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Os fatos das Ciências Sociais* por F. A. Hayek** [Extraído e traduzido de Individualism and Economic Order(1948)] * Proferido diante o Clube de Ciência Moral da Universidade de Cambridge Moral, 19 de novembro de 1942. Reproduzido emEthics, LIV, N º1 (Outubro, 1943), 1-13.Algumas das questões levantadas neste ensaio são discutidas em maior extensão em artigo do autor sobre o "Cientificismo e o Estudo da Sociedade" [NT:"Scientism and the Study of Society"] , que apareceu em três partes no Economica, 1942-45. 1 Não existe hoje um termo comumente aceito para descrever o grupo de disciplinas das quais trataremos nesse artigo. O termo "ciências morais", no sentido em que John Stuart Mill usava, cobria de forma aproximada o campo, mas ele está há muito tempo fora de moda e agora carregaria conotações inapropriadas para a maioria dos leitores. Embora seja, por essa razão, necessário usar o familiar termo "ciências sociais" no título, devo começar enfatizando que isso não significa que todas as disciplinas relacionadas com os fenômenos da vida social apresentam os problemas específicos que discutiremos. Estatísticas vitais, por exemplo, ou o estudo da propagação de doenças contagiosas, sem dúvida lidam com os fenômenos sociais, mas não levantam nenhuma das questões específicas a serem consideradas aqui. Eles são, se é que posso chamá-los assim, verdadeiras ciências naturais da sociedade e não diferem em nenhum aspecto importante das outras ciências naturais. São diferentes, no entanto, o estudo da linguagem ou do mercado, da lei e da maioria das outras instituições humanas. É apenas esse grupo de disciplinas que me proponho a considerar e para as quais sou obrigado a usar o termo um tanto enganador de "ciências sociais". Já que eu argumentarei que o papel da experiência nesses campos do conhecimento é fundamentalmente diferente do que ela desempenha nas ciências naturais, talvez eu devesse explicar que eu mesmo originalmente abordei meu campo completamente imbuído de uma crença na validade universal dos métodos das ciências naturais. Meu primeiro treinamento técnico não apenas fortemente científico, no sentido estrito da palavra, mas

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Os fatos das Ciências Sociais*

por F. A. Hayek**[Extraído e traduzido de Individualism and Economic Order(1948)] 

* Proferido diante o Clube de Ciência Moral da Universidade de Cambridge Moral, 19 de novembro de 1942. Reproduzido emEthics, LIV, N º1 (Outubro, 1943), 1-13.Algumas das questões levantadas neste ensaio são discutidas em maior extensão em artigo do autor sobre o "Cientificismo e o Estudo da Sociedade" [NT:"Scientism and the Study of Society"] , que apareceu em três partes no Economica, 1942-45.

1Não existe hoje um termo comumente aceito para descrever o grupo de disciplinas das quais trataremos nesse artigo. O termo "ciências morais", no sentido em que John Stuart Mill usava, cobria de forma aproximada o campo, mas ele está há muito tempo fora de moda e agora carregaria conotações inapropriadas para a maioria dos leitores. Embora seja, por essa razão, necessário usar o familiar termo "ciências sociais" no título, devo começar enfatizando que isso não significa que todas as disciplinas relacionadas com os fenômenos da vida social apresentam os problemas específicos que discutiremos. Estatísticas vitais, por exemplo, ou o estudo da propagação de doenças contagiosas, sem dúvida lidam com os fenômenos sociais, mas não levantam nenhuma das questões específicas a serem consideradas aqui. Eles são, se é que posso chamá-los assim, verdadeiras ciências naturais da sociedade e não diferem em nenhum aspecto importante das outras ciências naturais. São diferentes, no entanto, o estudo da linguagem ou do mercado, da lei e da maioria das outras instituições humanas. É apenas esse grupo de disciplinas que me proponho a considerar e para as quais sou obrigado a usar o termo um tanto enganador de "ciências sociais".

Já que eu argumentarei que o papel da experiência nesses campos do conhecimento é fundamentalmente diferente do que ela desempenha nas ciências naturais, talvez eu devesse explicar que eu mesmo originalmente abordei meu campo completamente imbuído de uma crença na validade universal dos métodos das ciências naturais. Meu primeiro treinamento técnico não apenas fortemente científico, no sentido estrito da palavra, mas também o pouco treinamento que eu tinha em filosofia e método científico era inteiramente na escola de Ernst Mach e, posteriormente, na dos positivistas lógicos. No entanto, tudo isso teve o efeito apenas de criar uma consciência, que se tornou mais e mais definida com o passar do tempo, de que, certamente, todas as pessoas que universalmente se considera que falam com algum sentido na área da economia estão constantemente infringindo os cânones aceitos do método científico que evoluiu a partir da prática das ciências naturais; que até mesmo os cientistas naturais, quando começam a discutir fenômenos sociais, via de regra – pelo menos na medida em que preservam algum senso comum – fazem o mesmo; mas que, nos casos não raros nos quais um cientista natural seriamente tenta aplicar seus hábitos profissionais de pensamento para os problemas sociais, o resultado tem sido quase invariavelmente desastroso – isto é, de um caráter que para todos os estudantes profissionais desses campos parece um total absurdo. Mas, enquanto é fácil mostrar o absurdo da maioria das tentativas concretas de tornar as ciências sociais "científicas", é muito menos fácil montar uma defesa convincente dos nossos próprios métodos, que, embora satisfatórios para a maioria das pessoas em determinadas aplicações, são, se olhados com um olhar crítico, suspeitosamente semelhantes ao que é conhecida popularmente como "escolástica medieval."

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2Mas basta de introdução. Deixe-me mergulhar diretamente no meio do meu assunto e perguntar com que tipo de fatos temos de lidar nas ciências sociais. Essa questão levanta de imediato outra que é em muitos aspectos crucial para o meu problema: O que queremos dizer quando falamos de "certo tipo de fatos"? Eles nos são dados como fatos de certo tipo, ou nós que os tornamos o que são ao olhar para eles de certa maneira? Evidentemente, todo o nosso conhecimento do mundo externo é de uma forma derivado da percepção dos sentidos e, portanto, de nosso conhecimento dos fatos físicos. Mas isso significa que todo o nosso conhecimento é apenas de fatos físicos? Isso depende do que queremos dizer com "um tipo de fatos".

Uma analogia com as ciências físicas tornará a posição mais clara. Todas as alavancas ou pêndulos que podemos conceber têm propriedades químicas e óticas. Mas, quando falamos de alavancas ou pêndulos, nós não falamos sobre fatos químicos ou óticos. O que faz de uma série de fatos individuais coisas do tipo são os atributos que nós selecionamos, a fim de tratá-los como membros de uma classe. Isso é, evidentemente, senso comum. Mas isso significa que, apesar de todos os fenômenos sociais com os quais possivelmente podemos lidar terem atributos físicos, eles não precisam ser fatos físicos para o nosso propósito. Isso depende de como acharemos conveniente classificá-los para a discussão de nossos problemas. As ações humanas que observamos, e os objetos dessas ações, são coisas do mesmo tipo ou de diferentes tipos, porque eles aparecem como fisicamente idênticos ou distintos para nós, os observadores – ou por causa de algum outro motivo?

As ciências sociais, sem exceção, preocupam-se com a maneira pela qual os homens se comportam em relação a seu ambiente – outros homens ou coisas – ou eu deveria dizer, ao invés disso, que esses são os elementos a partir dos quais as ciências sociais constroem padrões de relações entre muitos homens. Como devemos definir ou classificar os objetos de suas atividades, se queremos explicar ou compreender as suas ações? É pelos atributos físicos dos objetos – o que nós podemos descobrir sobre os objetos estudando-os – ou é por alguma outra coisa que devemos classificar os objetos quando tentamos explicar o que os homens fazem com eles? Deixe-me primeiramente considerar alguns exemplos.

Tome coisas como ferramentas, alimentos, remédios, armas, palavras, frases, comunicações e atos de produção – ou qualquer exemplo particular de qualquer um desses. Acredito que esses sejam bons exemplos do tipo de objetos da atividade humana que constantemente ocorrem nas ciências sociais. É facilmente visto que todos esses conceitos (e o mesmo vale para casos mais concretos) não se referem a algumas propriedades objetivas possuídas pelas coisas, ou as quais o observador possa descobrir sobre tais coisas, mas aos pontos de vista que outra pessoa tem sobre as coisas. Esses objetos não podem sequer ser definidos em termos físicos, porque inexiste uma única propriedade física que todo membro de uma classe deva possuir. Esses conceitos também não são meras abstrações do tipo que usamos em todas as ciências físicas; eles abstraem de todas as propriedades físicas das próprias coisas. Eles são todos exemplos do que por vezes se chama de "conceitos teleológicos", isto é, eles podem ser definidos apenas através da indicação das relações entre três termos: um propósito, alguém que tem esse propósito, e um objeto que essa pessoa pensa ser um meio adequado para alcançar esse propósito. Se desejarmos, podemos dizer que todos esses objetos são definidos não em termos

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de suas propriedades "reais", mas em termos de opiniões que as pessoas têm sobre eles. Em suma, nas ciências sociais, as coisas são o que as pessoas pensam que elas são. Dinheiro é dinheiro, uma palavra é uma palavra, um cosmético é um cosmético, se e porque alguém acha que eles o são.

Que isso não seja mais óbvio se deve ao acidente histórico de que, no mundo em que vivemos, o conhecimento da maioria das pessoas é aproximadamente parecido com o nosso próprio conhecimento. Isso é destacado muito mais fortemente quando pensamos em homens com um conhecimento diferente do nosso, por exemplo, pessoas que acreditam em magia. É óbvio que um feitiço que se acredita proteger a vida do seu portador, ou que um ritual destinado a garantir boas colheitas, só pode ser definido em termos das crenças das pessoas sobre eles. Mas o caráter lógico dos conceitos que temos que usar em tentativas de interpretar as ações das pessoas é o mesmo quer nossas crenças coincidam com as deles ou quer não. Se um medicamento é um medicamento, para o propósito de compreender as ações de uma pessoa, depende apenas de a pessoa acreditar que ele seja um, independentemente de nós, os observadores, concordarmos ou não. Às vezes é um pouco difícil ter claramente em mente essa distinção. Nós somos suscetíveis, por exemplo, a pensar na relação entre pai e filho como um fato "objetivo". Mas, quando usamos esse conceito no estudo da vida familiar, o que é relevante não é que x seja a prole biológica de y, mas que um deles ou ambos acreditem que esse seja o caso. O caráter relevante em questão não é diferente do caso em que x e y acreditam que exista algum laço espiritual entre eles, cuja existência nós não acreditamos. Talvez a distinção relevante torne-se mais clara na asserção geral e óbvia de que nenhum conhecimento superior que o observador possa dispor sobre o objeto, mas que não seja possuído pela pessoa que age, pode nos ajudar a compreender os motivos de suas ações.

Os objetos da atividade humana, então, para os fins das ciências sociais são do mesmo ou de diferentes tipos, ou pertencem à mesma ou a diferentes classes, não de acordo com o que nós, os observadores, sabemos sobre os objetos, mas de acordo com o que nós pensamos que a pessoa observada sabe sobre ele. Nós, de alguma forma, e pelas razões que eu presentemente considerarei, imputamos conhecimento na pessoa observada. Antes que eu prossiga perguntando em que fundamento tal imputação de conhecimento sobre o objeto à pessoa agindo se baseia, o que isso significa, e o que decorre do fato de que nós definimos os objetos da ação humana de tal forma, eu devo me voltar um momento para considerar o segundo tipo de elementos com os quais temos de lidar nas ciências sociais: não o ambiente em que os seres humanos se comportam, mas a ação humana em si. Quando examinamos a classificação de diferentes tipos de ações que devemos usar quando discutimos o comportamento humano inteligível, deparamo-nos com exatamente a mesma situação que nos deparamos quando analisamos a classificação dos objetos das ações humanas. Dos exemplos que dei antes, os últimos quatro encaixam-se nessa categoria: palavras, frases, comunicações e atos de produção são ilustrações de ações humanas desse tipo. O que faz com que sejam de um mesmo tipo duas instâncias de uma mesma palavra ou de um mesmo ato de produção, no sentido que é relevante quando discutimos o comportamento inteligível? Certamente não as propriedades físicas que eles têm em comum. Não é porque eu explicitamente sei quais propriedades físicas do som da palavra "sicômero", pronunciada em momentos diferentes por pessoas diferentes tem em comum, mas porque eu sei que x ouy intencionam usar todos esses sons ou sinais diferentes para significar a mesma palavra, ou que eles os entendem todos como a mesma palavra, que eu os trato como instâncias da mesma classe. Não é por causa de

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qualquer semelhança objetiva ou física, mas por causa da intenção (imputada) da pessoa que age, que eu considero como instâncias de um mesmo ato de produção as várias maneiras em que, em circunstâncias diferentes, ele possa fazer, digamos, um fuso.

Por favor, note que nem com relação aos objetos da atividade humana, nem com relação aos diferentes tipos de atividade humana eu argumento que suas propriedades físicas não entrem no processo de classificação. O que estou argumentando é que nenhuma propriedade física pode entrar na definição explícita de nenhuma dessas classes, porque os elementos dessas classes não precisam possuir atributos físicos comuns, e nós nem sequer consciente ou explicitamente sabemos quais são as várias propriedades físicas das quais um objeto teria de possuir pelo menos uma para ser um membro de uma classe. A situação pode ser descrita esquematicamente, dizendo que nós sabemos que os objetos a, b, c, ..., que podem ser completamente diferentes fisicamente e os quais nunca podemos enumerar exaustivamente, são objetos do mesmo tipo porque a atitude de X em relação a todos eles é semelhante. Mas o fato de a atitude de X em relação a eles ser semelhante pode novamente ser definida apenas dizendo que ele irá reagir em relação a eles através das ações α , β, γ, ...,que novamente podem ser fisicamente diferentes e que não seremos capazes de enumerar exaustivamente, mas que nós simplesmente sabemos que "significam" a mesma coisa.

Esse resultado da reflexão sobre o que estamos realmente fazendo é, sem dúvida, um pouco perturbador. No entanto, a mim não parece haver dúvida de que isso não só é precisamente o que estamos fazendo, na vida comum, bem como nas ciências sociais, quando falamos sobre ações inteligíveis de outras pessoas, mas também que essa é a única maneira com que podemos alguma vez "entender" o que as outras pessoas fazem; e que, portanto,devemos contar com esse tipo de raciocínio sempre que discutimos o que todos conhecemos como atividades especificamente humanas ou inteligíveis. Nós todos sabemos o que queremos dizer quando dizemos que vemos uma pessoa "brincando" ou "trabalhando", um homem fazendo isso ou aquilo "deliberadamente", ou quando dizemos que um rosto parece "amigável" ou um homem "assustado". Mas, embora possamos ser capazes de explicar como reconhecer qualquer uma dessas coisas em um caso particular, eu estou certo de que nenhum de nós pode enumerar, e nenhuma ciência pode – pelo menos por enquanto – nos dizer todos os sintomas físicos diferentes através dos quais nós reconhecemos a presença dessas coisas. Os atributos comuns que os elementos de qualquer uma dessas classes possuem não são atributos físicos, mas devem ser outra coisa.

Do fato de que sempre que interpretamos a ação humana como em qualquer sentido intencional ou significativo, quer o façamos na vida cotidiana quer para os propósitos das ciências sociais, nós temos que definir ambos os objetos da atividade humana e os diferentes tipos de ações por si mesmas, não em termos físicos, mas em termos das opiniões ou intenções das pessoas que agem, seguem algumas consequências muito importantes; a saber: nada a menos do fato de que não podemos, a partir dos conceitos dos objetos, analiticamente concluir algo sobre o que as ações serão. Se definimos um objeto em termos da atitude de uma pessoa em relação a ele, segue, é claro, que a definição do objeto implica uma declaração sobre a atitude da pessoa em relação à coisa. Quando dizemos que uma pessoa possui alimentos ou dinheiro, ou que ela pronuncia uma palavra, nós implicamos que sabemos que o primeiro pode ser comido, que o segundo pode ser usado para comprar algo e que a terceira pode ser entendida – e, talvez, muitas outras coisas. Se essa implicação é ou não significativa

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de alguma forma, isto é, se a tornar explícita acrescenta ou não ao nosso conhecimento de alguma forma, depende de se, quando dizemos a uma pessoa que essa ou aquela coisa é comida ou dinheiro, afirmamos com isso apenas os fatos observados a partir dos quais derivamos esse conhecimento ou se implicamos mais do que isso.

Como podemos saber que uma pessoa possui certas crenças sobre o seu ambiente? O que queremos dizer quando falamos que sabemos que ela possui certas crenças – quando dizemos que sabemos que ele usa essa coisa como uma ferramenta ou aquele gesto ou som como um meio de comunicação? Queremos dizer meramente o que realmente observamos no caso particular, por exemplo, que podemos vê-la mastigando e engolindo sua comida, batendo um martelo, ou fazendo barulhos? Ou não será que sempre que dizemos que "entendemos" a ação de uma pessoa, quando falamos sobre o "porquê" de ela estar fazendo isso ou aquilo, imputamos a ela algo além do que podemos observar ou, pelo menos, além do que podemos observar no caso particular?

Se considerarmos, por um momento, os mais simples tipos de ações em que esse problema surge, torna-se, é claro, rapidamente óbvio que, ao discutir o que nós consideramos como ações conscientes de outras pessoas, nós invariavelmente interpretamos suas ações fazendo uma analogia com a nossa própria mente: isto é, que nós agrupamos suas ações, e os objetos de suas ações, em classes ou categorias que conhecemos unicamente a partir do conhecimento da nossa própria mente. Assumimos que a idéia de um propósito ou uma ferramenta, uma arma ou comida, é comum a eles e a nós, assim como nós assumimos que eles podem ver a diferença entre as cores ou formas diferentes, assim como nós.  Nós, portanto, sempre complementamos o que realmente vemos da ação de outra pessoa através da projeção nessa pessoa de um sistema de classificação de objetos que conhecemos, não a partir da observação de outras pessoas, mas porque é em termos dessas classes que nós mesmos pensamos. Se, por exemplo, vemos uma pessoa atravessar uma praça cheia de tráfego, desviando de alguns carros e deixando outros passar, nós sabemos (ou pensamos que sabemos) muito mais do que realmente percebemos com nossos olhos. Isso seria igualmente verdadeiro se víssemos um homem se comportar em um ambiente físico bastante diferente de tudo que já vimos antes. Se eu vejo pela primeira vez uma grande pedra ou uma avalanche caindo sobre a encosta de uma montanha em direção a um homem e vejo-o correr por sua vida, eu sei o significado dessa ação, porque sei o que eu faria ou poderia ter feito em circunstâncias similares.

Não há dúvidas de que todos nós constantemente agimos com base no pressuposto de que podemos dessa maneira interpretar as ações das outras pessoas sobre a analogia de nossa própria mente e que, na grande maioria dos casos, esse procedimento funciona.O problema é que nunca podemos ter certeza. Observando alguns movimentos ou ouvindo algumas palavras de um homem, decidimos que ele é sensato e não um lunático e, assim, excluímos a possibilidade de ele ter um comportamento em um número infinito de maneiras "estranhas" as quais nenhum de nós jamais poderia enumerar e que simplesmente não se encaixam naquilo que sabemos ser um comportamento razoável, o que significa nada mais que essas ações não podem ser interpretadas por analogia de nossa própria mente. Nós não podemos explicar com precisão como, para fins práticos, sabemos que um homem é são e não um lunático, nem podemos excluir a possibilidade de que, em um caso em cada mil, podemos estar errados. Da mesma forma, eu, a partir de algumas observações, sou capaz de concluir rapidamente que um homem está sinalizando ou caçando, fazendo amor com ou punindo outra pessoa, embora eu

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nunca tenha visto essas coisas feitas dessa maneira em particular; e ainda assim a minha conclusão será suficientemente certa para todos os propósitos práticos.

A questão importante que se coloca é se é ou não legítimo empregar em análises científicas conceitos como esses, os quais se referem a um estado de coisas que todos nós reconhecemos "intuitivamente" e que não apenas usamos sem hesitação na vida cotidiana, como também é nele que todas as relações sociais e toda a comunicação entre os homens se baseiam; ou se devemos ser impedidos de fazê-lo porque não podemos afirmar quaisquer condições físicas a partir das quais podemos deduzir com certeza que as condições postuladas estão realmente presentes em qualquer caso particular, e porque, por essa razão, nunca podemos ter certeza se algum caso particular é realmente um membro da classe sobre a qual falamos – embora todos nós concordemos que na grande maioria dos casos, o nosso diagnóstico será correto. A hesitação que a princípio se sente sobre isso é provavelmente devida ao fato de que a retenção de tal procedimento nas ciências sociais parece estar em conflito com a tendência mais marcante no desenvolvimento do pensamento científico nos tempos modernos. Mas há realmente tal conflito? A tendência a qual me refiro foi corretamente descrita como uma em direção à progressiva eliminação das ciências físicas de todas as explicações "antropomórficas". Será que isso realmente significa que devemos nos abster de tratar o homem "antropomorficamente" – ou não é bem óbvio, assim que colocamos dessa forma, que tal extrapolação das tendências passadas é um absurdo?

Eu não quero, é claro, nesse contexto, levantar todos os problemas relacionados com o programa behaviorista, embora uma pesquisa mais sistemática do meu assunto não possa evitar fazê-lo. Na verdade, a questão que tratamos aqui não é nada mais do que se as ciências sociais poderiam possivelmente discutir o tipo de problemas de seu interesse em termos puramente behavioristas – ou mesmo se o behaviorismo consistente é possível.

Talvez a relação entre o fator estritamente empírico e a parte que nós adicionamos a partir do conhecimento da nossa própria mente para interpretar a ação de outra pessoa possa ser expresso com a ajuda de um uso (um tanto questionável) da distinção entre a denotação e a conotação de um conceito. O que eu em circunstâncias particulares reconheço como uma "cara amigável", a denotação do conceito, é em grande parte uma questão de experiência. Mas o que quero dizer quando falo que essa é uma "cara amigável", nenhuma experiência no sentido comum do termo pode exprimir. O que quero dizer com uma "cara amigável" não depende das propriedades físicas dos diferentes casos concretos, que podem teoricamente não ter nada em comum. Maseu aprendo a reconhecê-los como membros da mesma classe – e o que os torna membros da mesma classe não é nenhuma de suas propriedades físicas, mas um significado imputado.

