Inquisição, religiosidade e transformações culturais

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    Inquisio, religiosidade e transformaes

    culturais: a sinagoga das mulheres e a

    sobrevivncia do judasmo feminino noBrasil colonial Nordeste, sculos XVI-XVII1

    Angelo Adriano Faria de AssisDoutorando-Universidade Federal Fluminense

    RESUMO

    A visitao do Santo Ofcio ao Nordeste

    a u ca rei ro entre 1591e 1595 tra ria to-na os con fl i tos sociais e a disputa de in-teresses en tre cristos velhos e novo s .Principais del a t ado s , os neoconvers o stornam-se figuras centrais das acusaesfeitas mesa e vtimas em potencial dasgen eralizaes sobre seu su po s to com-port am en to criptojudaico,acusados das

    mais diversas heresias.Dentre os delata-dos, chama a ateno o significativo n-mero de mulhere s ,b a lu a rtes da resistn-cia ju d a i c a , d i f u s oras de sua cultu ra etradies para as novas gera e s . Re s-pon s veis pelo ambien te dom s ti co, s e-riam as grandes propagadoras do judas-mo sec reto e diminuto que se torn a rapossvel aps as proibies de livre cren-

    a no mundo portugus a partir de 1497,e a instaurao da In qu i s i o, em 1536,qu a n do os lares passaram a repre s en t a rp a pel prepon dera n te para a divu l ga oe sobrevivncia das tradies dos filhosde Israel.Pa l avra s - ch ave : In qu i s i o ; c ri ptoju-dasmo; mulheres.

    ABSTRACT

    The visit of the Ho lly In qui s iti on to the

    northeast ofBrazil between 1591 and 1595would expose social conflicts and disputesof i n terests among old and new Ch ri s-tians. The last were the potential victimsand the main acc u s ed of maintaining ac rypto - judaic beh avi or, performing se-veral heresies. Among the accused, therewas an impre s s ive nu m ber of wom en ,

    cen ter of Jewish resistence,transmit tingthe cultu re and the trad i ti on to then ew gen era ti on s . Af ter the pro h i bi ti onof a ny o t h er faith than Catholicism inthe Portuguese world in 1497 and thest ablishment of the Inqu isiti on in 1536,wom en would become re s pon s i ble forthe diffusion of s ec ret Ju d a i s m . Hom e sbecame a central place to the survival of

    Jewish traditions.Keyword s: In qu is i ti on ; c rypto-jud aism;women.

    Revista Brasileira de Histria. So Paulo, v. 22, n 43, pp. 47-66 2002

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    Ainda que todas as naes que se encon tram na esferado domnio do rei lhe obede a m ,a b a n don a n do cad auma o culto dos seus antep a s s ados e con form a n do - s es ordens re a i s , eu ,m eus filhos e meus irmos con ti-

    nu aremos a seguir a Aliana dos nossos pais. Deus nosl ivre de abandonar a Lei e as trad i e s . No darem o souvido s palavras do rei, des vi a n do-nos de nosso cul-to para a direita ou para a esquerda2.

    A Bblia de Jerusalm

    Ei s , port a n to, minha iden ti d ade nebu l o s a : era um ju-deu no-judeu e um no-judeu judeu. Pertencia a quemeu no pertencia e no pertencia a quem eu pertencia.

    Edgar Morin 3

    CRISTOS VELHOS E BATIZADOS EM P NO TRPICO

    O apagar do sculo XV etern iz a r-se-ia na histria portuguesa como ins-t a n te final da livre convivncia en tre ju deus e cristos na pen n sula Ib ri c a ,d a n do incio ao lon go e ameaador per odo de mon oplio catlico, of i c i a l i-zado atravs da assinatura dos decretos de converso for ada em 1497. Obri-gados a abraar o catolicismo para perm a n ecerem e serem acei tos na soc i e-d ade que ren egava sua crena e tr ad i e s , os ju deus converti dos e seu sde s cen den te s , dorava n te den om i n ados cri s t o s - n ovo s , tra n s form a r- s e - i a mem herdei ros diretos dos precon cei tos e pers eguies outrora de s ti n ados aoslivres seguidores da f de Israel.

    O neoconverso era tomado por uma viso de mu n do com posta por rea-l i d ades ambguas: a cri s t , da qual fazia parte sem que tivesse uma trad i o

    c u l tu ral ou familiar que o ligasse a el a , e a jud ai c a, da qual seus antep as s ado stiveram que se de s l i ga r. O dbio equilbrio em que se situavam fazia com quese en qu ad ra s s em na de scon fort vel posio de cri s t o s - n ovos o que erame sen tiam ser, antes de tudo. Pa ra Anita Novin s ky, a viso de mu ndo divid i daem diferentes realidades sociais e geogrficas faz do cristo-novo uma espciede elo de ligao en tre o ju deu e o cri s t o, assim como tambm o era en trePortugal e as possibilidades de colonizao no ultramar.

    Insatisfeita com as limitaes impostas por lei,todavia , certa parcela dosa gora neoconversos en con tra ria formas de bu rlar as ordenaes reais para ,

    oc u l t a m en te , pro s s eguir comu n ga n do a f do cora o, s en do por isto den o-m i n ados criptoju d eu s su bgru po envo lven do aqu eles qu e , por no concor-

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    d a rem em abandonar as tradies de seus antep a s s ado s , conti nuavam a pra-tic-las em segredo, embora procurando disfarar publicamente a permann-cia na antiga f ao demonstra r, na pr tica do cotidiano, bom comportamentoe sincera devoo crist pera n te a soc i ed ade . Seriam os cri ptoju deu s , con tu-

    do, re s pon s veis pela gen eralizao das de s confianas sociais sobre a verac i-d ade da converso de todo o grupo cristo-n ovo, tra n s formados em alvo dospreferidos do Santo Ofcio.

    A busca ince s sa n te e de s medida pela pureza e retido catlica causaria anece s s i dade de con trole sobre as ameaas unicidade cris t , que iden ti f i c avano criptojudasmo o principal impedimento sua homogen ei d ade, assim co-mo a justific ativa primeira e mais forte para a instaurao do Tribunal do San-to Ofcio da In quisio em terri t rio portu g u s , no ano de 1536, du ra n te o

    reinado de D. Joo III. Ao Santo Ofcio, ca beria a funo de manter a diferen-a entre as classes que havia sido diluda com a converso for ad a , defenden-do os interesses da camada dominante, colocando

    (...) o Ca tolicismo e seus repre s en t a n tes autori z ados a salvo de qu a l qu er crti c aou julga mento, a poiado no preconcei to exi sten te contra os judeus na soc i ed adec rist oc i dental e no direi to cannico, b a s e a n do-se em estatutos de pure z a , qu ese tornavam mais radicais e atu a ntes de acordo com o cre s ci m en to do poder daburguesia4.

    O perm a n en te clima de cre s cen te vi gilncia inqu i s i torial ac a b a ria porgerar transformaes profundas nas relaes sociais,caracterizadas, entre ou-tros aspectos , pela segregao sangnea, in tens i fi c a n do as hosti li dades entreos gru pos de cristos velhos indiv duos con s i derados de sangue puroe os neoconversos vi s tos como de sangue e or i gem m ac u l ado s. Coa gi do s ,mu i tos cri s t o s - n ovos opt a riam pela sada do reino proc u ra de regies demenor excluso social e retaliao religiosa.

    Se, por um lado, o abandono da vida metropolitana proporcionadorade maiores facilidades pesava na deciso de emigrar, a possibilidade de rei-niciar a vida em ambi en te de scon h ec i do e sem a inqui et a n te pre s ena inqu i-s itorial faziam a balana pender em favor da emigrao. Ao longo do primei-ro sculo de pre s ena por tu g u e s a , a regio braslica apre s en t a r-se-ia com ouma das escolhas preferidas dos cri s t o s - n ovo s , espcie de vlvula de escaped a qu eles qu e , c ri ptoju deus ou no, proc u ravam recomear a vida lon ge do sri gores e pers eguies da metr po l e , d i s t a n tes um oce a n o, ao menos das presses ecl e s i s ticas ento viven c i adas no rei n o, on de a Igreja h mu i to

    se en con trava sed i m en t ada e o lon go e on i pre s ente brao da In quisio comf reqncia vi ti m ava os su s pei tos de here s i a . No de se estranhar que a es-

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    trutu rao da In quisio em Portu gal e o con s eq en te aumen to das pers e-guies aos neoconversos a partir da dcada de 1540 tenham sign i f i c ado oaumento das migraes de cristos-novos para a colnia luso-americana.

