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Joedy Luciana Barros Marins Bamonte Regilene Aparecida Sarzi-Ribeiro [ORGS.] INTERDISCIPLINARIDADES EM CONTEXTO

INTERDISCIPLINARIDADES EM CONTEXTO · introduÇÃO Regilene Aparecida Sarzi-Ribeiro Este livro nasceu do anseio das organizadoras, Joedy Bamonte e Regilene Sarzi, de reu - nir as

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Joedy Luciana Barros Marins BamonteRegilene Aparecida Sarzi-Ribeiro

[ORGS.]

INTERDISCIPLINARIDADES

EM CONTEXTO

INTERDISCIPLINARIDADES EM CONTEXTO

Joedy Luciana Barros Marins BamonteRegilene Aparecida Sarzi-Ribeiro

Joedy Marins

Erika WoelkeCanal 6 Editora

Profa. Dra. Janira Fainer BastosProf. Dr. José Carlos Plácido da SilvaProf. Dr. Luís Carlos Paschoarelli Prof. Dr. Marco Antônio dos Reis PereiraProf. Dra. Maria Angélica Seabra Rodrigues Martins

Organização

Imagem da capa e aberturas

Projeto Gráfi co e Diagramação

Conselho Editorial

Rua Machado de Assis, 10-35Vila América | CEP 17014-038 | Bauru, SPFone/fax (14) 3313-7968 | www.canal6.com.br

Interdisciplinaridades em contexto / Joedy Luciana Barros Marins Bamonte e Regilene Aparecida Sarzi-Ribeiro (orgs.). - - Bauru, SP: Canal 6, 2017.186 p. ; 21 cm.

ISBN 978-85-7917-515-2 1. Artes visuais. I. Bamonte, Joedy Luciana Barros Marins.

II. Sarzi-Ribeiro, Regilene Aparecida. III. Título.

CDD: 700.7

I61177

1ª Edição 2018Bauru, SP

Joedy Luciana Barros Marins BamonteRegilene Aparecida Sarzi-Ribeiro

[ORGS.]

INTERDISCIPLINARIDADES

EM CONTEXTO

PREFÁCIO

Joedy Luciana Barros Marins Bamonte

A presente publicação é feita de proposições a respeito da cidade enquanto experiência

visual. Constitui uma seleção de trabalhos apresentados durante o IX Encontro de Arte e Cultura, realizado em 2015, na cidade de Bauru, pelo Curso de Artes Visuais da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista em parceria com o SESC, sob organização minha e da Profa. Dra. Eliane Patrícia Grandini Serrano.

Ao priorizar interpretações artísticas geradas sobre e no espaço urbano, a versão do evento buscou a atuação das artes visuais em seus diversos segmentos, partindo do olhar para o que está próximo, ao alcance dos sentidos.

Ao perceber o entorno e identificar-se com o que está próximo a ele, o artista está nas ruas, nas casas, nos diálogos, nas escolas, nos meios de transporte, vendo-se nas dificul-dades e prazeres do cotidiano, em seu semelhante.

A cidade, enquanto habitat, é o centro de intensas trocas, conflitos, convívios, fluxos, um espelho da sociedade e de nós mesmos. Representa nosso universo de escolhas, pos-sibilidades de interesses e inserções. Nele, uma organicidade é elaborada, uma trama é tecida, um texto no contexto.

As páginas a seguir pretendem uma imersão poética sobre o local de permanência do artista, onde ele também é o observador, receptáculo e canal expressivo, onde o leitor é convidado a refletir, a fruir e a reconhecer-se.

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Sumário

7 INTRODUÇÃORegilene Aparecida Sarzi-Ribeiro

13 AÇÕES ARTÍSTICAS PÚBLICAS: SUPERFÍCIES EM ADERÊNCIA HÍBRIDAMariana Binato de SouzaReinilda de Fátima Berguenmayer Minuzzi

41 FOMOS PARA CROATÃ! A INSURGÊNCIA DE UM TERRORISMO POÉTICO NO CAMPUS UNIVERSITÁRIO DA UNESP-BAURURichard Augusto SilvaJosé S. LaranjeiraDorival Campos Rossi

71 A CIDADE COMO ESPAÇO POÉTICO E ALGUNS CAMINHOS PARA A HISTÓRIA DA ARTE NA CONTEMPORANEIDADERegilene A. Sarzi Ribeiro

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97 IMERSÕES DA INDÚSTRIA CULTURAL SOBRE O ENSINO DE ARTE: DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADEAna Beatriz Buoso Marcelino

119 ARTE TÊXTIL, BORDADO E SUA INSERÇÃO NO REPERTÓRIO ARTÍSTICONatalia Nascimento NogueiraMaria Antonia Benutti

141 CAMINHOS NÃO-TRADICIONAIS PARA A GRAVURA: A POÉTICA NO ENCONTRO COM A LINGUAGEM E CONSIGO MESMO. Maria Claudia de Sousa Joedy Barros Marins Bamonte

155 ARTE, NATUREZA E EXPERIMENTAÇÃOCássia Lindolm BannachEliane Patrícia Grandini Serrano

171 ATIVIDADES ARTÍSTICAS NA TERCEIRA IDADE: AÇÕES DESENVOLVIDAS PELO PROJETO DE EXTENSÃO “REJUVENESCENDO COM ARTE”Michele Rosane CardosoThaís Regina Ueno YamadaErika GushikenJeferson Denzin Barbato

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introduÇÃO

Regilene Aparecida Sarzi-Ribeiro

Este livro nasceu do anseio das organizadoras, Joedy Bamonte e Regilene Sarzi, de reu-nir as pesquisas atuais dos docentes do Departamento de Artes e Representação Gráfica da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da UNESP, campus de Bauru, São Paulo. Neste sentido, trata-se de uma publicação interdisciplinar que surgiu da ideia de mapear as pesquisas realizadas visando uma cartografia que apresentasse a diversidade de temas e resultados tal como uma rede tecida a partir da identidade e ou coletividade.

Cabe lembrar que “o Departamento de Artes e Representação Gráfica foi instituciona-lizado através da Resolução UNESP nº 87 de 16/10/00, após processo de fusão de dois an-tigos departamentos: Departamento de Representação Gráfica e Departamento de Artes. Tais departamentos funcionavam como unidades independentes, sendo o primeiro volta-do para a área técnica e o segundo para a área artística. O curso de Artes Visuais, na épo-ca intitulado Educação Artística, era lotado no Departamento de Artes e o Departamento de Representação Gráfica atendia com disciplinas da área técnica as três unidades, a Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, a Faculdade de Ciências e a Faculdade de Engenharia, do Campus Bauru” (Histórico. Departamento de Artes e Representação Gráfica – Site FAAC, UNESP, Bauru).

Atualmente, as pesquisas dos docentes do Departamento de Artes e Representação Gráfica integram cinco linhas de pesquisa, a saber: Arte – Educação; Artes Plásticas; Ensino

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da Representação Gráfica; Fundamento e Crítica das Artes e Linguagem Gráfica para Engenharia, Arquitetura e Desenho Industrial.