A importância dessa distinção cresce na medida em que nos movemos para fora dos ambientes familiares. Enquanto eu me movo entre minha própria variedade de pessoas, é provável que das propriedades físicas de uma nota bancária ou das de um revólver eu conclua que eles são dinheiro ou uma arma para a pessoa que os carrega. Quando eu vejo um selvagem carregando conchas ou tubos longos e finos, as propriedades físicas da coisa provavelmente não me dirão nada. Mas as observações que me sugerem que as conchas são dinheiro para ele e o tubo uma arma lançarão muita luz sobre o objeto – muito mais luz do que essas mesmas observações poderiam dar se eu não estivesse familiarizado com o conceito

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de dinheiro ou de uma arma. Ao reconhecer as coisas como tais, eu começo a entender o comportamento das pessoas. Eu sou capaz de encaixá-la em um esquema de ações que "fazem sentido" só porque eu passei não a considerá-la como uma coisa com certas propriedades físicas, mas como o tipo de coisa que se encaixa no padrão de minha própria ação propositada.

Se o que fazemos quando falamos em entender a ação de uma pessoa é encaixar o que realmente observamos em padrões que encontramos prontos em nossas próprias mentes, segue-se, é claro, que podemos compreender cada vez menos quando nos voltamos para seres cada vez mais diferentes de nós mesmos. Mas também segue que não só é impossível reconhecer, mas também sem sentido falar sobre, uma mente diferente da nossa própria. O que queremos dizer quando falamos de outra mente é que podemos conectar o que observamos porque as coisas que observamos se encaixam na nossa própria forma de pensar. Mas, onde essa possibilidade de interpretar em termos de analogias da nossa própria mente cessa, onde já não podemos "compreender" – não há nenhum sentido em falar de mente; há, então, apenas fatos físicos que podemos agrupar e classificar somente em função das propriedades físicas que observamos.

Um ponto interessante nesse contexto é que, quando passamos da interpretação das ações de homens muito parecidos com nós mesmos para homens que vivem em um ambiente muito diferente, são os conceitos mais concretos os que primeiro perdem a sua utilidade na interpretação das ações das pessoas e os mais gerais ou abstratos são os que permanecem úteis por mais tempo. Meu conhecimento das coisas do meu dia-a-dia, dos modos particulares nos quais expressamos ideias ou emoções, será de pouca utilidade na interpretação do comportamento dos habitantes de Tierra del Fuego. Mas a minha compreensão do que quero dizer por um meio para um fim, por alimentos ou por uma arma, uma palavra ou um sinal, e provavelmente até mesmo por uma troca ou um presente, ainda será útil e mesmo indispensável na minha tentativa de compreender o que eles fazem.

3Até agora, a discussão tem sido limitada à questão de como classificamos ações individuais e seus objetos na discussão dos fenômenos sociais. Devo agora me voltar à questão do propósito para o qual usamos essa classificação. Mesmo que a preocupação com classificações ocupe uma grande quantidade de nossas energias nas ciências sociais – tanto, de fato, que na economia, por exemplo, um dos críticos modernos mais conhecidos da disciplina descreveu-a como uma ciência puramente "taxonômica" – esse não é o nosso objetivo final. Como todas as classificações, ela é apenas uma maneira conveniente de organizar os nossos fatos para o que quer que queiramos explicar. Mas antes que eu possa me voltar para isso, devo, em primeiro lugar, eliminar um equívoco comum de nosso caminho e, em segundo lugar, explicar uma alegação frequentemente feita em defesa desse processo de classificação – uma alegação que para qualquer pessoa que cresceu nas ciências naturais soa altamente suspeita, mas que, entretanto, segue meramente da natureza do nosso objeto.

O mal-entendido é que as ciências sociais visam explicar o comportamento individual e, particularmente, que o processo elaborado de classificação que usamos é, ou serve para, tal explicação. As ciências sociais na verdade não fazem nada do tipo. Se a ação consciente pode ser "explicada", essa é uma tarefa para a psicologia, mas não para a economia ou para a

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linguística, a jurisprudência ou qualquer outra ciência social. O que fazemos é meramente classificar os tipos de comportamento individual que podemos entender, desenvolver a sua classificação – em suma, fornecer um arranjo ordenado de material que teremos de usar na nossa tarefa posterior. Economistas, e o mesmo provavelmente também é verdade nas outras ciências sociais, ficam geralmente um pouco envergonhados ao admitir que essa parte da sua tarefa é "apenas" um tipo de lógica. Eu acho que eles seriam sábios se francamente reconhecessem e encarassem esse fato.

A alegação a que já me referi segue diretamente desse caráter da primeira parte da nossa tarefa como um ramo da lógica aplicada. Mas soa bastante surpreendente à primeira vista. Ela é que podemos deduzir a partir do conhecimento da nossa própria mente de uma maneira "a priori" ou "dedutiva" ou "analítica", uma classificação (pelo menos em princípio) exaustiva de todas as formas possíveis de comportamento inteligível. É contra essa alegação, raramente feita abertamente, mas sempre implícita, que todas as provocações contra os economistas são direcionadas, quando somos acusados de gerar o conhecimento a partir de nossa consciência interior e de outros epítetos abusivos semelhantes que existem. No entanto, quando refletimos que, sempre que discutimos o comportamento inteligível, discutimos ações que podemos interpretar em termos de nossa própria mente, a alegação perde o seu caráter surpreendente e de fato torna-se não mais do que um truísmo. Se podemos entender apenas o que é semelhante à nossa própria mente, segue-se necessariamente que devemos ser capazes de encontrar tudo o que podemos entender em nossa própria mente. Evidentemente, quando eu digo que nós podemos, em princípio, alcançar uma classificação exaustiva de todas as formas possíveis de comportamento inteligível, isso não significa que não podemos descobrir que, ao interpretar as ações humanas, nós usamos processos de pensamento que nós ainda não analisamos ou tornamos explícitos. Nós constantemente o fazemos. O que eu quis dizer é que, quando discutimos qualquer classe particular de ação inteligível a qual tenhamos definido como ações de um tipo, no sentido em que eu tenho usado esse termo, então podemos, dentro desse campo, fornecer uma classificação completamente exaustiva das formas de ação que pertencem a ela. Se, por exemplo, nós definimos como ações econômicas todos os atos de escolha que são tornados necessários pela escassez de meios disponíveis para os nossos fins, podemos, passo a passo, proceder com a subdivisão das situações possíveis em alternativas de forma que, para cada passo não haja uma terceira possibilidade: um dado meio pode ser útil para muitos fins ou apenas para um fim, um dado fim pode ser alcançado por um ou por vários diferentes meios, diferentes meios podem ser desejados para um determinado fim, quer alternativamente quer cumulativamente, etc.

Mas devo deixar o que eu chamei de primeira parte da minha tarefa e me voltar para a questão do uso que fazemos dessas classificações elaboradas nas ciências sociais. A resposta é, resumidamente, que nós usamos os diferentes tipos de comportamento individual, assim classificados, como elementos a partir dos quais construímos modelos hipotéticos, na tentativa de reproduzir os padrões de relações sociais que conhecemos no mundo que nos rodeia. Mas isso ainda nos deixa com a questão de saber se essa é a maneira correta de estudar os fenômenos sociais. Não temos nessas estruturas sociais, afinal, definidos fatos sociais tangíveis, os quais devemos observar e medir,assim como observamos e medimos fatos físicos? Não deveríamos aqui, pelo menos derivar todo o nosso conhecimento observando e experimentando, ao invés de "construir modelos" a partir dos elementos encontrados no nosso próprio pensamento?

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A crença de que, quando nos voltamos da ação do indivíduo para a observação das coletividades sociais, nós passamos do reino da especulação vaga e subjetiva para o reino do fato objetivo é muito difundida. É a crença sustentada por todos os que pensam que podem fazer as ciências sociais mais "científicas" através da imitação do modelo das ciências naturais. A sua base intelectual foi mais claramente expressa pelo fundador da "sociologia", Auguste Comte, quando em uma famosa declaração, ele afirmou que no campo dos fenômenos sociais, como na biologia, "o todo do objeto é, certamente, muito mais conhecido e mais imediatamente acessível "do que as partes constituintes. [1] A maior parte da ciência que ele tentou criar ainda se baseia em crenças como essa ou similares a essa.

Creio que essa visão que considera os coletivos sociais, tais como a "sociedade" ou o "estado", ou qualquer instituição ou fenômeno social, como sendo em qualquer sentido mais objetivo do que as ações inteligíveis dos indivíduos é pura ilusão. Devo argumentar que o que chamamos de "fatos sociais" não são mais fatos no sentido específico em que esse termo é utilizado nas ciências físicas do que são as ações individuais ou os seus objetos; que esses assim chamados "fatos" são, ao invés disso, precisamente o mesmo tipo de modelos mentais construídos por nós a partir de elementos que encontramos em nossas próprias mentes como os que nós construímos nas ciências sociais teóricas; de modo que o que fazemos nessas ciências é, em um sentido lógico, exatamente a mesma coisa que sempre fazemos quando falamos de um estado ou uma comunidade, uma língua ou um mercado, e que só tornamos explícito o que na linguagem corrente é oculto e vago.

Não posso tentar aqui explicar isso no contexto de uma disciplina social teórica qualquer – ou, ao invés, no contexto da única entre elas na qual eu seria competente para fazer isso, economia. Para fazer isso, eu teria que gastar muito mais tempo do que tenho em tecnicalidades. Mas talvez seja ainda mais útil se eu tentar fazer isso no contexto da preeminentemente descritiva e, em certo sentido, da disciplina eminentemente empírica no campo social, a história. Considerar a natureza dos "fatos históricos" será particularmente apropriado, já que os cientistas sociais são constantemente aconselhados, por aqueles que querem tornar as ciências sociais mais "científicas", a recorrer à história em busca de seus fatos e a usar o "método histórico" como um substituto para o experimental. De fato, fora das próprias ciências sociais (e, ao que parece, especialmente entre os lógicos) [2] parece ter se tornado quase uma doutrina aceita a de que o método histórico é o caminho legítimo para generalizações sobre fenômenos sociais. [3]

O que queremos dizer por um "fato" da história? Os fatos com os quais a história humana se interessa são significativos para nós como fatos físicos ou em algum outro sentido? Que tipo de coisas são a Batalha de Waterloo, o Governo francês de Luís XIV, ou o sistema feudal? Talvez chegaremos mais longe se, ao invés de se abordar essa questão diretamente, nos perguntemos como nós decidimos se qualquer pedaço particular de informação que temos faz parte do "fato" "Batalha de Waterloo". O homem que estava arando o seu campo um pouco além da extremidade do flanco dos guardas de Napoleão era parte da Batalha de Waterloo? Ou o cavaleiro que caiu em sua caixa de rapé ao ouvir a notícia da tomada da Bastilha era parte da Revolução Francesa? Considerar cuidadosamente esse tipo de pergunta mostra pelo menos uma coisa: que não podemos definir um fato histórico em termos de coordenadas espaço-temporais. Também que nem tudo o que ocorre em um tempo e em um mesmo lugar

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faz parte do mesmo fato histórico, e que todas as partes do mesmo fato histórico não precisam pertencer ao mesmo tempo e lugar. A língua grega clássica ou a organização das legiões romanas, o comércio do mar Báltico no século XVIII ou a evolução da common law, ou qualquer movimento de qualquer exército – todos esses são fatos históricos, nos quais nenhum critério físico pode nos dizer quais são as partes do fato e como elas se ligam. Qualquer tentativa de defini-los deve tomar a forma de uma reconstrução mental, de um modelo, na qual atitudes individuais inteligíveis constituem os elementos. Na maioria dos casos, sem dúvida, o modelo será tão simples que a interligação de suas partes é facilmente visível; e haverá, consequentemente, pouca justificativa para dignificar o modelo com o nome de "teoria". Mas, se o nosso fato histórico é tão complexo como uma língua ou um mercado, um sistema social ou um método de cultivo da terra, o que chamamos de um fato ou é um processo recorrente ou um padrão complexo de relações persistentes que não é "dado" a nossa observação, mas que só podemos reconstruir laboriosamente – e que podemos reconstruir apenas porque as partes (as relações a partir das quais construímos a estrutura) são familiares e inteligíveis para nós. Dizendo paradoxalmente, o que chamamos de fatos históricos são na verdade teorias que, em um sentido metodológico, são de caráter precisamente idêntico ao dos modelos mais abstratos ou gerais, os quais as ciências teóricas da sociedade constroem. A situação não é que, primeiro, estudamos os "dados" fatos históricos e, em seguida, talvez possamos generalizar a respeito deles. Ao invés disso, nós usamos uma teoria quando selecionamos, a partir do conhecimento que temos sobre um período, certas partes como sendo inteligivelmente conectadas e constituindo parte do mesmo fato histórico.  Nós nunca observamos estados ou governos, batalhas ou atividades comerciais, ou um povo como um todo. Quando usamos qualquer um desses termos, nós sempre nos referimos a um esquema que conecta atividades individuais através de relações inteligíveis; isto é, usamos uma teoria que nos diz o que faz e o que não faz parte de nosso assunto. A posição não se altera pelo fato de que a teorização ser geralmente feita para nós por nosso informante ou fonte que, ao relatar o fato, irá usar termos como "estado" ou "cidade" os quais não podem ser definidos em termos físicos, mas que se referem a um complexo de relações que, tornadas explícitas, constituem uma "teoria" sobre o assunto.

A teoria social, no sentido em que eu uso o termo, é, portanto, logicamente anterior à história. Ela explica os termos que a história deve usar. Isso, naturalmente, não é incompatível com o fato de que o estudo histórico frequentemente força o teórico a rever as construções ou a fornecer novas em termos dos quais ele possa organizar a informação que encontra. Mas, na medida em que o historiador fala, não apenas sobre as ações individuais de pessoas em particular, mas também sobre o que, em certo sentido, podemos chamar de fenômenos sociais, os seus fatos podem ser explicados como fatos de um determinado tipo só em termos de uma teoria sobre como seus elementos se ligam. Os complexos sociais, as totalidades sociais que o historiador discute, nunca são encontrados prontos, dados da forma como são as estruturas persistentes no mundo orgânico (animal ou vegetal). Eles são criados pelo historiador através de um ato de construção ou interpretação – uma construção que, na maioria dos casos, é feita de forma espontânea e sem qualquer instrumento elaborado. Mas em alguns contextos onde, por exemplo, lidamos com coisas como línguas, sistemas econômicos, ou organismos de direito, essas estruturas são tão complicadas que, sem a ajuda de uma técnica elaborada, elas já não podem ser reconstruídas sem o perigo de se cometer erros ou ser levado a contradições. Isso é tudo o que as teorias das ciências sociais pretendem fazer. Elas não tratam das

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totalidades sociais como totalidades; elas não tem pretensão de descobrir leis de comportamento ou mudança dessas totalidades através de observações empíricas. Sua função é, ao invés disso, se assim posso chamá-la, de constituir essas totalidades, de fornecer esquemas de relações estruturais os quais o historiador pode usar quando ele tem que tentar encaixar os elementos que realmente encontra em um todo significativo. O historiador não pode evitar o uso constante de teorias sociais nesse sentido. Ele pode fazer isso inconscientemente e, em campos em que as relações não são muito complexas, seu instinto pode orientá-lo corretamente. Quando ele se volta para fenômenos mais complexos, tais como as línguas, o direito, ou a economia, e ainda desdenha de fazer uso dos modelos elaborados por ele pelos teóricos, é quase certo que ele fracassará. E esse "fracasso" vai significativamente se mostrar pelo teórico, quer demonstrando-lhe que ele se envolveu em contradições quer lhe mostrando que, em suas explicações, ele afirmou uma seqüência de "causalidade", que, assim que suas suposições forem tornadas explícitas, ele terá de admitir que não seguem das suas suposições.

Há duas conseqüências importantes que seguem disso e que podem aqui ser expostas apenas brevemente. A primeira é que as teorias das ciências sociais não consistem em "leis" no sentido de regras empíricas sobre o comportamento de objetos definíveis em termos físicos. Tudo o que a teoria das ciências sociais tenta é proporcionar uma técnica de raciocínio que nos ajuda a conectar fatos individuais, mas que, assim como a lógica ou a matemática, não trata dos fatos. Ela nunca pode, portanto, e esse é o segundo ponto, ser verificada ou falsificada por referência aos fatos. Tudo o que podemos e devemos verificar é a presença de nossos pressupostos no caso particular. Nós já nos referimos aos problemas e dificuldades especiais que isso suscita. Nesse contexto, uma genuína "questão de fato" surge embora seja uma que muitas vezes não poderá ser respondida com a mesma certeza que no caso das ciências naturais. Mas a própria teoria, o esquema mental para a interpretação, nunca pode ser "verificada", mas apenas testada em sua consistência. Ela pode ser irrelevante, porque as condições a que se refere nunca ocorrem; ou pode revelar-se inadequada porque não leva em conta um número suficiente de condições. Mas ela não pode ser mais refutada pelos fatos do que podem a lógica ou a matemática.

Ainda resta, no entanto, a questão de saber se esse tipo de teoria "compositiva", como eu gosto de chamá-lo, que "constitui" as "totalidades" sociais através da construção de modelos a partir de elementos inteligíveis, é o único tipo de teoria social, ou se não podemos também procurar generalizações empíricas sobre o comportamento dessas totalidades enquanto totalidades, leis das mudanças de línguas ou instituições – o tipo de leis que são o objetivo do "método histórico". Não vou me estender aqui sobre a curiosa contradição em que os defensores desse método geralmente envolvem-se quando eles enfatizam que todos os fenômenos históricos são únicos ou singulares e, em seguida, procedem para afirmação de que seu estudo pode chegar a generalizações. O ponto que desejo frisar é que se, da infinita variedade de fenômenos que podemos encontrar em qualquer situação concreta, só podem ser considerados como parte de um objeto apenas aqueles que conseguimos conectar por meio de modelos mentais, o objeto não pode possuir atributos que estejam além daqueles que podem ser derivados do nosso modelo. Evidentemente, podemos continuar a construir modelos que se encaixem cada vez mais às situações concretas – conceitos de estados ou línguas que possuam uma conotação ainda mais rica. Mas, como membros de uma classe, como unidades semelhantes sobre as quais podemos fazer generalizações, esses modelos nunca podem

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possuir nenhuma propriedade que não for dada a eles ou que não derive dedutivamente a partir dos pressupostos sobre os quais os construímos. A experiência nunca pode nos ensinar que qualquer tipo específico de estrutura possui propriedades que não seguem a partir da definição (ou da maneira que nós a construímos). A razão para isso é simplesmente que essas totalidades ou estruturas sociais nunca nos são dadas como unidades naturais, não são objetos definidos dados à observação, que nunca lidamos com a totalidade da realidade, mas sempre apenas com uma seleção feita com a ajuda dos nossos modelos. [4]

Eu não tenho espaço para discutir de forma mais completa a natureza dos "fatos históricos" ou dos objetos da história, mas eu gostaria brevemente de me referir a uma questão que, embora não estritamente pertinente ao meu assunto, ainda não é completamente irrelevante. É a doutrina muito em moda do "relativismo histórico", a crença de que diferentes gerações ou épocas devem necessariamente ter opiniões diferentes sobre os mesmos fatos históricos. Parece-me que essa doutrina é o resultado da mesma ilusão de que os fatos históricos são definitivamente dados a nós e não o resultado de uma seleção deliberada daquilo que consideramos como um conjunto conectado de eventos relevantes para a resposta de uma determinada pergunta – uma ilusão que me parece ser devido à crença de que podemos definir um fato histórico em termos físicos através de suas coordenadas espaço-temporais. Mas uma coisa assim definida, digamos, a "Alemanha entre 1618 e 1648", não é apenas um objeto histórico. Dentro do contínuo de espaço-tempo assim definido, podemos encontrar qualquer número de fenômenos sociais interessantes que para o historiador podem ser objetos completamente diferentes: a história da família X, o desenvolvimento da impressão, a mudança das instituições jurídicas, etc., que podem ou não estar ligados, mas que não fazem mais parte de um fato social do que quaisquer outros dois eventos da história humana. Esse período particular, ou qualquer outro período, não é, como tal, nenhum "fato histórico" definido, nenhum objeto histórico individual. De acordo com os nossos interesses, podemos levantar qualquer número de perguntas diferentes referentes a esse período e, consequentemente, teremos que dar respostas diferentes e construir modelos diferentes de eventos conectados. E é isso que os historiadoresfazem em tempos diferentes, porque eles estão interessados em questões diferentes. Mas como é somente a questão que perguntamos que destaca, a partir da variedade infinita de eventos sociais que podemos encontrar em qualquer momento e lugar dados, um conjunto definido de eventos conectados que podem ser denominados como um fato histórico, a experiência de que as pessoas dão respostas diferentes para perguntas diferentes não prova, evidentemente, que elas têm opiniões diferentes sobre o mesmo fato histórico. Não há nenhuma razão, por outro lado, pela qual historiadores em tempos diferentes, mas possuindo a mesma informação, devam responder à mesma questão de maneira diferente. Isso por si só, porém, justificaria a tese de uma relatividade inevitável do conhecimento histórico.

Menciono isso porque esse relativismo histórico é um produto típico do assim chamado "historicismo", que é, de fato, um produto da má aplicação do preconceito cientificista a fenômenos históricos – da crença de que os fenômenos sociais são sempre dados a nós como os fatos da natureza nos são dados. Eles são acessíveis para nós só porque podemos compreender o que outras pessoas nos dizem e só podem ser compreendidos através da interpretação das intenções e planos de outras pessoas. Eles não são fatos físicos, mas os elementos a partir dos quais os reproduzimos são sempre categorias familiares de nossa própria mente. Onde nós não pudéssemos mais interpretar o que sabemos sobre outras pessoas

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através da analogia de nossa própria mente, a história deixaria de ser história humana; ela teria, então, de fato, que funcionar em termos puramente behavioristas, tais como a história que poderíamos escrever sobre um formigueiro ou a história que um observador de Marte poderia escrever sobre a raça humana.