    O trpico em formao convertia-se em oportunidade de enriqu ecimen-

    to rpido, vi s to que a cana-de - a c a r, su s tentculo de nossa co l on i z a o, j adoava a culinria europ i a ,m o l d a n do os sonhos de cobia de seus produto-res e temperando os rumos da economia. Pelos interesses do acar, organiza-vam-se leis e modos de ocupao do solo; construam-se portos e cresciam ci-d ade s ; tra f i c avam-se negros e mantinha-se a constncia do com rcio com orei no. Seg u ndo Am brsio Fern a n des Bra nd o, que escrevia seusDi logos dasGrandezas do Brasil em incios do sculo XVII com conhecimento de causa porser, como senhor de engenho, ligado ao tal negcio, era a economia aucareira

    a maior fon te geradora de ri quezas da co l n i a , s eguida da merc a n c i a , da ex-plorao do pau-brasil, dos algodes e madeiras, da lavoura de mantimentos eda criao de gado5. sua frente, mu i tos cri s t o s - n ovo s , en obrec i do s pel odinheiro,transformados de comerciantes sem brases em donos de terra e res-pei t veis sen h ore s - de - en gen h o. Fa zer parte do topo desta estrutu ra , perten-cendo ao seleto e diminuto grupo conhecido como aucarocracia, era o augeque bu s c avam todos os que parti c i p avam em algum grau do funcionamentoda econ omia co l on i a l . No resta dvi da , en tret a n to, que o fort a l ec i m en to doprestgio dos descenden tes da nao des agradari a, com o tempo, aos senho-

    re s - de - en genho cristos vel h o s , que se sen tiam ameaados em seu poder no apenas no que tangia produo de acar, mas tambm sobre o comr-cio do produto, em larga escala, nas mos dos mercadores neoconversos.

    Den tre os cri s t o s - n ovos que por aqui de s em b a rc a ra m , pre sume-se aexistncia de uma considervel parcela de criptojudeus.No obstante,a ocor-rncia ou no de criptojudasmo nas fronteiras luso -braslicas s pode ser in-ve s ti gada se levadas em conta as espec i f i c i d ades tem porais e espaciais que acercam. Com o passar do tempo, as proibies lei de Israel e a educao dos

    o utrora ju deus e seus de s cen den tes seg u n do os co s tumes cristos diminu i-riam a resistncia inicial, perm i ti n do uma cre s cen te ad a ptao nova re a l i-dade.Ou seja: quanto mais prximos nos encontrarmos dos personagens quecomu n ga ram livrem en te o judasmo em terras lusas e do instante em qu eocorreu a converso forada dos judeus em cristos-novos , maiores as proba-bi l i d ades ou verossimilhanas de que houvesse neoconversos de fato ju d a i-zantes, s eja pela lembrana da reli gio viven c iada no perodo anteri or con-verso e de s con ten t a m en to pelo cerce a m en to de sua cultu ra , s eja pel o stes temunhos e resistncias de con h ec i dos e paren tes que se faziam ainda for-

    te s . A pr pria pre s ena das visitaes do Sa n to Ofcio no abra n geria tod a sas capitanias da co l n i a ,l i m i t a n do-se s reas de maior interesse metropo li-

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    tano como as regies aucarei ra s , por exemplo , o que torna bastantef luidas as con s i deraes po s s veis sobre a ocorrncia e par ti c u l a ri d ades daspr ticas cri ptojudaicas em out ras re a s , em pobrecen do de s ej veis com p a ra-es sobre estes tipos de manifestao.

    O Brasil fazia-se espao privilegiado para a resistncia criptojudaica,mo-tivada pela rel a tiva harm onia e cumplicidade no conv vio en tre os cri s t o sseparados pelo sangue, possvel devi do ainda plida estruturao ecle s i sti-ca e ausncia de um tr i bunal inqu i s i torial estabel ec i do e atu a n te , tra zen do tona probl emas dirios maiores e mais imed i a tos do que as questes da f,como a presena pouco efetiva do Estado, a carncia de vveres , a falta de ma-teriais e ferramentas para as tarefas do trabalho coti d i an o, o perigo de ataquepor animais selvagens , o risco de doenas tropicais, ou as ameaas de aborda-

    gens de piratas e do gentio indmito, entre outro s ,f a zendo-os aliados de pri-m eira hora contra inimigos comuns e maiores do que as su s peitas de heres i areligiosa na busca primordial pela sobrevivncia em ambiente inspito. Alis ,a clebre frase de nosso pri m ei ro historiador, frei Vicente do Sa lvador, que li-mitava os portugueses a caranguejos arranhadores da costa,alm das refern-cias econmicas que nos su s c i t a m , t a lvez re s s oe ainda o incon s c i en te daqu e-les hom ens presos ao litoral no s por op o, mas por nece s s i d ade , por serregio mais segura na defesa dos variados perigos advindos do interi or e faci-litar a pro teo do que j fora con qu i s t ado de po s s veis ataques estra n gei ro s

    pelo mar, alm, claro, de ser o litoral ponto inicial da viagem de volta ao rei-no, objetivo de muitos dos que aqui chegavam6.

    Prova do bom convvio entre os cristos puros e a aflita gente, a pre-s ena neoconversa em pra ti c a m en te todos os espaos da econ om i a , i m bri-c a n do-se nos mais diversos nveis soc i a i s , ch ega n do mu i tos deles a oc u p a rc a r gos e posies de impor t n c i a : o uvi dores da Va ra Ecl e s i s ti c a , m e s tres del a tim e ari tm ti c a , s en h ore s - de - en gen h o, rel i gi o s o s , prof i s s i onais letr ado s ,m di co s , advogado s , vere adore s , ju ze s ,e s c riv e s ,m ei rinhos e almox a ri fe s , o

    que ref l ete o alto grau de miscibi l i d ade na colnia se com p a rado s outra s reas de migrao dos crist os- n ovos partidos de Portu ga l , como o Norte eu-ropeu, as geograficamente descontnuas ocupaes no Oriente e o Levante.

    Tambm os co s tu m ei ros matrimnios en tre os dois gru pos ref l etem ea testam o bom conv vi o. O gra n de nmero de casamentos en tre cri s t os - ve-lhos e novos , embora em parte possa ser ex p li c ado pela escassez de mu l h eresbrancas no ultramar dispon veis para o matri m n i o, torn a n do disput ad s s i-mas as mooilas de famlia neoconvers a ,m o s travam-se bastante ju s tos paraambas as parte s : se aos hom ens de sangue puro i n tere s s ava mu l h eres bra n-

    ca s , mesmo que custa de um matrimnio com don zelas cri st s -n ova s, p araa famlia neoconversa a filha servia de negociata na busca da diminuio da

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    poro de mcula hebraica e das presses sociais dela oriu n d a s , con s eg u i n-do-se casamen tos com pess oas influ en tes e de boa situao econmica, o qu eno deixa de ra tificar a maior aceitao social de s tes en l aces e a diluio do satri tos no conv vio en tre os gru po s . Sem contar os grossos do tes que por ve-

    zes acom p a n h avam as filhas proc u ra de mari do, torn a n do-as ainda maisa traentes. Eva l do Ca bral de Mello con f i rm a :en tre os indiv duos de ori gemportu guesa, preva lecia uma relao de 3,7 hom ens para cada mu l h er . A con-cluso cl a ra :como seria de prever, as alianas de cris t o - velho com cri s t -nova tornaram-se trs vezes mais numerosas do que entre cristo-novo e cris-t-velha7.

