temas conven-cionais, tais como Galvan com amores de uma cativa cristã, jo-gando nos seus jardins com  Moriana, e a cada azar perdendo umcastelo, uma cidade; Bucan resolvendo problemas de requintesamorosos, lutas de ódios entre  Abencerrages e Zegries, dos Gome-les e  Aliatares; a fecundidade dos romancistas castelhanos formou

    ciclos desses personagens fantásticos de Zaide, Abenumeya, Tarfe, Abindarraez, Zulema e  Arbolan.Fernando Wolf é de opinião que estes romances não têm

    carácter árabe. Observa Duran que depois da conquista de Gra-nada se cantaram alguns romances com vestígios de poesia ára-

     be, chegando alguns a entrar na tradição, como este coligido naSerrania de Ronda:

    Por las puertas de CelindaGalan se passea ZaideAguardando que salieraCelinda para hablarle.

    (Duran, Rom. I, p. X, not. 8.)

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    O mesmo na tradição de Trás-os-Montes, apontados porMorais Ferreira 16. Argote y de Molina, cita um Cantar Lastimero,que ouvira cantar aos mouriscos de Granada, de quando a per-deram:

    Alhambra amorosalloran tus castillos;o Muley Boabdil,que se ven perdidos.

    Dadme mi caballoy mi blanca adarga,

    para peleary ganar Alhambra.

    Dadme mi caballoy mi adarga açul,para peleary librar mis hijos.

    Guadix tiene mis hijosGibraltes mi muger,senora Mafaltahesisteme perder.

    En Guadiz mis hijosy no en Gibraltar,senora Mafaltahesisteme errar. 17

    ——————————————

    16 É característica esta versão de Miranda:

    Passeaba-se el rei mórePo’ las rues de Granada,Co’ l’ resplendor de l’ solLe relhumbrava la spada.

    Passeie-se l’ rei,Nós puode dormir,Pensando ne l’ biêQue l’ ha de benir.

    (Romanceiro Geral, t. II, p. 327.)17 Fl. 129 v.°, Conde de Lucanor.

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    Ainda modernamente se ouvem cantares alusivos a Córdovae Granada, repetidos pelo povo em Tânger, Tetuão, Arzila e emoutros pontos do Norte de África 18. O gosto já se cansava comtanta Zaida e Adalife e o próprio Góngora protestava desmas-carando os versejadores:

    Ah mis señores Poetas,descubran-se ya esas caras,desnudense aquesses Moros,y acabense essas Zambras,Vayase con Dios Gazal,

    lleve el diablo a Celindaxa…

    Rodrigues Lobo, que mostrara nos seus tentames como sen-tia a beleza do romance, previu a sua transformação no géneromadrigalesco:

    Ahi nos queda el padre Tajo,Do tantas caras se lavan,Que de Moros convertidosPensaes que ganados guardan............................................................

    avia sido no ZegriDe los noblos de Granada,Que Amor convertiu en zagal,y hizo un rabel de la lança.

    O poeta pagou o seu tributo ao prestígio dos romances gra-nadinos e imitação dos belos quadros de Góngora e reconhecidaa beleza da redondilha adoptou-a renovando a égloga mirandi-na e as graciosas trovas de cancioneiro. Era um talento espontâ-neo e fecundo com intuição artística que lhe disciplinava o tem-peramento.