Se essa descrição do que as ciências sociais estão realmente fazendo parece a vocês como uma descrição de um mundo às avessas no qual tudo está no lugar errado, eu peço que vocês se lembrem de que essas disciplinas lidam com um mundo no qual da nossa posição nós necessariamente olhamos de uma maneira diferente daquela que olhamos para o mundo da natureza. Para empregar uma metáfora útil: enquanto no mundo da natureza nós olhamos pelo lado de fora, olhamos para o mundo da sociedade a partir do interior; enquanto que, quando lidamos com a natureza, os nossos conceitos são sobre os fatos e devem ser adaptados aos fatos, no mundo da sociedade, pelo menos alguns dos conceitos mais conhecidos são o material do qual esse mundo é feito. Assim como a existência de uma estrutura comum de pensamento é a condição da possibilidade da nossa comunicação uns com os outros, da sua compreensão do que eu digo, ela também é a base sobre a qual todos nós interpretamos essas complicadas estruturas sociais como as que encontramos na vida econômica ou no direito, na linguagem, e nos costumes.

1. Cours, IV, 258.2. Cf, e.g., LS Stebbing, A Modern Introduction to Logic (2d ed., 1933), p. 383.3. Estou certo de que eu não preciso aqui especialmente proteger-me contra o mal-entendido de que o que eu tenho a dizer sobre a relação entre história e teoria signifique, em qualquer sentido, a diminuição da importância da história. Gostaria ainda de salientar que todo o propósito da teoria é de ajudar a nossa compreensão dos fenômenos históricos e que o mais perfeito conhecimento da teoria será de muito pouca utilidade, de fato, sem um conhecimento de um caráter histórico mais amplo. Mas isso não tem realmente nada a ver com o meu assunto atual, que é a natureza dos "fatos históricos" e os respectivos papéis que a história e a teoria da possuem em sua discussão.4. Aliás, eu não estou convencido de que esse último ponto realmente constitui uma diferença entre as ciências sociais e naturais. Mas, se ele não a constitui, acho que são os cientistas naturais que estão errados em acreditar que eles sempre lidam com a totalidade da realidade e não apenas com determinados "aspectos" da mesma. Mas todo esse problema de se podemos falar, ou perceber, um objeto que é indicado para nós de uma maneira puramente demonstrativa, e que nesse sentido é um indivíduo que se distingue de uma "classe de unidades" (que é realmente concreta e não uma abstração), levaria a muito além do meu presente assunto.

**F. A. Hayek (1899-1992) foi um membro fundador do Mises Institute. Ele dividiu o Prêmio Nobel 1974 em Economia com seu rival ideológico Gunnar Myrdal "por seu trabalho pioneiro na teoria da moeda e flutuações econômicas e pela análise penetrante da interdependência dos fenômenos econômicos, sociais e institucionais".

O Significado da Competição

por F. A. Hayek* [Extraído e traduzido de Individualism and Economic Order(1948)]

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Há sinais de crescente percepção entre os economistas de que o que eles vêm discutindo nos últimos anos sob o nome de "competição" não é a mesma coisa que é chamada dessa mesma forma na linguagem comum.

Mas, embora tenha havido algumas tentativas valentes para trazer a discussão de volta a terra e chamar a atenção para os problemas da vida real, especialmente por J.M. Clark e F. Machlup, [1]a opinião geral ainda, aparentemente, considera a concepção de competição atualmente empregada por economistas como sendo a que é significativa, e trata a concepção dos empresários como sendo um mau uso.Parece ser geralmente defendido que a assim chamada teoria da "competição perfeita" fornece o modelo apropriado para avaliar a eficácia da competição na vida real e que, na medida em que a competição real difere do modelo, ela é indesejável e até mesmo prejudicial. Para essa atitude me parece existir muito pouca justificação. Tentarei mostrar que aquilo que a teoria da competição perfeita discute tem pouca razão de ser sequer chamado de "competição", e que suas conclusões são de pouca utilidade como guias para políticas.

A razão para isso parece-me ser que essa teoria assume que existe um estado de coisas em que, de acordo com a visão mais verdadeira da teoria velha, o processo de competição tende a trazer (ou se aproximar) e que, se o estado de coisas assumido pela teoria da competição perfeita alguma vez viesse a existir, ele não só privaria em seu escopo todas as atividades que o verbo "competir" descreve, como as tornariam virtualmente impossíveis.

Se tudo isso afetasse apenas o uso da palavra "competição", isso não importaria muito. Mas parece quase como se os economistas, através desse uso peculiar da linguagem, estivessem enganando-se na crença de que, ao discutir "competição", eles estão dizendo algo sobre a natureza e importância do processo através do qual é trazido o estado de coisas que eles meramente assumem existir. Na verdade, essa força motriz da vida econômica é deixada de lado sem praticamente nenhuma discussão.

Eu não desejo discutir aqui as razões que levaram a teoria da competição para esse estado curioso. Como sugeri em outra parte desse volume, [2]o método tautológico que é apropriado e indispensável para a análise da ação individual parece, nesse caso, ter sido ilegitimamente estendido para problemas nos quais temos de lidar com um processo social em que as decisões de muitos indivíduos influenciam umas às outras e necessariamente sucedem umas às outras no tempo.O cálculo econômico (ou a Lógica Pura da Escolha), que lida com o primeiro tipo de problema, consiste em um aparato de classificação das possíveis atitudes humanas e nos fornece uma técnica para descrever as inter-relações das diferentes partes de um único plano. Suas conclusões estão implícitas nos seus pressupostos: os desejos e o conhecimento dos fatos, que são assumidos como estando simultaneamente presentes em uma única mente, determinam uma solução única. As relações discutidas nesse tipo de análise são relações lógicas, preocupadas apenas com as conclusões que seguem das premissas dadas para a mente do indivíduo planejador.

Quando lidamos, no entanto, com uma situação na qual várias pessoas estão tentando executar os seus planos separados, não podemos mais assumir que os dados são os mesmos para todas as mentes do planejamento.

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O problema vem a ser como os "dados" dos diferentes indivíduos, dados nos quais seus planos se baseiam, são ajustados aos fatos objetivos do seu ambiente (o que inclui as ações das outras pessoas).

Embora na solução deste tipo de problema nós ainda tenhamos que fazer uso de nossa técnica para rapidamente elaborar as implicações de um determinado conjunto de dados, nós temos agora de lidar não só com vários conjuntos separados de dados das diferentes pessoas, mas também - e isso é ainda mais importante - com um processo que envolve necessariamente mudanças contínuas nos dados dos diferentes indivíduos. Como sugeri antes, o fator causal entra aqui na forma de aquisição de conhecimento novo pelos diferentes indivíduos ou na de mudanças em seus dados trazidas pelos contatos entre esses indivíduos.

A relevância disso para o meu problema atual aparece quando se recorda que a moderna teoria da competição trata quase exclusivamente de um estado que é chamado de "equilíbrio competitivo", no qual é assumido que os dados para os diferentes indivíduos são totalmente ajustados entre si, embora o problema que requer explicação é a natureza do processo através do qual os dados são ajustados dessa forma.

Em outras palavras, a descrição do equilíbrio competitivo nem sequer tenta dizer que, se encontrarmos certas condições, certas conseqüências seguirão, mas se limita a definir as condições nas quais as suas conclusões já estão implicitamente contidas e que podem concebivelmente existir, mas como elas poderiam ser alguma vez trazidas não nos é dito.

Ou, para antecipar a nossa conclusão principal com uma afirmação breve, a competição é, por sua natureza, um processo dinâmico, cujas características essenciais são assumidas como inexistentes pelas suposições subjacentes à análise estática.

Que a moderna teoria do equilíbrio competitivo assume existir a situação a qual deveria ser considerada como sendo o efeito de um processo competitivo por uma verdadeira explicação é melhor mostrado através do exame da familiar lista de condições encontradas em qualquer livro-texto moderno. A maioria dessas condições, aliás, não só estão na base da análise da competição "perfeita", como são igualmente assumidas na discussão dos vários mercados "imperfeitos" ou "monopolísticos", a qual assume certas "perfeições" irrealistas. [3]Para nosso propósito imediato, no entanto, a teoria da competição perfeita será o caso mais instrutivo de se examinar.Enquanto diferentes autores podem expor a lista de condições essenciais da competição perfeita de maneiras diferentes, o que se segue é provavelmente mais do que suficientemente abrangente para o nosso propósito, porque, como veremos, essas condições na verdade não são independentes umas das outras. De acordo com o ponto de vista usualmente aceito, a competição perfeita pressupõe:

1.    Uma mercadoria homogênea oferecida e demandada por um grande número de vendedores ou compradores relativamente pequenos, nenhum dos quais espera exercer, através de sua ação, uma influência perceptível no preço.

2.    Entrada livre no mercado e ausência de outras restrições sobre o movimento de preços e recursos.

3.    Conhecimento completo dos fatores relevantes por parte de todos os participantes no mercado.

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Nós não iremos questionar nesse estágio precisamente para que essas condições são necessárias ou o que está implícito se elas são assumidas como dadas. Mas iremos investigar um pouco mais sobre o seu significado e, nesse aspecto, é a terceira condição que é a crítica e obscura.

A norma, evidentemente, não pode ser o conhecimento perfeito de tudo que afeta o mercado por parte de cada pessoa que faz parte dele. Eu não entrarei aqui no familiar paradoxo do efeito paralisante que o conhecimento e previsão perfeitos realmente teriam sobre toda a ação. [4]Será também óbvio que nada é resolvido quando assumimos que todos sabem tudo e que o verdadeiro problema é, na verdade, como se pode fazer com que o máximo do conhecimento disponível seja utilizado.Isso levanta para uma sociedade competitiva não a questão de como podemos "encontrar" as pessoas que conhecem melhor, mas sim quais arranjos institucionais são necessários para que as pessoas desconhecidas que têm conhecimento especialmente adequado a uma determinada tarefa serem mais provavelmente atraídos para essa tarefa. Mas devemos investigar um pouco mais sobre qual tipo de conhecimento é que é suposto como estando em posse das partes do mercado.

Se considerarmos o mercado para algum bem de consumo final e começarmos com a situação dos seus produtores ou vendedores, descobriremos, em primeiro lugar, que é assumido que eles sabem qual é o menor custo com o qual a mercadoria pode ser produzida. No entanto, esse conhecimento, que se supõe como dado já de início, é um dos principais fins considerando-se que é somente através do processo de competição que os fatos serão descobertos.

Parece-me ser uma das questões mais importantes que o ponto de partida da teoria do equilíbrio competitivo assume como inexistente a tarefa principal que somente o processo de competição pode resolver.

A situação é um pouco semelhante no que diz respeito ao segundo ponto no qual se assume que os produtores são plenamente informados: os desejos e vontades dos consumidores, incluindo os tipos de bens e serviços que eles demandam e os preços que eles estão dispostos a pagar. Tais coisas não podem ser consideradas propriamente como fatos dados, mas deveriam antes ser consideradas como problemas a serem resolvidos através do processo de competição.

A mesma situação existe do lado dos consumidores ou compradores. Novamente, o conhecimento que se supõe que eles tenham em um estado de equilíbrio competitivo não pode ser legitimamente assumido como estando sob o domínio deles antes que o processo de competição inicie. O conhecimento deles sobre as alternativas que possuem diante de si mesmos é o resultado do que acontece no mercado, de atividades como a publicidade, etc.; e a organização do mercado como um todo serve principalmente à necessidade de disseminar a informação a partir da qual o comprador agirá.

A natureza peculiar dos pressupostos dos quais parte a teoria do equilíbrio competitivo destaca-se muito claramente se questionarmos quais das atividades que são comumente designadas pelo verbo "competir" ainda seriam possíveis se essas condições fossem satisfeitas.

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Talvez valha a pena recordar que, segundo o Dr. Johnson, a competição é "a ação de se esforçar para ganhar o que o outro ao mesmo tempo se esforça para ganhar."

Agora, quantas estratégias adotadas na vida comum para esse fim ainda estariam disponíveis a um vendedor em um mercado em que a assim chamada "competição perfeita" está vigente? Eu acredito que a resposta é exatamente nenhuma.

Publicidade, diminuição de preços, e melhoramentos ("diferenciação") dos bens ou serviços produzidos são todos excluídos, por definição - a competição "perfeita", de fato, significa a ausência de todas as atividades competitivas.

Especialmente notável, neste contexto, é a explícita e completa exclusão de todas as relações pessoais existentes entre as partes na teoria da competição perfeita. [5]Na vida real, o fato de que o nosso conhecimento inadequado dos produtos e serviços disponíveis é composto por nossa experiência com as pessoas ou empresas que os ofertam - que a competição é, em grande medida, competição por reputação ou boa vontade - é um dos mais importantes fatos que nos permite resolver os nossos problemas diários.A função da competição aqui é precisamente nos ensinar quem irá nos servir bem: que merceeiro ou agência de viagens, que loja de departamento ou hotel, que médico ou advogado, podemos esperar que forneça a solução mais satisfatória para qualquer que seja o problema pessoal particular que nós podemos enfrentar.

Evidentemente, em todos esses domínios a competição pode ser muito intensa, justamente porque os serviços das diferentes pessoas ou empresas nunca serão exatamente iguais, e será devido a essa competição que estamos em posição de sermos servidos tão bem quanto somos.

As razões pelas quais a competição neste campo é descrita como imperfeita tem, de fato, nada a ver com o caráter competitivo das atividades dessas pessoas; o motivo disso reside na natureza das mercadorias ou serviços em si. Se não houver dois médicos perfeitamente iguais, isso não significa que a competição entre eles é menos intensa, mas simplesmente que qualquer grau de competição entre eles não vai produzir exatamente os resultados que seriam produzidos se os seus serviços fossem exatamente iguais.

Esse não é um ponto de vista puramente verbal. A conversa sobre os defeitos ou competição, quando na verdade estamos falando sobre a diferença necessária entre mercadorias e serviços esconde uma confusão muito real e ocasionalmente leva a conclusões absurdas.

Embora, à primeira vista, o pressuposto de conhecimento perfeito possuído pelas partes pareça ser o mais surpreendente e artificial de todos os pressupostos nos quais a teoria da competição perfeita se baseia, ele pode na verdade não ser mais do que uma consequência de, e em parte até justificado por, outro dos pressupostos em que ela se baseia.

Se, de fato, começarmos assumindo que um grande número de pessoas estão produzindo a mesma mercadoria e possuem as mesmas instalações objetivas e oportunidades para fazê-lo, então, de fato, pode-se fazer com que se torne plausível (embora, até onde eu saiba, isso nunca tenha sido tentado) que todos eles vão, com o tempo, ser levados a conhecer a maioria dos fatos relevantes para julgar o mercado dessa mercadoria. Não só irá cada produtor através de sua experiência aprender os mesmos fatos que todos os outros, mas também ele irá, dessa forma, conhecer o que seus companheiros sabem e, consequentemente, a elasticidade da demanda pelo seu próprio produto.

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A condição em que diferentes fabricantes produzem um produto idêntico em condições idênticas é, de fato, a mais favorável para produzir entre eles esse estado de conhecimento que a competição perfeita requer. Talvez isso não signifique nada além de que os produtos podem ser idênticos, no sentido em que isso é em si relevante para o nosso entendimento da ação humana somente se as pessoas têm as mesmas opiniões sobre esses produtos, embora também deveria ser possível enunciar um conjunto de condições físicas que seriam favoráveis para que todos aqueles que estão preocupados com um conjunto de atividades intimamente inter-relacionadas aprendam os fatos relevantes para suas decisões.

De qualquer forma, ficará claro que os fatos nem sempre serão tão favoráveis para esse resultado como eles são quando muitas pessoas estão pelo menos em condições de produzir o mesmo artigo. A concepção do sistema econômico como divisível em mercados distintos para mercadorias separadas é, no fim das contas, em grande parte o produto da imaginação do economista e, certamente, não é a regra no campo da produção e no de serviços pessoais, aos quais a discussão sobre a competição em grande parte se refere.

Na verdade, nem seria preciso dizer, dois produtos de dois produtores diferentes nunca são exatamente iguais, mesmo que seja apenas porque, ao deixarem a fábrica, eles devem estar em lugares diferentes. Essas diferenças fazem parte dos fatos que criam o nosso problema econômico, e pouco ajuda respondê-lo na suposição de que elas estão ausentes.

A crença nas vantagens da competição perfeita frequentemente leva os entusiastas a até mesmo argumentar que uma utilização mais vantajosa de recursos poderia ser atingida se a variedade de produtos existentes fosse reduzida através de padronização compulsória.Agora, há, sem dúvida, muito a ser dito em muitos campos para ajudar a padronização de recomendações acordadas ou normas que serão aplicadas a menos que requisitos diferentes sejam explicitamente estipulados nos contratos. Mas isso é algo muito diferente das demandas daqueles que acreditam que a variedade de gostos das pessoas deve ser desconsiderada e que a experimentação constante de melhorias deve ser suprimida, a fim de obter as vantagens da competição perfeita.

Claramente, não seria um progresso construir todas as casas de forma exatamente igual, a fim de criar um mercado perfeito para casas, e o mesmo é verdade para a maioria dos outros campos onde as diferenças entre os produtos individuais evitam que a competição seja alguma vez perfeita.

Vamos, provavelmente, aprender mais sobre a natureza e o significado do processo competitivo, se por um momento esquecermos os pressupostos artificiais subjacentes à teoria da competição perfeita e questionar se a competição seria menos importante se, por exemplo, não existirem duas mercadorias exatamente iguais.

Se não fosse pela dificuldade da análise de tal situação, seria bem interessante considerar com algum detalhe o caso em que diferentes mercadorias não podem ser facilmente classificadas em grupos distintos, mas no qual nós temos que lidar com um intervalo contínuo de substitutos próximos, cada unidade um pouco diferente da outra, mas sem qualquer quebra acentuada na variação contínua. O resultado da análise da competição em tal situação pode, em muitos aspectos, serem bem mais relevantes para as condições da vida real do que aqueles da análise da competição em uma única indústria produzindo uma mercadoria homogênea acentuadamente diferenciada de todas as outras.

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Ou, se o caso em que não há duas mercadorias exatamente iguais ser considerado muito extremo, poderíamos, pelo menos, voltar-nos para o caso em que não há dois produtores produzindo exatamente a mesma mercadoria, como é a regra, não só com todos os serviços pessoais, mas também nos mercados de muitos produtos manufaturados, como os mercados de livros ou instrumentos musicais. Para o nosso propósito presente, eu não preciso tentar qualquer coisa parecida com uma análise completa de tais tipos de mercados, mas irei apenas questionar qual seria o papel da competição neles.

Embora o resultado naturalmente seria indeterminado dentro de margens bastante amplas, o mercado ainda traria um conjunto de preços aos quais cada mercadoria seria vendida barata o suficiente para sobrepujar o seus potenciais substitutos próximos - e isso por si só não é pouca coisa quando nós consideramos as dificuldades insuperáveis de descobrir até mesmo um tal sistema de preços por qualquer outro método que não o da tentativa e erro no mercado, com os participantes individuais gradualmente aprendendo as circunstâncias relevantes.

É verdade, é claro, que, em tal mercado a correspondência entre preços e custos marginais seria esperada apenas na medida em que as elasticidades da demanda pelos produtos individuais se aproximarem das condições assumidas pela teoria da competição perfeita, ou em que as elasticidades de substituição entre as mercadorias diferentes se aproximarem de infinito.

Mas o ponto é que, nesse caso, tal padrão de perfeição como algo desejável ou a ser buscado é totalmente irrelevante. A base de comparação, a partir da qual o empreendimento da competição deve ser julgado, não pode ser uma situação que é diferente dos fatos objetivos e que não pode ser trazida por qualquer meio conhecido. Ela deveria ser a situação que existiria se a competição fosse impedida de operar. O teste deveria ser não a aproximação de um ideal inatingível e sem sentido, mas a melhoria em relação às condições que existiriam sem competição.

Em tal situação, de que forma as condições são diferentes se a competição for "livre", no sentido tradicional, daquelas que existiriam se, por exemplo, apenas pessoas licenciadas por uma autoridade fossem autorizadas a produzir coisas particulares, ou os preços fossem fixados por uma autoridade, ou ambos? Claramente, seria não só implausível que as coisas diferentes fossem produzidos por aqueles que soubessem a melhor forma de fazê-lo e que, portanto, pudessem fazê-lo com menor custo, como também seria implausível que todas as coisas que os consumidores prefeririam, se eles pudessem ter escolha, fossem sequer produzidas.

Haveria pouca relação entre os preços reais e o menor custo com o qual alguém seria capaz de produzir essas mercadorias; de fato, as alternativas entre as quais tanto os produtores quanto os consumidores estariam em posição de escolher, seus dados, seriam completamente diferentes daquelas que eles estariam em posição de escolher sob competição.

O verdadeiro problema em tudo isso não é se obteremosdados serviços ou mercadorias a dados custos marginais, mas, principalmente, através de quais mercadorias e serviços as necessidades das pessoas podem ser satisfeitas da maneira mais barata. A solução do problema econômico da sociedade é, nesse aspecto, sempre uma viagem de exploração para o desconhecido, uma tentativa de descobrir novas maneiras de fazer as coisas melhor do que elas tem sido feitas antes. Isso permanecerá assim enquanto houver problemas econômicos a

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serem resolvidos, porque todos os problemas econômicos são criados por alterações imprevistas que requerem adaptação.Apenas o que nós não prevemos e provisionamos requer novas decisões. Se nenhuma dessas adaptações for necessária, se em algum momento nós soubermos que toda mudança tenha parado e as coisas sempre iriam ficar exatamente como eles estão agora, não haveria mais problemas sobre o uso de recursos a serem resolvidos.

Uma pessoa que possui o conhecimento ou habilidade exclusivos que lhe permitem reduzir o custo de produção de uma mercadoria em 50 por cento ainda presta um enorme serviço à sociedade se ela inicia sua produção e reduz seu preço em apenas 25 por cento - não só através de sua redução de preço, mas também através de sua economia adicional com os custos.

Mas é só através da competição que podemos supor que essas possíveis economias de custo serão alcançadas. Mesmo se, em cada caso, os preços forem apenas baixos o suficiente para impedir a entrada de produtores que não tem essas ou outras vantagens equivalentes, de modo que cada mercadoria fosse produzida o mais barato possível, embora muitas possam ser vendidas a preços consideravelmente superiores aos custos, esse provavelmente seria um resultado que não poderia ser alcançado por qualquer outro método que não o de deixar a competição operar.

Nas condições da vida real, a posição até mesmo de apenas dois produtores quaisquer quase nunca é a mesma devido a fatos que a teoria da competição perfeita elimina por causa de sua concentração num equilíbrio de longo prazo, o qual, num mundo em constante mudança, jamais pode ser alcançado. Em um determinado momento, o equipamento de uma empresa particular é sempre em grande parte determinado por acidente histórico, e o problema é que ela deve fazer o melhor uso do equipamento dado (incluindo as capacidades adquiridas dos componentes do seu quadro de funcionários) e não o que ela deveria fazer se lhe fosse dado tempo ilimitado para ajustar-se a condições constantes.