    O estreito convvio en tre os gru pos traria no s a miscigenao sang-n e a , mas tambm a de co s tu m e s . Mu i tos foram os casos de con fe s s ores e de-

    nunciantes que relatariam ao Santo Ofcio prticas hebraicas como sendo cos-tumes familiares herd ados dos antece s s ore s , como jogar fora a gua de casaquan do do falec i m en to de algum, o modo de preparo ou recusa a certos ali-m entos , ou ainda a forma de ben zer os filhos, a f i rm a n do ao vi s i t ador de s co-nhecerem-lhes a con den vel ori gem . Mesmo alguns cristos vel ho s , a pri n-cpio insu s pei tos de cri ptojudasmo por serem isen tos de qu a l qu er mculasang nea, con f i rm a riam esta real i d ade, ao recon h ecerem a adoo de algunsdestes hbi tos def i ni dores do judasmo por ignor nc i a , tornando-se com pa r-sas invo lu nt rios do cri ptojudasmo bra s li co. Exemplo de circ u l a ri d ade cul-

    tu ral que sign i f i c ava , mais do que um com port a m en to con s c i en c i o s a m en teju d a i z a n te de parte da populao em bora , em alguns casos, i s to inegavel-m en te ex i s tisse , o fort a l ec i m en to de uma rel i gio pop u l a r, h brida e hu-m a n i z ad a ,i n f lu en c i ada pelos diversos grupos form adores da sociedade co lo-n i a l , l on ge da ri gi dez que caracteri z ava o catolicismo no rei n o, e em gra n departe beneficiada pelo despreparo dos prprios representantes da Igreja,tam-bm eles de s con h ecedores da f pela qual zel ava m , en tre os pr imeiros a de s-re s pei t - l a8. O bom con t a to en tre cristos velhos e novo s , tod avi a , ga n h a ri a

    con tornos mais dra m ti cos com as visitaes do Sa n to Ofcio s capitaniasa u c a rei ras do Norde s te co l on i a l , rom pen do com o qu ad ro de rel a tiva har-monia no convvio entre os grupos.

    A presena da Inquisio no Brasil relaciona-se atitude de expanso dosrgos de controle do prprio Estado. Lembremos,contudo, que o Brasil esta-va sob a tu tela do Tribunal do Sa nto Ofcio de Lisboa , no haven do a instau-rao formal de um tribunal inquisitorial especfico para a Amrica portugue-s a , l i m i t a n do-se a visitaes espordicas e pre s ena de familiares do Sa n toOfcio. Das trs visitaes conhecidas ao Brasil 1591-1595 (Bahia, Pernam-

    buco, Itama rac e Pa ra b a) , 1618-1620 (Bahia) e 1763-1769 (Gr o-Par) , s i gn i f i c a tivo que as duas pr i m ei ras ocorre s s em du ra n te o per odo de Un i o

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    Ibrica, o que parece representar mais uma poltica de ideologia expansionistado governo filipino do que aquela at ento seguida pelos portugueses.

    Na histori ografia sobre o tem a , a ch egada ao Brasil dos vi s i t adores e des eus squ i tos en con tram ju s ti f i c a tivas diferen te s . Anita Novi n s ky vincula as

    visitas do Sa n to Ofcio nece s s i d ade de uma vi gilncia mais ativa sobre asreas de maior prosperid ade co lon i al , onde se en contrava uma grande parce-la dos cris t os - novos sados do Rei n o. J Sonia Siqueira chama a ateno pa-ra a defesa dos interesses dos co l on i z adore s , com prom etida que estava a In-quisio com certas diretrizes do trono, a u m en t a n do a vi gilncia em rel a os crenas e evi t a n do o en ra i z a m en to dos ideais ju d a i cos na co l n i a , i nve s ti-ga ndo s obre que estrutu ras calcava-se a f, e buscan do integrar o Brasil nomu n do cri s to, cnscia de sua responsabi lidade de reprimir e prevenir a di-

    fuso de here s i a s, acred i ta n do, s eus agen te s , que estavam cuidando, prin c i-p a l m en te , de prom over a fel i c i d ade tra n s cen den te dos indiv du o s , certos deestarem assim servindo a Deus9.

    Ron a l do Va i n f a s , por sua ve z , assim define os motivos da pre s ena doTribunal da Inquisio nas capitanias aucareiras em fins do pri meiro sculode domnio portugus:

    E s tou em parte de acordo com Anita Novinsky, para quem o Sa nto Ofcio veio cata de cri s t o s - n ovo s , pois foram el e s , a f i n a l , os rus preferenciais da In qu i s i-

    o portuguesa nos quase tre zen tos anos de sua ex is tn c i a. Sonia Siqu eira pare-ce tambm correta ao vincular o envio da Visitao ao interesse em i n tegrar oBrasil no mu n do cri s t o, em bora diga o bvio ao de s t acar que o Sa n to Ofcioveio investigar sobre que estruturas calcava-se a fde nossos moradores.O San-to Ofcio fazia isso em toda a parte. Na verdade , a Visitao ao Brasil no po s suiqu a l qu er razo espec i a l ,i n clu i n do - s e ,a n te s , no va s to programa ex p a n s i on i s t aexec ut ado pelo Sa n to Ofcio na ltima dcada dos Quinhen to s . Aps con s o l i-d a r-se no Rei n o, pois fora cri ada em 1536, a In quisio esten deria seu brao ao

    u l tra m ar, vi s i t ando no s o Bras il, mas tambm An gola e as ilhas da costa afri-cana, os Aores e a Madeira...

    E complementa:

    Consolid ada no Reino, e acrescent ando a seus prop sitos origi na l m en te anti-s e-mitas o esprito da Contra-Reforma, a Inquisio ordenaria diversas inspees nosdomnios lusitanos do alm-mar. (...) Ao mesmo tempo em que Heitor Fu rtadode Mendona visitava a Bahia, Pernambuco,Tamarac e Paraba, Jernimo Teixei-

    ra percorria os Aores e a Madeira, e pouco depois (1596-1598) seria a vez do pa-dre Jorge Pereira visitar o reino de Angola por comisso do inquisidor-geral10.

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    E mbora tenhamos notcia da existncia de sinagogas co l on i a i s ,a l g u m a sdentre elas funcion a ndo ininterrupt amente por mais de trs dcad a s , as con-dies para a realizao dos cultos eram prec ri a s , fruto da intensa vi gi ln c i aa que estavam su bm eti dos os cri s t o s - n ovo s , mas tambm pelo de s con h ec i-

    mento profun do das leis e cerimnias mosaicas por seus pr prios segu idore s fato que se agravava em proporo direta com o afastamento temporal doperodo de livre divulgao do judasmo, fazendo com que seus ritos e crenasganhassem novos contornos,perdendo muito de seus significados origi n ais.

    Como bem lembra Angela Maia, devemos compreender as diferentes for-mas de sobrevivncia e de funcion a m en to destas s n oga s, e as tra n s form a-es sof ridas no culto hebra i co como fatores indispen s veis sobreviv n c i aem ambiente tot a lmente hostil,relativizando os rigorismos do judasmo puro

    em favor das improvisaes nece s s ri a s : mesmo que no funcion a s s em nosmodelos ortodoxos, as sinagogas, como reunies, existiam dentro da comuni-d ade ju d a i z a n te manten do viva a chama da velha f, em bora esta se en con-trasse j bastante detu rp ad a . A anti ga rel i gi o, de tradio letrad a , f i c ava en-to pra ti c a m en te re sumida aos po u cos tex tos ju d a i cos pre s ervado ss ec ret a m en te , a que som avam-se ad a ptao do Eva n gelho catlico e me-mria dos que a conheceram em outra poca ou local.

    Podemos pois con s i derar que sob a den ominao de fazer esnoga, o povo co l o-c ava qu a i s qu er reunies mais ou menos sec retas cel ebradas pelos ju d a i z a n te s ,pois, h muito afastados do judasmo of i cial, eles no tinham nem sinagogas or-ga n i z adas nem ra binos para um culto formal (...) que pudes s em dar um acom-panhamento espiritual comunidade11,(...)

    tudo adaptando-se s dificuldades existentes para a pregao hebraica. Odesconh ecimen to apresentava - s e ,a s s i m , em via du p l a :s e , por um lado, os que

    delatavam os possveis judaizantes encaravam como judasmo qualquer atitu-de que julgass em estra n h a ,c a u s a n do precipitaes de jul ga m en to e general i-zaes de toda espcie, en tre os pr prios cri ptoju deus en con tramos indciosde estran hamento da religio que procuravam seguir s escondidas, pra tican-do o que julgavam ser a crena dos antepassados, embora houvesse profundasd i ferenas en tre el a s . Esta brecha causada pela impo s s i bi l i d ade de sinagoga scomo cen tro ideal de divu l gao soc i oc u l tu ra l - rel igiosa ser preenchida pelolar verdadeiro espao de celebrao judaica e, mais especificamente,pe-

    lo papel de s em pen h ado pela mu l h er cri s t - n ova ju d a i z a n te alada con-dio de lder religiosa para a sobrevivncia da antiga f.

