INGOLD, Tim. Gente Como a Gente

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  • Gente como a gente O conceito dehomem anatomicamente modernoIngold, Tim. The perception of the environment. Essays on livelihood, dwelling and skill. Londonand New York: Routledge, 2000.

    Traduo: Cima Barbato Bevilaqua

    Nota da tradutora:

    H quase meio sculo, em ensaio que se tornaria justamente clssico (O impacto do conceitode cultura sobre o conceito de homem, de 1966), Clifford Geertz criticava a noo entocorrente de que a capacidade humana de produzir e transmitir cultura s emergiu depois que aevoluo biolgica da espcie virtualmente se completou. Com o apoio dos conhecimentospaleontolgicos disponveis poca, Geertz sustentava que a cultura, ao invs de se acrescentara um organismo biologicamente pronto, foi um ingrediente essencial no prprio processo deproduo do Homo sapiens.

    Embora apresentasse uma perspectiva renovada sobre a natureza humana, o argumentoreintroduzia implicitamente a prpria premissa que pretendia afastar: a universalidadebiolgica dos seres humanos passava a ser concebida como incompletude, tendo como corolrioa inelutvel dependncia de padres culturais para dirigir sua existncia e realizar, de formassempre particulares, as capacidades inerentes espcie. Em sntese, todos os seres humanoscomeam (biologicamente) iguais e terminam (culturalmente) muito diferentes.

    precisamente essa ideia, mais ou menos consensual entre os antroplogos nas dcadasposteriores, que Tim Ingold coloca em questo ao argumentar que as prprias diferenasculturais so, num sentido muito preciso, biolgicas. No se trata obviamente de reviver velhosdogmas racistas, mas de reconectar biologia e cultura de forma produtiva, a partir de umasofisticada crtica teoria evolutiva neo-darwiniana (e, no mesmo movimento, concepo dacultura como um sistema de planos, receitas, regras, instrues).

    Como mostra Ingold, a reduo contempornea do biolgico ao gentico que tornanecessrio, para escapar ao racismo, insistir na separao entre evoluo e histria, conferindoaos seres humanos um estatuto fundamentalmente ambguo: de um lado, organismos danatureza como todos os demais seres vivos; de outro, as nicas criaturas que transcenderam detal modo o mundo da natureza a ponto de fazer dela um objeto de sua conscincia.

    Gente como a gente

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  • O conceito de homem anatomicamente moderno[1]

    Introduo: A viso ortodoxaPermitam-me comear com uma pergunta um tanto cmica. Por que o homem de Cro-Magnonno andava de bicicleta? Apresento em primeiro lugar a resposta que sem dvida parece bvia:no que lhe faltassem os pr-requisitos anatmicos para tal proeza, simplesmente ele viveunuma era muito anterior a que algo to engenhoso e complexo como uma bicicleta tivesse sidodesenvolvido. E mesmo que tivesse, considerando-se a natureza do terreno e o modo desubsistncia predominante, uma bicicleta provavelmente teria sido muito pouco til para ele. Emoutras palavras, embora ele estivesse biologicamente preparado para subir no selim, as condiesculturais para que andar de bicicleta fosse uma opo vivel ainda estavam ausentes. Eu pretendomostrar, entretanto, que esta resposta est seriamente equivocada, e que a busca por umaalternativa mais satisfatria obriga a uma reviso fundamental das nossas noes mais bsicas deevoluo, de histria e mesmo da prpria humanidade. Em especial, quero argumentar que aideia de homem anatomicamente moderno, o piv em torno do qual giram todas essas outrasnoes, uma fico analtica cuja principal funo encobrir uma contradio situada no cerneda biologia evolutiva moderna.

    O homem de Cro-Magnon, descoberto por Louis Lartet na vila de Les Eyzies, Frana, em 1868,adquiriu a aura de moderno prototpico, embora no seja de modo algum o mais antigorepresentante de seu tipo no registro fssil. Comparado a seus predecessores os Neandertaisarcaicos e, ainda antes, o Homo erectus esse tipo era reconhecivelmente diferente: umaespcie de homem, como escreveu William Howells, inteiramente como ns (1967: 240). Napaleoantropologia contempornea, os Cro-Magnons so includos, juntamente com todas aspopulaes humanas subsequentes e atuais, no txon subespecfico nico Homo sapiens sapiens.E a implicao dessa categorizao que, ao menos no que diz respeito a seus dotes biolgicos,estes indivduos do Paleoltico Superior estavam dentro do espectro de variao da subespcie.Se tivessem nascido em nosso tempo, e crescido em uma sociedade como a nossa, eles seriamsem dvida capazes de fazer todas as coisas que ns fazemos: ler e escrever, tocar piano, dirigir,andar de bicicleta e assim por diante. Ou seja, eles tinham o potencial para fazer todas essascoisas, um potencial que, contudo, permaneceu irrealizado no decurso de sua existncia.

    Eu gostaria de retornar agora caracterizao de Howells dos Cro-Magnons como genteinteiramente como ns, com o propsito, nesta etapa do argumento, de apresentar o queacredito ser a posio ortodoxa na antropologia atual. Poder-se-ia objetar que eles no eram demodo algum como ns. Afinal de contas, no viviam em cidades, liam livros, escreviammonografias cientficas, tocavam piano ou dirigiam carros. A este tipo de objeo, duas rplicassurgem imediatamente. Uma delas salientar que a objeo se baseia numa viso estreita eetnocntrica de quem somos ns, uma viso que excluiria uma grande proporo da prpriahumanidade contempornea. Ao se comparar populaes do Paleoltico Superior conosco, areferncia deveria ser a humanidade em sua distribuio global, independentemente de variaesculturais. A outra resposta qualificar o sentido em que se diz que essas populaes forammodernas. Este no deveria ser confundido com o uso convencional na antropologia social ecultural, em que a modernidade geralmente associada a alguma noo de sociedade Ocidentalurbano-industrial. Eles eram como ns biologicamente, mas no culturalmente.

    O que separa os humanos anatomicamente modernos de trinta mil anos atrs (e anteriores) deseus descendentes contemporneos, de acordo com a teoria ortodoxa, um processo no de

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  • evoluo, mas de histria ou, como diriam alguns, de evoluo cultural em lugar de biolgica.Isto no sugerir que com o advento dos modernos a evoluo de nossa espcie tenhaliteralmente estancado. Mudanas ocorrem continuamente, mas so relativamente pequenas,nada que se compare s transformaes verdadeiramente colossais das formas de vida queaconteceram aparentemente em ritmo crescente no curso da histria humana. Se, e em quesentido, essas transformaes podem ser consideradas progressivas uma questo debatida comvigor: no obstante, parece haver uma concordncia geral de que a histria da cultura tem sidomarcada por um incremento cumulativo na escala e complexidade de seu componentetecnolgico. Contudo, o processo histrico de complexificao da esfera tecnolgica da culturano foi apenas possibilitado por uma constituio biolgica estabelecida no Paeloltico Superior;ele tambm no afetou essa constituio. O veculo a motor uma inveno moderna, mas ohomem atrs do volante permanece uma criatura biologicamente equipada para a vida na Idadeda Pedra!

    Desse modo, no que se refere a sua biologia bsica, ciclistas no so diferentes de pedestres, e ospedestres de hoje no so diferentes de seus predecessores do Paleoltico Superior. em geralaceito que a locomoo bipedal uma caracterstica humana universal, cuja evoluo implicouum conjunto especfico de adaptaes anatmicas (Lovejoy 1988). Andar de bicicleta, emcontraste, uma habilidade adquirida, cujo aparecimento foi relativamente tardio em algumas,mas no em todas, as populaes humanas. Embora seu advento tenha sido condicionado poruma longa cadeia de circunstncias de inveno e difuso (da descoberta da roda manufaturade tubos de ao), bem como de modificao ambiental (a construo de estradas e trilhas), eleno suscitou nenhuma reconfigurao da anatomia humana. Em sua estrutura e propores,afinal, a bicicleta foi concebida para se ajustar a um corpo humano que j havia evoludo paraandar, e sua funo mecnica essencial converter a movimentao bipedal em rotativa.

    Isto nos reconduz resposta convencional para a pergunta do incio. A razo pela qual o homemde Cro-Magnon no andava de bicicleta no tem absolutamente nada a ver com biologia. Ouseja, a razo histrica, no evolutiva. A mesma distino[2] em geral invocada para explicarpor que os produtores de ferramentas do Paleoltico Superior trabalhavam com pedra lascada emvez de complexos equipamentos mecnicos ou eletrnicos. E se absurdo postular uma linhadireta de continuidade desde as primeiras ferramentas de pedra at o maquinrio moderno, ento igualmente absurdo postular uma progresso anloga da locomoo quadrpede para alocomoo em duas rodas. E isto porque a transio entre andar sobre quatro ou sobre dois pspertence evoluo, enquanto a transio se quiserem de dois ps a duas rodas pertence histria.