Para o problema da melhor utilização de dados recursos duráveis, porém esgotáveis, o preço de equilíbrio de longo prazo com o qual uma teoria discutindo competição "perfeita" se preocupa não só não é relevante; as conclusões relacionadas às políticas as quais a preocupação com esse modelo leva são altamente enganosas e até mesmo perigosas.

A ideia de que sob competição "perfeita" os preços devem ser iguais aos custos de longo prazo frequentemente leva à aprovação de práticas anti-sociais tais como a demanda por uma "competição organizada", que irá garantir um retorno justo sobre o capital, e a destruição do excesso de capacidade . Entusiasmo pela competição perfeita em teoria e o apoio ao monopólio na prática são, de fato, surpreendentemente encontrados vivendo juntos.

Isso é, no entanto, apenas um dos muitos pontos em que a negligência do elemento tempo faz com que o quadro teórico da competição perfeita seja tão completamente distante de tudo o que é relevante para uma compreensão do processo de competição. Se raciocinarmos sobre isso, como deveríamos, como uma sucessão de eventos, torna-se ainda mais evidente que, na vida real, a qualquer momento haverá, via de regra, apenas um produtor que poderá fabricar um determinado artigo ao menor custo e que pode, de fato, vender abaixo do custo do seu concorrente de sucesso mais próximo, mas que, enquanto ainda está tentando estender o seu

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mercado, muitas vezes será ultrapassado por alguém, o qual, por sua vez, será impedido de capturar todo o mercado por outro alguém, e assim por diante .

Tal mercado, claramente, nunca estaria em um estado de competição perfeita, mas a competição nele pode ser não apenas tão intensa o quanto possível, mas também ser o fator essencial que faz com que o artigo em questão seja fornecido ao consumidor a qualquer momento tão barato quanto isso pode ser feito através de qualquer método conhecido.

Quando comparamos um mercado "imperfeito" como esse com um mercado relativamente "perfeito" com, digamos, o de grãos, estamos em uma posição melhor para explicitar a distinção que esteve subjacente a toda essa discussão - a distinção entre o fatos objetivos subjacentes de uma situação que não pode ser alterada pela atividade humana e a natureza das atividades competitivas através das quais os homens se ajustam a essa situação.

Quando, como no último caso, temos um mercado altamente organizado de uma mercadoria completamente padronizada produzida por muitos produtores, há pouca necessidade ou escopo para atividades competitivas porque a situação é tal que as condições que essas atividades podem trazer já estão satisfeitas antes do início. As melhores formas de produzir a mercadoria, o seu caráter e usos são, na maior parte do tempo, conhecidos quase no mesmo grau por todos os membros do mercado.

O conhecimento de qualquer alteração importante espalha-se tão rapidamente e a adaptação a ele ocorre tão cedo que normalmente nós simplesmente ignoramos o que acontece durante esses curtos períodos de transição e nos limitamos a comparar os dois estados de quase-equilíbrio que existem antes e depois deles.

Mas é durante esse curto e negligenciado intervalo de tempo que as forças da competição operam e tornam-se visíveis, e são os eventos durante esse intervalo que devemos estudar se quisermos "explicar" o equilíbrio que o segue.

É somente em um mercado onde a adaptação é lenta em comparação com a taxa de mudança que o processo de competição está em funcionamento contínuo. E, embora a razão pela qual a adaptação é lenta pode ser que a competição seja fraca, e.g., porque há obstáculos especiais para a entrada no comércio ou por causa de alguns outros fatores relativos ao caráter dos monopólios naturais, adaptação lenta de modo algum significa necessariamente competição fraca.Quando a variedade de substitutos-próximos é grande e está em rápida mudança, onde se leva um longo tempo para descobrir mais sobre os méritos relativos das alternativas disponíveis, ou onde a necessidade de toda uma classe de bens ou serviços só ocorre de forma descontínua em intervalos irregulares, o ajuste deve ser lento, mesmo se a competição for forte e ativa.

A confusão entre os fatos objetivos da situação e o caráter das respostas humanas a ela tende a esconder de nós o fato importante de que a competição é mais importante quanto mais complexas ou "imperfeitas" forem as condições objetivas nas quais ela tem que operar. De fato, a competição está longe de ser benéfica apenas quando é "perfeita", e eu estou inclinado a argumentar que a necessidade de competição não é em nenhum lugar maior do que nos campos em que a natureza dos produtos ou serviços torna impossível que venha a ser criado um mercado perfeito no sentido teórico. As imperfeições reais inevitáveis da competição não são, nem remotamente, um argumento contra a competição assim como as dificuldades de alcançar uma solução perfeita em qualquer outra tarefa seriam um argumento contra a mera

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tentativa de resolvê-la, ou tão remotamente quanto a saúde imperfeita seria um argumento contra a saúde.

Sob condições nas quais nunca podemos ter muitas pessoas oferecendo o mesmo produto ou serviço homogêneo, devido ao em constante mudança caráter das nossas necessidades e do nosso conhecimento, ou devido à infinita variedade de habilidades e capacidades humanas, o estado ideal não pode ser um que exija um caráter idêntico de um grande número de produtos e serviços.

O problema econômico é um problema de se fazer o melhor uso dos recursos que temos, e não um sobre o que deveríamos fazer se a situação fosse diferente do que realmente é. Não há sentido em falar de um uso de recursos "como se" um mercado perfeito existisse, se isso significa que os recursos teriam que ser diferentes do que são, ou em discutir o que alguém com conhecimento perfeito faria se a nossa tarefa tem de ser a de fazer o melhor uso do conhecimento que as pessoas existentes possuem.

O argumento a favor da competição não se baseia nas condições que existiriam se ela fosse perfeita. Embora, quando os fatos objetivos tornariam possível que a competição se aproximasse da perfeição, é assegurada a utilização mais eficaz dos recursos, e, embora, portanto, todos os argumentos favoreçam a remoção de obstáculos humanos à competição, isso não significa que a competição também não traga um uso tão efetivo de recursos quanto pode ser trazido por qualquer meio conhecido quando, na natureza do caso, ela deve ser imperfeita.

Mesmo onde a entrada livre irá garantir não mais do que, a qualquer momento, que todos os bens e serviços para os quais haveria uma demanda efetiva se estivessem disponíveis sejam, de fato, produzidos com o atual mínimo dispêndio [6]de recursos através dos quais, na dada situação histórica, eles podem ser produzidos, mesmo que o preço que o consumidor tenha que pagar por eles seja consideravelmente maior e apenas um pouco abaixo do custo da segunda melhor maneira através da qual sua necessidade poderia ser satisfeita - isso, creio eu, é mais do que o podemos esperar de qualquer outro sistema conhecido.O ponto decisivo e elementar é que é muito improvável que, sem os obstáculos artificiais que a atividade governamental ou cria ou pode remover, qualquer produto ou serviço, em qualquer período de tempo, estará disponível apenas a um preço dos quais as pessoas de fora poderiam esperar um lucro maior que o normal, se entrarem no setor.

A lição prática de tudo isso, eu acho, é que devemos nos preocupar muito menos com a competição em um determinado lugar ser ou não perfeita e nos preocuparmos muito mais com a existência ou não de competição. O que nossos modelos teóricos de indústrias distintas escondem é que, na prática, um abismo muito maior divide a competição da não competição do que a competição perfeita da imperfeita.

No entanto, a tendência atual nas discussões é ser intolerante com as imperfeições e ficar em silêncio sobre o impedimento da competição. Nós provavelmente podemos aprender mais sobre o significado real da competição estudando os resultados que regularmente ocorrem onde a competição é deliberadamente suprimida do que nos concentrando nas deficiências das competições reais comparadas com um ideal que é irrelevante para os fatos dados.

Digo ponderadamente "onde a competição é deliberadamente suprimida" e não meramente "onde ela está ausente", porque seus principais efeitos estão geralmente em operação, mesmo

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que mais lentamente, enquanto ela não for completamente suprimida com o apoio ou tolerância do estado.

Os males que a experiência tem demonstrado serem a consequência normal de uma supressão da competição estão em um plano diferente daqueles que as imperfeições da competição podem causar. Muito mais grave do que o fato de que os preços podem não corresponder ao custo marginal é o fato de que, com um monopólio estabelecido, os custos tendem a ser muito maiores do que o necessário.

Um monopólio baseado na eficiência superior, por outro lado, prejudica relativamente pouco, enquanto for assegurado que ele irá desaparecer assim que outra pessoa se tornar mais eficiente em fornecer satisfação aos consumidores.

Na conclusão, eu desejo, por um momento, voltar ao ponto de onde eu comecei e reafirmar a conclusão mais importante de uma forma mais geral.

A competição é essencialmente um processo de formação de opinião: pela divulgação de informações, ela cria a unidade e a coerência do sistema econômico que se pressupõe quando pensamos nele como um mercado. Ela cria as visões que as pessoas tem sobre o que é melhor e mais barato, e é por causa dela que as pessoas sabem ao menos tanto sobre as possibilidades e oportunidades quanto elas de fato sabem.

Ela é, portanto, um processo que envolve uma mudança contínua nos dados e cujo significado deve ser completamente perdido por qualquer teoria que trate esses dados como constantes.

Notas:

[1] J.M. Clark,"Toward a Concept of Workable Competition," American Economic Review, Vol. XXX (June, 1940); F. Machlup, "Competition, Pliopoly, and Profit," Economica, Vol. IX (new ser.; February and May, 1942).

[2]Ver os capítulos segundo e quarto.[3]Particularmente os pressupostos de que em todos os momentos, para uma determinada mercadoria, um preço uniforme deve governar em todo o mercado e que os vendedores conhecem o formato da curva de demanda.[4]Ver O. Morgenstern, "Vollkommene Voraussicht und wirtschaftliches Gleichgewicht", Zeitschrift für konomie ö Nacional, vol. VI (1935).[5]Cf.. G.J. Stigler, The Theory of Price (1946), p. 24: "As relações econômicas nunca são perfeitamente competitivas se envolverem qualquer tipo de relacionamento pessoal entre as unidades econômicas" (ver também ibid, p. 226.).[6]Custo "atual" neste contexto exclui todos os passados mas inclui, é claro, o "custo do usuário."

*F. A. Hayek (1899-1992) foi um membro fundador do Mises Institute. Ele dividiu o Prêmio Nobel 1974 em Economia com seu rival ideológico Gunnar Myrdal "por seu trabalho pioneiro na teoria da moeda e flutuações econômicas e pela análise penetrante da interdependência dos fenômenos econômicos, sociais e institucionais".

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Inflaçãopor Ludwig von Mises, segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Se a oferta de caviar fosse tão abundante quanto a de batatas, o preço do caviar — isto é, a relação de troca

entre caviar e dinheiro, ou entre caviar e outras mercadorias — se alteraria consideravelmente.  Nesse caso,

seria possível adquiri-lo a um preço muito menor que o exigido hoje.  Da mesma maneira, se a quantidade

de dinheiro aumenta, o poder de compra da unidade monetária diminui, e a quantidade de bens que pode

ser adquirida com uma unidade desse dinheiro também se reduz.

Quando, no século XVI, as reservas de ouro e prata da América foram descobertas e exploradas, enormes

quantidades desses metais preciosos foram transportadas para a Europa.  A consequência desse aumento da

quantidade de moeda foi uma tendência geral à elevação dos preços.  Do mesmo modo, quando, em nossos

dias, um governo aumenta a quantidade de papel-moeda, a consequência é a queda progressiva do poder de

compra da unidade monetária e a correspondente elevação dos preços.  A isso se chama

de inflação.  Infelizmente, nos Estados Unidos, bem como em outros países, alguns preferem ver a causa da

inflação não no aumento da quantidade de dinheiro, mas na elevação dos preços.

Entretanto, nunca se apresentou qualquer contestação séria à interpretação econômica da relação entre os

preços e a quantidade de dinheiro, ou da relação de troca entre a moeda e outros bens, mercadorias e

serviços.  Nas condições tecnológicas atuais, nada é mais fácil que fabricar pedaços de papel e imprimir

sobre eles determinados valores monetários.  Nos Estados Unidos, onde todas as notas têm o mesmo

tamanho, imprimir uma nota de mil dólares não custa mais ao governo que imprimir uma de um dólar.  

Trata-se exclusivamente de um processo de impressão, a exigir, nos dois casos, idênticas quantidades de

papel e de tinta.

No século XVIII, quando se fizeram as primeiras tentativas de emitir cédulas bancárias e atribuir-lhes a

qualidade de moeda corrente — isto é, o direito de serem honradas em transações de troca do mesmo modo

que as moedas de ouro e prata —, os governos e as nações acreditavam que os banqueiros detinham algum

conhecimento secreto que lhes permitia produzir riqueza a partir do nada.  Quando os governos do século

XVIII se viam em dificuldades financeiras, julgavam ser suficiente, para delas se livrarem, entregar a um

banqueiro engenhoso a condução de sua administração financeira.  Alguns anos antes da Revolução

Francesa, quando a realeza da França atravessava problemas financeiros, o rei da França procurou um

desses banqueiros engenhosos e nomeou-o para uma função importante.  Esse homem era, sob todos os

aspectos, o oposto das pessoas que vinham regendo a nação até aquele momento.  Para começar, não era

francês, era um estrangeiro — um genovês.  Em segundo lugar, não pertencia à aristocracia, era um simples

plebeu.  E, o que contava mais ainda na França do século XVIII, não era católico, e sim protestante.   E

assim Monsieur Necker, pai da famosa Madame de Staël, tornou-se o ministro das finanças, e todos

esperavam que resolvesse os problemas financeiros do país.  Mas, a despeito do elevado grau de confiança

desfrutado por Monsieur Necker, os cofres reais permaneceram vazios.  O grande erro de Decker consistiu

na tentativa de prestar auxilio financeiro aos colonos da América em sua guerra de independência contra a

Inglaterra sem elevar os impostos.  Aquela era certamente uma maneira errada de procurar resolver os

problemas financeiros da França.

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Não há nenhuma maneira secreta para a solução dos problemas financeiros de um governo: se este precisa

de dinheiro, tem de obtê-lo impondo tributos aos seus cidadãos (ou, em circunstâncias especiais, tomando-o

emprestado de pessoas que têm dinheiro).  Mas muitos governos, podemos mesmo dizer a maioria deles,

julga haver um outro método para obter o dinheiro necessário, qual seja, o de simplesmente imprimi-lo.  Se

deseja fazer algo benéfico — construir um hospital, por exemplo —, o meio de que o governo dispõe para

arrecadar o dinheiro necessário é cobrar tributos dos cidadãos e construir o hospital com a receita assim

constituída.  Nesse caso, não ocorrerá nenhuma "revolução dos preços", porque, quando o governo arrecada

dinheiro para a construção do hospital, os cidadãos — onerados por esse tributo adicional — são obrigados

a reduzir seus gastos.  O contribuinte individual é forçado a reduzir ou o seu consumo, ou os seus

investimentos, ou a sua poupança.  Quando se apresenta no mercado como um comprador, o

governo substitui o cidadão: este passa a comprar menos.  Mas isto se dá porque o governo está comprando

mais.  Evidentemente, o governo não compra exatamente os mesmos bens que os cidadãos comprariam; em

média, no entanto, não se verifica nenhuma elevação de preços em decorrência da construção do hospital

pelo governo.

Escolho o exemplo de um hospital precisamente porque é comum ouvir dizer: "Faz diferença se o governo

usa seu dinheiro para bons ou maus propósitos".  Proponho fazermos de conta que o governo sempre usa o

dinheiro que emitiu para os melhores fins — fins com que todos concordamos.  Acontece que não é

o modo como o dinheiro é gasto, é antes o modo como é obtido pelo governo que dá lugar a essa

consequência que chamamos de inflação, e que hoje quase ninguém, no mundo todo, considera benéfica. 

Por exemplo, o governo poderia, sem fomentar a inflação, usar o dinheiro arrecadado através de impostos

para contratar novos funcionários, ou para elevar os salários dos que já estão a seu serviço.   Esses

funcionários, tendo tido um aumento em seus salários, passam, então, a poder comprar mais.  Quando o

governo cobra impostos dos cidadãos e aplica essa soma no aumento do salário de seu pessoal, os

contribuintes passam a ter menos o que gastar, mas os funcionários públicos passam a ter mais: os preços

em geral não subirão.  Mas, se o governo não busca, para esse fim, receita proveniente de impostos, se, ao

contrário, recorre a dinheiro recém-impresso, consequentemente, algumas pessoas começam a ter mais

dinheiro, enquanto todas as demais continuam a ter o mesmo que antes.  Assim, as que receberam o

dinheiro recém-impresso vão competir com aquelas que eram compradoras anteriormente.  E uma vez que

não há maior número de mercadorias que antes, mas há mais dinheiro no mercado — e uma vez que há

pessoas que podem agora comprar mais do que ontem — haverá uma demanda adicional para uma

quantidade inalterada de bens.  Consequentemente, os preços tenderão a subir.  Isso não pode ser evitado,

seja qual for o uso que se faça do dinheiro recém emitido.  Mas há algo ainda mais importante.  Essa

tendência de elevação dos preços se estabelecerá passo a passo, uma vez que não se trata de um movimento

ascendente geral desse tão falado "nível dos preços".  Esta expressão metafórica nunca deveria ser usada. 

Quando se fala de "nível dos preços", a imagem que as pessoas formam mentalmente é a de um liquido que

sobe ou desce, segundo o aumento ou a redução de sua quantidade, mas que, como um líquido num

reservatório, eleva-se sempre por igual.  Mas, no caso dos preços, nada há que se assemelhe a "nível".  Os

preços não se alteram na mesma medida e ao mesmo tempo.  Há sempre preços que mudam mais

rapidamente, caem ou sobem mais depressa que outros.  E há uma razão para isso.  Considerem o caso do

funcionário público que recebeu parte do novo dinheiro acrescentado à oferta de dinheiro.   As pessoas não

compram num mesmo dia precisamente as mesmas mercadorias e nas mesmas quantidades.  O dinheiro

suplementar que o governo imprimiu e introduziu no mercado não é usado na compra de todas as

mercadorias e serviços.  É usado na aquisição de certas mercadorias, cujos preços subirão, ao passo que

outras continuarão ainda com os preços de antes da introdução do novo dinheiro no mercado.  De sorte que,

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quando a inflação começa, diferentes grupos da população são por ela afetados de diferentes maneiras.   Os

grupos que recebem o novo dinheiro em primeiro lugar ganham uma vantagem temporal.

O governo, quando emite dinheiro para custear uma guerra, tem de comprar munições.   Os primeiros a

receber o dinheiro adicional são, então, as indústrias de munição e os que nelas trabalham.  Esses grupos

passam a ocupar uma posição privilegiada.  Auferem maiores lucros e ganham maiores salários: seus

negócios prosperam.  Por quê?  Porque foram os primeiros a receber o dinheiro adicional.  E, tendo agora

mais dinheiro à sua disposição, estão comprando mais.  E compram de outras pessoas, que fabricam e

vendem as mercadorias que lhes interessam.  Estas outras pessoas constituem um segundo grupo.  E este

segundo grupo considera a inflação muito benéfica para seus negócios.  Por que não? Não é esplêndido

vender mais? E o proprietário de um restaurante situado nas vizinhanças de uma fábrica de munições, por

exemplo, diz: "é realmente maravilhoso! Os trabalhadores do setor de munições estão com mais dinheiro;

estão frequentando meu estabelecimento como nunca; estão todos prestigiando meu restaurante; isto me

deixa muito feliz".  Não vê razão alguma para se sentir de outro modo. 

A situação é a seguinte: aqueles para quem o dinheiro chega em primeiro lugar têm sua renda aumentada e

podem continuar comprando muitas mercadorias e serviços a preços que correspondem ao estado anterior

do mercado, à situação vigente às vésperas da inflação.  Encontram-se, portanto, em situação privilegiada. 

E assim a inflação se expande, passo a passo, de um grupo para outro da população.  E todos os que têm

acesso ao dinheiro adicional na primeira hora da inflação são beneficiados, uma vez que estão comprando

alguns artigos a preços ainda correspondentes ao estágio prévio da relação de troca entre dinheiro e

mercadorias.

Mas há outros grupos da população para quem esse dinheiro chega muitíssimo mais tarde.  Essas pessoas se

veem numa situação desfavorável.  Antes de terem acesso ao dinheiro adicional, são obrigadas a pagar

preços mais altos que os anteriores por algumas mercadorias que desejam adquirir (ou praticamente todas),

ao passo que sua renda permanece a mesma, ou não aumenta na mesma proporção dos preços.  Considere-

se, por exemplo, um país como os Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial: por um lado, a

inflação desse período favoreceu os trabalhadores das fábricas de munição, as fábricas de munição e os

fabricantes de armamentos; por outro lado, prejudicou certos grupos da população.  E os maiores

prejudicados foram os professores e os religiosos.

Como todos sabem, um sacerdote é pessoa de muita humildade, que está a serviço de Deus e não deve falar

demais em dinheiro.  Analogamente, os professores são pessoas dedicadas, de quem se espera maior

preocupação com a educação dos jovens que com os próprios salários.  Por conseguinte, os professores e os

religiosos estiveram entre os grupos mais penalizados pela inflação, visto que as várias escolas e igrejas

foram as últimas instituições a se darem conta da necessidade de elevar os salários.  Quando os dignitários

eclesiásticos e as associações escolares finalmente chegaram à conclusão de que era preciso aumentar

também os salários dessa gente dedicada, as perdas que tinham sofrido até então já não podiam ser

reparadas.  Por muito tempo, eles tinham sido obrigados a comprar menos que antes, a reduzir seu consumo

de alimentos melhores e mais caros, a restringir sua compra de roupas — já que os preços tinham sido

reajustados, enquanto sua renda, seus salários, ainda não tinham sido aumentados (esta situação foi

consideravelmente alterada, ao menos no que diz respeito aos professores).

A cada momento, portanto, são diferentes os grupos da população que estão sendo diretamente afetados

pela inflação.  Para alguns deles, a inflação não é tão má assim, e eles chegam até a defender seu

prolongamento, visto serem os primeiros a dela se beneficiarem.  Veremos na próxima palestra como essa

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disparidade de consequências afeta vitalmente a política que conduz à inflação.  Subjacente a todas as

modificações produzidas pela inflação, está o fato de que, além de haver grupos que são por ela

favorecidos, há outros que a exploram diretamente.  A palavra "explorar" não pretende refletir uma censura

a essas pessoas, pois só o governo e ninguém mais pode ser considerado culpado e responsável pelo

estabelecimento da inflação. 