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    RESISTNCIA FEMININA: O JUDASMO POSSVEL

    No judasmo trad i c i onal rel i gio letrada calcada na lei tu ra e discus-so dos livros sagrados , as mu l heres limitavam-se a ocupar posies infe-

    ri ores aos hom en s , como locais sec u n d rios no culto e papis pbl i cos limi-t ado s , receben do apenas uma educao mnima, a pon to de se crer que eram el h or qu eimar as sagradas palavras da To r do que tra n s m i ti-las e en s i n -las s mulheres.A proibio da f hebraica no Mundo Portugus e a nova im-portncia dada educao no lar, porm, levariam a uma transformao des-tes papis, tra n s form a n do o judasmo numa espcie de rel i gio dom i c i l i a r ,f ruto da impo s s i bi l i d ade de sua divu l gao pbl i c a , com nova nfase para ad ivu l gao oral dos en s i n a m entos devi do s dificuldades e peri gos de se po s-

    suir os textos hebrai co s . Funes que antes eram exclus ivas dos hom ens pas-s a riam re s pon s a bi l i d ade do sexo feminino sinal da ocorr n c i a , no sei oda religio mosaica, de um certo afro uxamento dos rigoris mo s, vis an do a ga-rantir-lhe a sobrevivncia em ambiente hostil.

    Por razes bvi a s , as residncias passariam a ocupar importncia estra-t gi c a : seriam os lares locais de prop a gao do judasmo vivo, atravs da me-m ria en s i n ada e das pr ticas reli giosas e ceri mon i a i s. Im pedida a exi s t n c iada escola ju d a i c a , explica Lina Goren s tei n ,a cultu ra dom s tica con ti nu o u ,em parte , com aqu elas pr ticas e cel ebraes de por tas a den tro 1 2, em bora

    essas pr ticas sofre ss em certo esva z i a m en to e modificaes con forme nece s-s i d ade e afastamen to do per odo de judasmo perm i ti do. A pr pria teo l ogi a

    ju d a i c a , c ada vez menos prof u n d a m en te con h ecida pelas novas geraes deju d a i z a n te s , en f ren t ava as con s eqncias destas limitaes, a gravadas pel ai n existncia de ra binos para cumprir o papel que lhes caberia numa situ a ode norma li d ade reli giosa, como tambm pela proibio da bibl iografia relati-va rel igio mosaica: i m poss i bilit ados da lei tu ra sagrada, a Tor, mu itos uti-l i zavam a Bblia catlica como soluo litrgica, embora ren egan do os tex to s

    do Novo Te sta m ento, alm do novo alen to que seria de s ti n ado tra n sm i ss ooral de seus ensinamentos.Im ped i dos de denunciar suas preferncias do utri n ri a s , e proc u ra n do

    d ri blar as de s confianas da soc i ed ade , os cri ptoju deus viam-se obri gados aa b a n donar certas cerimnias marc a n tes da sua profisso de f em favor depr ticas menos con h ecidas ou del a toras de sua real en trega rel i gi o s a : su b s ti-tu ram-se assim, as circuncises pelas oraes e viglias domi c i l i a res; a guar-da pblica de certas datas e fe s ta s , como o Ano Novo ou o Pen teco s te s , pel o sj eju n s . Com o mesmo intu i to, cel ebraes que no judasmo trad i c i onal oc u-

    p avam posio de men or de staque passavam, por serem menos acusadoras , atema cen tral da resistncia marra n a , como foi o caso do Jejum de Ester

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    rainha judia que escondia suas ori gens ao pr prio mari do, viven do, como osc ri ptoju deu s , da dissimulao , torn a n do-se a O rao de Ester a precem a rrana por excel n c i a. bastante sign i f i c a tivo o fato de ser uma mu l h er aherona dos cri s t o s - novo s , e o exemplo de Ester se repetiria constantem en te

    devi do s nece s s i d ades impostas aos cri ptoju deu s . O judasmo de portas aden tro mostrar-se-ia, nos mais nfimos det a lhes , in f lu en c i ado pela figura damulher13.

    Anita Novinsky assim define o novo quadro da resistncia judaica:

    (...) proibida a sinagoga, a escola, o estudo,sem autoridades rel i gi o s a s ,s em mes-tres , s em livros , o peso da casa foi gran de . A casa foi o lu gar do culto, a casa tor-nou-se o pr prio Tem p l o. No Brasil Co l on i a l , como em Portu ga l ,s om en te em

    casa os homens podiam ser judeus.Eram cristos para o mundo e judeus em ca-sa. Isso teria sido impossvel sem a participao da mulher14.

    Aqui como l, o ncleo familiar tornou-se locus privi legiado para a irra-diao da lei mosaica, i a n do as mu l h eres ao s t a tu s de gra n des re s pon s vei spor sua reproduo.

    Apesar de no oferecer privac id ade e discrio su f icien tes para seus mo-radore s , o lar co l onial firm a r-se-ia como ambi en te propcio para a con ti nu i-dade hebraica. As constantes necessidades de deslocamento numa regio onde

    as distncias no eram facilmente vencidas causavam a freq ente ausncia docabea da famlia, redi mensi on a ndo ainda mais o papel da mu lher, con feri n-do-lhe maior destaque na organizao do ambiente familiar, responsvel pelobom funcion a m en to da casa, atuando n a criao e educao dos de s cenden-te s , viven c i a n do tradies impo s s veis de serem re a l i z adas em outro espao,moldando a orientao religiosa dos filhos, servindo de liame entre os compo-nentes do cl . Lar-escola-sinagoga: as residncias incorporavam em seu espa-o o trip da tradio judaica. Espao multifuncional onde a mulher exerceria

    conjuntamente as tarefas de provedora ,m e , educadora, catequista e rabi.Sustentculos da rel igio proibida, as mulheres crist s-novas apresenta-ram no Brasil uma resistncia passiva e deliberada ao catolicismo.Foram pro-s l i t a s , recebiam e tra n s m i tiam as men s a gens orais e influ en c i avam as gera-es mais nova s1 5, c i en tes da nece s s i d ade de en cobrir seus verd adei ro sobj etivos. Tra nsmiti ndo os ri tos rel igiosos ao pratic-los nas re s i dn c i a s , rea-l i z avam o ra bi n a to diminuto, feminino e oral que se torn a ra po s s vel e qu e ,embora contrariasse o cdice mosaico, ga ra n tiu-lhe a sobreviv ncia . Confor-me lembra Elias Lipiner, dizia-se poca das mulheres neoconversas que,de-

    votas e re z adei ra s , iam nos dom i n gos e dias santos ouvir missa, proc u ra n doevit a r, pera nte a soc i ed ade , as de s confianas sobre sua real en trega ao cato l i-

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    cismo,mas nos sbados vestiam seus melhores vestidos16, preparando-se pa-ra o sagrado dia de descanso dos ju deu s , reu n i n do a famlia para cel ebrar oscostumes de seus antepassados.