    Andar e pedalar

    Creio que esta pode ser considerada uma representao justa da viso ortodoxa. Quero mostraragora por que eu penso que ela est errada. Comeo lanando um novo olhar sobre o contrasteentre andar e pedalar. Supe-se comumente que andar algo com que nascemos, enquantoandar de bicicleta um produto da enculturao; em outras palavras, presume-se que a primeira uma habilidade inata, enquanto esta adquirida. Mas o fato que crianas recm-nascidas noandam. Elas tm que aprender a andar, e a ajuda de pessoas mais velhas, j competentes nessaarte, invariavelmente mobilizada nesse empreendimento. Em resumo, andar uma habilidadeque emerge para cada indivduo no curso de um processo de desenvolvimento, por meio do

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  • envolvimento ativo de um agente a criana em um ambiente que inclui educadoresqualificados, alm de uma variedade de objetos de apoio e um certo tipo de terreno (Ingold 1991:370). Como podemos continuar sustentando que a habilidade de andar vem, por assim dizer,pr-embalada no biograma humano? certo que a ampla maioria das crianas humanasaprende a andar, e mais, que elas o fazem num perodo definido bastante curto. Assim, embora obeb no exatamente aterrisse no mundo sobre dois ps, ele dotado de uma agenda interna dedesenvolvimento que garante que ele ir andar ereto no devido tempo, desde que certascondies estejam presentes em seu ambiente.

    Esta ltima ressalva absolutamente fundamental. Crianas privadas do contato com cuidadoresmais velhos no aprendem a andar alis, sequer sobreviveriam, e esta a razo pela qual todasa crianas que sobrevivem efetivamente andam, a menos que incapacitadas por acidente oudoena. Pode-se projetar um cenrio futuro no qual as necessidades humanas de locomooseriam inteiramente supridas por veculos sobre rodas, ou imaginar a vida sob condies deausncia de gravidade no espao csmico, em que o andar desapareceria. Tais cenrios soreconhecidamente fantsticos, mas imagin-los serve para reforar meu ponto de que acapacidade para a locomoo bipedal s pode ser dita inata quando se pressupe a presena dascondies ambientais necessrias para o seu desenvolvimento. Falando estritamente, portanto, obipedalismo no pode ser atribudo ao organismo humano a menos que o contexto ambientalentre na especificao do que o organismo .

    Com este ponto em mente, passo agora de andar a pedalar. As crianas s se tornam proficientesem andar de bicicleta, assim como em caminhar, por meio de um processo de aprendizagem emque a assistncia de adultos em geral necessria. Em comparao com caminhar, porm, ascondies para o desenvolvimento da capacidade de andar de bicicleta so bem mais restritivas.Obviamente, ningum pode aprender a pedalar sem ter uma bicicleta, e o ambiente tambm deveincluir ruas ou trilhas em que se possa transitar em duas rodas. Em sociedades industriaiscontemporneas essas condies esto to ubiquamente presentes que nossa tendncia pensarque natural que crianas a partir de certa idade sejam capazes de andar de bicicleta, assimcomo so capazes de caminhar. Em outras sociedades, em contraste, as bicicletas podem ser rarasou estar completamente ausentes, ou o terreno pode ser bastante imprprio para seu uso. E assima habilidade de pedalar tem uma distibuio muito mais limitada que a de andar.

    Contudo, esta uma diferena de extenso, no de princpio. Se andar inato no sentido eapenas no sentido em que, dadas certas condies, deve emergir no curso do desenvolvimento,ento o mesmo se aplica a andar de bicicleta. E se pedalar adquirido, no sentido em que suaemergncia depende de um processo de aprendizado inscrito em contextos de interao social,ento o mesmo se aplica a caminhar. Em outras palavras, to errado supor que pedalar dadode modo exgeno (independentemente do organismo humano) quanto supor que andar dadode modo endgeno (independentemente do ambiente). Tanto andar quanto pedalar socompetncias que emergem nos contextos relacionais do envolvimento da criana em seuambiente e, portanto, so propriedades do sistema de desenvolvimento constitudo por essasrelaes.

    Ademais, essas competncias so literalmente incorporadas, no sentido em que seudesenvolvimento implica modificaes especficas, neurolgicas e musculares, e at mesmo emcaractersticas anatmicas bsicas. Embora as crianas geralmente aprendam a andar antes depedalar, as modificaes suscitadas por andar de bicicleta no so simplesmente acrescentadas auma anatomia, por assim dizer, pr-fabricada para caminhar. O corpo humano no pr-fabricado para coisa alguma, ao contrrio, sofre contnuas mudanas ao longo do ciclo de vida

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  • medida em que impelido ao desempenho de tarefas diversas. Com efeito, as presses e esforosrecorrentes da vida cotidiana no afetam apenas o desenvolvimento relativo de diferentesmsculos; deixam tambm suas marcas no prprio esqueleto. Transportar cargas na cabea afetaos ossos da parte superior da coluna; agachar-se fora os joelhos, o que resulta em marcas napatela; tambm andar de bicicleta, sem dvida, deixa vestgios.[3] claro que a bicicleta foiprojetada para uma criatura j acostumada locomoo bipedal, de modo que andar de bicicletano requer nenhum grande reajustamento da anatomia humana. Os ciclistas continuam podendoandar a p, e duvidoso que mesmo o observador mais perspicaz possa distinguir um ciclista deum no-ciclista, a menos que os ponha prova. Mas se nenhum nefito consegue manter oequilbrio e a coordenao numa primeira tentativa, ningum jamais desaprende a andar debicicleta. Esses fatos indicam que o exerccio das habilidades sensoriais e motoras necessriaspara andar de bicicleta deixa uma impresso anatmica indelvel, pelo menos na normalmenteinvisvel arquitetura do crebro. De fato, esta concluso sustentada por pesquisas neurolgicasrecentes que mostram, como relatam Kandel e Hawkins, que nossos crebros estoconstantemente mudando em termos anatmicos, inclusive quando aprendemos (1992: 60).

    luz dessas consideraes talvez no seja absurdo, afinal, situar a emergncia, respectivamente,de andar e pedalar no interior do mesmo processo geral de evoluo isto , de uma evoluodos sistemas de desenvolvimento que sustentam essas capacidades. E uma vez que introduzimoso contexto ambiental de desenvolvimento em nossa especificao do que um organismo , segue-se que um ser-humano-no-ambiente-A no pode ser a mesma espcie de criatura que um ser-humano-no-ambiente-B. Assim, o homem de Cro-Magnon era de fato uma criatura muitodiferente do ciclista ou motorista urbano de hoje. Ele no era como ns nem mesmobiologicamente. Ele pode ter se parecido conosco geneticamente, mas isso outra questo. Deque maneira a biologia veio a ser identificada com a gentica um problema na histria dasideias ao qual voltarei mais adiante; por ora suficiente dizer que tal identificao j estimplcita na noo de que cada indivduo dotado de sua constituio biolgica no momento daconcepo. Antes de discutir essa noo de modo mais detalhado, eu gostaria de examinar umarea na qual surgem questes muito prximas s suscitadas em minha comparao entre andar epedalar, mas que tem sido palco de controvrsias muito mais srias: a evoluo da linguagem.

    Fala e escrita

    Reconhece-se em geral que o homem de Cro-Magnon, como um paradigma da modernidadeanatmica, possua uma capacidade plenamente desenvolvida para a linguagem. Ele podia falarto bem quanto voc ou eu. Mas no podia ler nem escrever. Comeo com a comparao entre afala e a escrita porque ela oferece o paralelo mais bvio com a comparao entre andar e pedalar.De acordo com a viso ortodoxa, a capacidade para a linguagem um universal humano, algoque todos ns recebemos como parte de uma constituio biolgica comum estabelecida noPaleoltico Superior, se no antes (No me preocupo aqui com os debates relativos a datao). Aescrita, em contraste, uma tecnologia da linguagem que surgiu de modo independente emvrias partes do mundo como resultado de eventos especficos de inveno e difuso, e que mesmo hoje de modo algum compartilhada universalmente. A capacidade para a linguagem,ento, um produto da evoluo; a capacidade de ler e escrever, um produto da histria. Aprimeira considerada inata, a segunda adquirida. A incapacidade do Cro-Magnon de ler eescrever, assim como sua incapacidade de andar de bicicleta, no tem nada a ver com suabiologia. O que ocorre que, na poca em que ele viveu, os desenvolvimentos culturais que

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  • culminaram na inveno dos sistemas de escrita ainda no haviam seguido seu curso.

    Eu penso que esta viso errada, pelas razes que j expus. Bebs humanos no nascem falando,assim como no nascem andando. Sua aptido para a linguagem se desenvolve, atravs de umasrie de estgios razoavelmente bem definidos. O apoio de cuidadores capazes de falar, e apresena no ambiente de um conjunto rico e altamente estruturado de caractersticassignificativas so essenciais para o desenvolvimento normal da linguagem. Como essascondies esto quase invariavelmente presentes, a imensa maioria das crianas aprende a falarsem dificuldade, e as excees so aquelas cujo desenvolvimento obstado por alguma outralimitao. As condies que devem ser preenchidas para que uma criana aprenda com sucesso aler e escrever so, naturalmente, muito mais restritivas. Com efeito, quais so essas condies um tema de intensos debates, especialmente em crculos pedaggicos. Uma vez que ashabilidades e prticas de escrita so de fato extremamente diversas, nada tendo em comum almda representao grfica de palavras, as condies necessrias para sua aquisio so, com toda aprobabilidade, igualmente variveis (Street 1984). Mas isto no afeta meu argumento principal, asaber, que a escrita no acrescentada, pela enculturao, a uma constituio humanabiologicamente preparada para a fala. Em vez disso, tanto a habilidade de falar quanto a deescrever emergem num processo contnuo de modificao corporal, envolvendo tanto umasintonia fina de habilidades vocais-auditivas e manuais-visuais como as mudanas anatmicascorrespondentes no crebro, um processo que ocorre nos contextos de engajamento do aprendizcom outras pessoas e objetos diversos em seu ambiente. Ambas as capacidades, em suma, sopropriedades de sistemas de desenvolvimento.