Sempre há, sem dúvida, pessoas que percebem o que está ocorrendo mais cedo que as demais e,

então,promovem a inflação.  Seus lucros excepcionais decorrem do fato de que haverá sempre desigualdade

no processo inflacionário.  O governo pode considerar que, como método de arrecadar fundos, a inflação é

melhor que a tributação: esta é sempre impopular e de difícil execução.  Em muitas nações grandes e ricas,

os legisladores muitas vezes discutiram, por meses a fio, várias modalidades de novos impostos, tornados

necessários em decorrência de um aumento de gastos decidido pelo parlamento.  Após discutir inúmeros

métodos de angariar dinheiro por meio da tributação, finalmente chegaram à conclusão de que talvez o

melhor fosse obtê-lo através da inflação.

É evidente que a palavra "inflação" não era pronunciada.  Um político no poder, ao recorrer à inflação, não

declara: "Vou adotar a inflação como método." Os procedimentos técnicos empregados na produção da

inflação são tão complexos, que o cidadão comum não percebe onde ela teve inicio.  Uma das maiores

inflações da história, a que teve lugar no Reich alemão após a Primeira Guerra Mundial, não teve seu pico

durante a guerra.  Foram os níveis a que chegou no pós-guerra que ocasionaram a catástrofe.  O governo

não anunciou: "Vamos lançar mão da inflação".  Simplesmente tomou dinheiro emprestado, indiretamente,

do Banco Central.  Não lhe competia perguntar como o Banco Central reuniria e liberaria aquela soma.  E o

banco central simplesmente imprimiu-a.

Hoje, as técnicas de produção da inflação têm como complicadores a existência da moeda fiduciária.   Isso

envolve uma outra técnica, mas o efeito é o mesmo.  Com uma penada, o governo cria papel-moeda sem

lastro, aumentando assim o volume de moeda e de crédito.  Basta-lhe emitir a ordem, e lá está o dinheiro

sem lastro.  O governo não se aflige diante do fato de que algumas pessoas sofrerão perdas; a iminente

elevação dos preços não o perturba.  Os legisladores proclamam: "Esse sistema é magnífico!".  Mas esse

magnífico sistema tem um defeito básico: dura pouco.  Se a inflação pudesse perdurar indefinidamente, não

haveria por que criticar os governos por promoverem-na, mas o único fato bem estabelecido acerca desse

fenômeno é que, mais cedo ou mais tarde, ele chega inevitavelmente ao fim.

Em última instância, a inflação se encerra com o colapso do meio circulante — dando lugar a uma

catástrofe, a uma situação como a ocorrida na Alemanha em 1923.  Em 1° de agosto de 1914, o dólar

correspondia a quatro marcos e vinte pfennigs.  Nove anos e três meses depois, em novembro de 1923, a

mesma moeda estava cotada em 4,2 trilhões de marcos.  Em outras palavras, o marco já não valia coisa

alguma.  Já não tinha nenhum valor.  Alguns anos atrás, um famoso autor escreveu: "No final das contas,

estaremos todos mortos".  Lamento confirmar que é a pura verdade.  Mas a questão é: quanto durará o

momento presente? No século XVIII, houve uma famosa senhora, Madame de Pompadour, a quem se

atribuí o seguinte dito: "Après nous, le déluge" ("Depois de nós, o dilúvio").  Madame de Pompadour teve a

felicidade de morrer pouco tempo depois.  Mas sua "sucessora", Madame du Barry, sobreviveu um pouco

mais, para, no final das contas, ser decapitada.  Para muitos o "final das contas" logo se converte no

presente — e quanto mais a inflação avança, mais se antecipa o "final das contas".

Quanto pode durar o pouco mais? Por quanto tempo pode um banco central levar à frente um processo

inflacionário? Provavelmente poderá fazê-lo enquanto o povo estiver convencido de que o governo, mais

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cedo ou mais tarde — mas certamente não demasiado tarde — sustará a impressão de dinheiro, detendo,

assim, o decréscimo do valor de cada unidade monetária.  O povo, quando deixa de acreditar que o governo

será capaz de deter a inflação, ou mesmo que ele tenha qualquer intenção de detê-la, começa a se dar conta

de que os preços amanhã serão mais altos que hoje.  As pessoas põem-se, então, a comprar a quaisquer

preços, provocando uma alta em níveis tais que o sistema monetário entra em colapso.

Tomemos o caso da Alemanha, que o mundo inteiro testemunhou.  Muitos livros descreveram os

acontecimentos daquele período (embora sendo austríaco, e não alemão, vi tudo de dentro: a situação da

Áustria não diferia muito da alemã, e tampouco eram diferentes as condições de muitos outros países

europeus). Durante muitos anos, o povo alemão acreditou que sua inflação não passava de uma situação

provisória, que logo chegaria ao fim.  Acreditou nisso por nove anos, até o verão de 1923.  Então,

finalmente, as pessoas começaram a duvidar.  Como a inflação continuava, a população julgou mais

sensato comprar tudo que estivesse à venda, em vez de guardar o dinheiro no bolso.  Ademais, as pessoas

raciocinavam que não era conveniente emprestar dinheiro, ser credor.  Em contrapartida, era excelente

negócio tomar dinheiro emprestado, ser devedor.  Assim, a inflação continuou a se alimentar de si mesma.

A inflação prosseguiu na Alemanha até, precisamente, o dia 28 de agosto de 1923.  O povo acreditara que o

dinheiro inflacionário era dinheiro verdadeiro, mas descobriu, então, que as condições tinham mudado.  No

outono de 1923, as fábricas do país pagavam aos seus trabalhadores, cada manhã, uma diária antecipada.  E

o trabalhador, que se fazia acompanhar pela mulher até a fábrica, passava-lhe imediatamente seu ganho,

todos os milhões que acabara de receber.  A mulher, então, dirigia-se prontamente a uma loja, para comprar

fosse o que fosse.  Ela constatava o que, na época, a maioria da população sabia: o marco perdia, da noite

para o dia, 50% de seu poder de compra.  O dinheiro derretia-se nos bolsos do povo, como uma barra de

chocolate sobre um forno quente.  Essa fase final da inflação alemã não durou muito; depois de alguns dias,

todo o pesadelo se encerrara: o marco perdera todo valor e foi preciso estabelecer uma nova moeda.

Lord Keynes, o mesmo homem que disse que no final das contas estaremos todos mortos, foi um

representante do extenso rol de autores inflacionistas do século XX.  Todos combateram o padrão-ouro. 

Ao atacá-lo, Keynes chamou-o de "relíquia bárbara".  Mesmo hoje, a grande maioria das pessoas considera

ridículo falar de um retorno ao padrão-ouro.  Nos Estados Unidos, por exemplo, poderemos ser

considerados como visionários se dissermos: "Mais cedo ou mais tarde, os Estados Unidos terão de retornar

ao padrão-ouro."

No entanto, o padrão-ouro tem uma extraordinária virtude: na sua vigência, a quantidade de dinheiro

disponível é independente das políticas governamentais e dos partidos políticos.  Essa é a sua vantagem. 

Constitui uma forma de proteção contra governos esbanjadores.  Sob o padrão-ouro, se um governo resolve

fazer gastos em um novo empreendimento, o ministro das finanças pode perguntar: "E onde vou conseguir

o dinheiro? Diga-me, primeiro, onde encontrarei dinheiro para esse gasto adicional".  Num sistema

inflacionário, nada é mais simples para os políticos que ordenar ao órgão governamental encarregado da

impressão do papel-moeda a emissão de quanto dinheiro lhes seja necessário para seus projetos.  O padrão-

ouro é muito mais propício a um governo financeiramente seguro: seus titulares podem dizer ao povo e aos

políticos: "não podemos fazer tal coisa, salvo se aumentarmos os impostos".

Sob condições inflacionárias, o povo se habitua a considerar o governo uma instituição que tem recursos

ilimitados à sua disposição: o estado, o governo, podem tudo.  Se, por exemplo, a nação deseja um novo

sistema de rodovias, espera-se do governo sua implantação.  Mas onde poderá o governo obter o dinheiro?

Pode-se dizer que hoje, nos Estados Unidos — e mesmo no passado, no governo McKinley —, o Partido

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Republicano é relativamente favorável ao dinheiro lastreado e ao padrão-ouro, enquanto o Partido

Democrata é favorável à inflação.  Obviamente, a uma inflação não de papel, e sim de prata.  Contudo, foi

um presidente democrata dos Estados Unidos, o presidente Cleveland que, em fins da década de 1880,

vetou uma decisão do Congresso de conceder unia pequena soma de auxílio — cerca de dez mil dólares —

a uma comunidade que sofrera uma catástrofe.  Esse presidente justificou seu veto escrevendo as seguintes

palavras: "É dever do cidadão manter o governo, mas não é dever do governo manter os cidadãos".  Estas

são palavras que todo estadista deveria escrever numa parede de seu gabinete, para mostrar aos que viessem

pedir dinheiro. 

Sinto-me bastante embaraçado diante da necessidade de simplificar esses problemas.  São tantos e tão

complexos os problemas envolvidos no sistema monetário!  E eu certamente não teria escrito volumes

inteiros a respeito deles se eles fossem tão simples quanto parecem sê-lo aqui.   Mas os fundamentos são

precisamente estes: aumentando-se a quantidade de dinheiro, provoca-se o rebaixamento do poder de

compra da unidade monetária.  É isso que desagrada àqueles cujos negócios privados são

desfavoravelmente afetados por essa situação.  São os que não se beneficiam da inflação que dela se

queixam.  Se a inflação é má, e se todos sabem disso, por que se teria convertido numa espécie de estilo de

vida em quase todos os países? Mesmo alguns dos países mais ricos sofrem da doença.  Os Estados Unidos

são hoje seguramente a mais rica nação do mundo, com o mais alto padrão de vida.   Mas, quando se viaja

pelo país, constata-se uma incessante referência à inflação e à necessidade de detê-la.  Mas apenas se fala;

não se age.

Cabe, aqui, a apresentação de alguns fatos: após a Primeira Guerra Mundial, a Grã-Bretanha restabeleceu a

equivalência entre o ouro e a libra, numa correspondência que vigorava antes da guerra.  Isto é, elevou o

valor da libra.  Com isso, elevou-se o poder de compra dos salários de todos os trabalhadores.  Num

mercado desobstruído, tal alteração teria acarretado uma queda do salário nominal em dinheiro.   Esta

queda, por sua vez, teria compensado a alteração.  Como resultado final, o salário real dos trabalhadores

teria permanecido inalterado.  Não temos tempo para discutir agora as razões disso.  O fato é que os

sindicatos da Grã-Bretanha não admitiram um ajustamento dos padrões salariais ao poder de compra mais

elevado da unidade monetária; assim sendo, os salários reais foram consideravelmente acrescidos em

decorrência daquela medida monetária.  Isso representou uma verdadeira catástrofe para a Inglaterra, uma

vez que a Grã-Bretanha é um país predominantemente industrial, obrigado, por um lado, a importar

matérias-primas, produtos  semiacabados e alimentos para sobreviver, e, por outro, a exportar bens

manufaturados para pagar essas importações.  Com a elevação do valor internacional da libra, os preços dos

produtos ingleses subiram nos mercados externos, causando um declínio das vendas e exportações.  Na

verdade, para todos os efeitos, o que a Grã-Bretanha fez foi fixar os próprios preços à revelia do mercado

mundial.

Foi impossível derrotar os sindicatos.  É sabido o poder que, hoje, tem um sindicato.  Assiste-lhe o direito

— praticamente o privilégio — do recurso à violência.  E a determinação de um sindicato tem portanto,

ousemos dizê-lo, força equivalente à de um decreto governamental.  O decreto governamental é uma ordem

para cuja aplicação o aparelho governamental — a policia — está pronta.  É preciso obedecer-lhe, ou se

terá problemas com a policia. 

Lamentavelmente temos hoje, em quase todos os países do mundo, um segundo poder, depois do governo,

com condições para exercer a força: são os sindicatos trabalhistas.  Essas entidades determinam os salários,

bem como as greves que os devem impor, da mesma maneira que o governo poderia decretar um salário

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mínimo.  Não discutirei o sindicato agora; tratarei dele mais tarde.  Quero apenas deixar claro que a política

sindical consiste em elevar os padrões salariais acima do nível que estes alcançariam num mercado

desobstruído.  Em consequência disso, uma parte considerável da população potencialmente ativa só pode

ser empregada por pessoas físicas ou por indústrias que tenham condições de suportar prejuízos.   E uma

vez que os negócios não têm como se manter sob a sangria de prejuízos, eles fecham as portas e seus

trabalhadores perdem o emprego.  A fixação de padrões salariais superiores aos que se estabeleceriam num

mercado desimpedido redunda inevitavelmente no desemprego de parcela ponderável da população ativa.

Na Grã-Bretanha, a imposição de altos padrões salariais pelos sindicatos trabalhistas teve como

consequência um desemprego prolongado, que durou anos a fio.  Milhões de trabalhadores ficaram

desempregados, os índices de produção caíram.  Até os experts ficaram perplexos.  Diante deste quadro, o

governo inglês deu um passo que se lhe afigurou como uma medida de emergência

indispensável: desvalorizou a moeda corrente do país.  O poder de compra dos salários em dinheiro — em

cuja manutenção os sindicatos tanto haviam insistido —  deixou de ser o mesmo.  Os salários reais, os

salários em mercadorias, foram reduzidos.  Agora, o trabalhador já não podia comprar o mesmo que antes,

embora os padrões nominais dos salários tivessem permanecido os mesmos.  Procurou-se, através da

adoção dessa medida, promover o retorno dos padrões salariais reais aos níveis do mercado livre para que,

consequentemente, tivesse lugar o desaparecimento do desemprego.  Essa medida — a desvalorização —

foi adotada por muitos outros países, como a França, os Países Baixos e a Bélgica.  A Tchecoslováquia

chegou a recorrer a ela duas vezes no período de um ano e meio.  A desvalorização tornou-se um método

sub-reptício, digamos assim, de frustrar o poder dos sindicatos.  No entanto, como veremos, este método

também não pode ser considerado verdadeiramente eficiente.

Alguns anos depois, os trabalhadores — e também os sindicatos — começaram a compreender o que se

passava.  O povo começou a se dar conta de que a desvalorização do dinheiro reduzia seu salário real.  Os

sindicatos tinham força suficiente para se opor a isso.  Em muitos países, inseriu-se nos contratos salariais

uma cláusula que estipulava que os salários em dinheiro deveriam ser automaticamente majorados quando

os preços também o fossem.  A isto se chama indexar.  Os sindicatos haviam tomado consciência da

existência de índices.  Assim, aquele método de reduzir o desemprego inaugurado pela Grã-Bretanha em

1931 — e adotado posteriormente por quase todos os governos importantes —, já não mais funciona nos

nossos dias como método de "resolver o desemprego". 

Em 1936, em sua obra A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, Lord Keynes deploravelmente

elevou esse método — aquelas medidas de emergência do período 1929-1933 — à categoria de princípio,

ao status de sistema fundamental de política.  Justificava sua teoria dizendo mais ou menos o seguinte: "O

desemprego é um mal.  Se quiser que desapareça, inflacione o meio circulante".  Keynes percebeu muito

bem que certos padrões salariais podem ser demasiado altos para o mercado, ou seja, podem ser altos

demais para ser lucrativo a um empregador ampliar a quantidade de empregados que contrata e, portanto,

serão, também altos demais do ponto de vista do conjunto da população economicamente ativa, uma vez

que estes padrões salariais impostos pelos sindicatos, em níveis superiores aos do mercado, resultam em

que apenas uma parcela dos que anseiam por salários conseguem emprego.

Keynes, então, afirmou aproximadamente o seguinte: "Sem dúvida, o desemprego em massa, prolongando-

se ano após ano, é uma situação muito insatisfatória".  Mas, ao invés de sugerir que os níveis salariais

podiam e deviam ser ajustados às condições de mercado, afirmou: "Se os trabalhadores não forem

suficientemente espertos para perceber a desvalorização da moeda, eles não oferecerão resistência a uma

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queda dos níveis salariais reais, visto que os níveis nominais permanecerão os mesmos".  Em outras

palavras, Lord Keynes estava dizendo que, se receberem a mesma quantidade de libras esterlinas que

ganhavam antes da desvalorização da moeda, as pessoas não se darão conta de que passaram, de fato, a

ganhar menos.

Num linguajar antiquado, Keynes propôs que se ludibriassem os trabalhadores.  Em vez de declarar

abertamente que os padrões salariais devem ser ajustados às condições do mercado — porque, se não for

assim, parte da população economicamente ativa ficará inevitavelmente desempregada —, afirmou, na

verdade: "O pleno emprego só pode ser alcançado se houver inflação.  Ludibriem os trabalhadores".  O fato

mais interessante, contudo, é que, quando sua Teoria Geral foi publicada, a burla já não era possível, uma

vez que as pessoas passaram a ter consciência da inflação.  Mas a meta do pleno emprego permaneceu.

Que vem a ser "pleno emprego"?  Esta expressão relaciona-se com o mercado desobstruído, não

manipulado pelos sindicatos ou pelo governo.  Nesse mercado, os padrões salariais para cada tipo de

trabalho tendem a atingir um nível tal que é possível, a todos os que desejam emprego, obtê-lo.   Por outro

lado, todo empregador terá, então, condições de contratar tantos trabalhadores quantos lhe forem

necessários.  Se ocorrer um aumento da demanda de mão-de-obra, o padrão salarial tenderá a ser maior, se

houver necessidade de menor número de trabalhadores, esse padrão tenderá a cair.  O único método que

permite a instauração de uma situação de "pleno emprego" é a preservação de um mercado de trabalho livre

de empecilhos.  Isto se aplica a todo gênero de trabalho e a todo gênero de mercadoria. 

Que faz um negociante, se deseja vender determinada mercadoria por cinco dólares a unidade?  A

expressão técnica que é aplicada no mundo dos negócios dos Estados Unidos para o fato de não se

conseguir vender uma mercadoria pelo preço estipulado é "o estoque mantém-se inalterado".  Mas é preciso

que se altere.  O negociante não pode conservar aqueles artigos, porque tem necessidade de adquirir novas

mercadorias; as modas mudam.  Assim, ele os vende por um preço mais baixo.  Se não conseguir vender a

mercadoria por cinco dólares, certamente a venderá por quatro.  Se for impossível vendê-la por quatro, será

obrigado a vendê-la por três.  Não há outra alternativa, desde que esteja empenhado em manter seu

negócio.  Pode sofrer prejuízos, mas estes decorrem do fato de que fez uma previsão errada do mercado

existente para seu produto.

O mesmo acontece com os milhares e milhares de jovens que, dia após dia, estão vindo dos distritos

agrícolas para a cidade, na expectativa de ganhar dinheiro.  É o fenômeno de migração interna, que tem

lugar em todas as nações industrializadas.  Nos Estados Unidos, eles vêm para a cidade com a certeza de

que poderão ganhar, digamos, cem dólares por semana.  Suas expectativas podem se frustrar.  Então, aquele

que não conseguiu um emprego que pagasse cem dólares por semana, ver-se-á obrigado a tentar conseguir

algum que pague noventa, oitenta dólares, talvez até menos.  Por outro lado, se essa pessoa declarasse,

como fazem os sindicatos: "cem dólares por semana, ou nada", talvez só lhe restasse permanecer

desempregada.  Diga-se de passagem, muita gente não se incomoda com a situação de desemprego, uma

vez que o governo paga auxílios-desemprego — com fundos arrecadados através de taxas especiais

impostas aos empregadores — que por vezes são quase tão altos quanto os salários que receberiam caso

estivessem trabalhando.

Nos Estados Unidos, só se aceita a inflação porque determinado grupo de pessoas acredita que é só através

dela que o pleno emprego pode ser alcançado.  No entanto, ainda a este respeito, uma questão tem sido

amplamente debatida: O que é preferível, um dinheiro lastreado com desemprego ou a inflação com pleno

emprego? Trata-se, na verdade, de um círculo vicioso.  Tentemos analisar o problema.  Logo de início,

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deve-se colocar a seguinte questão: como podemos melhorar a situação dos trabalhadores e de todos os

demais grupos da população?  A resposta é: mantendo o mercado de trabalho livre de empecilhos e assim

alcançando o pleno emprego.  Nosso dilema é: os padrões salariais devem ser determinados pelo mercado,

ou devem ser definidos por pressão e compulsão sindical?  Portanto, o cerne da questão não reside na

alternativa "inflação ou desemprego".

Aliás essa análise distorcida do problema vem sendo proposta na Inglaterra, nos países industrializados da

Europa e até nos Estados Unidos.  Há mesmo quem diga: "Vejam só: até os Estados Unidos estão

recorrendo à inflação.  Por que não deveríamos fazer o mesmo?".  A estes deveríamos responder em

primeiro lugar: "Um dos privilégios do homem rico é poder se dar ao luxo de ser insensato por muito mais

tempo que o pobre".  E é esta a situação dos Estados Unidos.  A política financeira desse país é muito ruim,

e está piorando.  Mas certamente trata-se de um país capaz de arcar com os custos de sua insensatez por um

prazo um pouco mais longo que o que seria tolerado por alguns outros países.

O mais importante a lembrar é que a inflação não é um ato de Deus, que a inflação não é uma catástrofe da

natureza ou uma doença que se alastra como a peste.  A inflação é uma política — uma política

premeditada, adotada por pessoas que a ela recorrem por considerá-la um mal menor que o desemprego.  

Mas o fato é que, a não ser em curtíssimo prazo, a inflação não cura o desemprego.  A inflação é uma

política.  E uma política pode ser alterada.  Assim sendo, não há razão para nos deixarmos vencer por ela. 

Se a temos na conta de um mal, então é preciso estancá-la.  É preciso equilibrar o orçamento do governo. 

Evidentemente, o apoio da opinião pública é necessário para isso.  E cabe aos intelectuais ajudar o povo a

compreender.  Uma vez assegurado o apoio da opinião pública, os representantes eleitos do povo

certamente terão condições de abandonar a política da inflação.

Devemos lembrar que, no final das contas, poderemos estar todos mortos.  Aliás, não restam dúvidas de

que estaremos mesmo mortos.  Mas deveríamos cuidar de nossos assuntos terrenos — neste breve intervalo

em que nos é dado viver — da melhor maneira possível.  E uma das medidas necessárias para esse

propósito é abandonar as políticas inflacionárias. 