Em Interdisciplinaridades em contexto foram reunidos artigos de docentes, discen-tes e profissionais participantes do IX Encontro de Arte e Cultura, edição 2015. O tema do referido evento foi “Provocações Estéticas: a cidade como experiência visual” e priorizou as interpretações artísticas geradas sobre e no espaço urbano, investigando a atuação das Artes Visuais em seus diversos segmentos.

Cabe destacar que a opção pela publicação deste material é resultado do entendimen-to da organização do evento de que esta seria uma forma de prestigiar o alto nível dos artigos submetidos e apresentados na forma de comunicações orais no IX Encontro de Arte e Cultura, em 2015. Os textos escolhidos para participar desta edição foram os melhores avaliados pela comissão científica do evento.

No artigo “Ações artísticas públicas: superfícies em aderência híbrida”, Mariana Binato de Souza e Reinilda de Fátima B. Minuzzi discorrem sobre ações coletivas e colaborativas no âmbito urbano. Richard Augusto da Silva, José dos Santos Laranjeira e Dorival Campos Rossi, em “Fomos para Croatã! A insurgência de um terrorismo poético no campus univer-sitário da Unesp-Bauru”, relatam uma experiência cuja produção artística é considerada de caráter original e criativo. Em “A cidade como espaço poético e alguns caminhos para a história da arte na contemporaneidade”, Regilene Sarzi Ribeiro relaciona obras e artistas que exploram a cidade como locus de criação, para tecer novos caminhos para a história da arte.

Ana Beatriz B. Marcelino, no artigo “Imersões da indústria cultural sobre o ensino de arte: desafios na contemporaneidade” apresenta um estudo sobre as relações de consu-mo e o ensino da arte. Natalia Nascimento Nogueira e Maria Antonia Benutti, no texto “Arte têxtil, bordado e sua inserção no repertório artístico” propõem uma breve revisão histó-rica sobre a arte têxtil, da pré-história até o contemporâneo. No artigo “Caminhos não tradicionais para a gravura: a poética no encontro com a linguagem e consigo mesmo. A xilogravura como veículo para minha expressão”, Maria Claudia de Sousa e Joedy Barros Luciana Marins Bamonte apresentam um relato do processo de criação pessoal e poético a partir da xilogravura. E por fim, em “Arte, natureza e experimentação”, Cássia Lindolm

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Bannach e Eliane Patrícia Grandini Serrano relatam um processo experimental realizado com pigmentos naturais, resultado de uma Iniciação Científica.

No artigo Atividades Artísticas na terceira idade: ações desenvolvidas pelo projeto de extensão “Rejuvenescendo com Arte”, Michele Rosane Cardoso, Thaís Regina Ueno Yamada, Erika Gushiken e Jeferson Denzin Barbato apresentam um relato do trabalho desenvolvido nos últimos anos pelo Projeto de Extensão da UNESP em Bauru, intitulado “Rejuvenescendo com Arte”, que aplica arte como forma de promoção de qualidade de vida e socialização na terceira idade, atuando diretamente com a comunidade.

Os artigos foram reunidos em torno ou não do tema do evento “Provocações Estéticas: a cidade como experiência visual”. A cidade, por constituir nosso habitat, centro de inten-sas trocas, conflitos, convívios, fluxos, espelho da sociedade e de nós mesmos, representa nosso universo de escolhas e possibilidades de percepções e inserções.

E foi pensando nesse contexto, que foram propostas reflexões a respeito da atuação do artista como receptáculo e canal expressivo no processo de leitura de seu local de permanência. Para isso, a edição do evento para 2015 procurou espaços que abrigassem obras de artistas, pesquisadores e estudantes, fóruns que nos levassem a refletir sobre a área e sobre a sua presença, uma provocação ao pensar e à fruição, procurando-nos, reconhecendo-nos.

Em suma, o livro “Desenhos da Pesquisa & Interdisciplinaridade em Contexto” propõe um mapeamento de encontros possíveis entre áreas e contextos das pesquisas em Artes e Representação Gráfica.

Boa Leitura!

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AÇÕES ARTÍSTICAS PÚBLICAS: SUPERFÍCIES EM

ADERÊNCIA HÍBRIDAMariana Binato de Souza1

Reinilda de Fátima Berguenmayer Minuzzi2

1. Mestranda, Programa de Pós Graduação em Artes Visuais – PPGART - UFSM, [email protected]

2. Professora Doutora, Departamento de Artes Visuais, DAV, e Programa de Pós Graduação em Artes Visuais – PPGART - UFSM, [email protected]

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Resumo

O presente artigo aborda uma produ-ção poética em artes visuais, no campo da arte e da tecnologia, que se constitui como uma proposta de intervenções em superfícies urbanas, tendo como temática o território e elementos de cidades interio-ranas. Permeando processos analógicos e digitais, o estudo, neste sentido, busca aproximar a arte pública e urbana das co-munidades do interior, locais que perma-necem, em muitos momentos, à margem das manifestações artísticas contemporâ-neas, usualmente concentradas nos maio-res centros urbanos. Desta maneira, tais ações artísticas públicas, propostas para serem partilhadas de maneira coletiva e colaborativa com o grupo envolvido, no que tange a sua constituição como produto final, podem sofrer interferência dos parti-cipantes, possibilitando que os processos experienciados instiguem novos modos de subjetivação do indivíduo em sua relação com a arte no contexto atual. Para proble-matizar as questões conceituais e teóricas implícitas, dialoga-se com autores e teóri-cos do campo, bem como relacionam-se produções contemporâneas consoantes com a investigação.

Palavras-chave: Ação artística; arte pú-blica; hibridação; contexto urbano; arte e tecnologia.

Abstract

This article discusses a poetic production in visual arts, in the field of art and technology; it is a proposal of interventions in urban surfaces, with the thematic territory and inner cities elements. Permeating analog and digital processes, the study in this regard, seeks to approach the public and urban art of rural communities, places that remain, in many instances, on the sidelines of contemporary art forms, usually concentrated in big urban centers. So, such public artistic actions, proposals to be shared collectively and collaboratively with the group involved, with respect to its establishment as an end product, may suffer interference from participants, allowing that the experienced processes instigate new modes of individual subjectivity in its relation to art in the current context. To discuss the conceptual and theoretical issues implied, it dialogues with authors and theoretical field and

Mariana Binato de Souza e Reinilda de Fátima Ber-guenmayer Minuzzi

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zzirelate to contemporary productions

consonant with the investigation.Keywords: Artistic action; public art;

hybridization; urban context; art and technology.