    Sem tomar partido na controvrsia sobre se os assim chamados humanos arcaicos, tipificadospelo homem de Neanderthal, podiam falar, h considervel acordo entre os paleoantroplogosmodernos de que esta capacidade ao menos em sua forma plenamente desenvolvida no eracompartilhada por homindeos pr-humanos mais antigos como o Homo erectus e o Homohabilis. A questo a que precisamos responder, porm, a seguinte: de que maneira, e se, aincapacidade de falar desses primeiros homindeos difere da incapacidade de ler e escrever doscaadores-coletores do Paleoltico Superior? Para recordar uma distino que introduzianteriormente[4], no contexto de uma comparao entre as capacidades tcnicas de chimpanzs eas de humanos caadores-coletores, como podemos justificar a atribuio das primeiras a umaincapacidade inata, enquanto estas so atribudas ausncia de condies histricas? Se ohomem de Cro-Magnon, caso vivesse no sculo XX, seria capaz de dominar as habilidades daescrita, por que o Homo erectus, se tivesse vivido no Paleoltico Superior, no poderia ter tido odomnio da linguagem?

    Uma questo de certo modo comparvel surge no contexto da pesquisa sobre as capacidadeslingusticas dos grandes smios, especialmente dos chimpanzs. Criados em condies naturais isto , sem contato significativo com humanos , os chimpanzs no aprendem a falar.Pesquisas recentes, contudo, indicam de modo convincente que chimpanzs criados em umambiente humano, no convvio com cuidadores que falam, so capazes de adquirirespontaneamente uma competncia lingustica sinttica e semntica equivalente de crianaspequenas (Savage-Rumbaugh e Rumbaugh 1993). Isto prova que, ao contrrio das expectativas,os chimpanzs e, por analogia, os primeiros homindeos tm ou tiveram uma capacidade paraa linguagem, ainda que limitada? Devemos acreditar que, graas ao legado de sua ancestralidadecomum com os humanos, tal capacidade pr-instalada, como um dote hereditrio, na mente decada chimpanz individual, aguardando simplesmente circunstncias ambientais propcias paravir tona?

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  • Penso que no, porque a prpria questo se baseia numa falsa premissa, a saber, que acapacidade para a linguagem algo cuja presena ou ausncia pode ser atribuda a indivduos deuma espcie, a despeito dos contextos ambientais de seu desenvolvimento. Com efeito, no faznenhum sentido perguntar se chimpanzs ou homindeos tm ou tiveram linguagem, comose ela estivesse programada de antemo dentro deles. A definio biolgica de espcie dependeda possibilidade de uma especificao independente de contexto: um chimpanz umchimpanz, Pan troglodytes, seja ele criado entre outros chimpanzs ou entre humanos, nafloresta ou no laboratrio. Mas o chimpanz-em-um-ambiente-de-outros-chimpanzs no deforma alguma o mesmo tipo de animal que o chimpanz-em-um-ambiente-de-humanos: a esteltimo pode ser atribuda uma capacidade rudimentar para a linguagem que falta ao primeiro.Esta capacidade, como assinalou Dominique Lestel, o resultado de um processo dedesenvolvimento situado no contexto peculiar da comunidade hbrida humano-animalestabelecida para os fins da pesquisa sobre a linguagem de grandes smios (Lestel 1998: 13). Eembora este contexto possa parecer deveras excepcional, no obstante verdade que qualquerprocesso de desenvolvimento deve envolver um organismo em relaes que atravessam asfronteiras dos agrupamentos taxonmicos convencionais. Segue-se que se possvel mostrar queuma capacidade como a linguagem surge como uma propriedade emergente de um sistemade desenvolvimento composto por essas relaes, ento ela no pode ser atribuda a uma espcie.(Inversamente, atribuir linguagem a espcies automaticamente ter que recorrer a uma visoinatista que envolve alguma forma de pr-instalao neural que viria miraculosamente pronta.)

    A noo de capacidade para a linguagem em si mesma profundamente problemtica. Aexplicao ortodoxa, que atribui esta capacidade aos humanos anatomicamente modernos,requer que ela seja claramente distinguida, como um universal humano, da capacidade de falaresta lngua e no aquela. A competncia de algum em sua lngua materna tida como umproduto da enculturao, no algo dado como parte de sua constituio biolgica como membroda espcie humana. Mas as crianas humanas no nascem com um programa inato (umdispositivo de aquisio da linguagem) para assimilar um programa adquirido (na forma deregras de sintaxe de uma lngua particular). E isto porque, quaisquer que sejam os dispositivosutilizados no processo de aquisio da linguagem, eles mesmos precisam ser formados numcontexto de desenvolvimento que o mesmo que aquele no qual a criana aprende a lngua dasua comunidade. No existem, em outras palavras, dois processos distintos e sucessivos oprimeiro envolvendo a pr-instalao do crebro para a linguagem, o segundo provendo umcontedo sinttico e semntico especfico , porque ao aprender a falar da maneira como aspesoas em seu entorno falam, e com a assistncia e o apoio ativo delas, que as conexesneurolgicas que garantem a competncia lingustica da criana so forjadas. Consequentemente,falantes de lnguas diferentes, expostos em estgios crticos de desenvolvimento a padresdistintos de estimulao acstica, em ambientes diversos, tambm iro diferir nos aspectos desua organizao neural envolvidos na produo e interpretao de enunciados verbais.[5]

    Em suma, somente pela separao artificial dos aspectos mais gerais e mais particulares de umsistema total de desenvolvimento, no interior do qual emergem as habilidades da fala, que alinguagem pode ser identificada como uma capacidade universal, em contraposio capacidade de falar uma lngua e no outra. E, nesse sentido, falar muito parecido com andar.No entanto, como Esther Thelen e seus colaboradores mostraram numa srie de estudos sobre odesenvolvimento motor infantil, no existe uma essncia do andar que possa ser isolada dodesempenho da prpria ao em tempo real (Thelen 1995: 83). Logo, falar de locomoobipedal ou de linguagem como atributos universais, distintos das mltiplas habilidades deandar e falar tal como efetivamente utilizadas na vida cotidiana de comunidades humanas, reificar o que , na melhor das hipteses, uma abstrao analtica conveniente. Alm disso, falar,

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  • assim como andar, uma realizao do organismo humano como um todo, no simplesmente aexpresso comportamental de um mecanismo cognitivo instalado no organismo, para o qualserviria de veculo. Andar e falar so, na expresso de Mauss, tcnicas do corpo (1979 [1934]:97-123). Ns trazemos estas tcnicas conosco, conforme o modo como nossos corpos foramformados em e atravs de um processo de desenvolvimento.

    O corolrio desta concluso, porm, muito radical. invalidar, de uma vez por todas, apresuno profundamente arraigada de que as diferenas de lngua, postura corporal e assim pordiante, que somos inclinados a chamar deculturais, sejam sobrepostas a um substrato pr-constitudo de universais biolgicos humanos. No podemos mais nos contentar com a noosuperficial de que todos os seres humanos comeam (biologicamente) iguais e terminam(culturalmente) muito diferentes. Consideremos, por exemplo, esta formulao de Geertz: Umdos fatos mais significativos a nosso respeito pode ser, finalmente, que todos ns comeamoscom o equipamento natural para viver milhares de espcies de vidas, mas terminamos por viverapenas uma espcie (1973: 45)[6]. Meu argumento, contra Geertz, que os seres humanos noso naturalmente pr-equipados para nenhum tipo de vida; em vez disso, o equipamento quepossuem se constitui, por meio de um processo de desenvolvimento, medida em que eles vivemsuas vidas. Este processo no seno aquele pelo qual eles adquirem as competnciasapropriadas para o tipo de vida particular que levam. Aquilo com que cada um de ns comea ,pois, um sistema de desenvolvimento. Segue-se que as prprias diferenas culturais uma vezque elas emergem no processo de desenvolvimento do organismo humano em seu ambiente so biolgicas. Antes de examinar as consequncias dessa concluso, preciso recuar um passopara mostrar como biologia e cultura foram separadas. Com isso, voltarei reconsiderao danoo de dotes biolgicos.

    O genoma e o gentipo

    Como j indiquei, supe-se que os humanos anatomicamente modernos sejam biologicamentedotados no apenas do bipedalismo, mas tambm de inmeros outros atributos, da linguagem acapacidades cognitivas e motoras sofisticadas, frequentemente agrupados na rubrica geral decapacidade para a cultura. Permitam-me lembrar-lhes do comentrio de Lieberman[7] segundo oqual, a despeito de todos os monumentos ao avano tecnolgico humano que grassam apaisagem, os indivduos de hoje so essencialmente dotados da mesma constituio biolgicade seus predecessores de trinta mil anos atrs. Esse dote, ento, deve ser legado aos indivduos acada gerao sucessiva, independentemente dos contextos ambientais diversos nos quais elescrescem como pedestres ou ciclistas, como fabricantes de ferramentas de pedra ou operadores demquinas, como caadores-coletores ou citadinos, e assim por diante. Em outras palavras, trata-se de uma especificao do organismo humano independente do contexto, conferida a todo equalquer membro da espcie no momento da concepo.