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Como ocorrem os ciclos econômicospor Murray N. Rothbard, segunda-feira, 17 de março de 2008

 Esse texto foi extraído do primeiro capítulo do livro America's Great Depression,(1963), de Murray Rothbard.]

O estudo dos ciclos econômicos deve se basear em uma teoria dos ciclos que seja satisfatória. Mergulhar em um maço de dados estatísticos sem um "pré-julgamento" é inútil. Os ciclos ocorrem no mundo econômico, portanto uma teoria útil sobre ciclos econômicos deve ser integrada à teoria econômica geral. E, ainda assim, tal integração, ainda que uma simples tentativa, é a exceção, e não a regra. A ciência econômica, nas últimas décadas, foi perversamente fissurada e dividida em inúmeros compartimentos herméticos — cada esfera raramente se relaciona às outras. Somente nas teorias de Schumpeter e Mises a teoria dos ciclos foi integrada à economia geral. [1]

A maior parte dos especialistas em ciclos econômicos, que despreza qualquer integração sistemática como sendo impossível de ser deduzida e muito simplificada, está dessa forma (consciente ou inconscientemente) rejeitando a economia em si, pois se alguém cria uma teoria dos ciclos com pouca, ou nenhuma, relação com a teoria geral da economia, isso significa que essa teoria geral deve estar incorreta, pois falha ao não explicar esse vital fenômeno econômico. Para os institucionalistas — esses coletores de dados brutos — e provavelmente para outros grupos, essa é uma conclusão bem-vinda. Entretanto, até os institucionalistas têm que usar a teoria de vez em quando, para fazer análises e recomendações; e, na verdade, o que eles acabam usando, sempre que necessário, são um emaranhado de adivinhações e insights, tirados de maneira não metódica de várias teorias distintas. Poucos economistas perceberam que a teoria dos ciclos econômicos criada por Mises não é apenas mais uma teoria: ela, na verdade, se assemelha muito a uma teoria geral do sistema econômico.[2] A teoria de Mises é, de fato, a análise das conseqüências inevitáveis da intervenção no livre mercado feita pela expansão creditícia bancária. Seguidores da teoria de Mises freqüentemente se mostram muito modestos ao expressar suas asserções; eles têm abertamente declarado que a teoria é "somente uma das muitas explicações possíveis para os ciclos econômicos", e que cada ciclo pode ser explicado por diferentes teorias causais. Nesse, assim como em vários outros setores, esse tipo de ecleticismo está deslocado. Dado que a teoria de Mises é a única que se origina de uma teoria econômica geral, ela é a única que pode fornecer uma explicação correta. A menos que estejamos preparados para abandonar a teoria geral da economia, devemos rejeitar todas as explicações propostas que não se conectem a ela.

Ciclos Econômicos e Flutuações Econômicas

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Em primeiro lugar, é importante distinguir os ciclos econômicos das costumeiras flutuações econômicas. Vivemos necessariamente em uma sociedade que está sempre em mudanças contínuas e incessantes, mudanças que nunca podem ser precisamente esquematizadas com antecedência. As pessoas tentam prever e antecipar essas mudanças da melhor maneira que lhes é possível, mas tais previsões nunca podem ser reduzidas a uma ciência exata. São os empresários que têm a função de prever mudanças no mercado, tanto as condições de demanda quanto as de oferta. Os mais bem sucedidos têm lucros em igual proporção à sua acurácia de julgamento, ao passo que os previsores mal sucedidos são jogados para a margem. Como resultado, os empresários bem sucedidos no livre mercado serão aqueles mais adeptos a antecipar as futuras condições do mercado. No entanto, as previsões nunca poderão ser perfeitas, e os empresários continuarão a diferir no sucesso de seus respectivos julgamentos. Se não fosse assim, não haveria lucros nem prejuízos nos negócios.

Destarte, mudanças ocorrem continuamente em todas as esferas da economia. Os gostos do consumidor mudam; as preferências temporais, e consequentemente as proporções entre investimento e consumo, mudam; a mão-de-obra muda em quantidade, qualidade, e locação; recursos naturais são descobertos, enquanto outros são exauridos; mudanças tecnológicas alteram as possibilidades de produção; mudanças climáticas alteram as safras, etc. Todas essas mudanças são aspectos típicos de qualquer sistema econômico. De fato, não poderíamos conceber uma sociedade onde não houvesse mudanças, uma sociedade na qual todos fizessem as mesmas coisas dia após dia, e nenhum dado econômico jamais mudasse. E mesmo se pudéssemos conceber tal sociedade, é duvidoso que houvesse pessoas suficientes com a intenção de torná-la uma realidade.

Por essa razão, é absurdo esperar que todas as atividades econômicas sejam "estáveis", como se essas mudanças não ocorressem. Estabilizar e erradicar essas flutuações iria, de fato, eliminar qualquer atividade produtiva racional. Pegando um caso simples e hipotético, suponha que uma comunidade é visitada a cada sete anos por gafanhotos. A cada sete anos, portanto, muitas pessoas fazem preparativos para enfrentar os gafanhotos: produzem equipamentos anti-gafanhotos, contratam especialistas treinados para lidar com gafanhotos, etc. Obviamente, a cada sete anos há um "boom" na indústria de combate aos gafanhotos, a qual, felizmente, está em "depressão" nos outros seis anos. Pergunta: ajudaria ou atrapalharia se todos decidissem "estabilizar" a indústria de combate aos gafanhotos insistindo que ela produzisse o maquinário de maneira uniforme a cada ano, apenas para vê-lo se enferrujar e se tornar obsoleto? As pessoas deveriam ser forçadas a fabricar máquinas antes que se precise delas; ou a contratar pessoas antes que elas sejam necessárias; ou, inversamente, a postergar a construção de máquinas necessárias para agora — tudo em nome da "estabilização"? Se as pessoas querem mais carros e menos casas do que antes, deveriam elas ser forçadas a continuar comprando casas e, simultaneamente, proibidas de comprar carros, tudo em nome da estabilização? Como o Dr. F.A. Harper sentenciou:

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Esse tipo de flutuação econômica ocorre diariamente em nossas vidas. Ocorrem flutuações violentas, por exemplo, na safra de morangos em diferentes épocas do ano. Será que por isso deveríamos cultivar nas estufas uma quantidade de morangos que seja suficiente para estabilizar essa parte da nossa economia por todo o ano? [3]

Podemos, portanto, esperar flutuações econômicas específicas sempre. Não há nenhuma necessidade de uma "teoria dos ciclos" para esclarecer essas flutuações. Elas são simplesmente os resultados de mudanças nos dados econômicos e são totalmente explicadas pela teoria econômica. Muitos economistas, no entanto, atribuem as depressões econômicas usuais às "fragilidades" causadas por uma "depressão na construção civil" ou por uma "depressão agrícola". Mas declínios em uma indústria específica jamais podem inflamar uma depressão geral. Mudanças nos dados irão causar aumento nas atividades de um setor, e declínio nas de outro. Não há nada nesse caso que possa explicar uma depressão econômica generalizada — que é um fenômeno do verdadeiro "ciclo econômico". Suponha, por exemplo, que uma mudança nos gostos do consumidor, e na tecnologia, leve a uma mudança da demanda — de produtos agrícolas para outros bens. Não faz sentido dizer, como muitos fazem, que uma depressão agrícola vai levar a uma depressão geral, pois os agricultores nesse caso iriam comprar menos bens, e as indústrias que vendem aos agricultores iriam comprar menos de seus fornecedores, etc. Isto seria ignorar o fato de que as pessoas que estão produzindo os outros bens que agora são preferidos pelos consumidores irão prosperar; suas demandas aumentarão.

O problema dos ciclos econômicos envolve a questão geral da expansão (boom) e da depressão; não se trata de estudar indústrias específicas e imaginar quais fatores fazem com que cada uma delas prospere ou entre em depressão, relativamente. Alguns economistas — tais como Warren e Pearson ou Dewey e Dakin — não acreditam que existam flutuações gerais da economia — eles crêem que movimentos generalizados são apenas o resultado de diferentes ciclos que ocorrem, com durações distintas e específicas, nas várias atividades econômicas. Considerando que tais ciclos variáveis (tais como o "ciclo de 20 anos da construção civil" ou o "ciclo de sete anos dos gafanhotos") realmente possam existir, eles são, não obstante, irrelevantes para um estudo dos ciclos econômicos em geral ou para as depressões econômicas em particular. O que estamos tentando explicar são as expansões (booms) e os colapsos (busts) econômicos que ocorrem de maneira generalizada por toda a economia.

Ao considerarmos movimentos generalizados dentro da economia, torna-se imediatamente evidente que tais movimentos devem ser transmitidos através do meio geral de troca — a moeda. A moeda é o elo entre todas as atividades econômicas. Se um preço sobe e o outro desce, podemos concluir que a demanda se deslocou de uma indústria para outra; mas se todos os preços sobem ou descem conjuntamente, alguma mudança deve ter ocorrido na esfera monetária. Somente mudanças na demanda por, e/ou na oferta de, moeda irão causar uma mudança generalizada nos preços. Um aumento na oferta de moeda, com a demanda por ela

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permanecendo a mesma, causará uma queda no poder de compra de cada unidade monetária, isto é, um aumento geral dos preços; inversamente, uma diminuição da oferta monetária irá causar um declínio generalizado dos preços. Por outro lado, um aumento na demanda geral por moeda, a oferta permanecendo a mesma, levará a um aumento no poder de compra da unidade monetária (uma queda generalizada dos preços); ao passo que uma queda na demanda levará a um aumento generalizado dos preços. Portanto, mudanças nos preços gerais são determinadas por alterações na oferta de e na demanda por moeda. A oferta de moeda consiste no estoque de dinheiro existente na sociedade. A demanda por moeda é, em última análise, a disposição das pessoas em manter saldos líquidos, e isso pode ser expresso como a ânsia em adquirir moeda em uma troca, bem como a ânsia em se reter moeda em seus balanços (ou saldo de caixa). A oferta de bens na economia é um componente da demanda social por moeda; um aumento da oferta de bens irá, outras coisas permanecendo constantes, aumentar a demanda por moeda e, desta forma, tenderá a diminuir os preços. A demanda por moeda tenderá a diminuir à medida que o poder de compra da unidade monetária for crescendo, pois cada dólar será mais eficaz no saldo de caixa (serão necessários menos dólares para se comprar bens). Inversamente, um poder de compra menor (preços maiores) significa que cada dólar é menos eficaz, e mais dólares serão necessários para fazer o mesmo trabalho.

Assim, o poder de compra do dólar permanecerá constante quando o estoque de, e a demanda por, moeda estiverem em equilíbrio entre si: ou seja, quando as pessoas estiverem dispostas a manter em seus saldos de caixa a quantia exata de moeda em existência. Se a demanda por moeda exceder o estoque, o poder de compra da moeda vai aumentar até o momento em que a demanda não mais for excessiva; e, nesse ponto, o mercado voltará a se equilibrar. Inversamente, uma demanda menor que a oferta irá diminuir o poder de compra do dólar, isto é, aumentará os preços.

Contudo, flutuações gerais em toda a economia, e na "relação da moeda", não fornecem por si sós a solução para o misterioso ciclo econômico. É verdade que qualquer ciclo na economia em geral deve ser propagado por essa relação da moeda: a relação entre o estoque de, e a demanda por, moeda. Mas essas mudanças em si explicam pouco. Se a oferta monetária aumenta ou a demanda cai, por exemplo, os preços vão subir; mas por que isso geraria um "ciclo econômico"? Especificamente, por que isso traria uma depressão? Os primeiros teóricos dos ciclos econômicos estavam corretos ao focar sua atenção na crise e na depressão: essas eram as fases que confundiam e abalavam, da mesma maneira, os economistas e leigos, e essas são as fases que mais precisam ser explicadas.

O Problema: O Conjunto de Erros

A explicação para as depressões, portanto, não será encontrada recorrendo-se a flutuações específicas, ou mesmo gerais, da economia. O principal problema que uma teoria que pretenda explicar as depressões deve resolver é: por que ocorre repentinamente um conjunto generalizado de erros por toda a economia? Essa é a

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primeira pergunta a se fazer para qualquer teoria dos ciclos. A atividade econômica vai se desenvolvendo bem, com a maioria das empresas colhendo belos lucros. De repente, sem qualquer aviso, as condições mudam e o grosso das empresas passa a sofrer prejuízos; repentinamente elas descobrem que cometeram erros atrozes de previsão.

Nesse momento se faz uma revisão de toda a atividade empreendedora. Os empresários estão, em grande parte, no ramo das previsões. Eles precisam investir e pagar seus custos no presente, na expectativa de obter lucros ao venderem para consumidores ou para outros empreendedores mais adiante na estrutura de produção de uma economia. Os melhores empresários, com a melhor capacidade de prever as demandas do consumidor ou de outros produtores, obtêm lucros; os ineficientes, prejuízos. Dessa forma, o mercado fornece o campo de treinamento que vai recompensar e expandir os empresários perspicazes, e eliminar os ineficientes. Via de regra, apenas alguns poucos empresários sofrem prejuízos ao mesmo tempo; a maioria obtém lucro ou fica no equilíbrio. Como, então, se explica esse fenômeno curioso da crise depressiva, quando quase todos os empresários repentinamente passam a ter prejuízos? Em resumo, como que todos os astutos empresários do país puderam cometer tais erros conjuntamente, e por que todos esses erros repentinamente se revelaram ao mesmo tempo? Esse é o grande problema da teoria dos ciclos.

Não é legítimo responder que mudanças súbitas nos dados econômicos são a causa. Afinal de contas, é função dos empresários prever mudanças futuras, sendo algumas delas abruptas. Por que os prognósticos deles falharam tão avassaladoramente?

Outro aspecto comum dos ciclos econômicos também pede uma explanação. É um fato bem conhecido que as indústrias de bens de capital flutuam mais fortemente do que as indústrias de bens de consumo. As indústrias de bens de capital — especialmente as indústrias que fornecem matéria-prima, material de construção, e equipamentos para outras indústrias — são as que mais se expandem durante a fase do boom econômico, e as que sofrem mais severamente durante a depressão.

Um terceiro aspecto de todo boom econômico que precisa de uma explicação é o aumento, que sempre acontece, da quantidade de dinheiro na economia. Reciprocamente, normalmente ocorre — apesar de não ser uma regra universal — uma diminuição da oferta monetária durante a depressão.

A Explicação: Expansão (Boom) e Depressão

Em um mercado puramente livre e desimpedido não haverá essa quantidade conjunta de erros, já que empresários treinados não irão todos cometer erros ao mesmo tempo. [4] O ciclo de "expansão-contração" é produzido pela intervenção monetária no mercado, mais especificamente pela expansão do crédito bancário aos negócios. Suponhamos uma economia com uma dada quantidade de dinheiro. Parte desse dinheiro é gasta com consumo; o resto é poupado e investido em uma vigorosa estrutura de capital, com várias ordens de produção. A proporção do

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consumo em relação à poupança ou investimento é determinada pela preferência temporal das pessoas — uma medida que diz o quanto elas preferem a satisfação presente à futura. Quanto menos elas preferirem satisfazer suas preferências no presente, menor será sua taxa de preferência temporal, e menor, portanto, será a taxa pura de juros, que é determinada pelas preferências temporais dos indivíduos na sociedade. Uma taxa de preferência temporal baixa resultará em proporções maiores de investimentos em relação ao consumo, um aumento da estrutura de produção, e uma formação de capital. Preferências temporais altas, por outro lado, resultarão em maiores taxas puras de juros e em uma menor proporção de investimento em relação ao consumo. As taxas finais de juros de mercado refletem a taxa pura de juros mais o risco do empreendimento e os componentes do poder de compra. Graus variáveis do risco do empreendimento criam umaestrutura de taxas de juros, ao invés de uma taxa única, e os componentes do poder de compra refletem as mudanças no poder de compra da moeda, bem como a posição específica do empresário em relação às mudanças que ele espera nos preços. O fator crucial, entretanto, é a taxa pura de juros. Essa taxa de juros primeiramente se manifesta na "taxa natural", ou aquilo que é geralmente chamado de "taxa de lucro" corrente. Essa taxa corrente se reflete na taxa de juros do mercado de crédito, uma taxa que é determinada pela taxa de lucros corrente. [5]

Mas o que acontece quando os bancos "criam" dinheiro novo (seja na forma de cédulas ou de depósitos bancários) e fazem empréstimos?[6] Esse novo dinheiro flui para o mercado de crédito e diminui a taxa de juros dos empréstimos. Isso faz parecer que a oferta de fundos poupados para investimento aumentou, pois o efeito é o mesmo: a oferta de fundos para investimento aparentemente aumenta, e a taxa de juros diminui. Os empresários, em resumo, são iludidos por essa inflação bancária, sendo levados a acreditar que a oferta de fundos poupados é maior do que realmente é. Assim, quando os fundos poupados aumentam, os empresários investem em "processos de produção mais longos", isto é, a estrutura do capital é aumentada, especialmente nas "ordens mais altas", que são aquelas mais afastadas do consumidor final. Os empresários pegam seus fundos recentemente adquiridos e estimulam um aumento dos preços dos bens de capital e de outros bens de produção, e isso provoca uma mudança do investimento: este sai das ordens menores de produção (perto do consumidor) e vai para as ordens maiores (as mais distantes do consumidor) — isto é, das indústrias de bens de consumo para as de bens de capital. [7]

Se tudo isso fosse o resultado de uma diminuição genuína nas preferências temporais e de um aumento verdadeiro na poupança, tudo estaria bem, e a nova e aumentada estrutura de produção poderia se manter indefinidamente. Mas acontece que essa mudança é o produto de uma expansão creditícia bancária. Prontamente esse novo dinheiro irá percorrer todas as cadeias econômicas, desde os tomadores de empréstimo até os fatores de produção: salários, aluguéis, juros. Agora, a menos que as preferências temporais tenham mudado, e não há razão para imaginar que elas tenham, as pessoas irão correr para gastar suas rendas — que agora estão maiores — seguindo ainda a antiga proporção de consumo-investimento. Portanto, as

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pessoas rapidamente irão restabelecer a antiga proporção, e a demanda irá novamente voltar das ordens mais altas para as ordens mais baixas. As indústrias de bens de capital irão descobrir que todo o seu investimento foi um erro: aquilo que se imaginou que seria lucrativo não o era realmente, pois não havia uma verdadeira demanda por parte de seus clientes — no caso da indústria de bens de capital, outros empresários. Os investimentos nas ordens maiores de produção se revelam meros desperdícios, e esses maus investimentos devem ser liquidados.

Uma explicação sempre muito utilizada para a crise é a de que ela se origina de um "subconsumo" — uma deficiência da demanda dos consumidores por bens vendidos a preços que poderiam ser lucrativos. Mas isso contradiz o fato já bem conhecido de que são as indústrias de bens de capital, e não as de bens de consumo, que realmente sofrem em uma depressão. A deficiência é da demanda empresarial por bens de maior ordem, e isso, por sua vez, ocorre devido a um retorno da demanda para a sua proporção antiga.

Em suma, os empresários foram iludidos pela inflação creditícia bancária a investirem excessivamente em bens de capital de ordens mais altas, os quais só poderiam se manter prosperamente se houvesse preferências temporais menores e poupança e investimentos maiores; tão logo essa inflação permeou o público, a velha proporção de consumo-investimento foi restabelecida, e os investimentos nos negócios de ordens maiores se revelaram um desperdício.[8] Os empresários foram levados a esse erro devido a uma expansão artificial do crédito, e sua conseqüente adulteração da taxa de juros de livre mercado.

O "boom", então, é na verdade um período de investimentos ruins e imprevidentes. É o período quando erros são cometidos devido à distorção causada pelo crédito bancário no livre mercado. A "crise" chega quando os consumidores decidem restabelecer suas proporções desejadas. A "depressão", na realidade, é o processo pelo qual a economia se ajusta aos desperdícios e erros do boom, e restabelece o serviço eficiente dos desejos do consumidor. O processo de ajustamento consiste em uma rápida liquidação dos investimentos desnecessários. Alguns desses investimentos serão completamente abandonados (como no caso das cidades fantasmas do oeste americano, que foram construídas durante o boom de 1816-1818, e abandonadas durante o Pânico de 1819); outros serão deslocados para outros fins. Como regra, o que sempre deve ser feito não é lamentar erros passados, mas fazer o uso mais eficiente do estoque de capital existente. Em suma, o livre mercado tende a satisfazer com a máxima eficiência os desejos voluntariamente manifestados pelo consumidor, e isso inclui os desejos do público relativos ao consumo presente e futuro. O boom inflacionário atrapalha essa eficiência, e distorce a estrutura de produção, que passará a não mais servir o consumidor apropriadamente. A crise sinaliza o fim dessa distorção inflacionária, e a depressão é o processo pelo qual a economia precisa passar para poder voltar a servir os consumidores de maneira eficiente. Em resumo, e esse é um ponto importante para se compreender, a depressão é o processo de "recuperação", e o fim da depressão anuncia o retorno ao normal, e à eficiência ótima. A depressão, portanto, longe der

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ser um flagelo nocivo, é o retorno necessário e benéfico da economia ao normal, após as distorções impostas pelo boom. Logo, todo boom sempre precisa de um bust(colapso).

Sabendo-se que muito pouco tempo se passa desde o momento em que o novo dinheiro sai das empresas e vai até os fatores de produção, a pergunta inevitável é: por que, então, todos os booms não chegam rapidamente ao fim? A razão de isso não acontecer é porque os bancos sempre chegam para o socorro. Ao verem que seus fatores estão indo para as indústrias de bens de consumo, descobrindo que seus custos estão aumentando e que elas estão sem fundos, as empresas tomadoras de empréstimo voltam aos bancos para pegar mais. Se os bancos continuarem a expandir o crédito, eles darão uma sobrevida a esses tomadores de empréstimo. Esse novo dinheiro, uma vez mais, irá fluir para os negócios, repetindo aquele mesmo processo já descrito, e as indústrias de bens de capital poderão novamente tirar os fatores das indústrias de bens de consumo. Ou seja, uma expansão contínua do crédito bancário poderá manter os tomadores de empréstimo um passo à frente da resposta dos consumidores. E é nisso, como já vimos, que se constituem as crises e depressões: a restauração pelos consumidores de uma economia eficiente, e o fim das distorções causadas pelo boom. Claramente, quanto maior for a expansão do crédito, e quanto maior for a sua duração, maior será a duração do boom. O boom vai terminar quando a expansão do crédito bancário finalmente acabar. Evidentemente, quanto mais tempo o boom durar, mais pródigos serão os erros cometidos, e mais longa e mais severa será a necessária depressão que fará os reajustes.