Introdução

Muitos comentam que uma pesquisa em artes visuais precisa partir do pesquisador, de seus interesses, de suas experiências e principalmente de seus questionamentos, mesmo esta sendo uma tarefa árdua, pois faz refletir sobre o que nos incomoda e nos desestabiliza. Dos anseios em viver em uma comunidade pequena, no caso a cidade de São Pedro do Sul, Rio Grande do Sul, com muito potencial a ser explorado dentro do contexto artístico, urbano e tecnológico, nasceu esta pesquisa.

Assim, o fato de querer aproximar a arte contemporânea à cidades do interior, como onde cresci, através de ações artís-ticas no próprio local, passou a ter mais significado e pude perceber que seria uma forma de justificar minhas escolhas e traje-tória a quem ainda poderia não ter enten-dido ou conhecido. As direções pessoais e os caminhos que trilhamos reverberam

diretamente em nossa vida acadêmica e profissional, desta maneira quando cria-mos um elo entre ambas podemos ter uma pesquisa de grande potencial. Partindo do que nos afeta, e quando os temas de pes-quisa acontecem a partir de experiências de vida ou do nosso conhecimento parti-cular, a possibilidade de que sejam desen-volvidos bons projetos aumenta, tendo em vista a amplitude do nosso conhecimen-to em relação a este determinado tema. Temos o “conhecimento de causa” e este fato pode trazer à pesquisa um cunho mui-to mais significativo.

Colocar-se no centro da pesquisa sig-nifica revisitar nossas escolhas, a maneira como nos relacionamos com nosso entor-no, como nos afetamos com nossas recor-dações, como nos construímos como sujei-tos no contexto social, cultural, familiar e como construímos nossa história pessoal. Estes fatores constituem uma base para o processo de pesquisa e dependem exclu-sivamente, em um primeiro momento, de nós mesmos, nós somos os responsáveis por construirmos e elencarmos temáticas e conceitos que partem de anseios e ques-tionamentos pessoais que podem ser apro-fundados e estudados a partir da pesquisa autobiográfica.

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Uma abordagem autobiográfica permi-te que o autor construa-se como pesquisa-dor e teórico do que escreve e estuda, seu pensamento e sua escrita são legítimos e consistentes, tendo assim o poder de se constituir como fonte de pesquisa. O ato de questionar-se e discutir o projeto a todo instante colabora de maneira muito evo-lutiva para o processo de pesquisa, refor-mula os posicionamentos e as respostas do problema de maneira incessante sem haver uma estagnação, quando as respos-tas são encontradas surgem novas pergun-tas e assim sucessivamente. As propostas artísticas atuais que se estabelecem no campo da tecnologia, estabelecem uma parceria de criação com as mídias digi-tais e favorecem, de maneira mútua, as partes envolvidas, tecnologia, arte e es-pectadores/colaboradores. O processo de hibridação entre estes campos acontece naturalmente visto que a tecnologia, com o passar dos anos, revelou-se de maneira constante no cotidiano das pessoas, e as-sim no contexto artístico, arte e vida conti-nuam caminhando lado a lado no contexto contemporâneo.

Neste sentido, este estudo busca ex-plorar formas colaborativas de inserção da arte e da tecnologia no contexto urbano de

São Pedro do Sul, Rio Grande do Sul, cida-de emancipada em 22 de março de 1926 que conta com uma população média de 17 mil habitantes, sendo boa parte mora-dora da zona rural. Esta cidade, como mui-tas outras comunidades pequenas, possui ícones e peculiaridades características que os habitantes já estão acostumados, pois muitos vivem nela desde que nasceram, assim como seus pais, avós. Intervenções urbanas de autoria colaborativa são o foco do projeto, que busca criar dispositivos à população como uma maneira de fazê-la experienciar suas ações dentro do contexto urbano e em relação ao desenvolvimento cultural local. Permitir rever os locais coti-dianos e ressignificar os conceitos e olhares acerca do que já faz parte da vida da popu-lação local pode revelar lacunas propícias à inserção e ao deslocamento da arte e da tecnologia.

Os símbolos e características da cida-de, como a praça central que agrupa o co-mércio local em sua volta e as festividades nos finais de semana, o tradicional Clube do Comércio que reúne a sociedade para reuniões e bailes desde sua fundação em meados da década de 30, as características festas de igrejas no interior aos finais de se-mana, os conhecidos populares, mendigos

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zzique carregam consigo diferentes histórias

no imaginário das pessoas, e talvez a prin-cipal característica de pequenas cidades, a receptividade e o fato de a maioria dos ha-bitantes se conhecerem e possuírem algum tipo de parentesco distante ou amizade de longa data são fatores que reforçam a rela-ção com os interesses locais, havendo, em muitos casos, um engajamento da popula-ção para o desenvolvimento de projetos e de ações que beneficiem a cidade.

DesenvolvimentoSUPERFÍCIES URBANAS, INTERAÇÃO E COLABORAÇÃO

Ao iniciar um levantamento no contex-to da cidade de São Pedro do Sul sobre as demandas culturais que envolviam a co-munidade e entender em que brechas as propostas desta pesquisa poderiam ser relevantes à cidade e à população, percebi que o envolvimento da população, aliada aos órgãos públicos em busca de atrativos culturais à cidade, estava estagnado. A ci-dade, com o passar dos anos, perdeu mui-tos projetos que eram realizados tanto por entidades sociais quanto pelos órgãos pú-bicos, muitas vezes pela falta de interesse

da comunidade que deixou de valorizar os acontecimentos locais.

Com o intuito de envolver a comunidade são-pedrense de uma maneira mais ativa no contexto urbano, o projeto buscou in-tensificar o conceito de colaboração com base no que já havia sido trabalhado ante-riormente em intervenções que foram ori-ginadas a partir da interação da população via redes sociais. Busquei identificar algum tipo de temática que chamasse a atenção dos moradores da cidade, bem como que pudesse estabelecer uma ligação com as intervenções já trabalhadas e geradas com base em relatos e no retorno das pessoas frente às ações do projeto. A partir de algu-mas análises de campo frente às mudanças históricas da cidade, foi solicitado em um grupo da rede social Facebook, administra-do por uma professora local, que a popu-lação divulgasse fotografias antigas da ci-dade a fim de que pudesse ser resgatada a história arquitetônica de São Pedro do Sul e compará-las aos espaços atuais.

Muitas pessoas da comunidade cola-boraram com esta busca de fotografias antigas e, consequentemente, buscaram resgatar as antigas histórias da cidade que eram vinculadas aos lugares frequentados no passado. Estes locais contam a história

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da cidade de maneira muito rica, sem deixar de lado a atuação dos moradores e da socie-dade da época, hoje já adormecida pelo tempo. Mesmo havendo poucos prédios históricos e nenhum tipo de incentivo à sua restauração e manutenção, a cidade ainda abriga muitas histórias através de sua arquitetura rica em detalhes de fachada preservados com o passar dos anos. Em contrapartida, diversos locais centrais estão sendo tomados por construções novas que ignoram completamente as referências arquitetônicas históricas, dando espaço somente a edificações aglomeradas com foco na quantidade, deixando de lado a quali-dade e o valor estético. Muitos tapumes tomaram lugar na cidade de maneira invasiva, isolando as novas construções da sociedade, parecendo assim que emergem nos espaços em um curto período de tempo.