    Na biologia moderna, o termo tcnico para tal especificao independente do contexto gentipo. Em contraste, para caracterizar a forma que o organismo efetivamente assume emtermos de sua morfologia exterior e de seu comportamento, tal como se revela em um contextoambiental concreto especificar seu fentipo. Uma premissa fundamental da teoria evolutiva,em sua atual roupagem neo-darwiniana, que somente as caractersticas do gentipo, e no asdo fentipo, so transmitidas atravs das geraes. Nesse princpio se baseia a divisoconvencional entre ontogenia e filogenia, ou entre desenvolvimento e evoluo. Enquanto

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  • desenvolvimento se refere ao processo pelo qual, na histria de vida do indivduo, o gentipoinicial realizado na forma concreta de um fentipo ambientalmente especfico, evoluo dizrespeito mudana gradual, ao longo de um grande nmero de geraes sucessivas, do prpriogentipo.

    Figura 1 Representao esquemtica da distino ortodoxa entre evoluo e desenvolvimento.G1 G4 so gentipos sucessivos ligados em uma sequncia ancestral-descendente. P1 P4 soos respectivos fentipos gerados sob condies ambientais E1 E4. As setas verticaisrepresentam um percurso filogentico intergeracional, as setas horizontais representamprocessos ontogenticos circunscritos a cada gerao.

    Mais exatamente, a frequncia dos elementos constitutivos do gentipo em populaes deindivduos que sofreria mudana evolutiva, atravs de um processo de variao pela seleonatural. Para fazer essa teoria funcionar, preciso haver um veculo que sirva para transportar oselementos da especificao formal do organismo a saber, os traos genticos de um local dedesenvolvimento a outro, anunciando o incio de um novo ciclo de vida. Com a descoberta doDNA, acreditou-se que tal veculo, h muito tempo previsto, tinha sido afinal encontrado. Amolcula de DNA formada por uma cadeia muito longa de bases nucleotdicas (em torno detrs bilhes nos seres humanos, dentro dos vinte e trs cromossomos de cada clula do corpo),cada uma das quais de um tipo entre apenas quatro possveis. Essa molcula tem duaspropriedades crticas. Primeiro, ela est associada a uma cadeia complementar que, tal como umnegativo fotogrfico, fornece o modelo para um processo de replicao qumica que resulta nasntese de novas cadeias de DNA com exatamente a mesma sequncia de bases do original. Emsegundo lugar, segmentos da molcula, de comprimento da ordem de dez mil bases, orientam asntese de protenas especficas cuja composio determinada pela sequncia linear de basesno segmento correspondente. Essas protenas, por sua vez, so os componentes fundamentais doorganismo vivo. Assim, o complemento total de DNA na clula, tambm conhecido comogenoma, codificaria em sua sequncia de bases uma especificao completa do organismo aoqual a clula pertence.

    Para explicar essa codificao, os geneticistas frequentemente recorrem linguagem da teoria dainformao (Medawar 1967: 56-7). O genoma, dizem, carrega uma mensagem que, traduzidaaproximadamente, significa construa um organismo de tal-e-tal tipo isto , conforme asespecificaes formais do gentipo. Mas, de fato, a teoria da informao, tal como desenvolvidanos anos de 1940 por Norbert Wiener, John von Neumann e Claude Shannon, empregava anoo de informao num sentido especializado que tem pouco a ver com o modo como o termo

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  • comumente entendido isto , para se referir ao contedo semntico de mensagens trocadasentre emissores e receptores. A informao, para esses tericos, no tinha qualquer valorsemntico; ela no significava nada. Nos termos deles, uma sequncia aleatria de letras poderiater o mesmo contedo informacional que um soneto de Shakespeare (Kay 1998: 507). Esteponto, entretanto, perdeu-se inteiramente para os bilogos moleculares que, tendo compreendidoque a molcula de DNA poderia ser considerada como uma forma de informao digital nosentido tcnico da teoria da informao, saltaram imediatamente para a concluso de que ela seconstitui como um cdigo com um contedo semntico especfico. Entretanto, o ponto no seperdeu para os prprios tericos da comunicao, que repetidamente alertaram para a confusoentre o sentido tcnico de informao e seu correlato genrico, e assistiram consternados consagrao das metforas de mensagem, linguagem, texto e assim por diante numa biologiaaparentemente intoxicada com a ideia do DNA como um livro da vida.[8]

    O resultado dessa confuso foi que o modelo terico da informao, tal como reencarnado nocontexto da cincia biolgica, passou a girar em torno de mensagens e sua transmisso. umaexigncia do modelo, assim concebido, que a mensagem a ser transmitida seja primeiramentefragmentada em seus elementos constitutivos mnimos de significado, cada um dos quais entorepresentado, de forma codificada, num meio fsico apropriado. Na comunicao verbal, porexemplo, diz-se que os conceitos so representados por combinaes distintas de sons (no casoda fala) ou de traos grficos (no caso da escrita). Nesta forma fsica, eles so apreendidos porum receptor que, por meio de um processo inverso de decodificao, recupera os significadosoriginais e os combina para reconstituir a mensagem. No caso da transmisso gentica, oselementos mnimos de significado corresponderiam a caracteres ou traos, cada um delesrepresentado por um segmento de DNA com uma sequncia de bases distinta. Assim como osigno lingustico compreendido como a unio entre um conceito particular e um padro sonoroparticular, o gene veio a ser concebido como a unio entre um trao particular e o seu segmentocorrespondente da molcula de DNA.

    Trao Gentipo

    Gene

    Segmento de DNA Genoma

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  • Conceito Representaes mentais

    Palavra

    Padro sonoro Mundo fsico

    Figura 2 Uma representao esquemtica da analogia entre genes e palavras como signos.

    Deixo para mais tarde a questo de at que ponto este modelo de transmisso de informaodescreve de forma adequada o que ocorre mesmo no discurso verbal ordinrio. Por ora bastadizer que o modelo est fundado em uma separao ontolgica entre mente e mundo. Comefeito, esta separao intrnseca prpria noo de informao em seu sentido original ideia de que a forma introduzida nos contextos de interao do mundo real. Supe-se que amensagem ou instruo a ser transmitida preexista na mente do emissor e seja traduzida em ummeio fsico a partir de um conjunto de regras de codificao inteiramente independentes doscontextos nos quais ela emitida ou recebida. claro que o modo como uma mensagem, umavez recebida, ser interpretada, pode depender da situao, mas a prpria mensagem deve serespecificada de forma no ambgua. Da mesma maneira, se devemos supor que o genomatransporta informao codificada de um contexto de desenvolvimento a outro, ento amensagem isto , a especificao genotpica deve preexistir a sua representao no DNA econectar-se a ele por meio de regras de codificao independentes do contexto. Em outraspalavras, deve ser possvel ler cada elemento do gentipo cada trao contido emdeterminado segmento de DNA, independentemente das condies locais de desenvolvimento.Contudo, assim como uma mensagem recebida pode ser interpretada de modo diferente emcircunstncias diferentes, tambm o gentipo ser materializado de diferentes maneirasconforme o contexto ambiental, conduzindo s variaes observadas na forma fenotpica.

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  • MENSAGEM

    Codificao independente do contexto

    MENTE

    ---------------------------------------------------------------------------------------

    Contexto MUNDO

    VECULO

    INTERPRETAO

    (dependente do contexto)

    GENTIPO

    MENTE

    -----------------------------------------------------------------------------

    Contexto MUNDO

    GENOMA

    FENTIPO

    Figura 3 A relao entre mensagem, veculo e interpretao (acima) e seu anlogo no domniobiolgico (abaixo).

    O problema inerente a esse tipo de explicao pode ser colocado sob a forma de uma questosimples: onde est o gentipo? Onde, em outras palavras, est a especificao formal que deacordo com o modelo seria importada com o genoma para o contexto de inaugurao de umnovo ciclo de vida, como um dote biolgico? Podemos admitir que o organismo recm-concebido vem a existir com seu complemento de DNA; tomado em si mesmo, porm, o DNAno especifica nada. Afinal, ele apenas uma molcula, e uma molcula consideravelmenteinerte. Na realidade, o DNA nunca existe em si mesmo, exceto quando isolado artificialmente nolaboratrio. Ele existe dentro de clulas, que so partes de organismos, eles prprios situados emambientes mais amplos. E somente em virtude de sua incorporao na maquinaria viva daclula que as molculas de DNA tm os efeitos que tm. Sozinhas, elas no produzem cpias desi mesmas nem constroem protenas, muito menos organismos inteiros (ver Lewontin 1992: 33,para uma exposio excepcionalmente lcida deste ponto). Logo, o DNA no um agente, masum reagente, e as reaes particulares que ele pe em movimento dependem do contexto total doorganismo no qual ele est situado. somente pressupondo tal contexto que podemos dizer paraque qualquer gene particular (Ingold 1991: 368). Dito de outro modo, a maquinaria celular

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  • que l o DNA, e essa leitura parte integrante do prprio desenvolvimento do organismo emseu ambiente. No existe, portanto, decodificao do genoma que no seja em si mesma umprocesso de desenvolvimento; no existem atributos de forma que no sejam originados nointerior desse processo; no existe uma especificao do organismo que seja independente do seucontexto de desenvolvimento.