    Argote y de Molina, no Discurso sobre la Lengua Castellana, na

    sua edição do Conde de Lucanor, apreciando a beleza da redon-dilha, desconhece que é uma forma comum na poética das lín-

    ——————————————

    18 Gayangos e Vedia, comentando Ticknor, cap. VII.

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    guas românicas: «Leemos algunas coplillas italianas antiguas eneste verso, pero el es proprio y natural de España, en cuya len-gua se halla mas antigua que en alguna otra de las vulgares, yassi en ella solamente tiene toda la gracia, lindez y agudez quees mas propria del ingenio español, que de otro alguno. — Enel genero de verso al principio se celebravan en Castilla las ha-zañas y proezas antiguas de los reys, y los trances y successosassi de la paz como de la guerra, y los hechos notables de loscondes, caballeros y infançones como son testimonio los Roman-ces antiguos castellanos, assi como el de lo Rey Ramiro, cuyo prin-

    cipio es: Ya se assienta el Rey Ramiro.» (Op. cit., fl. 127, ed. 1642.)No século XVI  tornou-se o romance popular uma forma literária,em que a prosa dos cronicões era metrificada para substituir osromances velhos, apenas imaginosos; di-lo Lope de Sepulvedana colecção de Romances sacados de várias Histórias, no prólogo:«para aprovecharse los que cantarlos quisieren, en logar deotros muchos que yo he visto impressos y de muy poco fruc-to» (fl. 3 v.º).

    A luta contra a introdução dos versos italianos foi renhida;os bucolistas chamavam ao verso octossílabo humilde e rasteiro.Lope de Vega, com a autoridade do seu grande nome, decide-sepelo verso nacional, e escreve o poema de Santo Isidro para ofazer valer em um assunto religioso: «y de ser en este generoque ya los Españoles llaman humilde, no doy ninguna, porque nopienso que el verso largo Italiano haga ventaja al nuestro; quesi en España lo dizen, es porque no sabiendo hazer el suo, se

    passan al estrangero, como mas largo, y licencioso; y yo sè quealgunos Italianos embidian la gracia, difficultad y sonido denuestras redondillas, y aun han querido imitallas, como lo hizoSeraphino Aquilano […]. Llamando a nuestras coplas castellanasBarzeletas, ò  Fretolas, que mejor las pudiera llamar sentencias, yconcetos, desnudos de todo cansado y inutil artificio, que cosaiguala á una redondilla de Garci Sanches, ò Don Diego de Men-doça; perdone el divino Garcilasso, que tanta occasion dio para

    que se lamentasse Castillejo, festivo y ingenioso poeta castella-no, a quien parecia mucho Luis Gualvez Montalvo, con cuyamuerte subita se perdieron muchas floridas coplas de este gene-ro, particularmente la traducion de la  Jerusalem de Torcato Tas-so, que parece que se avia ydo á Italia á escrivirla para meterleslas higas en los ojos. Maravillosas son las estancias del excelente

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    portugués Camões; pero la mejor no yguala a sus mismas Redon-dilhas» 19.

    Pelo registo das matrículas e graus sabe-se que FranciscoRodrigues Lobo frequentou no ano de 1597 a 1598 o segundoano de Leis; mas já em Junho havia ameaços da peste, oficiandoos vereadores de Torres Vedras aos governadores do reino paraacudirem com socorros às povoações próximas; Fr. Luís de Sou-sa, referindo o terrível sucesso, aponta entre as terras já ataca-das Leiria; Lisboa recebeu os primeiros assaltos em 25 de Outu-

     bro de 1598, estabelecendo logo um desterro ou hospital sobre a

    ribeira de Alcântara, continuando o desenvolvimento da pesteaté 8 de Setembro de 1599, tendo sido de 20 227 o número dosatacados e 13 861 os falecidos.

    Em Coimbra começou a debandada dos estudantes antes daterrível visita; Filipe III assinou uma provisão abonando o ano atodos os estudantes que se tivessem mantido em Coimbra.A universidade representa em 19 de Dezembro de 1598 para serfechada, vindo a ordem em 12 de Maio de 1599.