Figura 1. Registros fotográficos da arquitetura da cidade de São Pedro do Sul – RS que serviram de referências para a criação dos estêncis.

Fonte: Acervo da autora.

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zziEstas relações entre os lugares antigos

e históricos da cidade com as novas cons-truções serviram de base para a criação de uma proposta de oficina denominada ResgateStencil, que teve por objetivo reu-nir pessoas da comunidade interessadas em interpretar estas antigas edificações de maneira conjunta a fim de que pudessem ser geradas produções imagéticas em es-têncil (molde vazado para desenvolvimen-to/reprodução de configurações visuais específicas) que seriam posteriormente aplicadas a tapumes e tecidos e, assim, inseridos no contexto urbano e expositivo da cidade de maneira simultânea. O pro-cesso de colaboração, que é um dos focos do trabalho, necessita do papel da popula-ção como muito mais do que espectador, mas como um membro atuante tanto no processo de criação quanto na busca de referenciais, pois a investigação propõe e necessita partir das menções e alusões do colaborador atuante que também é res-ponsável pelo andamento do projeto.

[...] a relação entre o espectador e a obra se modifica. O espectador – que já então não é apenas o espectador imó-vel – é chamado a participar ativamente da obra, que não se esgota, que não se

entrega totalmente, no mero ato contem-plativo: a obra precisa dele para se reve-lar em toda a sua extensão. Mas aquela estrutura móvel possui uma ordem in-terna, exigências, e por isso não bastará o simples movimento mecânico da mão para revelá-la. Ela exige do espectador uma participação integral, uma vontade de conhecimento e apreensão (GULLAR apud ARANTES, 2005, p. 36).

Desta maneira, usou-se a Fanpage do projeto #SPSArteColaborativa e os grupos vinculados à cidade para convidar a comu-nidade a participar de uma oficina gratui-ta de estêncil. Os interessados deveriam inscrever-se via e-mail para participarem da ação coletiva, sem nenhum tipo de de-finição de idade ou grau de escolaridade, pois o projeto estava aberto a receber uma diversidade de pessoas que pudesse cola-borar com a pesquisa. Ao convidar a po-pulação para participar, foi explicado que a oficina resultaria em uma exposição na Casa de Cultura e na praça central da cida-de durante a semana de aniversário de 89 anos do município, de 22 a 31 de março de 2015. O intuito da oficina foi incentivar as pessoas a pensarem em São Pedro do Sul como um espaço suscetível a mudanças

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com base no que a própria comunidade de-seja, com o foco que a cidade, além de ser habitada pelas pessoas, é de responsabili-dade das mesmas e esta responsabilidade está diretamente vinculada às ações co-letivas que existem ou não no espaço que habitam.

Uma sociedade que deseja cultura, es-paços destinados ao lazer, à interação so-cial, deve também estimular seu entorno a fim de que possa cobrar e estabelecer rela-ções de troca com seu meio, permutando ideias com ações.

[...] atuam na fronteira da arte como rein-venção do cotidiano, criam zonas dialógi-cas de atuação temporárias, sabem que por meio deste espaço mágico definido como Arte a realidade passa a ser mo-delizada, formatando o que Laddaga pontua como um novo paradigma para processos de arte colaborativa, a de instaurarem novas “ecologias Culturais” (KINCELER, SILVA, PEDEMONTE, 2009, p. 3).

Ao fim do período prévio de inscrições, oito pessoas haviam mostrado interesse em participar do projeto, desta maneira mantive contato com todos para que se

sentissem motivados e passei a fornecer materiais como vídeos e catálogos do pro-jeto Jardim Miriam Arte Clube (JAMAC), co-ordenado pela artista Monica Nador, para que tivessem um primeiro contato com os processos de um projeto de autoria com-partilhada, como o denomina Monica.

Durante o processo de adequação do projeto à realidade do local, foram feitas parcerias com determinadas entidades e órgãos públicos do município a fim de que a oficina pudesse acontecer também com o envolvimento de diferentes áreas. O Lions Clube, entidade assistencialista da cidade, emprestou sua sede para o de-senvolvimento da oficina, a Secretaria de Educação, agora responsável também pela Casa de Cultura, cedeu o espaço expositi-vo da mesma e a empresa de fornecimento de água, Corsan, autorizou o uso do espa-ço da caixa d’água central da cidade como ambiente expositivo. O fato de criar estes laços com empresas, entidades e órgãos da cidade propicia também um outro tipo de olhar e análise frente às ações artísticas e aos projetos desenvolvidos na cidade e valorizar estas colaborações, pois todos foram devidamente nomeados e identifi-cados nos materiais de divulgação do pro-jeto como apoiadores, igualmente reforça

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incentivo que estes órgãos dão à cultura local e aos projetos desenvolvidos com a população. Segundo Rancière (2002 apud LADDAGA, 2012, p. 36), “existe uma experi-ência sensorial específica – a estética – de que reside a promessa de um novo mundo da Arte e uma nova vida para os indivíduos e as comunidades” e as entidades apoiado-ras também têm um grande papel no que a arte pode proporcionar às comunidades.

Na data e local marcados para o início da oficina, denominada ResgateStencil, algumas das pessoas que mostraram in-teresse inicial se fizeram presentes, totali-zando 5 participantes e, mesmo não sendo um número expressivo em relação à popu-lação da cidade que teve acesso aos convi-tes, o grupo formado mostrou-se muito in-teressado e principalmente engajado com a proposta. Um dos colaboradores trouxe referências que faziam parte da história da sua família na cidade o que foi de grande valia, visto que este era um dos focos da proposta, partir das referências dos cola-boradores mesmo existindo uma linha con-dutora que delineasse o projeto.

O perfil dos colaboradores foi muito diferente, alguns já possuíam graduação, outros ainda eram acadêmicos, outros

profissionais autônomos e também estu-dantes do ensino médio. D.S. é dentista, 31 anos, veio até a oficina por incentivo do namorado L. P., arquiteto de 30 anos, V. S. é cabeleireiro, tem 26 anos e cursou cinco semestres de Design, K. M., 29 anos, é aca-dêmica do curso de arquitetura da Ulbra na cidade de Santa Maria e trouxe sua filha K. M. de 10 anos à oficina para interagir com a própria mãe e com o projeto e por fim E. B., 20 anos estudante do ensino médio e que quer cursar Artes Visuais. Todos os en-volvidos no grupo possuem algum tipo de interesse em fazer algo pela cidade, envol-vendo seus princípios e vivências.