    Assim, retomando a questo proposta acima onde est o gentipo? , s pode haver umaresposta: na mente do bilogo. O gentipo, eu diria, o produto das tentativas dos bilogos deescrever um programa ou algoritmo do desenvolvimento do organismo, na forma de um sistemacoerente de regras epigenticas. Essas regras so derivadas por abstrao das caractersticasobservadas no organismo, de maneira anloga ao modo como um linguista derivaria as regras dasintaxe, por abstrao, a partir de uma amostra de enunciados registrados uma analogiaexplicitamente reconhecida na noo de biograma. Ademais, o mesmo truque aplicado: comodiz Bourdieu (1977: 96), ao se transferir ao objeto de estudo a exterioridade da relao doobservador para com ele, esse objeto aparece como um simples veculo para um sistemainteriorizado de princpios racionais, uma espcie de inteligncia instalada no corao doorganismo, dirigindo sua atividade a partir de dentro. Assim como o linguista considera a falacomo a aplicao de estruturas sintticas localizadas na cabea dos falantes, o bilogo considerao desenvolvimento e o comportamento do organismo como tendo sua fonte generativa em umbiograma inato. Em ambos os casos aspectos de forma, abstrados dos contextos em que elessurgem, so convertidos em elementos de um programa que supostamente precede e governa osprocessos de sua produo. Como uma explicao da gnese da forma, a circularidade desteargumento no requer mais nenhuma elaborao.

    Nada ilustra melhor a transferncia, para o organismo, dos princpios da relao externa doobservador para com ele, que o destino do prprio conceito de biologia. Referindo-seinicialmente aos procedimentos envolvidos no estudo cientfico de formas orgnicas, abiologia veio a ser vista como uma estrutura de princpios racionais literalmente umbio-logos supostamente situada nos prprios organismos, e orquestrando sua construo. Paraqualquer organismo particular, este bio-logos , naturalmente, o gentipo. Aqui reside, pois, aexplicao para a identificao, assinalada acima, entre biologia e gentica. Em ltima anlise,esta identificao trai um logocentrismo que a biologia compartilha com todo o empreendimentoda cincia natural Ocidental: o pressuposto de que os fenmenos manifestos do mundo fsico soobra da razo. Mas a razo que a cincia v em operao neles a sua prpria, refletida noespelho da natureza.

    Forma e desenvolvimento

    Se os organismos no recebem sua forma, com o genoma, como um dote biolgico, entocomo explicar a estabilidade da forma atravs das geraes? A resposta est na observao deque a vida de qualquer organismo inaugurada com muito mais que seu complemento de DNA.De um lado, como aponta Lewontin, o DNA est contido em um vulo que, antes mesmo dafertilizao, est equipado por meio do seu prprio desenvolvimento com os pr-requisitosessenciais para promover o crescimento futuro. Ns herdamos no apenas genes feitos de DNA,mas uma intrincada estrutura de maquinaria celular feita de protenas (Lewontin 1992: 33). Deoutro, esse vulo no existe no vazio, mas em um ambiente j estruturado. A vida comea, pois,com o DNA, em um vulo, em um ambiente. Ou, como Oyama coloca sucintamente, de modo

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  • muito literal, o que transmitido ou disponibilizado na reproduo um genomae um segmentodo mundo (1985: 43, nfase minha). Juntos eles constituem um sistema de desenvolvimento, e no funcionamento dinmico desse sistema nas interaes complexas entre componentesinternos ao organismo (incluindo o genoma) e situados alm de seus limites que a forma gerada e mantida (Ho 1991: 346-7).

    Segue-se que nenhum componente particular como o DNA pode ser privilegiado comoaquele que contm a forma que os outros expressam, uma vez que a prpria forma umapropriedade emergente do sistema total que consiste nas relaes entre eles. Uma mudana emqualquer componente do sistema, seja no genoma ou em algum aspecto do ambiente interior ouexterior ao organismo, na medida em que altera os parmetros de desenvolvimento, podeproduzir uma mudana significativa na forma; as possibilidades de mudana, porm, no soilimitadas, restringem-se gama de formas que podem ser geradas pelas propriedades daorganizao dinmica do sistema. Desse modo, a explicao para a estabilidade intergeracionalda forma no se encontra na fidelidade da replicao do DNA, mas nas potencialidades de auto-organizao de todo o campo de relaes no qual o desenvolvimento ocorre (Goodwin 1988)[9].

    importante precisar em que esta concluso difere daquilo que geralmente aceito na biologiaevolutiva. A questo de saber se os organismos so determinados por sua natureza [nature] oupor seu desenvolvimento [nurture], pela constituio inata ou pelo condicionamento ambiental,h muito foi declarada obsoleta, tendo dado lugar a uma perspectiva interacionista segundo aqual cada organismo, em qualquer momento de seu ciclo de vida, o produto de uma complexa econtnua interao entre fatores genticos e ambientais. Naturalmente, argumenta-se, osorganismos assumem aparncias diferentes em ambientes diferentes. Pressupe-se, contudo, queessas diferenas ambientalmente induzidas revelam to somente o potencial de variao daquiloque essencialmente o mesmo organismo, e que apenas as diferenas atribuveis modificaogentica atestam a mudana evolutiva do prprio organismo. E precisamente nestapressuposio, com seu privilgio implcito do genoma como o verdadeiro portador da formaorgnica, que se permitiu que repousassem as distines convencionais entre gentipo e fentipo,e entre evoluo e desenvolvimento.

    Para a teoria ortodoxa, estas distines so crticas. Evoluo, como vimos, referir-se-ia amudanas intergeracionais no gentipo; desenvolvimento, traduo, em cada gerao, dogentipo no fentipo (ver Figura 1). Isto no dizer que esses processos sejam concebidos comono estando relacionados. Reconhece-se, por um lado, que as circunstncias do desenvolvimento na medida em que incidem na replicao gentica podem exercer uma influncia na evoluoe, por outro, que o gentipo modificado pela evoluo que estabelece a programao para odesenvolvimento (Hinde 1991: 585). Mas a teoria exclui qualquer possibilidade de que a prpriahistria de vida do organismo possa constituir uma parte intrnseca do processo evolutivo. Daperspectiva evolutiva, no o que os organismos fazem, mas as consequncias reprodutivas desua atividade que so significativas. Consideraes relativas a agncia e intencionalidade notm lugar na explicao evolutiva: so atribudas aos mecanismos imediatamente envolvidos naefetivao de estratgias cuja lgica ltima j est estabelecida pela seleo natural. Por essarazo, habitual se falar dos organismos como locais onde a evoluo ocorre, mas no comoagentes da mudana evolutiva. Diz-se assim que as mudanas acontecem em, mas no soocasionadas por populaes de organismos.

    Mas se a forma, como eu argumento aqui, no uma propriedade dos genes, e sim de sistemasde desenvolvimento, para explicar a evoluo da forma precisamos entender como estes sistemasso constitudos e reconstitudos ao longo do tempo. Vimos que aquilo que um organismo

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  • inicialmente recebe de seus predecessores inclui, alm de sua carga de material gentico, oambiente no qual este material est disposto. Essa disposio configura relaes especficasinscritas na forma em desenvolvimento. medida em que se desenvolve, porm, o organismotambm contribui, por meio de suas aes, para as condies ambientais, no apenas para o seuprprio desenvolvimento posterior, mas para o desenvolvimento de outros organismos de seuprprio tipo e de tipos diferentes com os quais ele se relaciona. Ele pode faz-lo diretamente,por sua presena imediata no ambiente de outro, ou indiretamente, na medida em que suas aesconservam, modificam ou transformam o ambiente da experincia de outro. Por exemplo, acriana humana pode crescer cercada por pais e irmos, em uma casa construda h muito tempopor predecessores que ela nunca conhecer. Contudo, todas essas pessoas, e sem dvida muitasoutras mais, desempenham ou desempenharam sua parte no estabelecimento das condies parao desenvolvimento da criana. Inversamente, medida em que ela cresce e seus poderes deagncia se expandem, ela ir contribuir por seu turno para as condies de desenvolvimento deseus prprios contemporneos e sucessores.

    No que se refere aos seres humanos, usual falar do processo pelo qual as pessoas de cadagerao conformam, atravs de suas aes, os contextos nos quais seus sucessores vivero, comohistria. Meu ponto, porm, que a histria humana no seno uma parte de um processo queacontece em todo o mundo orgnico (ver Ingold 1990: 224). Neste processo, os organismosfiguram no como os produtos passivos de um mecanismo a variao sujeita seleo natural situado fora do tempo e da mudana, mas como agentes ativos e criativos, ao mesmo tempoprodutores e produtos de sua prpria evoluo (Ho 1991: 338). E isto porque cada organismono apenas se desenvolve num campo mais amplo de relaes, como tambm contribui atravsde sua atividade para a perpetuao e a transformao desse campo. Assim, o que ele faz aolongo da sua vida no consumido na reproduo de seus genes, mas incorporado aospotenciais de desenvolvimento de seus sucessores. No pode haver, portanto, nenhuma separaoentre ontogenia e filogenia, desenvolvimento e evoluo. A ontognese, longe de ser acessria mudana evolutiva, a prpria fonte a partir da qual o processo evolutivo se desdobra.