    A nova impor tncia de s ti n ada mu l h er neoconversa no passaria em

    bran co para a Inquisio.Ass im, de s m a s c a rar a fonte de disseminao da he-resia judaica e reprimir exem p l a rm en te os seus res pon s veis fazia-se impres-cindvel. Na documentao produzida pelo Santo Ofcio portugus durante avisitao s capitanias aucarei ras do Norde s te bra s l i co en tre 1591 e 1595,encon tram-se indcios do judasmo viven ci ado na co l n i a, m orm en te ligadoa ri tos, prtica da esn oga, cu ltos funerrio s , in terdies alimen t a res, formasde ben zer heterodox a s , n egaes rel i gio dom i n a n te em seus smbolos edogmas,onde,indiscutivelmente,a imp ortncia das mulheres salta aos olhos17.

    variado o desfile de relatos sobre mu lheres que insistiam em manter fidel i-d ade ao ju d a s m o, pra ti c a n do-o nos mom en tos de privac i d ade , em bora pu-bl i c a m en te , i m budas dos tem ores que oprimiam os simpati z a n tes de Is rael ,d i s s i mu l a s s em , decl a ra n do-se verd adei ras cri s t s . No foram poucas as de-nncias a retratar a du bi ed ade vivida pelas cri s t s - n ovas na co l n i a , no sexternamente suportando o peso das fronteiras sociais ,mas tambm ems eu interi or, con f u n d i n do muitas ve zes a tradio crist com os en s i n a m en-tos jud a i co s , d ivididas entre a f imposta e a do cora o, de s con h ecendo am-bas em seus det a l h e s , pra ti c a n do-as de forma igualmen te equ ivoc ada ou, a o

    menos, descuidada.Den tre aqu elas mais insistentem en te acu sadas ao San to Ofcio como ju-

    d a i z a n te s , a causarem escndalo nas duas principais capitanias co l oniais poca da pri m ei ra vi s i t a o, de s t acam-se os nomes das cri s t s - n ovas Bra n c aDi a s , em Pern a m bu co, e Ana Rod ri g u e s , na Ba h i a , exemplos def i n i tivos dora bi n a to fem i n i n o exerc i do na co l n i a , no s pelo alto nmero de ac u s a-es de que foram vti m a s , mas pela ri queza de detalhes sobre as pr ticas de

    judasmo que mantinham em seu co ti d i a n o. Verd adei ras matri a rcas do cri p-

    tojudasmo bra s l i co, as duas sen h oras teriam suas vidas va s c u l h adas e det a-lhes de seus comportamentos revelados com insistncia ao visitador.Branca Dias dei x a ra o reino depois de cumprir pena no Sa n to Ofcio de

    L i s boa, denunciada pela prpria me e irm de prticas jud a i cas, ambas tam-bm presas pelo Tribunal Inquis itorial. Livre , viera para Pernambuco,onde jse encontrava seu marido, o comerciante Diogo Fernandes, e viveriam com osfilhos, a quem eram transmitidos os valores da antiga f.Abriria com o esposoum internato para moas com boa proc ura de alu nas, dotando-as ainda maispa ra o disput ado merc ado matri mon i a l . Em sua esco l a , algumas don zelas da

    colnia aprendiam a lavar,costurar, cozinhar, trabalhos do lar e boas maneiras.E ra exemplo tpico de criptoju da s mo. Corria a fama de que o casal pos-

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    sua uma sinagoga em seu en gen h o, a famosa e s n oga de Ca m a ra gi bi , u m adas mais denunc iadas du ra n te a visitao de Heitor Fu rt ado, freqentada porboa parte dos ac u s ados de pr ticas judaicas em Pern a m bu co, en tre el e s , a l-guns dos principais da capitania. A sinagoga de Ca m a ra gi bi era , dentre as ci-

    tadas na documentao referente primeira visitao inquisitorial,a que man-tinha seus trabalhos por mais tem po : certas denncias davam conta de su a sativi d ades h mais de qu a renta anos. Fora erguida nas terras pertencen tes aocasal Di ogo Fern a n des e Branca Di a s ,a m bos j faleci dos qu a n do da ch egad ade Heitor Furtado e de seu squito.Em Camaragibi,era fama pblica que exis-tiam judeus e se adorava a toura metfora bastante usada para dizer que seseguia a lei mosaica ou dos judeu s. Em denncia ao visit ador datada de 16 denovem bro de 1593, Felipe Cava lcanti afirma que a gen te da Naool i n den-

    se se reunia na tal esnoga de Ca m a ra gi bi , a qu atro ou cinco lguas de distn-cia da vil a , onde faziam suas cerimnias e que nas ditas luas novas de agostoiam, em seus carros en ra m ados e com festas ao dito Cam aragibi a cel ebrar afesta do jejum do Iom Kipur, o dia mais sagrado do calendrio judaico18.Nosdias de reu n i o, os ju d a i z a n tes eram convoc ados de forma singel a : o cri s t o -n ovo Toms Lope s ,a l f a i a te apo s en t ado con h ec i do pela alcunha de O Ma n i-q u ete, u s a n do cdigo previamente combi nado, desfilava pelas principais ru a sde Olinda com um pano branco amarrado a um p descalo:era, por isso, de-nominado o campainha dos judeus.

    De acordo com Elias Lipiner,

    (...) a localizao preferencial das sinagogas nos engenhos,se deve ao fato de quenos comeos da colonizao cabia aos engenhos, alm de funo prpria de em-presa particular agr co l a, tambm a funo rel i gi o s a , e espec i a l m en te a militar,de s ti n ada a torn-los balu a rtes arm ados para defen der-se dos ataques dos n-dios ou outros inimigos.

    O pre s t gio e a pro teo de que de s f rut ava o sen h or- de - en genho era fa-tor prem en te para a esco l h a : tais privi l gios de auton om i a , eram aprovei t a-dos pelos sen hore s - de - en genho cri s t o s -novos, po sto que discret a m en te ,p a-ra,no mbito de sua hegemonia,erguerem ao lado das ermidas em homenagem crena dominante, tambm as esnogas em reverncia ao culto de seu co-ra o1 9 , exemplo con s istente do sincretismo religioso e da convivncia la-tente entre a crena catlica e os resqucios de judasmo.

    A matria rca de Ca m aragibi , apesar das evi d n c i a s ,e s fora r-se-ia no este-ri ti po de boa cri s t ,c a s a n do as filhas com cristos-velhos respeitado s ,a pro-

    vei tando-se da colnia faminta de mulher branca20, almejando melhoria so-cial e diminuio das presses pblicas sobre o sangue her ti co, em bora no

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    di s pensasse a pre s ena destas nas celebraes da f judaica que fazia em casa.Alm de Branca, de sua famlia sairiam quatro geraes de indivduos aprisio-nados e julgados pelo Santo Ofcio: sua me,Violante Dias; sua irm Isabel;Bri-tes Fernandes, a Alcorcovada, e Andressa Jorge, suas filhas; Leonardo Perei ra ,

    Jorge de Souza, Maria de Souza, Ana de Arruda e Catarina Favel a ,s eus netos.Quando o inquisidor chegou a Pernambuco, Branca j era falecida,o que

    no a impedi ria de estar no rol das mais denu n c i ad a s . Algumas de suas anti-gas aprend i zes e conh ecidas de lon ga data rel em bra riam o estranho compor-t am en to e cos tumes malvistos da professora de boas manei ra s, alguns dos fa-tos ocorri dos h mais de trinta anos. Joana Fern a n des fora uma del a s : viu adita Branca Dias nos sbados de todo o dito ano que em uma casa apren deuno fiar nu nca . E viu que nos ditos sbados pela manh se ve s tia com camisa

    l avada e apert ava a cabea com seu to u c ado lavado, ve s ti n do aos filhos como melhor vestido que ti nha. Nas sex tas-feiras tarde , mandava lavar e esfre-gar o sobrado e, nos sbado s , ja n t ava mais cedo que nos outros dias, e ( ...)ch a m ava acima do sobrado as ditas suas filhas (...) e todos iam ento ac i m a

    jantar com ela, quando jantavam sempre uma iguaria que nunca comiam21.A res tr ita privacidade ex istente no ambi en te colonial encarregar-se-ia de

    d ivul gar o que ocorria entre as paredes do sobrado dos Fernan des: o uvi dos eolhos estavam sem pre aten tos para saber novi dades da vida privad a , torn ad apblica a todo instante. Antiga vizinha da dama judaizante, Beatriz Luis mos-

    tra ria em seu depoi m en to a confuso ex i s ten te en tre os smbolos que repre-s ent avam o jud a s m o, alguns dos qu a i s ,h erdei ros de um imagi n rio que ten-d i a , no limite , a dem onizar os ju deu s . Con t ava ao inqu i s i dor ter ouvi do don eto de Branca Di a s , ento com cerca de cinco anos, que sua av tinha de-b a i xo do cho uns santi n h o s , assim como pac a s , aos quais adorava , (...) asquais pacas so uns animais do mato desta terra que po u co mais ou men o stm o parecer de lebre s. Pa ra evitar maiores probl emas e novas revel a e s, omenino delator se ausentou desta terra a mando dos parentes22.