“Faz isso primeiro em entornos locais, onde há indivíduos capazes de dividir e conectar atores e processos cruciais, onde oferece a esses grupos de indivídu-os a possibilidade de separarem e reuni-rem algumas de suas experiências, mas também de se identificarem enquanto partes específicas de uma comunidade mais ampla. Que facilita a ativação de certa interação criativa, que oferece con-textos em que os participantes podem estabelecer “acordos gerais sobre pro-cedimentos e resultados”, em que alguns podem se colocar na posição de “árbitros

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que estabelecem limites às atuações à habilidade individual, ao conhecimento”, em que po-dem se propor formas de preparação disciplinada e se acumular as experiências em histórias. É assim que, na opinião de Charles Tilly, se produz a formação de identidades. (LADDAGA, 2012, p. 35).

Passamos a perceber que, por mais que existam diferenças de ideais, classes sociais e vivências entre os participantes, é na mistura de todas estas particularidades que se criam situações ricas para o projeto e para a oficina, pois as trocas entre todos os colaboradores tornam-se ainda mais intensas e consistentes.

Figura 2. Colaboradores da pesquisa no primeiro encontro Fonte: Fotografias da autora, 2015.

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zziDurante o primeiro encontro, situei os

colaboradores acerca de minha pesquisa de mestrado e mostrei os objetivos que norteavam meus interesses em realizá-la em São Pedro do Sul, percebendo, neste momento, que se sentiram valorizados por estarem contribuindo de maneira ativa à pesquisa e dando um retorno às suas pró-prias inquietudes e às carências da cidade como um todo. Como já estavam familia-rizados com a proposta, pois já havia con-versado com os colaboradores individual-mente através das redes sociais, iniciamos um processo de reconhecimento de ima-gens, seleção, análise do material que seria posteriormente trabalhado, adaptando as ideias e os já pensados projetos.

Assim, iniciamos a desconstrução visual dos registros imagéticos acerca da arquite-tura da cidade fazendo releituras de facha-das, unindo diferentes detalhes das ima-gens, interpretando a partir das referências que haviam sido compiladas com base em imagens fornecidas ao grupo da cidade anteriormente citado. Eduardo trouxe re-ferências da casa onde os antigos familia-res moraram que era característica por ter três grandes figueiras plantadas em sua frente, assim incorporou estas imagens ao seu desenho bastante detalhado. Alguns, já

mais familiarizados com o desenho, outros ainda buscando uma aproximação e de-senvoltura. D. S., que possui formação em odontologia, teve um pouco de dificuldade em desconstruir e interpretar as fotografias que serviram de referência, porém depois de pouco tempo já estava familiarizada aos materiais e ao processo de ressignificar o olhar frente aos ângulos tão estáticos da arquitetura; Leonardo, arquiteto, passou a desenhar os detalhes despercebidos que fazem parte das fotografias das igrejas da cidade e assim reorganizá-los a fim de montar um painel bem geométrico; Karla, inicialmente ainda muito presa aos dese-nhos da arquitetura das fotografias de uma maneira mais realista, sem conseguir per-ceber os detalhes e as formas que pode-riam ser criadas.

Os desenhos dos colaboradores deve-riam adequar-se às técnicas do estêncil, pois seriam assim aplicados nos materiais escolhidos para as intervenções, ou seja, quatro tecidos medindo cada um 2,4m X 3,5m que seriam colocados no espaço cen-tral da Praça Crescêncio Pereira, afixados na estrutura da Caixa D’água e em tapumes de construção em madeira medindo 1,1m X 2,2m para serem colocados no espaço ex-positivo interno da Casa de Cultura.

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Durante a primeira noite de encontro pude perceber o interesse dos colaboradores com o projeto e entender que o engajamento de todos seria muito responsável e satisfatório para o período das oficinas. Após iniciarem os projetos de como ficariam os tapumes e a adaptação dos desenhos às dimensões dos materiais, os colaboradores mencionaram que já queriam “colocar a mão na massa” e partiram para a pintura do fundo dos tapumes de madeira, pro-cesso que facilitou muito o andamento do projeto no decorrer dos próximos dias. O ato de iniciar o processo de pintura e de manuseio de tintas e cores deixou clara a empolgação para darem continuidade ao trabalho no dia seguinte. O grupo envolveu-se de uma maneira cole-tiva durante os dias de oficina, havendo trocas sobre diversos assuntos, bem como conver-sas muito proveitosas e, principalmente, uma relação de colaboração para além do projeto, muitas vezes foram mencionadas ideias para dar continuidade às produções, conversas em relação ao uso dos espaços expositivos da cidade e da própria cidade como ambiente de intervenção, seja ela musical, teatral e até mesmo de convivência coletiva.

Figura 3. Aplicação dos estêncis criados pelos

colaboradores a partir das imagens arquitetônicas de São

Pedro do Sul – RS.Fonte: Fotografias da autora, 2015.

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zziPude perceber que por mais que o grupo

formado tivesse muitas diferenças possuía vários princípios e ideais semelhantes, fato que os fez estar ali unidos. Foram seis ho-ras de trabalho no primeiro dia, que rende-ram tapumes pintados, desenhos iniciados e também moldes vazados para estêncil já recortados, o que incentivou ainda mais os colaboradores, pois puderam começar a ver seus trabalhos tomando forma. No segundo dia de oficina, mesmo sem os colaboradores poderem ter comparecido na parte da tarde, construí um painel em tecido com alguns dos moldes de estêncil já criados por mim e pelos colaboradores e, durante a noite, o grupo trabalhou mais uma vez de maneira muito intensa e comprometida. A maneira de adaptar o desenho ao estêncil foi uma das maiores dificuldades do grupo, porém, com um pouco de tempo, conseguiram to-dos adequarem seus projetos.

L. P. e D. S. fizeram um painel em conjun-to que foi projetado por ambos a partir dos detalhes das igrejas da cidade. Eduardo op-tou por usar alguns detalhes geométricos da fachada do tradicional Hotel Cordoni, agre-gando dois personagens que compunham outra fotografia de referência e as figueiras que fazem parte da história da sua família. Vinícius optou por trabalhar o fundo de seu

tapume com bastante cor e criar um estên-cil grande fazendo referência ao portão da Casa de Cultura. Karla optou por estrutu-rar seu projeto baseando-se na fachada da Farmácia São Pedro, que conserva até os dias de hoje a mesma arquitetura.

Durante o segundo dia de trabalho na oficina, buscamos tentar resolver o pro-blema de expor os tecidos na Praça da ci-dade a fim de que pudesse contemplar os objetivos do projeto sem deixar de lado a preocupação com a integridade das pro-duções resultantes, pois havia algumas preocupações coletivas a respeito também da segurança da estrutura da Caixa D’água cedida à mostra. Na segunda noite alguns painéis já estavam finalizados, o processo mais intenso foi o da confecção dos moldes vazados que detém certo cuidado e tem-po para criação. No terceiro dia de oficina, Karla pode se fazer presente durante a tar-de e construiu suas produções em estêncil finalizando seu painel. Durante este tempo optei por dar atenção aos painéis de tecido que ocupavam quase todo o local onde es-tava acontecendo a oficina, assim deveria aproveitar o momento em que havia me-nos pessoas no local.