Portanto, a expansão creditícia bancária aciona todas as fases do ciclo econômico: o boom inflacionário, marcado pela expansão da oferta monetária e por maus investimentos; a crise, que chega quando a expansão do crédito cessa e os maus investimentos se tornam evidentes; e a depressão recuperativa, o necessário processo de ajustamento através do qual a economia retorna aos modos mais eficientes de satisfazer os desejos do consumidor. [9]

Quais, especificamente, são os aspectos essenciais da fase de depressão-recuperação? Os projetos imprevidentes e dispendiosos, como dissemos, devem ou ser abandonados ou usados da melhor maneira possível. Empresas ineficientes, que foram estimuladas pelo boom artificial, devem ser liquidadas, ou terem suas dívidas reduzidas proporcionalmente, ou serem entregues aos seus credores. Os preços dos bens de produção devem cair, particularmente nas ordens mais altas de produção — isso inclui os bens de capital, a terra, e os salários. Da mesma forma que o boom foi marcado por uma queda das taxas de juros, isto é, de diferenciais de preços entre os estágios de produção (a "taxa natural" ou a taxa de lucro corrente), bem como da taxa de empréstimo, o processo de depressão-reajuste consiste em um aumento desse diferencial de juros. Na prática, isso significa uma queda nos preços de bens de ordens mais altas relativamente aos preços praticados nas indústrias de bens de consumo. Não apenas os preços de certas máquinas devem cair, mas também os preços de todos os agregados de capitais, por exemplo, os valores das ações e dos

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imóveis. Na verdade, esses valores devem cair mais do que o rendimento oriundo desses ativos, de maneira que isso reflita o aumento geral da taxa de juros de retorno.

Dado que os fatores devem migrar das ordens mais altas de produção para as mais baixas, sempre haverá um inevitável desemprego "friccional" em uma depressão, mas não há motivos para que ele seja maior do que o desemprego presente em qualquer outra área que esteja sofrendo uma grande mudança em sua produção. Na prática, o desemprego será agravado pelas inúmeras falências, e pelos grandes erros que serão revelados durante o processo, mas, mesmo assim, não há motivos para que ele não seja apenas temporário. Quanto mais rápido for o ajuste, mais transitório será o desemprego. Agora, o desemprego irá progredir além do estágio "friccional" e se tornar realmente severo e duradouro caso os salários sejam mantidos artificialmente altos e forem impedidos de ser diminuídos. Se os salários forem mantidos acima daquele nível de livre mercado que equilibra a demanda por e a oferta de mão-de-obra, os trabalhadores permanecerão permanentemente desempregados. Quanto maior for essa discrepância, mais severo será o desemprego.

Aspectos Secundários da Depressão: Contração Deflacionária do Crédito

O que foi dito acima são os aspectos essenciais da depressão. Outros aspectos secundários também podem se desenvolver. Por exemplo, não há necessidade de deflação (diminuição da quantidade de dinheiro) durante uma depressão. A fase depressiva começa com o fim da inflação, e pode prosseguir sem quaisquer mudanças adicionais do lado monetário. No entanto, a deflação quase que sempre existiu nessa situação. Na fase do boom, a inflação se deu como uma expansão do crédito bancário; agora, as dificuldades financeiras e as falências ocorridas entre os tomadores de empréstimos levam os bancos a ficarem mais modestos e a, assim, contrair o crédito. [10] Sob o padrão-ouro, os bancos têm outra razão para contraírem o crédito — se eles tiverem terminado a inflação devido a uma fuga de ouro para os países estrangeiros. A ameaça dessa fuga força os bancos a contraírem seus empréstimos excessivos. Ademais, o rompante de falências pode levantar dúvidas a respeito da capacidade de os bancos honrarem seus depósitos; e os bancos, estando inerentemente falidos, não podem arcar com tais questionamentos. [11] Logo, a oferta monetária irá se contrair devido a essas corridas aos bancos, que realmente ocorrem, e também porque os outros bancos irão ficar mais austeros — apertando suas finanças -, temendo tais corridas.

Outro aspecto secundário comum em depressões é um aumento na demanda por dinheiro. Esse "desespero por liquidez" é o resultado de vários fatores: (1) as pessoas esperam uma queda nos preços, devido à depressão e à deflação; sendo assim, elas irão reter mais dinheiro e gastar menos, esperando essa queda dos preços; (2) sob pressão dos bancos e de outros credores, os tomadores de empréstimos irão tentar pagar suas dívidas liquidando outros ativos em troca de dinheiro; (3) o rompante de

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prejuízos e falências faz com que os empresários fiquem mais precavidos com relação a investimentos até que o processo de liquidação esteja finalizado.

Com a oferta monetária em queda, e a demanda por dinheiro aumentando, uma queda geral de preços é a conseqüência da maioria das depressões. Essa queda, no entanto, é causada pelos aspectos secundários — e não pelos aspectos inerentes — da depressão. Quase todos os economistas, até mesmo aqueles que crêem que se deve permitir que o processo de ajuste da depressão ocorra livre de obstáculos, têm uma visão muito sombria da deflação secundária e da queda de preços, e afirmam que esses dois fatores desnecessariamente agravam a severidade das depressões. Essa visão, entretanto, é incorreta. Esses processos não apenas não agravam a depressão, como têm efeitos benéficos.

Não há, por exemplo, qualquer justificativa para a hostilidade que se tem em relação ao "entesouramento". Em primeiro lugar, não há um critério para definir o que é "entesouramento"; a acusação inevitavelmente se resume a dizer que A acha que B está mantendo mais saldos líquidos do que A julga apropriado para B. Certamente não há um critério objetivo para decidir quando um aumento nos saldos líquidos se torna um "entesouramento". Em segundo lugar, vimos que a demanda por dinheiro aumenta como resultado de certas necessidades e valorações que as pessoas fazem; em uma depressão, temores de liquidações de empresas e expectativas de declínio nos preços particularmente estimulam esse aumento. Sob quais critérios essas valorações podem ser consideradas "ilegítimas"? Uma queda generalizada dos preços é a maneira que um aumento na demanda por dinheiro pode ser satisfeita, pois preços menores significam que a mesma quantidade de moeda nos saldos líquidos tem maior efetividade, maior força "real" sobre bens e serviços. Ou seja: o desejo por saldos líquidos reais maiores atinge esse objetivo.

Ademais, a demanda por dinheiro irá diminuir novamente assim que o processo de liquidação e ajuste estiver finalizado, pois o término desse processo remove todas as incertezas relativas às falências iminentes, e põe um fim na procura desesperada por dinheiro por parte de quem pegou empréstimo. Uma queda rápida e desimpedida nos preços — tanto de bens gerais (que se ajustam à nova quantidade de dinheiro), e particularmente dos bens de ordens maiores (que se adaptam aos maus investimentos causados pelo boom) -, irá rapidamente terminar os processos de realinhamento e eliminar expectativas de outras quedas. Assim, quanto mais cedo os vários ajustes, primários e secundários, forem efetuados, mais rapidamente a demanda por dinheiro cairá mais uma vez. Esta, é claro, é apenas uma parte do "retorno ao normal" da economia geral.

Nem o aumento do "entesouramento", nem a queda dos preços, irão interferir no ajuste primário da depressão. O aspecto importante desse ajuste primário é que os preços dos bens de produção caem mais rapidamente do que os preços dos bens de consumo (ou, de maneira mais acurada, os preços dos bens de ordens mais altasdiminuem mais rapidamente do que os preços dos bens de ordens mais baixas); não interfere em nada no processo de ajuste primário o fato de todos os preços

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estarem caindo com a mesma intensidade. Nada mais é do que um mito comum, que acomete a leigos e economistas na mesma intensidade, dizer que preços em queda têm um efeito depressivo nos negócios. Isso não é necessariamente verdadeiro. O que importa para os negócios não é o comportamento geral dos preços, mas o diferencial entre preços de venda e custos (a "taxa natural de juros"). Se os salários, por exemplo, caem mais rapidamente do que os preços dos produtos, isso estimula as atividades empresariais e o emprego.

A deflação da oferta monetária (via contração do crédito) é tão mal afamada junto aos economistas quanto o entesouramento. Mesmo alguns teóricos misesianos deploram a deflação e não vêem benefícios advindos dela.[12] No entanto, a contração deflacionária do crédito ajuda enormemente a acelerar o processo de ajustamento, e, dessa forma, a conclusão do processo de recuperação dos negócios, de maneiras ainda não reconhecidas. O ajustamento consiste, como sabemos, de um retorno aos padrões de consumo-poupança desejados. Entretanto, o processo de ajustamento será menor que o necessário se as preferências temporais em si mudarem: isto é, se a poupança aumentar e o consumo declinar, relativamente. Em resumo: o que pode ajudar em uma depressão não é mais consumo, mas, ao contrário, menos consumo e mais poupança (e, concomitantemente, mais investimentos). Preços em queda estimulam uma maior poupança e um menor consumo porque promovem uma ilusão contábil. A contabilidade das empresas registra o valor dos ativos em seu custo original. É bem sabido que aumentos gerais de preços distorcem os registros contábeis: o que parece ser um grande "lucro" pode apenas ser o suficiente para repor os ativos agora mais caros. Durante uma inflação, portanto, os "lucros" das empresas são em grande parte artificiais, e o consumo é maior do que seria se a ilusão contábil não estivesse ocorrendo — talvez o capital esteja até mesmo sendo consumido sem o conhecimento do indivíduo. Em um período de deflação, a ilusão contábil é revertida: o que parece ser prejuízo e consumo de capital, pode na verdade significar lucros para a empresa, já que os ativos agora custam menos para serem repostos. Esse "exageramento" dos prejuízos, no entanto, restringe o consumo e encoraja a poupança; uma pessoa pode pensar que ela está meramente repondo o capital, quando na verdade ela está fazendo um investimento adicional nos negócios.

A contração do crédito terá um outro efeito benéfico ao promover a recuperação. Como vimos, a expansão creditícia bancária distorce o livre mercado ao diminuir os diferenciais de preço (a "taxa natural de juros" ou a taxa de lucro corrente) no mercado; já a contração do crédito, por outro lado, distorce o livre mercado na direção oposta. O primeiro efeito da contração deflacionária do crédito é o de diminuir a oferta de dinheiro nas mãos dos negócios, particularmente nos estágios mais altos da produção. Isso reduz a demanda por fatores nesses estágios mais altos, diminui os preços dos fatores e a renda advinda deles, e aumenta os diferenciais de preços e taxa de juros. Isto estimula a alteração dos fatores, em resumo, dos estágios mais altos para os mais baixos. Isso significa que a contração do crédito, quando ela vem depois da expansão do crédito, acelera o processo de

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ajustamento do mercado. A contração do crédito retorna a economia às proporções de livre mercado mais rapidamente do que de outra maneira.

Mas, pode-se contestar, será que a contração do crédito não poderia compensar excessivamente os erros do boom e causar ela própria distorções que precisam de correção? É verdade que a contração do crédito pode super-compensar e, enquanto ocorre a contração, ela pode levar as taxas de juros a níveis maiores que os de livre mercado, e a menos investimentos do que também ocorreria no livre mercado. Mas dado que a contração não leva a maus investimentos, ela não levará a qualquer período doloroso de depressão e ajustamento. Se os empresários forem iludidos a pensar que menos capital está disponível para investimento do que é realmente o caso, nenhum dano duradouro na forma de investimentos desperdiçados ocorrerá.[13] E mais ainda, por sua natureza, a contração do crédito é severamente limitada — ela não pode ser maior que a amplitude da inflação precedente.[14] Já a expansão do crédito não enfrenta tais limitações.

Política Governamental em uma Depressão: Laissez-Faire

Se o governo deseja que uma depressão acabe o mais rápido possível, e que a economia retorne à sua prosperidade normal, qual caminho ele deve adotar? A primeira e mais clara prescrição é: não interfira no processo de ajustamento do mercado. Quanto mais o governo intervém para atrasar o ajuste de mercado, mais longa e mais dura será a depressão, e mais difícil será o caminho para a recuperação completa. A obstrução do governo agrava e perpetua a depressão. Ainda assim, as políticas governamentais para acabar com as depressões sempre acabaram por agravar todos os malefícios que elas espalhafatosamente tentavam curar (e isso aconteceria de maneira ainda mais intensa atualmente). De fato, se fizermos uma lista das várias maneiras pelas quais o governo pode obstruir o ajuste do mercado, vamos descobrir que estamos listando justamente o arsenal de políticas que um governo consideraria "antidepressivas". Destarte, aqui vão as maneiras pelas quais um processo de ajustamento pode ser estorvado:

1.      Impedir ou atrasar liquidações. Emprestar dinheiro a empresas cambaleantes, pedir aos bancos que emprestem mais, etc.

 2.      Inflacionar ainda mais. Mais inflação bloqueia a necessária queda de preços,

atrasando o ajustamento e prolongando a depressão. Mais expansão do crédito estimula mais criação de maus investimentos, os quais, por sua vez, terão que ser liquidados em uma próxima depressão. Uma política governamental de "dinheiro fácil" impede o retorno do mercado a taxas de juros necessariamente mais altas.

 3.      Manter os salários altos. Preservar artificialmente o nível alto dos salários em

uma depressão garante um massivo e permanente desemprego. Mais ainda, em uma deflação, quando os preços estão caindo, manter os mesmos salários

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nominais significa que os salários reais estão subindo. Em face da queda da demanda, isso agrava enormemente o problema do desemprego.

 4.     Manter os preços altos. Manter os preços acima de seu nível de livre mercado

irá criar excedentes invendáveis, e impedir um retorno à prosperidade. 

5.     Estimular o consumo e desencorajar a poupança. Vimos que mais poupança e menos consumo acelera a recuperação; mais consumo e menos poupança agrava ainda mais a escassez de capital poupado. O governo pode encorajar o consumo com políticas como "vale-refeição" e outros "fundos de assistência social". Ele pode desencorajar a poupança e o investimento com mais impostos, particularmente sobre os ricos, sobre as corporações e sobre propriedades. De fato, qualquer aumento de impostos e de gastos governamentais vai desencorajar a poupança e o investimento, e estimular o consumo, dado que gastos do governo sempre serão consumo. Alguns desses fundos particulares teriam sido poupados e investidos; todos os fundos do governo são consumidos.[15] Qualquer aumento do tamanho do governo sobre a economia, portanto, altera a proporção de consumo-investimento da sociedade em favor do consumo, e prolonga a depressão.

 6.     Subsidiar o desemprego. Qualquer subsídio ao desemprego (via seguro-

desemprego, assistencialismo, etc.) irá prolongar o desemprego indefinidamente, e atrasar a mudança de trabalhadores para áreas onde empregos estejam disponíveis.

Essas, portanto, são as medidas que irão atrasar o processo de recuperação e agravar a depressão. Ainda assim, elas são as políticas governamentais favoritas e consagradas, e, como veremos, foram as políticas adotadas na depressão de 1929-1933, por um governo considerado por muitos historiadores como sendo uma administração "laissez-faire".

Dado que a deflação também acelera a recuperação, o governo deveria encorajar a contração do crédito, ao invés de interferir nela. Em uma economia sob o padrão-ouro, como a que havia em 1929, impedir a deflação traz outras conseqüências infelizes: uma deflação aumenta a proporção de reservas do sistema bancário, e gera mais confiança, tanto no cidadão quanto no investidor estrangeiro, de que o padrão-ouro será mantido. Temores a respeito do padrão e do sistema monetário irão precipitar exatamente a corrida bancária que o governo tão ansiosamente quer evitar. Existem outros princípios durante uma deflação que, mesmo havendo corridas bancárias, não devem ser ignorados. Por exemplo, os bancos, assim como ocorre com qualquer outro negócio, não deveriam ser isentos de pagar suas obrigações. Qualquer interferência em uma corrida bancária — que é quando os bancos são colocados em cheque — irá estabelecer os bancos como grupos privilegiados, não obrigados a pagarem suas dívidas, e isso irá levar inevitavelmente a mais inflação, a expansões de crédito, e a depressões. E se, como afirmamos, os bancos são inerentemente falidos e as "corridas" simplesmente revelarem essa falência, será

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benéfico para a economia que o sistema bancário seja reformado, de uma vez por todas, por um expurgo completo do sistema de reservas fracionárias. Tal expurgo traria forçosamente a público os perigos desse sistema bancário, e, mais do que qualquer teorização acadêmica, um seguro contra tal prática nociva por parte dos bancos, no futuro.[16]

A regra mais importante de uma política governamental sólida em uma depressão, portanto, é não interferir no processo de ajustamento. O governo pode fazer algo mais positivo para ajudar o ajuste? Alguns economistas têm advogado que o governo decrete um corte de salários com o intuito de estimular o emprego, como, por exemplo, uma redução de 10 por cento para absolutamente todas as categorias. Mas um ajuste de livre mercado é o oposto de qualquer política para "todas as categorias". Nem todos os salários precisam ser reduzidos; o grau de ajuste necessário para preços e salários difere caso a caso, e só pode ser determinado por um mercado livre e desimpedido.[17] Intervenções do governo podem apenas causar distorções maiores no mercado.

Entretanto, existe uma coisa que o governo pode fazer positivamente: ele pode diminuir drasticamente seu papel relativo na economia, cortando gastos e impostos, particularmente impostos que interferem na poupança e no investimento. Reduzir os níveis de taxação e de gastos irá automaticamente alterar a proporção entre poupança-investimento-consumo da sociedade, em favor da poupança e do investimento, diminuindo grandemente o tempo requerido para se retornar a uma economia próspera.[18] Reduzir impostos que recaem mais pesadamente sobre a poupança e o investimento irá diminuir ainda mais as preferências temporais.[19]Além disso, depressão é uma época de esforço econômico. Qualquer redução de impostos, ou de qualquer regulamentação interferindo no livre mercado, irá estimular uma atividade econômica saudável; qualquer aumento de impostos, ou outro tipo de intervenção, irá deprimir a economia ainda mais.

Em suma, o papel adequado de uma política governamental durante uma depressão é adotar estritamente o laissez-faire, incluindo um rigoroso corte orçamentário, possivelmente acoplado a um estímulo real a uma contração do crédito. Por décadas, tal programa foi rotulado de "ignorante", "reacionário", ou "Neandertal" por economistas convencionais. Ao contrário, esta é a política claramente ditada pela ciência econômica para aqueles que desejam acabar com a depressão da maneira mais rápida e limpa possível.[20]

Pode-se alegar que a depressão só começou quando a expansão do crédito cessou. Então por que o governo não deveria continuar a expansão creditícia indefinidamente? Em primeiro lugar, quanto mais longo for o boom inflacionário, mais doloroso e severo será o necessário processo de ajustamento. Em segundo, o boom não pode continuar indefinidamente, porque eventualmente o público vai perceber que a política governamental é de inflação permanente, e irá abandonar o dinheiro em troca de bens, comprando-os enquanto a moeda ainda vale mais do que valerá no futuro próximo. O resultado será uma "inflação descontrolada", ou

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mesmo hiperinflação, tão familiar à história, e particularmente ao mundo moderno.[21] Hiperinflação, sob qualquer perspectiva, é muito pior do que qualquer depressão: ela destrói a moeda — a força vital da economia; arruína e esfacela a classe média e todos os "grupos sob renda fixa"; sua devastação é, portanto, ilimitada. E, além disso, ela finalmente leva ao desemprego e a padrões de vida bem mais baixos, pois não há sentido em trabalhar quando a renda do trabalho se deprecia hora a hora. Com isso, perde-se mais tempo caçando bens para se comprar. Para evitar tal calamidade, portanto, a expansão do crédito deve ser interrompida em algum momento, e isso trará a depressão.

Evitando as Depressões

Evitar uma depressão é claramente melhor do que ter que sofrê-la. Se a política apropriada do governo durante uma depressão é o laissez-faire, o que ele deveria fazer para evitar que haja uma depressão? Obviamente, dado que uma expansão do crédito necessariamente planta as sementes de uma futura depressão, a conduta apropriada do governo é impedir que qualquer expansão inflacionária do crédito se inicie. Esta não é uma prescrição muito difícil, pois a tarefa mais importante do governo é evitar que ele próprio gere inflação. O problema é que o governo é uma instituição inerentemente inflacionária, e, consequentemente, ele quase sempre tem precipitado, encorajado, e dirigido o boom inflacionário. O governo é inerentemente inflacionário porque ele, ao longo dos séculos, adquiriu o controle do sistema monetário. Ter o poder de imprimir dinheiro (incluindo a "impressão" de depósitos bancários) dá ao governo o poder de beber diretamente de uma fonte de receitas sempre disponível. A inflação é uma forma de taxação, pois o governo pode criar dinheiro do nada e usá-lo para desviar recursos que, de outra maneira, iriam para os indivíduos. Esses, por sua vez, são impedidos de fazer semelhante "falsificação", pois sofreriam pesadas punições. A inflação, portanto, se torna uma substituta da taxação bem aprazível para os funcionários do governo e seus grupos favorecidos, e é uma substituta tão discreta que o público em geral pode facilmente — e é encorajado a — negligenciar. O governo também pode atribuir a culpa pelo aumento de preços, que é uma conseqüência inevitável da inflação, ao público geral ou a alguns segmentos do público pelo qual tem antipatia, como, por exemplo, empresários, especuladores, estrangeiros. Apenas a improvável adoção de uma doutrina econômica sólida poderia levar o público a jogar a culpa em quem realmente é o culpado: o próprio governo.

Bancos privados, é verdade, podem inflar a oferta monetária por conta própria. Isso ocorre ao emitirem títulos de reivindicação (seja ao ouro ou ao papel-moeda do governo) em uma quantia maior do que eles poderiam redimir. Um depósito bancário é equivalente a um recibo de um armazém de dinheiro, um recibo que o banco promete redimir em qualquer momento que o cliente quiser pegar seu dinheiro nos cofres do banco. Todo o sistema bancário de "reservas fracionárias" envolve a emissão de recibos que não podem ser totalmente redimidos. Mas Mises mostrou que, por si sós, bancos privados não poderiam inflar a oferta monetária em grande escala.[22] Em primeiro lugar, cada banco veria que seus pseudo-recibos (ou recibos

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a descoberto, sem qualquer dinheiro como lastro) recém emitidos seriam rapidamente transferidos para clientes de outros bancos, que iriam exigir desse banco o resgate do valor equivalente. Portanto, quanto menor for a clientela de cada banco, menor será o escopo para a emissão de pseudo-recibos. Todos os bancos poderiam se juntar e concordar em expandir à mesma taxa, mas tal acordo seria difícil de ser realizado. Segundo, os bancos estariam limitados à quantidade de vezes que o público utilizaria depósitos bancários, ou notas bancárias, ao invés do dinheiro padrão; e terceiro, os bancos estariam limitados à confiança que o público tem neles. Caso essa confiança fosse abalada, os bancos poderiam ser arruinados por corridas bancárias que poderiam ocorrer a qualquer momento.