    Francisco Rodrigues Lobo saiu ainda em fins de 1598, indocompletar a frequência do ano ao Mosteiro da Batalha, fazendoo curso na aula de Fr. Nicolau da Ressurreição, onde «leu 9 mezesde 98 a 99». O assalto da peste a Coimbra deu-se em Janeiro de1599 20, como consta do Livro das Vereações, de 23 e 26 de Ja-neiro; a peste propagou-se rapidamente, e abandonada de todosos socorros a gente de Coimbra foi pedir ao bispo D. Afonso deCastelo Branco para se arvorar em provedor-mor, mas achou-se

    de todo impotente. Abriu-se um adro da peste no campo da Er-mida de S. Sebastião no Alto de Santo António dos Olivais, ondese recolheram mais de 2000 atacados, sendo vitimados 1000.Estendia-se a peste para Aveiro, Vila Nova de Gaia, Porto, Gui-marães, Mirandela e Vila Real.

    No meio destes abalos Rodrigues Lobo ia trabalhando nodelicioso livro das suas églogas; a VI é precedida de uma epís-tola em tercetos, com rubrica: «Carta que o Autor escreveu a um

    amigo que estava fugido da peste em uma quinta sua, com a Égloga

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    19 Santo Isidro, «Prólogo», p. 3, ed. Barcelona, 1608.20 Vieira de Meireles, Epidemologia Portuguesa, p. 105.

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    seguinte que compôs no mesmo tempo.» Era dirigida ao seu grandeamigo Paiva, que poderemos sem trabalhosa hipótese conside-rar Diogo de Paiva de Andrade, o erudito autor do CasamentoPerfeito:

    Vós, que a verdade vêdes mais ao perto,Acceitae, Payva illustre, o meu cuidado,Que vae qual soffre o mal d’este deserto.

    No começo da carta descreve o estado dos espíritos ante atremenda fatalidade:

    Cá n’este monte esteril, sêcco e altoPara onde vim fugindo do castigo,Que em tantos montes deu tão grande assalto;

    Á vista do destroço e do perigoQue me ameaça, estou continuamenteFazendo estreitas contas só commigo.

    Mas até n’este estado descontente

    Aonde não tem logar outra lembrança,Sempre, senhor, na minha estaes presente.

    Passados anos, quando escrevia a Corte na Aldeia, ainda alu-dia à grande mortandade da peste de 1598: «Pois se é caso emque um historiador queira passar adiante como Ariosto, nãomatou mais gente a peste grande em Lisboa, que Rodomonte nosmuros de Paris.» (Ed. 1722, p. 8.)

    Aparece o poeta matriculado em 15 de Março no curso de1599 a 1600, 5 de Fevereiro de 1600 a 1601 e 20 de Outubrode 1601 a 1602; recebe o grau de bacharel em 13 de Maio, pre-sidindo o reitor Afonso Furtado de Mendonça, e padrinhoD. António da Costa. Teve no acto de formatura, em 21 de Maio,por padrinho o Dr. Jerónimo Pimenta, lente da Universidade,desembargador do paço, chanceler-mor do reino, que era sobri-nho do poeta Diogo Bernardes 21.

    Enquanto Rodrigues Lobo se conservou em Coimbra até1602 teve íntimas relações literárias com o afamado teólogo

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    21 Instituto de Coimbra, vol. 57, p. 767.

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    Dr. Fr. Luís de Souto Mayor, o autor do volumoso comentáriolatino do Cântico dos Cânticos;  o carácter de uma égloga pastoril,que apresenta esse poema bíblico, que então se interpretava comoa alegoria da Igreja e seu esposo Jesus, aproximariam o velhocatedrático que fora ao Concílio de Trento por ordem de D. Se-

     bastião do jovem poeta, que sentia intuitivamente a beleza hu-mana do livro dos cantares. Pode ser mesmo que estas relaçõesliterárias sugerissem o entusiasmo para a composição das dezéglogas, de estilo e escola mirandina, quando já o seu gosto oimpelia para a novela pastoral em prosa, tão deliciosamente ini-

    ciada com a Primavera em 1601. Foi em 1598 que Fr. Luís de SoutoMayor imprimiu o seu comentário, por indicação de Filipe II, àcusta de um empréstimo de 3000 cruzados feito à Universidade,que nunca pôde pagar, porque a obra soporífera não teve com-pradores nos vários conventos, e uma quase totalidade dosexemplares perdeu-se em 1606 em um naufrágio. Na exigênciada Junta de Fazenda da Universidade, houve várias consultas àMesa da Consciência e Ordens, e Fr. Luís de Souto Mayor teve

    de recorrer ao perdão da sua dívida atendendo, que desde 1563,que exercia o magistério, até àquela data de 1610, não receberanenhum favor da Universidade. 22