Em um dos tecidos busquei criar uma composição que integrasse todos os

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moldes criados pelo grupo, onde os desenhos elaborados, de certa maneira conseguiram dialogar uns com os outros favorecendo muito a construção do painel. Em outro tecido foi realizado um fundo a partir de tintas coloridas e sob ele a inscrição #SPSArteColaborativa, identificando o projeto a fim de que a população pudesse dialogar com o mesmo em suas ações presentes e futuras.

Durante a noite os colaboradores tiveram tempo para finalizar os seus painéis. Leonardo e Daiane estavam confeccionando o segundo com uma interpretação do olhar da está-tua de São Pedro Apóstolo, que fica em cima da igreja, para a cidade. Eduardo finalizou o fundo do seu painel para inserir os três moldes que estavam faltando. Vinicius concluiu o estêncil em formato grande e o aplicou ao seu painel que já estava com o fundo pronto. Os colaboradores ficaram muito satisfeitos com os tecidos, principalmente com o criado a partir dos modelos em estêncil de cada um. Nesta terceira noite de encontro, todos pu-deram finalizar seus trabalhos nos tapumes em madeira e ver os resultados do conjunto como um todo. Na tarde do dia seguinte eu e Karla construímos o último painel em tecido com as produções em estêncil que ela havia criado.

Analisando os dias de criação com o grupo, pude perceber que todos, sem nenhum tipo de exceção, interessaram-se pelo projeto de maneira muito comprometida, isto se deu principalmente em função da carência que todos relataram sentir sobre a displicência com a cultura dentro do município, bem como a falta de locais a serem frequentados para ati-vidades diferenciadas. Por mais que os dias de oficina tenham sido poucos, todos conse-guiram encontrar seu papel no grupo e principalmente trabalhar colaborativamente, ade-quando seus projetos pessoais aos objetivos da oficina, relacionando a arquitetura antiga à atual, reformulando conceitos acerca da arte e principalmente em relação aos modos expositivos da arte e da sua inserção no contexto urbano.

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zziDurante o domingo que sucedeu a se-

mana da oficina, no dia 22 de março de 2015, a cidade completou 89 anos e muitas atividades haviam sido programadas para comemorar o aniversário de Emancipação Político Administrativa. A Praça Crescêncio Pereira foi o palco da maioria das festivida-des. Neste dia, grande parte da população deslocou-se ao centro da cidade para pres-tigiar as atividades comemorativas. Como já havia sido planejado, a parte inferior da Caixa D’água serviu de espaço para a inter-venção de parte dos trabalhos realizados na oficina ResgateStencil. Quatro tecidos medindo 2,4m X 3,5m foram fixados na parte superior dos vãos entre as colunas que sustentam a caixa D’água, não impe-dindo a passagem dos pedestres. Dentro do espaço expositivo da Casa de Cultura foi montado o restante da exposição com os tapumes criados pelo grupo e um vídeo com as imagens que serviram de referência para o projeto mostrando a história da ci-dade através de fotografias.

Figura 4. Painéis finalizados pelos colaboradores com as suas criações e interpretações a partir da arquitetura da cidade de São Pedro do Sul – RS pintados a partir da técnica do Estêncil.Fonte: Fotografias da autora, 2015. 25

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Figura 5. Exposição dos painéis em tecido

criados com o grupo de colaboradores envolvidos

na pesquisa no espaço central da Praça Crescêncio

Pereira em São Pedro do Sul – RS durante os sete

dias de comemorações de aniversário do município.

Fonte: Fotografias da autora, 2015.

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zziA intervenção na Praça Crescêncio

Pereira e a exposição na Casa de Cultura fi-caram montadas de 22 a 31 de março, aber-tas à visita da população, sendo que nos dois espaços foi fixado um texto com uma explicação acerca do projeto, mostrando a ação dos colaboradores e as referências que nortearam a produção dos trabalhos.

Durante o dia 22, pude ter uma aproxi-mação maior com a população que estava no centro da cidade prestigiando as come-morações de aniversário do município e inevitavelmente tiveram contato com os trabalhos expostos na Praça, muitas pes-soas pararam para ler o texto que discor-ria sobre o projeto, outras pessoas vieram me questionar acerca do que se tratavam os tecidos pendurados. Durante o perío-do da tarde foram entregues cerca de 500 convites em formato de cartão de visita para a população, convidando-os para ver a intervenção no espaço central da Praça Crescêncio Pereira e no espaço da Casa de Cultura.

COLABORAR E INTERAGIR, UM PROCESSO CONTÍNUO

O principal conceito que engloba esta produção poética em artes visuais acontece

em torno da autoria colaborativa, ou seja, o fato do espectador além de interator do projeto também ter a possibilidade de par-ticipar ativamente da proposta sendo um dos autores do trabalho que é coordenado pelo artista propositor. O tipo de colabo-ração que acontece nesta proposta tem o intuito de propiciar aos envolvidos uma re-lação de troca tanto com o trabalho quanto com os próprios colaboradores, construin-do assim relações subjetivas a partir destas vivências que serão elementos fundamen-tais para o processo de construção da iden-tidade de todos a partir do proposto.

O projeto que é construído a partir da colaboração tem o intuito de utilizar-se das referências e vivências dos participantes envolvidos, muito mais do que um grupo de pessoas diferentes que trabalham jun-tas, tem-se um grupo que se envolve com o trabalho, com a troca de ideias, concei-tos, conversas, trazendo ao projeto uma identidade própria baseada nas diversida-des que o compõe. São distintas pesquisas autobiográficas que constroem um estudo baseado nestas diversas biografias, unidas aos objetivos e direcionamentos da pes-quisa. Construir uma proposta de autoria colaborativa que possa englobar diferen-tes perfis, bem como inúmeras referências

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de identidades, pode ser desafiador, mas também propicia ao projeto uma gama de diferentes recursos e fontes para serem trabalhados.

O fato de inserir um trabalho colaborati-vo dentro de um contexto urbano, que já é parte das referências dos colaboradores, é uma forma de realocar estes referenciais a partir da visão deste grupo que, em conjun-to, estudou, transformou, recriou e inter-pretou seu olhar frente às paisagens vistas diariamente.

A artista Mônica Nador, depois de mui-tos anos tentando encontrar-se dentro de seus próprios projetos e experiências, bus-cou explorar uma maneira de aliar suas pesquisas. O mural com 20 metros, deno-minado “Parede para Nelson Leiner”, foi o início do projeto idealizado pela artista posteriormente, “Paredes Pinturas”, que tinha como principal objetivo criar pinturas murais artísticas em muros dentro do am-biente urbano. Seu projeto ocupou as ruas e passou a fazer parte da arquitetura da ci-dade de uma maneira ainda mais presente. O projeto que Mônica construiu possibili-tou que seu trabalho se expandisse de ma-neira mais abrangente dentro do contexto urbano contemporâneo. A partir da pin-tura de paredes de ambientes comerciais

e residenciais, em espaços periféricos da cidade de São Paulo, estabeleceu-se uma aproximação com o que posteriormente embasou o trabalho da artista, o cotidiano das pessoas e as suas referências culturais, imagéticas que constroem o que se conhe-ce como cultura popular e cotidiana.