Ao invés de impedir a inflação simplesmente proibindo o sistema de reservas fracionárias, que é algo fraudulento, os governos uniformemente se moveram na direção oposta, e passo a passo foram removendo os controles que o livre mercado impunha à expansão do crédito bancário, ao mesmo tempo em que eles, os governos, se colocavam na posição de orquestrar a inflação. De várias maneiras, eles artificialmente estimularam a confiança do público nos bancos, encorajaram o uso de papel-moeda e de depósitos — ao invés de ouro (até que finalmente proibiram o ouro) —, e puseram todos os bancos sob um controle único — o seu controle —, de maneira que todos pudessem se expandir conjuntamente. O principal artifício para atingir esses objetivos foi o Banco Central, uma instituição que nos EUA ganhou o nome de Federal Reserve System, em 1913. A criação do Banco Central permitiu a centralização e a absorção de ouro pelos cofres do governo, aumentando enormemente a base nacional para a expansão de crédito:[23] também assegurou uma ação uniforme dos bancos, permitindo-os basear suas reservas em contas de depósito criadas junto ao Banco Central, ao invés de em ouro. Depois da criação do Banco Central, cada banco privado não mais determina sua política de acordo com sua reserva particular de ouro; todos os bancos agora estão amarrados uns aos outros e regulados pela ação do Banco Central. O Banco Central, além disso, ao proclamar que sua função é a de "emprestador de última instância" para os bancos em dificuldades, aumenta enormemente a confiança do público no sistema bancário, pois é tacitamente assumido por todos que o governo jamais iria permitir que seu próprio órgão — o Banco Central — falhasse. Um Banco Central, mesmo quando no padrão-ouro, tem poucos motivos para se preocupar com demandas por ouro por parte de seus próprios cidadãos. Mas uma possível fuga de ouro para países estrangeiros (isto é, não-clientes do Banco Central) pode, sim, trazer ansiedade.

O governo assegurou ao Federal Reserve o controle sobre os bancos da seguinte maneira: (1) garantindo ao Federal Reserve System (FRS) um monopólio sobre a emissão de notas; (2) obrigando todos os "bancos nacionais" existentes a se juntarem ao Federal Reserve System, e a manterem todas as suas reservas legais como depósitos no Federal Reserve[24]; e (3) fixando o valor da proporção dos depósitos bancários (dinheiro que pertence ao público) que os bancos deveriam manter como reservas compulsórias no FED. Com isso, a criação do FRS foi inflacionária, pois os requerimentos a respeito dessa proporção — a reserva compulsória — foram sendo reduzidos progressivamente.[25] O Reserve poderia,

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então, controlar o volume de dinheiro administrando duas coisas: o volume de reservas bancárias, e as reservas compulsórias. O Reserve pode administrar o volume de reservas bancárias (de maneiras que serão explicadas posteriormente), e o governo determina a proporção legal do compulsório, mas admissivelmente o controle da oferta monetária não é perfeito, de modo que os bancos podem manter "excesso de reservas". Normalmente, no entanto, assegurados da existência de um emprestador de última instância, e obtendo lucros ao maximizarem seus ativos e depósitos, os bancos sempre estarão emprestando o máximo que puderam, sendo limitados apenas pela proporção de reservas que devem depositar no FED como compulsório.

Embora bancos privados desregulamentados seriam mantidos estritamente sob cheque, e seriam bem menos inflacionários do que um esquema envolvendo manipulações do Banco Central,[26] a maneira mais clara de evitar a inflação é banir o sistema bancário de reserva fracionária, e impor um sistema de reserva de ouro de 100 por cento para todas as notas e depósitos. Cartéis bancários, por exemplo, não são muito prováveis sob um sistema bancário desregulamentado — ou sistema bancário "livre" — mas eles, não obstante, poderiam ocorrer. O Professor Mises, conquanto reconheça a superioridade econômica de um padrão-ouro 100 por cento (sistema monetário 100 por cento ouro) em relação ao sistema bancário livre, preferia este último porque reservas de 100 por cento iriam conceder ao governo o controle sobre o sistema bancário, e o governo poderia facilmente alterar esses requerimentos conforme suas tendências inerentemente inflacionistas.[27] Mas a exigência de uma reserva de ouro de 100 por cento não seria apenas mais um controle administrativo por parte do governo: seria o elemento essencial do credo libertário, que diz que a fraude é algo que deve ser legitimamente proibido. Todos, com exceção dos pacifistas extremos, concordam que a violência contra a pessoa e a propriedade deve ser banida, e que agências, operando sob essa lei geral, deveriam defender a pessoa e a propriedade contra ataques. Libertários, defensores do laissez-faire, acreditam que "governos" deveriam se limitar a serem agências de defesa apenas. Fraude é equivalente a furto, pois a fraude ocorre quando uma parte de um contrato, em uma troca, é deliberadamente não cumprida após a propriedade da outra parte já ter sido levada. Bancos que emitem recibos não tendo o lastro equivalente em ouro estão na verdade cometendo fraude, porque assim se torna impossível para todos os proprietários (de títulos redimíveis em ouro) reivindicarem sua propriedade legítima. Portanto, a proibição de tal prática não seria um ato de intervenção governamental no livre mercado; seria parte de uma defesa geral e legítima da propriedade contra esse tipo de ataque, que é o que um livre mercado exige. [28], [29]

Qual, então, deveria ter sido a política governamental apropriada durante os anos 1920? O que o governo deveria ter feito para evitar o crash? Sua melhor política teria sido liquidar o Federal Reserve System, e estabelecer um sistema monetário de reservas de ouro de 100 por cento; não tendo feito isso, ele deveria ter liquidado o FRS e deixado os bancos privados operarem desregulamentadamente, mas sujeitos a rápidas e rigorosas falências caso falhassem em redimir suas notas e depósitos. Não

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tendo tomado essas drásticas medidas, e dado a existência do Federal Reserve System, qual deveria ter sido sua política? O governo deveria ter exercido vigilância irrestrita, não apoiando e nem permitindo qualquer expansão inflacionária do crédito. Vimos que o FED — o Federal Reserve System — não tem o controle completo do dinheiro porque ele não pode forçar os bancos a emprestarem de acordo com suas reservas; mas tem um absoluto controle anti-inflacionário sobre o sistema bancário, pois tem o poder de reduzir as reservas bancárias à sua vontade, e dessa forma forçar os bancos a parar de inflacionar, ou mesmo contrair, se necessário. Ao diminuir o volume de reservas bancárias e/ou aumentar os compulsórios, o governo federal, tanto nos anos 1920 quanto hoje, tem o poder absoluto de impedir qualquer aumento no volume total de dinheiro e crédito. É verdade que o FRS não tem controle direto sobre alguns criadores de dinheiro, como bancos de investimentos, associações de poupança e empréstimos (S&L associations), e companhias de seguro de vida, mas qualquer expansão de crédito advindas dessas fontes poderia ser mais do que compensada por uma pressão deflacionária sobre os bancos comerciais. Isso é especialmente verdade porque os depósitos nos bancos comerciais (1) formam a base monetária para o crédito expandido por outras instituições financeiras, e (2) são a parte mais ativamente circulante da oferta monetária. Levando-se em conta o Federal Reserve System e seu poder absoluto sobre o dinheiro da nação, o governo federal, desde 1913, deve arcar com a responsabilidade total por qualquer inflação. Os bancos não podem inflar por si sós; qualquer expansão creditícia só pode ocorrer com o apoio e o consentimento do governo federal e de suas autoridades no Federal Reserve. Os bancos são fantoches virtuais do governo, e têm sido desde 1913. Qualquer culpabilidade por qualquer expansão de crédito, e sua conseqüente depressão, deve ser arcada pelo governo federal e por ele apenas. [30]

 

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Murray N. Rothbard (1926-1995) lecionou na Universidade de Nevada, Las Vegas, e serviu como vice-presidente de assuntos acadêmicos do Mises Institute.

1.      Vários neo-Keynesianos têm criado teorias dos ciclos. Entretanto, essas teorias não estão integradas à teoria econômica geral, mas, sim, aos holísticos sistemas keynesianos — sistemas esses que, na verdade, são muito parciais.

 2.      Não há, por exemplo, nenhuma alusão a tal conhecimento na conhecida

discussão feita por Haberler. Ver Gottfried Haberler, Prosperity and Depression (2ª ed., Genebra, Suíça: Liga das Nações, 1939).

 3.     F.A. Harper, Why Wages Rise (Irvington-on-Hudson, N.Y.: Foundation for

Economic Education, 1957), pp. 118-19. 

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4.      Siegfried Budge, Grundzüge der Theoretische Nationalökonomie (Jena, 1925), citado por Simon S. Kuznets em "Monetary Business Cycle Theory in Germany," Journal of Political Economy (Abril, 1930): 127-28. 

Sob condições de livre concorrência . . . o mercado . . . depende da oferta e da demanda . . . não poderia se desenvolver uma desproporcionalidade na produção de bens que pudesse enganar todo o sistema econômico . . . tal desproporcionalidade pode surgir apenas quando, em algum ponto decisivo, a estrutura de preços passa a não se basear somente no jogo da livre concorrência, de forma que alguma influência arbitraria se torna possível.

 O próprio Kuznets critica a teoria austríaca baseando-se em seu ponto de vista empiricista e contrário à relação de causa e efeito. Ele também, erroneamente, considera essa teoria "estática". 

5.      Essa é a "teoria da preferência temporal pura" da taxa de juros; ela pode ser vista em Ludwig von Mises,Human Action (New Haven, Conn.: Yale University Press, 1949); em Frank A. Fetter, Economic Principles(New York: Century, 1915), e idem, "Interest Theories Old and New," American Economic Review (Março, 1914): 68-92.

 6.      "Bancos", nesse caso, também incluem associações financeiras de poupança

e crédito, e companhias de seguro de vida, ambas as quais criam moeda via expansão de crédito para a economia.

 7.      Sobre a estrutura de produção e sua relação com o investimento e com o

crédito bancário, ver F.A. Hayek, Prices and Production (2ª ed., London: Routledge and Kegan Paul, 1935); Mises, Human Action; and Eugen von Böhm-Bawerk, "Positive Theory of Capital," em Capital and Interest (South Holland, Ill.: Libertarian Press, 1959), vol. 2.

 8.      Inflação" nesse caso é definida como um aumento na oferta de dinheiro, não

consistindo de um aumento no dinheiro metálico. 

9.      Essa teoria "austríaca" dos ciclos econômicos resolve a antiga controvérsia econômica que questiona se mudanças na quantidade de dinheiro podem ou não afetar as taxa de juros. Ela apóia a doutrina "moderna" que diz que um aumento na quantidade de dinheiro diminui as taxas de juros (se esse dinheiro entra primeiramente no mercado de crédito); por outro lado, ela apóia a visão clássica que diz que, no longo prazo, a quantidade de dinheiro não afeta as taxas de juros (ou só afetará se as preferências temporais mudarem). De fato, a fase de depressão-reajustamento é o processo de retorno às taxas de juros de livre mercado.

 

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10.  É comum ouvir afirmações que dizem que, já que as empresas não podem achar grandes oportunidades de lucro em uma depressão, a demanda por empréstimos cai e, assim, tanto a oferta monetária como a de empréstimos irão se contrair. Mas esse argumento ignora o fato de que os bancos, se quiserem, podem comprar securities (bônus, ações) para aumentar seus investimentos, compensando, dessa forma, a contração dos empréstimos. Isso sustentaria a oferta monetária. Portanto, a pressão contracionista sempre se origina dos bancos, e não dos negócios que são tomadores de empréstimos.

   11.  Bancos são "inerentemente falidos" porque emitem muito mais recibos

bancários (atualmente na forma de "depósitos" resgatáveis em dinheiro, quando demandados) do que o dinheiro em espécie que realmente possuem. Assim, eles estão sempre vulneráveis a uma corrida bancária. Essas corridas aos bancos não se assemelham a qualquer outro tipo de falência, porque elas consistem simplesmente de depositantes reivindicando a sua propriedade de direito, propriedades as quais os bancos não têm. "Falência inerente", portanto, é um aspecto essencial de qualquer sistema bancário de "reserva fracionária". Como Frank Graham disse:

 A tentativa dos bancos de efetuar as inconsistentes metas de emprestar dinheiro — ou meramente títulos de reivindicação desse dinheiro — e ainda fingir que há esse dinheiro disponível sob demanda chega a ser até mesmo mais absurda que . . . comer um bolo e imaginar que se pode contar com ele para consumo futuro . . . A alegada convertibilidade é uma desilusão que só funciona se o direito de restituição não for corretamente exercido.

 Frank D. Graham, "Partial Reserve Money and the 100% Proposal," American Economic Review (Setembro, 1936): 436. 

12.  Em um país sob o padrão-ouro (tal como os EUA durante a depressão de 1929), os economistas austríacos aceitaram a contração do crédito como sendo talvez um preço necessário a se pagar para se permanecer no ouro. Mas poucos viram quaisquer virtudes corretivas no processo de deflação em si.

13.  Alguns leitores podem perguntar: por que a contração do crédito não leva a maus investimentos, causando sobre-investimentos em bens de ordens menores e sub-investimentos em bens de ordens maiores, revertendo, desta forma, as conseqüências da expansão do crédito? A resposta vem da análise austríaca da estrutura de produção. Não existe uma escolha arbitrária entre investir em bens de ordens menores ou maiores. Qualquer aumento de investimento tem que ser feito nos bens de ordens maiores, pois será necessário alongar a estrutura de produção. Um decréscimo na quantidade de

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investimento na economia simplesmente reduz o capital de ordens maiores. Assim, a contração do crédito vai causar nãoum excesso de investimento em ordens mais baixas, mas simplesmente uma estrutura menor em relação àquela que de outra forma seria estabelecida.

 14.  Em uma economia sob o padrão-ouro, a contração do crédito é limitada pelo

tamanho total do estoque de ouro. 15.  Em anos recentes, tem havido — particularmente na literatura dos "países

subdesenvolvidos" — muitas discussões sobre "investimentos" governamentais. Entretanto, não pode haver tal tipo de investimento. "Investimento" é definido como gastos feitos não para a satisfação direta de quem os faz, mas para a de outros, principalmente consumidores. Máquinas são produzidas não para servir o empreendedor, mas para servir o consumidor final, que em troca remunera os empreendedores. Mas o governo adquire seus fundos através do confisco feito sobre indivíduos particulares; e o gasto desses fundos, por sua vez, satisfaz os desejos de funcionários do governo. Esses funcionários forçosamente alteraram a produção: ao invés de satisfazer consumidores individuais, agora deve-se satisfazer os burocratas do governo. Esse gasto, portanto, é puro consumo e não pode de nenhuma maneira ser chamado de "investimento". (É claro que, mesmo que os funcionários do governo não percebam isso, seu "consumo" é, na verdade, desperdício.)

 16.  Para mais informações sobre os problemas da reserva fracionária dos bancos,

veja adiante. 

17.  Ver W.H. Hutt, "The Significance of Price Flexibility", em Henry Hazlitt, ed., The Critics of Keynesian Economics (Princeton, N.J.: D. Van Nostrand, 1960), pp. 390-92.

 18.  Estou em dívida com Mr. Rae C. Heiple, II, por ter me apontado essa.

 19.  Poderia o governo aumentar a proporção investimento-

consumo elevando impostos de alguma maneira? Ele não poderia taxar apenas o consumo mesmo se tentasse; e pode ser demonstrado (e o Prof. Harry Gunnison Brown foi bem longe para isso) que qualquer taxação ostensiva sobre o "consumo" se torna, no mercado, um imposto sobre a renda, afetando tanto a poupança quanto o consumo. Se assumirmos que os pobres consomem uma maior proporção de suas rendas em relação aos ricos, podemos dizer que um imposto sobre os pobres usado para subsidiar os ricos irá aumentar a proporção poupança-consumo e, assim, ajudar a curar a depressão. Por outro lado, os pobres não têm necessariamente uma preferência temporal maior do que a dos ricos, e os ricos podem muito bem tratar os subsídios do governo como um lucro inesperado e que deve ser consumido. Ademais, Harold Lubell sustenta que os efeitos de umamudança na distribuição de renda sobre o consumo da sociedade seriam

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negligenciáveis, mesmo que a proporção de consumo absoluta seja maior entre os pobres. Ver Harry Gunnison Brown, "The Incidence of a General Output or a General Sales Tax", Journal of Political Economy (Abril, 1939): 254-62; Harold Lubell, "Effects of Redistribution of Income on Consumers' Expenditures", American Economic Review (Março, 1947): 157-70.

 20.  A defesa de qualquer política governamental deve se basear, em última

instância, em um sistema de princípios éticos. Não tentaremos discutir ética nesse livro. Aqueles que desejam prolongar uma depressão irão, é claro, apoiar entusiasticamente essas intervenções governamentais, assim como também irão fazê-lo aqueles cuja ambição primária é colocar mais poder nas mãos do estado.

 21.  Para o tratamento clássico da hiperinflação, ver Costantino Bresciani-

Turroni, The Economics of Inflation(London: George Allen and Unwin, 1937). 

22.  Ver Mises, Human Action, pp. 429-45, e Theory of Money and Credit (New Haven, Conn.: Yale University Press, 1953).

 23.  Quando o ouro — que até então estava nas reservas do bancos — é

transferido para um recém-criado Banco Central, este fica com apenas uma reserva fracionária, fazendo com que, dessa forma, a base total de crédito e a oferta monetária potencial sejam aumentadas. Ver C.A. Phillips, T.F. McManus, e R.W. Nelson, Banking and the Business Cycle (New York: Macmillan, 1937), pp. 24ff.

 24.   Muitos "bancos estaduais" foram persuadidos a se juntarem ao FRS através

de apelos patrióticos e da oferta de serviços gratuitos. Mesmo os bancos que não se juntaram estão efetivamente sob controle do FRS, pois, para poderem obter papel-moeda, eles precisam manter reservas em algum banco que é membro.

 25.  A média das reservas compulsórias de todos os bancos antes de 1913 foi

estimada em aproximadamente 21 por cento. Em meados de 1917, quando o FRS já estava no domínio completo, a média do compulsório era de 10 por cento. Phillips et al. estimam que o impacto inflacionário inerente à criação do FRS (apontado na nota 23) triplicou o poder expansionista do sistema bancário. Assim, os dois fatores (o impacto inerente, e a diminuição deliberada dos compulsórios) se combinaram para inflar em seis vezes o potencial monetário do sistema bancário americano, como resultado da criação do FRS. Ver Phillips et al.,Banking and the Business Cycle, pp. 23ff.

 26.  Os horrores do "wildcat banking"* nos EUA antes da Guerra Civil se originam

de dois fatores, ambos relacionados ao governo e não ao sistema bancário livre: (1) Desde o começo do sistema bancário, em 1814 e em todos os pânicos desde então, os governos estaduais permitiram que os bancos

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continuassem operando, emprestando e cobrando, etc. sem terem que redimir em espécie. Em resumo, os bancos tinham o privilégio de operar sem terem que pagar suas obrigações. (2) Proibições de filiais bancárias interestaduais (que duraram até 1995), adicionado a um sistema de transporte ruim, impediram que os bancos prontamente exigissem que outros bancos mais distantes redimissem suas notas.

 *Bancos que emitiam suas próprias notas bancárias (papel-moeda). Muitos desses bancos foram organizados mais com o propósito de emitir notas do que receber depósitos e fazer empréstimos. Muitos falharam. O nome vem do fato de eles estarem localizados em áreas de difícil acesso, habitados por gatos selvagens. 

27.  Mises, Human Action, p. 440. 

28.  Uma analogia comum diz que os bancos simplesmente contam com o fato de que as pessoas não irão todas redimir suas propriedades de uma só vez, da mesma forma que engenheiros que constroem pontes também operam sob o princípio de que nem todos na cidade irão atravessar a ponte ao mesmo tempo. Mas os casos são inteiramente diferentes. As pessoas que atravessam uma ponte estão simplesmente requisitando um serviço; elas não estão tentando tomar posse de sua propriedade legítima, como no caso dos depositantes bancários. Uma analogia mais conveniente iria defender fraudadores que nunca teriam sido apanhados se alguém não tivesse casualmente inspecionado os livros. O crime ocorre no momento em que a fraude é cometida, não quando ela é finalmente descoberta.

 29.  Talvez um sistema jurídico libertário consideraria "recibo de depósitos gerais"

(que permite que um armazém devolva qualquer bem homogêneo ao depositante) como sendo "recibo de depósitos específicos", os quais, como recibo de cargas, cautelas de penhores, recibos de docas, etc. estabeleceriam a propriedade sobre objetos específicos e assinalados. Como Jevons declarou, "Costumava-se considerar como regra de lei geral que, qualquer doação ou designação de bens que não existem, era algo fora de uso." Ver W. Stanley Jevons, Money and the Mechanism of Exchange (London: Kegan Paul, 1905), pp. 207-12. Para uma excelente discussão sobre os problemas da reserva fracionária de dinheiro, ver Amasa Walker, The Science of Wealth (3a. ed., Boston: Little, Brown, 1867), pp. 126-32, esp. pp. 139-41.

 30.  Alguns escritores criam muito barulho a respeito da ficção jurídica de que o

Federal Reserve System "pertence" aos bancos que são membros do sistema. Na prática, isso simplesmente significa que esses bancos são taxados para ajudar a pagar pelo apoio do Federal Reserve. Se os bancos privados realmente fossem "donos" do Fed, então como pode os funcionários do Fed serem indicados pelo governo, e os "proprietários" serem compelidos a "comandar" os conselhos do Federal Reserve por força de um estatuto

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governamental? Os bancos membros do Federal Reserve deveriam simplesmente ser considerados agências governamentais.

Murray N. Rothbard (1926-1995) foi um decano da Escola Austríaca e o fundador do moderno libertarianismo. Também foi o vice-presidente acadêmico do Ludwig von Mises Institute e do Center for Libertarian Studies.