    Para prevenir qualquer possvel mal-entendido, deixem-me ser claro em relao ao que estoudefendendo. Eu no nego a existncia do genoma ou sua importncia como um regulador doprocesso de desenvolvimento. Tambm no nego que mudanas podem ocorrer e ocorrem nacomposio do genoma, como resultado da mutao, recombinao e replicao diferencial deseus segmentos constituintes atravs das geraes. O que eu nego, porm, que o genomacontenha uma especificao da forma essencial do organismo, ou de suas capacidades para aao e, portanto, que um registro de mudana gentica seja em qualquer sentido equivalente auma explicao de sua evoluo. Boa parte da mudana gentica ocorre sem nenhum corolrioao nvel da forma ou do comportamento; inversamente, transformaes morfolgicas ecomportamentais significativas podem ocorrer sem quaisquer mudanas correspondentes nogenoma. Vimos que, uma vez que os organismos, em suas atividades, podem modificar ascondies de desenvolvimento das geraes subsequentes, sistemas de desenvolvimento e ascapacidades neles especificadas podem continuar a evoluir sem exigir nenhuma mudanagentica. Em nenhum lugar isto mais evidente que na evoluo da nossa prpria espcie. A fimde explicar como a mudana pode ocorrer na ausncia de modificao gentica significativa, ateoria evolutiva ortodoxa teve que conceber uma segunda via, a histria da cultura, sobreposta base de uma herana gentica resultante da evoluo. Contudo, uma vez que se reconhece queas capacidades se constituem no interior de sistemas de desenvolvimento, ao invs de seremtransportadas com os genes como um dote biolgico, podemos comear a ver como asdicotomias entre biologia e cultura, e entre evoluo e histria, podem ser descartadas. Esta aquesto da qual passo a me ocupar.

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  • Biologia e cultura

    Comeo retomando a comparao entre andar e pedalar. A locomoo bipedal, de acordo com ateoria ortodoxa, parte da constituio biolgica humana ou seja, tida como uma propriedadedo gentipo anatomicamente moderno. Vimos, porm, que o gentipo o produto dos esforosdos bilogos para atribuir as capacidades do organismo a um programa interno, que consistirianum conjunto de regras ou algoritmos capazes de gerar respostas apropriadas sob quaisquercircunstncias ambientais. Se a capacidade de andar compete ao gentipo, ento deve serpossvel compreender o andar como expresso de um programa desse tipo, desenvolvido pelaseleo natural e introduzido com o genoma em diversos contextos de desenvolvimento. O quefazer com a capacidade de andar de bicicleta? pouco provvel que se possa aprender algumacoisa sobre as origens e o desenvolvimento dessa capacidade por meio do exame de mudanasnas frequncias de genes entre os ciclistas! Admite-se consensualmente que andar de bicicletano faz parte do gentipo humano e, por essa razo, no se considera em geral que tenhaevoludo no sentido biolgico. Contudo, andar de bicicleta claramente uma habilidade que, emalgum sentido, transmitida de uma gerao a outra. No pode, portanto, ser atribuda aofentipo, uma vez que os caracteres fenotpicos no so transmitidos atravs das geraes.

    Para acomodar o tipo de transmisso no-gentica que parece estar em operao aqui, prope-sefrequentemente que, em populaes humanas, um segundo modo de herana opera em paralelocom a gentica. Os seres humanos, como afirma Durham, esto de posse de dois grandessistemas de informao, um gentico, o outro cultural (1991: 9). A capacidade de andar debicicleta, ento, estaria compreendida em um anlogo cultural do gentipo um culturtipo[culture-type] (Richerson e Boyd 1978: 128) cujos elementos ou traos constitutivos seencontrariam igualmente codificados em meios simblicos. Este modelo de enculturao sebaseia exatamente nas mesmas premissas expostas acima em relao transmisso gentica. Elepressupe que a mensagem cultural que o indivduo recebe de seus coespecficos preexiste asua representao simblica, que a mensagem pode ser lida dessa representao por meio deregras de decodificao independentes do contexto, e que essa leitura precede a aplicao doconhecimento cultural recebido nos cenrios da prtica. Desse modo, uma distino clara temque ser traada entre a transmisso intergeracional da informao cultural e sua expresso nacarreira de cada indivduo, exatamente paralela distino que a teoria ortodoxa da biologiaevolutiva traa entre a transmisso dos elementos que constituem o gentipo e a concretizaodeste ltimo, na vida de cada organismo, sob a forma do fentipo. A primeira dessas distinestem sido feita convencionalmente por meio de um contraste entre aprendizado individual esocial.

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  • Figura 4 Aprendizado individual e social. As setas verticais representam a transmissointergeracional da informao cultural pelo aprendizado social na sequncia ancestral-descendente C1 C4. As setas horizontais representam os processos de aprendizado individualatravs dos quais, em cada gerao, os esquemas culturais recebidos so traduzidos emcomportamento (B1 B4) em condies ambientais dadas (E1 E4). Comparar com a Figura 1.

    Aprendizado individual, aqui, refere-se ao modo como o comportamento adquirido, tal comoa morfologia, atravs da direo ambiental de um desenvolvimento que culmina no fentipomaduro. Sob este aspecto, cada organismo aprende por si mesmo, pela experincia, e o processode aprendizado coextensivo a sua prpria vida. O aprendizado social, por outro lado, refere-se transmisso, atravs das geraes, de um corpo de conhecimentos culturais sob a forma de umatradio. Esta tradio consiste no no prprio comportamento, mas em um sistema de esquemas planos, receitas, regras, instrues (Geertz 1973: 44)[10] para ger-lo. No caso de andar debicicleta, por exemplo, o que um indivduo adquire de outros mais experientes so os elementosde um programa, anlogo ao programa codificado geneticamente que supostamente assegura acompetncia em andar, e que concretizado por meio da prtica e da experincia em umambiente. Note-se como esta diviso entre os componentes sociais e individuais do aprendizadoefetivamente divorcia a esfera de envolvimento do aprendiz com outrem dos contextos do seuengajamento prtico no mundo. Ela pressupe que o que passado adiante, no aprendizado, uma especificao para o comportamento independente do contexto, e que tal especificao estdisponvel para transmisso, em forma codificada, fora das situaes de sua aplicao. Emconformidade com isso, acredita-se que a estabilidade intergeracional da forma cultural reside nafidelidade com que esta informao replicada de uma mente a outra.

    Como uma descrio do que acontece quando se aprende a andar de bicicleta, ou, alis, naaquisio de qualquer outra habilidade prtica, isto altamente artificial. Primeiro, porque a artede pedalar como alis a de andar desafia a codificao em termos de qualquer sistema formalde regras e representaes. Mesmo que fosse possvel criar um programa para andar de bicicleta, pouco provvel que uma criatura dotada de tal programa, e equipada com uma mquina parapedalar, fosse capaz de adquirir a destreza do praticante competente. Alm disso, a assistnciados adultos necessria acima de tudo para fornecer demonstrao e apoio isto , para criarsituaes nas quais o aprendiz tenha oportunidade de pegar o jeito por si. O mesmo verdadeiro

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  • no aprendizado da linguagem, descrito adequadamente como um processo de reinvenodirigida (Lock 1980) no qual a contribuio dos adultos no ambiente da criana fornecerinterpretaes contextualmente especficas de suas emisses vocais, que conduzem a criana descoberta de como as palavras podem ser usadas para exprimir significados. A contribuio decada gerao para a seguinte, pois, no so regras e esquemas para a produo docomportamento apropriado, mas as condies especficas de desenvolvimento nas quais ossucessores, crescendo num mundo social, adquirem suas prprias habilidades e disposiesincorporadas.

    Palavras e atos, naturalmente, so cheios de significado, e em qualquer situao de aprendizado onefito ir ouvir o que as pessoas dizem e assistir ao que elas fazem. Mas no existe nenhumaleitura de palavras ou atos que no seja parte da orientao prtica do prprio nefito ao seuambiente. Palavras ditas, por exemplo, tomadas em si mesmas, no servem, assim como osgenes, para alguma coisa. Elas no introduzem significado nos contextos de interao, comorequer o modelo de transmisso de informao. Em vez disso, e novamente tal como os genes,elas retiram seus signficados dos contextos de atividades e relaes nos quais elas esto emuso[11]. Desse modo, a cultura, como um corpo de conhecimento tradicionalmente transmitido,independente do contexto, codificado em palavras ou outros meios simblicos, no pode existirem parte alguma exceto na mente do observador antropolgico. Ela derivada por abstrao docomportamento observado, exatamente da mesma forma que o bilogo deriva o gentipo porabstrao das caractersticas observadas do organismo, e o linguista deriva uma gramtica doregistro de enunciados. E, pelo mesmo artifcio que j observamos nos campos da lingustica eda biologia, imagina-se que esta abstrao esteja implantada nas mentes dos prprios atores,como a fonte geradora de suas condutas.