Figura 6. Projeto Paredes Pinturas coordenado pela artista Mônica Nador, casa pintada no Largo do

Oratório, Morro da Providência.Fonte: https://atelie1m2.wordpress.com/2012/07/13/mm/

Este processo de aproximação com a vida de quem habita a cidade revela mui-to sobre como se consolidam as relações entre o sujeito e o ambiente em que ele se constrói. A partir do momento em que o am-biente que este indivíduo vive é modificado,

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zzimodificam-se também as suas relações,

suas construções subjetivas, que são cons-truídas a partir da relação do sujeito com o ambiente que ele habita, reverberam direta-mente na maneira como o sujeito se confi-gura, a arte passa a ter o papel de transfor-mar o outro a partir da sua presença.

O processo de autoria compartilhada que a artista propõe, aqui chamado de au-toria colaborativa, retorna à comunidade de maneira que a arte aproxima-se da vida das pessoas, mesmo que inicialmente de maneira muito discreta. Estabelece-se uma relação que carrega o valor pessoal de cada sujeito que participa da produção, tornan-do-se responsável pelo trabalho, agregan-do para si os valores que a arte e o instituto constroem diariamente. A imersão em um ambiente artístico promove a ascensão de cultura e de conhecimento que reverberam diretamente na vida de cada um.

[...] Afinal, tudo que aquelas pessoas não precisavam era de mais um ‘estrangeiro’ mostrando-lhes a sua sabedoria e talen-to em contraponto com a miséria e igno-rância locais. Meu objetivo era acolher, incluir os ‘nativos’, incluir-me entre eles, ser um igual, e não reiterar o abismo existente entre nós. O próximo passo foi,

portanto, realizar uma oficina de dese-nho em que pedi aos participantes que representassem sua cultura local. A pin-tura mural em Nilo Peçanha foi executa-da num espaço onde um grupo folclórico de percussão – o Zambiapunga – ensaia-va. Pedi-lhes que desenhassem os obje-tos e adereços representativos da ativi-dade, fizemos uma votação e pintamos máscaras e tambores em nossa parede. (NADOR, p.62-6, apud NADOR; RIVITTI; RJEILLE, 2012, p. 49).

Este transitar de seu trabalho por dife-rentes vias de acesso à arte propiciou uma maior abrangência do Projeto Paredes Pinturas, assim o reconhecimento das ações artísticas nos diferentes ambientes ocorreu de maneira global, tanto críticos, curadores e frequentadores de ambientes de exposição quanto os moradores dos locais onde o projeto inseriu-se no contex-to urbano cotidiano constroem conheci-mentos e dialogam com o que veem. Esta maneira de inserção da comunidade no processo de construção artística de ma-neira colaborativa, que parte dos seus re-ferenciais, das imagens que emergem do seu contexto e da sua história, permite um processo de olhar novamente o papel do

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cidadão dentro da sua comunidade, do ver-dadeiro ato de entender seu papel sobre a cidade, sua evolução, seu diferencial cultu-ral, desta maneira todos se sentem respon-sáveis pela maneira como veem, interagem e refletem sua função dentro de uma cultu-ra que é construída por todos.

Existem muitos outros grupos coletivos de ações artísticas que envolvem a cidade e os moradores como referências para os projetos e para os trabalhos desenvolvidos nestes contextos. Percebe-se que desta maneira o processo de aceitação das co-munidades frente ao novo acontece de uma maneira mais comprometida, pois também são responsáveis pelos resultados daquela proposta, o trabalho parte de si, para si e para os outros. A inserção destes coletivos no espaço urbano permite aos espectado-res que tem a oportunidade de se relacio-narem com as intervenções, uma maneira diferente de perceber a cidade e os locais aos quais já estão familiarizados, assim a partir da inserção da arte no contexto ur-bano são convidados a refletir sobre seus trajetos, sobre os locais que as interven-ções ocupam, ou a maneira que buscam se relacionar com seu entorno.

O Projeto #SPSArteColaborativa esta-belece-se a partir de uma relação muito

estreita com as referências que os colabo-radores trazem, pois todos fazem parte de um mesmo contexto, nasceram e viveram na mesma cidade que é o ponto de partida da pesquisa e do projeto. Mesmo que re-lacionando diferentes tempos, hibridizan-do épocas e tecnologias, percebemos que o fato dos colaboradores possuírem um mesmo contexto de criação, de crescimen-to durante os anos de vida, cria um vínculo que direciona o projeto de uma maneira singular, além disso, têm-se as mesmas carências sociais, culturais e necessidades de recriar o ambiente no qual se insere a proposta.

Os coletivos artísticos que criam estas interferências e intervenções no contexto das cidades, sejam elas pequenas ou não, possuem um papel muito relevante para o contexto no qual se inserem, pois além de criarem dispositivos para perceber-se o cotidiano de uma maneira única, reforçam a ideia de que a arte pode desvincular-se dos espaços expositivos e permear os dife-rentes espaços da cidade com o intuito de criar um diálogo tanto com a cidade quanto com seus próprios habitantes. Este fato de realocar projetos e ações artísticas, muito presente na contemporaneidade e no con-texto da arte, propicia um direcionamento

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não somente para a contemplação, mas também à ressignificação pessoal e coleti-va em relação à arte e o urbano.

HIBRIDAÇÕES COLETIVAS

Na oportunidade da mostra coletiva anu-al no Grupo de Pesquisa Arte e Design, em 2014, realizada na Sala Cláudio Carriconde (Centro de Artes e Letras, UFSM), em uma produção individual, expus imagens onde constavam códigos bidimensionais, QR co-des, que direcionavam o usuário interator aos registros fotográficos de uma das eta-pas da pesquisa também realizada através de intervenções urbanas na cidade de São Pedro do Sul, Rio Grande do Sul. A expe-riência de expor uma visualidade distinta do restante da mostra gerou certo interes-se, porém desconforto aos espectadores, pois os códigos se parecem muito uns com os outros e suas informações só serão co-nhecidas a partir da interação, no caso, os registros fotográficos dos espaços onde aconteceram as intervenções na cidade. Os códigos necessitam, inevitavelmente, que o usuário possua um aparelho compatível, smartphone, tablet ou similar, e que instale o aplicativo que faz a leitura do código a fim

de que tenha acesso ao conteúdo. No local exposto havia instruções a serem seguidas pelos usuários para que pudessem ser di-recionados ao ambiente virtual onde os registros fotográficos estavam disponíveis.