    A este reputado teólogo que fora leitor em Lovaina é queFrancisco Rodrigues Lobo dedicou a sua Égloga I, acompanhadade uma carta datada de Leiria, a 25 de Junho de 1604. Aí reve-la as relações literárias que mantiveram: «Estes Pastores, a queo favor de V. P. fez atrevidos, sendo de seu nascimento descon-

    fiados, avendo que devem muito á natureza, se queixam daseleições da ventura e de quanto valem seus bens na opinião domundo; e posto que quem com tanto cuidado despedia todas ascousas d’elle se pode mostrar alheio até d’esta lembrança, se V. P.a não tiver das boas artes, e não fizer caso dos bons engenhos,a quem se accolherão elles n’este Reyno, tão desacostumado aosfavorecer, que ainda os soffre de má vontade; assim assegura-mea que V. P. sempre mostrou de honrar meus escritos, e eu es-

    quecido do premio e louvor d’elles não o quero maior que se-rem acceites a quem são offerecidos estes queixumes; V. P. os

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    22  História da Universidade de Coimbra, t. III, p. 665.

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    ouça e acredite com o seu nome, que isto basta para ficar o meupor elles conhecido. N. Senhor guarde e sustente a V. P. muitosannos. De Leiria, 25 de Junho de 1604.»

    Não se enganou o poeta; as suas Églogas publicadas em Lis- boa no ano de 1605 asseguraram-lhe um lugar dominante nogosto bucólico, embora repinte artificiosamente a rusticidade dalinguagem, mas por vezes inimitável, como nas cantigas Descalçavae para a fonte e  Antes que o sol se alevante, que se recitam aindae sempre com encanto. Fr. Luís de Souto Mayor, que tanto apre-ciava os seus escritos, conhecia estas três manifestações do seu

    talento, os Romances granadinos e subjectivos, as Églogas a cujacomposição assistira, e a Primavera, que desde 1601 era admira-da do público, que ansiava a sua continuação desse desengana-do amor.

    A florescência e actividade literária de Francisco RodriguesLobo em Coimbra por 1600 acha-se comprovada por uma refe-rência malévola de Manuel de Faria e Sousa, quando fala doroubo do Parnaso de Camões: «Al tiempo que empecé a estudiar

    que fué a los años de 1600, y los onze de mi edade me cogió estelibro un mozo, que luego se fué á estudiar a Coimbra, aonde en-tonces florecia Francisco Rodrigues Lobo, que entonces publicó un Li-

     bro intitulado Primavera, que consta de prosas y versos, y siem-pre me pareció que en el avia algunas cosas de las que estabanen aquel libro. Mas por que yó no vi este de Lobo, luego quan-do salió, tiempo en que de esse otro teria algo en la memoria,sinó mucho despues, quando yo no la tenia d’el, no pude

    assegurar-me bien; pero imagino que unas Otavas que alli tieneel Lobo, luego al principio, a que llama la historia de Sileno,estaban en aquel libro 23; y tambien unas Coplillas  que estan an-

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    23 No poemeto de Sileno, que Faria e Sousa pretendia tirar a FranciscoRodrigues Lobo, há uma estrofe que se refere a uma situação particularíssima:

    Emquanto góse a vista soberana,

    Onde o sentir commum ficava falto,Não podendo entender que com cousa humanaSe podesse esconder