    Na direo oposta, argumentei que, quer nossa ateno se volte a andar ou pedalar, falar ouescrever, fabricar ferrramentas ou operar mquinas, o que as pessoas fazem no pode sercompreendido como expresso comportamental de um programa interno, mas somente comoatividade intencional do organismo humano inteiro em seu ambiente. Assim, para reiterar minhaconcluso precedente, no h nenhum fundamento em distinguir capacidades para a ao devidas biologia daquelas devidas cultura. verdade que h coisas que os seres humanos podemfazer que so aparentemente impossveis para quaisquer outras criaturas, mesmo que tenhamsido criadas em um ambiente humano. E razovel supor que esses potenciais no teriamemergido se no fosse por certas mudanas no genoma que poderiam, em princpio, serrastreadas em populaes ancestrais. Mas o genoma, sozinho, no especifica nenhum tipo decapacidade. Desse modo, buscaremos em vo uma capacidade para a cultura, cuja emergnciaevolutiva teria marcado o que algumas vezes chamado de revoluo humana. E isto porqueno existe tal coisa, separadamente das capacidades diversas de seres humanos que crescem emdiferentes ambientes. Essas diferenas de experincias de desenvolvimento, como mostrei, soincorporadas anatomicamente, de modo a fazer de cada um de ns um organismo de um tipodiferente.

    Evoluo e histria

    Onde ficam os Cro-Magnons nisso tudo? Sua entrada em cena realmente marcou o surgimentode gente inteiramente como ns? claro que no somos de modo algum perfeitos; noobstante observa Howells no injusto dizer que o Homo sapiens parece ter concludo o

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  • progresso humano que o Pleistoceno deixara inacabado (1967: 242). Em outro sentido, contudo,o progresso humano mal tinha comeado. Estes dois sentidos de progresso correspondem, comovimos, ao que costumeiramente distinguido como evoluo e histria. Esta uma distinoque, em geral, no seria feita para qualquer outra espcie. Em outras palavras, assume-se que nopode haver mudanas cumulativas ou progressivas nas capacidades comportamentais de espciesno-humanas que no estejam ligadas a mudanas evolutivas em suas formas essenciais,especficas da espcie. Por essa razo, ningum acha necessrio falar, por exemplo, doschimpanzs anatomicamente modernos ou de elefantes anatomicamente modernos. O que oconceito de modernidade anatmica faz, com efeito, reconhecer um sentido alternativo em queas pessoas podem ser modernas, mas to somente para coloc-lo alm dos limites, como algoque no interessa ao estudioso da evoluo biolgica humana. Este segundo sentido demodernidade, contudo, fundado como em um compromisso com a supremacia da razo, estcontido no prprio projeto da cincia contempornea e sustenta sua pretenso de ser capaz defornecer uma explicao autorizada das operaes da natureza. Eis a contradio a que me referino incio. O processo histrico, que pretensamente eleva a humanidade a um nvel de existnciasuperior ao puramente biofsico, tido pela cincia como aquilo que fornece a plataforma apartir da qual seus praticantes que, claro, so tambm seres humanos podem lanar suasdeclaraes de que os humanos so apenas mais uma das espcies da natureza (Foley 1987).

    As razes da contradio precedem consideravalmente o surgimento da teoria evolutiva em suaforma moderna darwiniana, remontando a um dualismo bsico no pensamento do sculo XVIIIentre natureza e razo. Em seu Systema Naturae de 1735, Lineu reconheceu o estatuto do homemcomo uma espcie no interior do reino animal, sob a designao Homo. Diferentemente de todasas outras espcies animais, contudo, no era por suas caracteristicas fsicas que ele deveria serconhecido. Com efeito, Lineu declarou sua enorme dificuldade em encontrar qualquer critriodefinitivo pelo qual os seres humanos pudessem ser distinguidos anatomicamente dos grandesprimatas, e acabou optando por apresentar a distino humana sob a forma de umarecomendao: Nosce te ipsum (conhece por ti mesmo). em sua sabedoria, pensava Lineu,no em sua forma fsica, que o homem difere essencialmente dos macacos. Em virtude de nossasingular faculdade intelectual da razo, somos os nicos seres que podem buscar conhecer, pelosnossos prprios poderes de observao e anlise, que tipos de seres ns somos. No h cientistasentre os animais.

    Os grandes tericos da evoluo social e cultural do sculo XIX homens como Edward Tylor eLewis Henry Morgan situaram suas narrativas do progresso humano num quadro igualmentedualista. Enquanto todas as espcies animais eram ordenadas, conforme sua forma fsica, emuma cadeia do ser culminando na humanidade, supunha-se que esta ltima havia sidosingularmente dotada pelo Criador com uma conscincia incorprea que, atravs da histria, temavanado progressivamente sob a direo de suas prprias leis de desenvolvimento, nos limitesde um corpo que no sofreu alterao (Ingold 1986: 58-60). Desse modo, todos os seres humanoseram tidos como iguais em sua natureza essencial e potenciais de desenvolvimento, massupunha-se que as populaes diferiam no grau em que esses potenciais haviam sido realizadosna passagem da selvageria civilizao. Com a publicao, em 1871, de The descent of man deDarwin, a doutrina do potencial humano comum ou, como era ento conhecida, da unidadepsquica da humanidade foi posta em questo, desafiada pela ideia de que diferenasinterpopulacionais na escala de civilizao poderiam ser atribudas a variaes anatmicas,sobretudo no tamanho e complexidade do crebro. Thomas Huxley chegou ao ponto de declararque a superioridade do europeu em relao ao selvagem portador de um crebro supostamentepequeno no era diferente, em princpio, da superioridade do selvagem em relao ao macacoportador de um crebro ainda menor. Sucedeu-se um perodo de racismo desenfreado do qual a

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  • antropologia s comeou a se recuperar na segunda dcada do sculo XX. E ela o fezreafirmando a universalidade da natureza humana, e insistindo em que quaisquer que sejam asdiferenas entre populaes quanto a suas caractersticas biolgicas, elas no tm nenhumaconsequncia para a histria e para o desenvolvimento cultural.

    Com efeito, quando se assume que a constituio biolgica dos organismos humanos dadacomo um dote gentico, no possvel escapar do racismo a menos que a variao cultural sejadesconectada da biolgica. Claramente, no h nenhum fundamento factual para a crenaraciolgica de que diferenas culturais tm uma base gentica. Meu ponto, porm, que, ao viraras costas ao dogma racista, a teorizao subsequente sobre a evoluo humana reconstituiu aviso do sculo dezoito em todos os seus aspectos essenciais. Mais uma vez os seres humanosaparecem de forma dual, de um lado como uma espcie da natureza, de outro como criaturas que de modo nico entre os animais conquistaram uma tal emancipao do mundo da natureza aponto de fazer dela um objeto de sua conscincia. verdade que, diferentemente de Lineu, osestudiosos contemporneos da evoluo humana so capazes de apontar com alguma precisoum conjunto de caractersticas anatmicas pelas quais os seres humanos podem ser distinguidosno apenas de primatas no-humanos atualmente existentes como tambm de seus antepassadoshomindeos pr-humanos. Estas so as caractersticas diagnsticas para o reconhecimento damodernidade anatmica. Mas humanos deste tipo reconhecivelmente moderno no evoluramcomo cientistas, muito menos com uma teoria pr-fabricada da evoluo. A cincia e suas teoriasso tidas amplamente como produtos de um processo cultural ou civilizacional muito distinto doprocesso da evoluo biolgica: um crescimento cumulativo do conhecimento que manteveinalterada nossa natureza bsica.

    Temos assim dois continua distintos, um evolutivo, conduzindo de formas pongdeas ehomindeas ancestrais at o Homo sapiens sapiens anatomicamente moderno, o outrohistrico, conduzindo do nosso passado presumido de caadores-coletores at a cincia e acivilizao modernas (Ingold 1998: 89-93). A interseo desses continua configura um ponto deorigem, sem paralelo na histria da vida, quando nossos ancestrais se encontravam no limiar dacultura e, pela primeira vez, viram-se face a face com o significado.

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  • CULTURA

    HISTRIA -- Cientistas ocidentais

    EVOLUO BIOLGICA -- Cro-Magnons

    Australopitecneos Origem dos humanos modernos

    H. Habilis

    H. Erectus

    Neandertais

    Figura 5 A origem da verdadeira humanidade, concebida como situada na interseo entre ocontinuum da evoluo biolgica, desde as formas ancestrais pongdeas e homindeas at oshumanos anatomicamente modernos, e o continuum da histria da cultura, desde a caa e acoleta do Paleoltico at a cincia e a civilizao modernas.