    Outras ex-alunas proc u ra riam o inqu isidor para relatar o que presenci a-ram: Maria lvares, ressaltaria o descaso cristo da mestra: ao trazer certa vezno pescoo umas contas de rezar com uma cruz pendurada nela s, correndo -lhe a cruz para diante dos pei to s , tomou com a mo a cruz e, d i zen do para acruz dou- te ao demo, a lanou para detrs das cos tas23. Ana Lins, que por trsanos fora doutrinada e ensinada a cozer e a lavrarafirmava que, aos domin-go s , e s t a n do nas missas, qu a n do leva n t avam ao sen h or na hstia con s a gra-d a , o lh a ndo a dita Branca Dias para a hsti a , dizia estas palavra s : a h , ces en-c a d e a d o s !, en qu a n to apon t ava para o altar. Rep a ra ra ainda que a anti ga

    profess ora possua sobre a cama uma cabea de boi sem corno s, que se pu-nha muitas vezes sobre a dita cama s sextas-feiras, onde ficava at os domin-

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    go s24. A cabea de boi, ou to ura, era a corruptela a que foi submetido o livrosagrado dos judeus, a Tor. Para Lipiner,

    ... d ada a cl a n de s ti n id ade que envo lvia todos os atos da pr tica ju da i ca , de ad-

    m i ti r-se que os pr prios cri s t o s - n ovos ado t a s s em o estra t a gema de con f u n d i rsua tou ra com a cabea de boi , em linguagem cifrad a , su btra i n do, a s s i m , o ver-dadeiro significado compreenso dos espias do Santo Ofcio25.

    O mais estarrecedor dos casos envo lven do mu l h eres ac u s adas de pr ti-cas judaizantes na docum entao referen te s visitaes inqu isi toriais ao Bra-s i l , s em dvi d a , s eria o de Ana Rod ri g u e s , m oradora em Ma toi m , no Rec n-cavo Baiano.

    A crist-nova Ana Rodrigues viera do reino com Heitor Antunes,seu ma-

    ri do, s en h or- de - en genho e c ava l ei ro da casa del - rei , que se or g u l h ava emapontar sua des cendncia direta dos Maca beus clebre famlia de sacerdo-tes e militares judeus do sculo II a. C . ,c u ja epopia narrada no Antigo Tes-tamento.

    Teve sete filhos e, como Branca Di a s , con s eg u i ra gen ros de sangue puro.Eram conhecidos como a gente de Matoim. Morto o marido, Ana Rodrigueso en terra ra seg u n do a trad i o, em terra vi r gem , pra n te a n do-o pelo modo

    ju d a i co. E s perava o mom en to de poder se juntar novam ente ao espo so, ta m-bm de acordo com a f que seguia: testemunhas afirmavam que guardava as

    jias de quando se casou para se enterrar com elas quando morrer26.Seg undo diziam, o cava leiro macabeupossura sinagoga em suas terras

    du ra n te dcad a s . A esnoga de Ma toim era a mais con h ecida de toda a Ba h i a .Local i z ava-se nas terras perten centes aos Antune s. O templo sagrado teria si-do con s tru do por Hei tor em seu en gen h o, numa casinha sep a rad a, l oc a l i-z ada ao lado da re s i d n c i a . Freq en t ada por import a n tes figuras da capita-n i a , n ela reuniam-se sec ret a m en te os ju d a i z a n tes em dias espec f i co s ,dei x a n do dito na cidade que iam fazer pe s o numa ten t a tiva , s em mu i to

    sucesso, de despistar o verdadeiro destino dos que para l se dirigiam.O funcion a mento da esn oga dos An tu nes iria lon ge , u ltrapassando emmui to a vida de seu pr prio fundador, f a l ec i do mais de uma dcada antes dach egada do vi s i t ador Fu rt ado de Men don a . Algumas das vrias den n c i a sque citam a c a s i n h a de Ma toim ao inqu i s i dor diziam ter con h ec i m en to dasua existncia h cerca de trinta anos, o que a transformava na mais antiga si-n a goga em funcion a m en to de que se tinha notcia na Bahia e uma das maistrad i c i onais de toda a regio co l on i a l . Nem mesmo a pre s ena da vi s i t a oi n qu i s itorial na capitania-sede do governo portugus na Am ri c a , a espalhar

    o medo e o aumento de intrigas por todos os lados , e a tornar os cristos - n o-vos em geral mais com ed i dos em seus atos e palavra s , teria sido motivo su f i-

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    c i en te ,a f i rm avam alguns del a tore s , p a ra que ce s s a s s em as reunies ju d a i c a sem Ma toim , num cl aro sinal de desrespei to e en f ren tam ento ao San to Ofcioe rel i gio dom i n a n te . No en t a n to, de s con h ece-se que Fu rt ado de Men don- a , a pesar de haver pren d i do a matr i a rca do cl e alguns de seus de s cen den-

    te s , tenha tomado qualquer ati tu de mais efetiva para averiguar e desb a ratar asin a goga de Heitor Antunes ou mesmo processar os seus freq en t adore s , n o-meados pelos acusadores.

    A pres ena da Inquisio ac abaria com a tranqi lidade da famlia, segui-d a m en te ac u s ada de cri ptojudasmo e de des re s pei to f catlica. Den tre osAn tu n e s ,s eria Ana Rodrigues a denun c iada com maior gravi d ade e insistn-c i a . Preven do as tr gicas con s eqncias da visita do Tri bu n a l , alguns mem-bros do cl aprovei t a riam o per odo da graa para con fessar os erro s , ad i a n-t a n do-se ava l a n che de ac u s adores do cl , proc u ra n do, a s s i m , m o s trar boavontade com o Santo Ofcio e amenizar as culpas que lhes eram imputadas.

    Judai z an te ao extremo e de idade bastante ava n ada , era conhecida pelasblasfmias que pronu n c i ava . O inac red i t vel paren te s co bbl i co de que ou-trora se orgu lhara o marido passara a smbolo do escrnio pblico de que eravtima ao lado das filhas,chamadas pejorativamente deMacabias. Suas his-t rias geravam escndalo. No batismo de uma bi s n et a , teria Ana afirm ado :olhai que negro batis mo! Quando de um dos partos de suas filhas, cl a m a n-do-se por Nossa Sen h ora , d i s s era , no me faleis nisso que no no posso di-

    zer 2 7

    ! Uma parenta crist velha con t a ria sobre a octogen ria matri a rca qu e ,adoecida certa ve z , suas filhas lhe mostravam um cru c i f i xo e que ela o noqu eria ver, d izendo: ti rai-o l, receben do o auxlio de um filho para livrar-seda incmoda pre s en a . O receio de ter a crena proi bida de s vend ada e da re-

    j eio social da decorren te leva ria uma de suas filhas a retru c a r: m e ,n onos de s on reis porque somos casadas com hom ens cristos velhos e nobre s.Quando em lucidez, tentava,assim como as filhas,manter as aparncias,sen-do devotas de Nossa Sen h ora e fazen do rom a ri a s , i n do s igreja s , d a n do es-molas e fazendo outras boas obras de boas crists28.

    Apesar do esfor o, aos olhos pop u l a res sua residncia era tra n s form ad aem verd adeiro templo judaico, onde ens inava as tradies da antiga lei aos fi-l hos. No foram poucas as denncias a retratar minu ciosa m en te os co s tu m e sda matri a rca e de sua famlia, como as pr ticas e interdies alimen t a re s , a sbnos e o luto ao modo ju d a i co, as oraes com guaias, o re s pei to aos je-juns e dias santos para os hebreus cerimnias qu e , pelo exemplo vivo damatriarca macabia, eram transmitidas aos descendentes.

    A velha sen h ora seria ac u s ada de ju d a s m o, e seus denu n c i a n tes de s f i l a-riam o rol de suas culpas repetidas vezes. Com mais veem n c i a , s eria del a t a-

    da por guardar o dia sagrado dos judeus; no comer certos tipos de alimen to ;jurar pelo mu n do que tem a alma do mari do e guardar-lhe luto ao modo dos

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    ju deu s ; lanar a gua de casa fora em caso de falec i m en to ; f a zer jejuns e ora-es ju d a i c a s ,m ovi m enta n do o corpo maneira dos judeu s; recusar um cru-c i f i xo qu a n do doen te , e ben zer filhos e netos escorrega n do-lhes a mo pel orosto.Outros parentes prximos da anci princ ipalmen te filhos e netos

    confessariam ou seriam acu sados de algumas destas pr ti c a s , em bora em ne-n hum caso tenha-se repeti do o mesmo nmero de acusaes que pe s ava msobre a matriarca da famlia. O envolvimento de filhos, netos e sobrinhos nasacusaes de judasmo perm i te-nos vi s lu m brar o grau de com p l ex i d ade dofen m eno cri ptoju d a i co en tre os An tunes atravs da pre s ervao de vri a stradies do judasmo de portas a den tro, reproduzidas no ambi en te do-m s ti co e tra n s m i tidas s novas gera e s , em bora estes co s tumes sof re s s emuma espcie de f i l tra gem na recep o, com o abandono cre s cen te de algu-mas destas pr ticas pelos de s cen den tes na ten t a tiva de ocultar a f proi bi d a(s em con t ar, como j foi aqui abordado, o pr prio processo de acul tu rao aque os cristos-novos estavam submetidos).