    Acredita-se que este ponto marca a emergncia do que por vezes chamado de verdadeirahumanidade (ver, por exemplo, Botscharow 1990: 64), ou a chegada, nas palavras de Howell,da nova espcie nossa espcie de homem (1967: 242). Este tipo de homem, equipadoanatomicamente para a vida como caador-coletor, possua uma mente que o capacitaria, nodevido tempo, a raciocinar como um cientista. O homem de Cro-Magnon, ao que parece, tinhatodo o potencial biolgico necessrio para fazer dele um cientista: seu crebro era to grande, eto complexo, como o de Einstein. Mas o tempo ainda no havia chegado, em sua poca, paraque esse potencial pudesse vir tona. Distendida entre os plos da natureza e da razo,epitomizada, respectivamente, pelas figuras contrastantes do caador-coletor e do cientista,encontrar-se-ia toda a histria da cultura humana, uma histria que teria se desenrolado nosparmetros de uma forma corporal essencialmente estvel. E essa forma, que todos os homenssupostamente recebem como um dote biolgico comum, a despeito de circunstncias culturais ouhistricas, nada mais , naturalmente, que o gentipo do homem moderno.

    Tal como na doutrina da unidade psquica do sculo XVIII, diz-se que o gentipo humano embora configurado pela seleo natural e no por interveno divina estabelece uma baseuniversal para o desenvolvimento cultural. Como uma representao ideal da forma essencial dahumanidade, o humano moderno , em si mesmo, uma criatura do pensamento Ocidentalmoderno. Ele (ou ela) concebido como uma sntese de tudo o que um ser humano poderia ser,um compndio de capacidades universais abstradas das mltiplas formas de vida queefetivamente apareceram na histria, e retroprojetadas no passado Paleoltico como um conjuntode potenciais de desenvolvimento geneticamente inscritos, que sustentariam sua realizao.[12]Desse modo, o curso da histria aparece como o desdobramento progressivo das capacidadeslatentes de nossos ancestrais, fixadas biologicamente na evoluo ainda antes do incio da

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  • histria. H certa ironia aqui. Os bilogos, que h muito tempo cooptaram a noo de evoluopara descrever o processo que Darwin havia originalmente chamado de descendncia commodificao, tm sido severos em sua crtica aos cientistas sociais que continuaram a usar anoo, com referncia histria humana, em seu sentido original de desenvolvimentoprogressivo. No entanto, esta viso da histria humana como a atualizao gradativa depotenciais inatos est implcita em sua prpria teoria!

    Argumentei que a distino entre evoluo e histria, tal como estabelecida na viso ortodoxa,no pode ser sustentada. Vista como um processo pelo qual as pessoas, em suas atividades,modelam os contextos de desenvolvimento para seus sucessores, a histria reaparece como acontinuao, com outro nome, de um processo de evoluo que est em curso em todo o mundoorgnico. No Dezoito Brumrio, Marx escreveu que os homens fazem sua prpria histria, masno a fazem como querem; no a fazem sob circunstncias de sua escolha e sim sob aquelas comque se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado[13] (Marx 1963 [1869]: 15). exatamente da mesma maneira que os organismos em geral fazem sua prpria evoluo. Noexiste, portanto, um ponto de origem no qual a histria comeou; nenhum momento deemergncia da verdadeira humanidade. Logo, no precisamos de uma teoria para explicarcomo os macacos se tornaram humanos, e de uma outra para explicar como (alguns) homens setornaram cientistas. A evoluo humana no terminou com a chegada dos Cro-Magnons,prosseguiu at o presente embora agora a chamemos de histria. Procurei mostrar que asdiversas formas e capacidades que emergiram neste processo no so nem dadas de antemocomo uma dotao gentica, nem transmitidas como componentes de um corpo separado deinformao cultural; so antes geradas em e atravs do funcionamento dinmico de sistemas dedesenvolvimento constitudos em virtude do envolvimento dos seres humanos em seus diversosambientes.

    Para os humanos, assim como para quaisquer outros organismos, tal envolvimento umacondio inescapvel de existncia. Eu acredito que precisamos reformular inteiramente o modocomo pensamos sobre evoluo, tomando esta condio de envolvimento como nosso ponto departida. A teoria ortodoxa, que atribui a mudana evolutiva a modificaes subjacentes nogentipo, requer que os seres humanos sejam completamente especificveis, independentementedos contextos relacionais de seu desenvolvimento. Mas uma tal especificao, como mostrei,existe somente na mente do observador e, portanto, introduz uma diviso entre mente e mundo,ou entre razo e natureza, como um a priori ontolgico. Na verdade, no existe nenhuma formaessencial da humanidade, especfica da espcie, nenhuma maneira de dizer o que um humanoanatomicamente moderno independentemente das mltiplas maneiras que os humanosefetivamente se tornam (Ingold 1991: 359). Essas variaes de circunstncia dedesenvolvimento, no de herana gentica, fazem de ns organismos de tipos diferentes. Dessemodo, minha concluso de que as diferenas que chamamos culturais so de fato biolgicas notraz consigo nenhuma conotao racista. Ao reenquadrar o ser-humano-em-seu-ambiente,podemos prescindir de uma caracterizao da humanidade em termos da especificao daespcie, assim como da oposio entre espcie e cultura. As pessoas habitam um mundo, noporque suas diferenas so sustentadas por universais da natureza humana, mas porque elas estoinseridas juntamente com outras criaturas em um campo contnuo de relaes, em cujosdesdobramentos toda diferena gerada.

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    Notas

    [1] Ingold, Tim. People like us. The concept of the anatomically modern human. In Theperception of the environment. Essays on livelihood, dwelling and skill. London and New York:Routledge, 2000. Captulo 22, pp. 373-391.

    [2] N.T.: O autor faz referncia neste ponto anlise desenvolvida no captulo anterior, intituladoThe dynamics of technical change (The perception of environment, p. 362-372).

    [3] Com base em seus estudos de restos de esqueletos provenientes da aldeia neoltica de AbuHureyra, no atual Norte da Sria, Theya Molleson deduziu que as mulheres residentes na aldeiapassavam longas horas ajoelhadas no cho moendo gros em um triturador manual. Padres dedesgaste nos dedos grandes dos ps e nos joelhos, e protuberncias nos ossos do brao eantebrao, nos pontos de insero de msculos que teriam sido muito desenvolvidos, sointeiramente consistentes com essa interpretao. tentador considerar as marcas produzidas noesqueleto por essa atividade como deformidades ou anomalias (Molleson 1994: 62-3). Contudo,os ossos do esqueleto s podem crescer e tomar forma num corpo ativo no mundo; assim, s possvel definir o esqueleto normal em relao a atividades normais. Por que a patela

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  • estriada que resulta do agachamento prolongado deveria ser considerada anormal quando, para agrande maioria da populao humana, esta a posio usual de descanso? Ela s percebida porns como uma anomalia porque, tendo crescido em uma sociedade em que usual sentar emcadeiras, consideramos ter que nos agachar, por qualquer lapso de tempo, terrivelmentecansativo. Logo, no pode existir uma forma padro do esqueleto humano.

    [4] N.T.: Ingold se refere ao captulo anterior (The dynamics of technical change), emparticular s pginas 364-5.

    [5] Desenvolvo este argumento no prximo captulo (pp. 397-98).

    N.T.: Ingold se refere ao captulo 22 de The perception of environment, intitulado Speech,writing and the modern origins of language origins.

    [6] N.T.: Cf. a edio brasileira de A Interpretao das Culturas, captulo 2, O impacto doconceito de cultura sobre o conceito de homem (Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1989), p.57.

    [7] Citado no captulo anterior, The dynamics of technical change, p. 363 da edio em ingls.

    [8] A histria dessa confuso, que na verdade mais preponderante hoje que no excitanteperodo em que a estrutura do DNA foi esclarecida pela primeira vez, documentada de formasoberba por Lily Kay (1998), em cujo relato me baseio.

    [9] N.T.: Ingold tambm remete o leitor neste ponto ao captulo 18 do livro, On weaving abasket, p. 345-6 da edio em ingls.

    [10] N.T.: Cf. a edio brasileira de A Interpretao das Culturas, captulo 2, O impacto doconceito de cultura sobre o conceito de homem (Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1989), p.56.

    [11] N.T.: Conforme indicao do autor, este ponto retomado no captulo 23 (The poetics oftool use: from technology, language and intelligence to craft, song and imagination), p. 409 daedio em ingls.

    [12] Um dos exemplos mais bizarros dessa forma de pensar vem de um livro recente de DonaldE. Brown, saudado amplamente como uma obra-prima nos crculos da psicologia evolutiva.Intitulado Human universals, o livro oferece uma descrio detalhada do que Brown chama dePessoa Universal (PU). A PU caracterizada por um compndio de traos que todas aspessoas, todas as sociedades, todas as culturas e todas as linguagens tm em comum (Brown1991: 130). Esses traos seriam acrescentados ao que popularmente conhecido como naturezahumana, cuja evoluo confiantemente atribuda seleo natural, e cujo fundamento ltimoestaria nos genes. Uma vez que jamais existiu nenhuma populao humana remotamenteparecida com a PU, difcil ver como teriam evoludo. Com efeito, o que Brown apresenta, sob aaparncia de uma sntese de caractersticas universais, uma mal disfarada verso do modeloOcidental da pessoa.

    [13] N.T.: Cf. a edio brasileira de O 18 Brumrio e Cartas a Kugelmann (Rio de Janeiro: Paz eTerra, 1974), p. 17.

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    Introduo: A viso ortodoxaAndar e pedalarFala e escritaO genoma e o gentipoForma e desenvolvimentoBiologia e culturaEvoluo e histriaReferncias