    Tamanha dedicao tradio judaica no passaria inclume aos olha-res aten tos do visitador do Santo Ofcio. Ciente disto, e temendo as acusaesque pude s s em recair sobre toda a famlia, assim como as con s eqncias qu eum processo inqu i s i tor ial poderia tra zer, i n clu s ive parcela crist velha docl, alguns membros , entre eles a pr pria Ana Rodrigues,tent ariam amen i z aras denncia s , procura n do ju s tificativas para explicar os comportamentos he-

    rticos da famlia ao inquisidor.Em seu pri m ei ro depoi m en to a Hei tor Fu rt ado, a matri a rca daria incioa um proced i m en to que se torn a ria freq en te du ra n te todo o tem po em qu eprocu rou fazer sua defesa das acusaes de que era vti m a : usou da dissimu-l a o,procurando confundir o inqu i sidor na apurao das culpas. Idas e vin-das seriam comuns nos seus depoi m en to s , mu d a n do vers e s ,n ega n do afir-maes anteri ore s , e s con den do dados import a n tes e citando inform a e sfalsas ou desconexas. assim que afirma primeiramente possuir 80 anos apro-x i m ado s , depois mu d a n do a idade para 86 e para 110 anos, f a to de ex trem a

    i m portncia no proce s s o, vis to que o fator idade poderia significar prova ca-bal de judasmo con tra a velha sen h ora : a pre s en t a n do-se como octogen ri a ,teria nascido na pri m ei ra ou segunda dcada do sculo XV I , o que a torn avafilha de pais convers o s , dos quais teria herd ado os en s i n a m en tos hebra i co s ,ten do con h ec i do e convivi do com anti gos ju deu s , mas edu c ada den tro dasn ormas cri s t s . Se re a lm en te possusse 110 anos como consta em determi na-da altu ra de seu proce s s o, teria nascido por volta de 1483, em bero ju d a i co,seguindo abertamente o judasmo e aprendendo-o at os quatorze anos,quan-do dos dec retos de converso de 1497. At para a prov vel idade de cerca de

    oi tenta anos, a idade dos filhos (alguns afirm a ndo terem menos de qu a ren t aanos) apre s enta sen s veis probl em a s , o que apon ta para as imprecises co-

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    muns poca em relao idade , t a n to de Ana qu a n to dos filhos. O certo que a velha matri a rca aprovei t ava-se da idade de todo modo ava n ada paraalegar falta de memria e de sanidade o que no deixa de ser uma po ssibi-l idade real ben ef ici a ndo-se com po ssveis alteraes na datao de aconte-

    cimentos importantes de sua biografia.O te a tro arm ado pela anci e tambm alimen t ado por seus familia-

    re s , a insisti rem em sua inocncia no conven ceria o vi s i t ador do Sa n toOfcio.Ana Rodrigues seria presa e enviada para Lisboa, em uma cmara com-prada para el a , en ja u l ada e incomu n i c vel ,( d i go:) acomp a n h ada de uma es-c rava negra de nome Bri s i d a , p a ra agasalh-la e servi-la du ra n te a vi a gem ,por a dita Ana Roiz ser vel h a , en trevad a , costum ada a ser aga s a l h ada com adita escrava ( ? ! ) , po s s ivel m en te a ltima oportu n i d ade da velha pri s i on ei raconfiar aos filhos, por intermdio da escrava caso esta voltasse co l n i a, uma derradeira men s a gem , lembretes sobre como manter a dissimul a oou mesmo o conheci mento de algumas informaes prestadas perante a San-ta Mesa da In qu i s i o, exemplo de resistncia ou en s i n a m en to ju d a i co. Infe-l i z m en te para o tr abalho do histori ador, o paradei ro da escrava perde-se apartir do incio da travessia para a outra margem do Atlntico.

    Idosa e doen te , vi n ga r-se-ia da priso morren do no crcere , o que no al ivraria de ser proce s s ada pela In qui s i o, con den ada ao brao sec ular e re-l a x ada em ef gi e , ten do sua mem ria amaldioada e os ossos desenterrado s ,

    qu ei m ados e fei tos em p em detestao de to gra n de cri m e. Pa ra evi t a rque seu exemplo fosse repetido, um quadro retratando-a entre labaredas e se-res dem on acos ficaria ex po s to na igreja de Ma toi m , on de mora ra , a mandodo Sa n to Ofcio. Alm da matri a rca mac a b i a , o ut ras geraes de familiare ss ofreriam acus a e s , e alguns deles seriam proce s sados pela Inqu i si o : Hei-tor An tu n e s , s eu falec i do mari do ; Be a tr i z , Vi o l a n te e Leon or, suas filhas, e aneta, Ana Alcoforado. Como os Macabeus bblicos que lhe emprestaram o no-m e , s eri a , ela e os familiare s , v timas da into l erncia rel i giosa de uma soc i e-d ade que no os com preendia nem aceit ava em suas espec if i c id ade s , p a s s a n-

    do ambos Hi stria como heris na defesa de seus ideais e direito de escolhade seu povo e familiares.Sua con denao tra ri a , a fora as complicaes sociais para os mem bro s

    da famlia, a f a m ados como ju d a i z a n tes e/ou con iven tes e acobert adores depr ticas cri ptoju d a i c a s , um outro agrava n te para seus de s cen den te s : os ben sem nome da velha sen h ora seriam con f i s c ados pela In qu i s i o, o que leva ri aos seus gen ros anos depois , em 1600, a apre s ent a rem , pe s s oa l m en te , d iversa speties em Lisboa para reviso da pena , n ovam en te alega ndo idade ava n a-da e insanidade da velha matri a rc a , proc u ra n do no s limpar o nome da fa-

    m l i a , mas rec u perar os bens tom ados pelos inqu i s i dores para con ti nuar osnegcios do cl na Bahia. Como define Elias Lipiner,

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    (...) a jurisdio do Tribunal da f no se ex tinguia com as labaredas da fog uei raem que eram sacri fic adas suas vtimas . No parava em quem fora por ele conde-nado, mas estendia-se aos descen dentes vivos para serem diret amen te ati ngidos ,proi bi n do-se-lhes o exerccio de ofcios pbl i cos e certas profisses libera i s , e

    expondo-os, particularmente, malevolncia pblica29.

    Mais uma vez,o quadro de sociabilidades e troca de interesses entre cris-tos velhos e novos no ambiente bra s l i co faria com que a velha dama ju d a i-z a n te recebesse defesas de seu sincero catolicismo de ambos os gru po s : s i n a lde que o trmino da visitao inqu i s i torial havia adorm ec i do ou ao me-n o s , a m orti z ado a teia de intri gas e acusaes en tre os cristos sep a rado spelo sangue e alimen t ada pelo Sa n to Ofcio, n ova m en te un idos con tra umaameaa mais imed i a t a : os ataques dos piratas pelo mar e do gen tio pelo ser-to, alm das mltiplas carncias do viver em colnia.

    Durante a segunda visitao inquisitorial ao Brasil,iniciada em 1618,ou-vir-se-iam ainda ecos do irregrado comportamen to dos An tu n e s ,n ova m en teapontados ao visitador como grupo judaizante. As histrias sobre Ana Rodri-gues e seus de s cen den tes ainda perm a n eceriam vivas na mem ria e eram re-petid as , oc a s ion a n do o ro u bo da tal imagem que repre sen t ava a velha Mac a-bia qu ei m a n do no inferno da porta da Igreja de Ma toi m , por mando diretode um seu genro cri s t o - vel h o, in teress ado no apenas em evitar qualquer li-

    gao de sua imagem de hom em hon rado com uma con den ada chama daJu s tia e Mi seri crd ia, mas igualmen te na tentativa dese s perada de pre s erva r-lhe a mem ria e aos seus familiare s , po u p a n do - l h e s , s eg u n do as palavras deBartolom Bennassar, de prolongar la memoria de su infamia30.

    Balu a rtes da resistncia ju daica, Branca Dias e Ana Rod rigues foram tal-vez as repre s en t a n tes mximas do cri ptojudasmo bra s l i co no sculo XV I .Como el a s ,o utras mu lheres viveriam ambi g u a m en te ,d ivididas en tre o cato-licismo que rep u d i avam e o hebrasmo que lhes era ved ado, pra ti c a n do oraum, ora outro, de acordo com o local e as conven i n cias, descon hecendo am-bo s . M rt i res da rel i gio proi bi d a , assim como a rainha Ester, a qu em diri-giam suas splicas por dias mel h ore s , s of reriam pre s s e s , ofen s a s , calnias ediscriminaes por lut a rem pelo re sgate e con tinu i dade da iden tid ade de seupovo. No seriam ven c i d a s , con tu do nem pelo Sa n to Ofcio nem pela se-gregao social que as pers eguia , en s i na ndo a tradio de Is rael aos filhose contribuindo para manter vivos os ideais da religio que abraavam.

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    NOTAS

    1 Este artigo faz parte de meu t rabalho de pesquisa para o Doutora m ento em His tria pel aUniversidade Federal Flu m i n en s e ,s ob a orientao do professor doutor Ronaldo Vainfas e

    com bolsa de pesquisa do CNPq.2 1Mc 2, 19-22. InA Bblia de Jerusalm. So Paulo: Edies Paulinas, 1987, p. 792.3M O R I N ,E d ga r.Meus dem n i os. Tradu o : Lenei de Dua rte e Cl a risse Meirel es , 2a ed . Ri ode Janeiro: Bertrand Brasil, 2000, p. 111.4N OV I N S K Y, An i t a . Cristos novos na Bahia: 1624-1654. So Pa u l o : Pers pectiva / E D U S P,1972,pp. 19-20.5 B RA N D O, Am brsio Fern a n de s .Di l o gos das Grandezas do Brasil (1618) . 3a ed . Rec i fe :FUNDAJ, Ed. Massangana, 1997.

    6FREI VICENTE DO SALVA DO R .Hi s t ria do Brasil (1500-1627) . 6a ed . So Pa u l o : Me-lhoramentos/INL, 1975.7 ME L LO, Evaldo Cabral de . O Nome e o Sangue: uma fra u de gen e a l gica no Pern a m bu cocolonial.So Paulo: Companhia das Letras,1989, pp. 106-107.8Cf. VAINFAS, Rona ldo.A Heresia dos ndios: catolicismo e rebeldia no Brasil co l on i a l .S oPa ulo: Companhia das Letra s ,1 9 9 5 , e SOUZA ,L a u ra de Mello e.In ferno At ln ti co. Dem o-nologia e colonizao: sculos XVI-XVIII. So Paulo: Companhia das Letras, 1993.9 S I QU E I RA , Sonia A .A Inquisio Po rtuguesa e a Soci edade Col o n i a l . So Pa u l o : ti c a ,1978, pp. 183-187.10VAINFAS, Ron aldo. Op. cit., 1 9 95, p . 166, e Tr pico dos Peca do s:Moral, Sexualid ade e In-quisio no Brasil. 2a ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, pp. 223-224.11M AI A, Angela Maria Vieira . Sombra do Med o Cri s tos-Velhos e Cri s to s-Novos nasCapitanias do Acar. Rio de Janeiro: Oficina Cadernos de Poesia, 1995, p. 127.12 SI LVA, Lina Goren stein Ferreira da.Her ti cos e Im pu ro s: a Inquisio e os cri s t os - novosno Rio de Ja n ei ro sculo XV I I I . Rio de Jan ei ro : Sec ret a ria Municipal de Cu l tu ra , De-partamento Geral de Documentao e Informao Cultural, 1995, p. 121.13 P O L I A KOV, Leon .De Maom aos Ma rra n o s. Tradu o : Ana M. G o l d ber ger Coelho e J.Guinsburg. 2a ed. So Paulo: Perspectiva, 1996, pp. 198-199.14 NOV I N S KY, Anita W.O papel da mu l h er no cri pto -judasmo portu g u s. In Comi ss opa ra a igualdade e pa ra os direi tos das mu l h ere s . O ro s to feminino da expanso po rtu g u e s a .Congresso Internacional. Lisboa, 1994. Lisboa, 1995, pp. 549-555.15Idem.1 6 L I PI N E R ,E l i a s . Os judaizantes nas capitanias de ci m a ( e s tu dos sobre os cri s t o s - n ovo sdo Brasil nos sculos XVI e XVII). So Paulo: Brasiliense, 1969, p. 46.1 7 C f . VA I N FA S , Ron a l do. Cri ptojudasmo no Brasil Co l on i a l : uma e s n oga lu s o - b a i a n ano sculo XV I. InRevista Brasi l ei ra de Hi s t ri a, 1 9 9 9 .A S S I S , Angelo A. F. Um Ra bi e sc a-tol gi co na Nova Lu sitnia:Soci ed ade col onial e In quisio no Nordeste qu inhen tista o

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    caso Joo Nunes . Diss ertao de Me strado apre s en t ada Universi d ade Federal Flumin en-se. Niteri, 1988.18 Fel i ppe Cava l c a n ti con tra An ri que Men des e sua mu l h er Vi o l a n te Rod ri g u e s , An ton i oDias e seu cunhado por alcunha Alma de Burzeguins, Diogo Fernandes e sua mulher Bran-

    ca Di a s , Diogo Lopes da Ro s a , Fra n c i s co Vaz Soa re s , o vi g rio Cortic ado, An tonio Lei t o,o Vel h o, e Antonio Dia s, o Fel p udo, em 16/11/1593. Pri m ei ra Visitao do Santo Of cio sPa rtes do Brasil Denu n ciaes e Confisses de Pern a m bu co. Rec i fe : F U N DA R PE ,1 9 8 4 ,pp. 75-77.19LIPINER, Elias. Op. cit., 1969,pp. 95-96. A grafia foi atualizada.20MELLO, Evaldo Cabral de. Op. cit., 1989, p. 105.2 1Joanna Fernan des contra Branca Di as, em 3/11/1593.Denu n ciaes e Confisses de Per-nambuco. Recife: FUNDARPE, 1984, pp. 30-32.22

    Beatriz Luis contra Branca Dias, em 3/11/1593.Idem, pp. 32-33.23 Maria Alva res con tra Ped ra lva res Madei ra e Branca Di a s, em 5/2/1594.Idem, pp. 2 0 0 -203.2 4Ana Lins con tra Di ogo Fern a n de s , sua mu l h er Branca Dias e suas filhas, Vi o l a n te Fer-nandes e Bento Teixeira, em 10/11/1593.Idem, pp.54-58.25LIPINER, Elias. Op. cit., 1969, p. 88.26 [Antonio Dias, da Companhia de Jesus] contra Anna Roiz, An ri que Men de z ,P h el i pe deGu i ll em, em 16/08/1591. Pri m ei ra Visitao do Santo Off i cio s pa rtes do Brasil pelo licen-ciado Heitor Fu rtado de Mendona capello fidalgo del Rey nosso senhor e do seu desem ba r-go, d eputado do Santo Of f i ci o. Denu n ciaes da Bahia 1591-593. So Pa u l o : Paulo Prado,1925, pp. 337-338.27[Antonio da Fonseca] contra Ana Roiz e Ferno Cabral , em 06/08/1591.Idem,pp .275-276.28[Pero de Aguiar dAltero] contra Ana Rodrigues,crist-nova de Matoim, em 30/7/1591.

    Idem,pp. 250-251.29LIPINER, Elias. Op. cit., 1969, p. 137.30 B E NNA S S A R, Ba rto l om . Modelos de la men t a l i d ad inqu i s i tori a l : m todos de su pe-dagoga del miedo . In A LC A L , n gel y otros.Inqu isicin espa ola y mentalidad inquisi-torial. Barcelona: Ariel, 1984, pp. 174-182.

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    Angelo Adriano Faria de Assis

    Artigo recebido em 01/2002.Aprovado em 05/2002.