Figura 7. Registro fotográfico dos Códigos Bidimensionais que direcionam à intervenções em São Pedro do Sul, expostos na Mostra anual, Itinerários, do

Grupo de Pesquisa Arte e Design, 2014.Fonte: Fotografia da autora, 2014.

O caráter tecnológico que inclui usuá-rios e interage com os espectadores tam-bém possui um papel limitador, necessita que o interator tenha certo tempo, para poder realmente interagir com o trabalho, que possua ferramentas, no caso, apa-relhos compatíveis ao processo, para ter acesso ao que está sendo proposto como

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forma de interação e principalmente tenha interesse em desvendar o que os códigos bidimensionais têm a informar.

A tecnologia ainda é vista dando-se ên-fase a dificuldades de conservação, regis-tro, modos de exposição, valor de merca-do e obsolescência das mídias e suportes, como menciona Sandra Rey (2012), porém o processo de hibridação da arte e tecnolo-gia apresenta evoluções constantes, pode-mos perceber de maneira muito evidente que os artistas estão adentrando à tecno-logia sem receios e pré-julgamentos, pois torna-se cada vez mais claro que mesmo as artes primeiras como a pintura e o desenho podem ser recriadas a partir da tecnologia, sem que seja perdido seu potencial artísti-co. Não há nenhum intuito de que haja rup-turas; a tecnologia, como explica Sandra Rey (2012), busca apenas fornecer um su-porte e maiores possibilidades, assim a arte contemporânea passa a se aproximar ainda mais dos seus observadores a partir dos meios que a tecnologia dispõe. Mesmo que estes suportes ainda tenham certo distanciamento dos usuários interatores e espectadores, quando usados, prendem a atenção, revelando uma maneira diferente de se criar e se relacionar com a arte, prin-cipalmente do público jovem e infantil que

tem necessidade de relações tecnológicas em todos os âmbitos.

A gama de tecnologias utilizadas atu-almente como aliadas dos artistas e dos seus processos de criação torna-se cada vez maior, dispositivos e programas antes utilizados apenas em determinadas áreas permitem ao campo artístico novos meios de criar, a partir de seus resultados possibi-litam o início de novos trabalhos. Na maio-ria dos casos, as obras que se utilizam da tecnologia partem de imagens que existem ou não no mundo real, quando digitaliza-das, fotografadas ou codificadas a partir de algum tipo de varredura passam a existir em números, como é o caso do uso de ima-gens analógicas históricas que passam a fa-zer parte dos meios digitais através de sua numerização. Couchot (2003) explica que a partir do momento em que uma imagem é numerizada há a possibilidade de colocá-la em memória, duplicá-la, transmiti-la a par-tir de sua numerização através de qualquer meio, ela deixa de ter qualquer relação com a realidade, passando assim a fazer parte apenas do “mundo virtual”. A experiência realizada a partir da oficina ResgateStencil, que ao veicular fotografias antigas da cida-de em comparação com atuais, possibilitou inúmeras realocações em espaços, mídias,

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zziredes sociais e diversos modos de propaga-

ção da imagem pelo fato de terem sido co-dificadas, favorecendo sua replicação sem perda de qualidade ou de originalidade.

Através da numerização as imagens po-dem sofrer os mais diferentes processos de modificação, o artista a partir de uma imagem base, passa a criar novas imagens, transformá-las, utilizando-se dos mais va-riados programas tecnológicos que permi-tem que estes processos híbridos possam acontecer. Estas imagens numerizadas per-mitem duplicação, mantendo-se idênticas sem que haja qualquer tipo de deteriora-ção e assim mesmo após os mais variados processos de modificação, permitem con-servarem-se originais.

[...] esses procedimentos utilizados pelos artistas da modernidade são dilatados, ampliados e qualificados com as novas tecnologias que permitem dar os mais variados tratamentos à imagem, como se esta fosse uma cenografia. Resultam, assim, imagens fictícias e/ou híbridas. (PLAZA; TAVARES, 1998, p. 196).

O processo de numerização, segundo Couchot (2003), permitiu à imagem a capa-cidade de interação tanto com quem a cria

quanto com quem a observa, e a arte pas-sou a explorar esta interatividade. A tecno-logia que numerizou as imagens deslocou o observador, que até então era vinculado ao status de receptor das obras, até o local de interator, ou seja, algumas obras de arte contemporânea que utilizam das tecnolo-gias passaram a estabelecer uma relação de interatividade com quem as observa. A atividade artística que antes necessitava apenas do artista para existir passou a sen-tir a necessidade de outros sujeitos, desta maneira a obra de arte interativa só acon-tece a partir do relacionamento e da troca com o outro.

Segundo Sandra Rey (2012), os proces-sos híbridos atuais que se baseiam na tec-nologia permitem não só construírem a imagem, mas também alterá-la conforme seus elementos a partir de dispositivos in-terativos. Podemos perceber que as obras de arte contemporânea expostas não es-tão acabadas, elas se constroem gradati-vamente a partir da interação com quem a observa, esta abertura acontece a partir da tecnologia e de suas capacidades de troca. A interação por meio dos códigos bidimen-sionais permite que seja feita uma relação entre o mundo real, em que o próprio códi-go e o sujeito habitam, com as informações

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presentes no ambiente virtual, que são do ambiente real, porém de uma maneira pró-pria virtual.

Estas relações entre os diferentes es-paços que habitamos, sejam eles reais ou virtuais, permitem que possamos nos revelar como seres híbridos, que transita-mos em ambientes diferentes no mesmo espaço temporal, sem que percamos nos-sos vínculos, reais ou virtuais. Passamos a deixar de lado as terminologias que sele-cionam e separam tempos e espaços, nos permitimos viver em um local híbrido, de conceitos e de terminologias, que buscam abarcar todas as experiências que vivemos cotidianamente.

Os processos de interatividade, que se tornam cada vez mais presentes no contex-to contemporâneo, dão abertura e liber-dade ao sujeito observador. Há uma rela-ção de aproximação e dependência entre ambos que Valente (2008) explica como uma hibridação interformativa, ou seja, é o processo híbrido que acontece a partir de obras produzidas em procedimentos colaborativos e cooperativos, nos quais os sujeitos interatores são tão importantes quanto o próprio artista, pois somente a partir deles e da sua capacidade e interes-se de interação é que a obra acontece, sem

seu papel ela apenas existe, sem conseguir instaurar-se como tal. Este tipo de hibri-dação interformativa faz alusão também à ação de autoria colaborativa, pois o fato de diferentes pessoas colaborarem com o processo de criação e de construção do projeto são também atos híbridos, que re-lacionam diferentes referenciais e sujeitos.

Desta maneira este processo de rela-ção e hibridação interformativa não acon-tece somente no âmbito tecnológico e de cunho interativo, mas também no contex-to artístico contemporâneo, no qual existe uma relação de troca entre as obras e os observadores e também entre os próprios observadores e colaboradores dos proje-tos, é necessário que aconteça uma expe-riência e uma fruição, um momento de ir e vir entre o sujeito, a obra e as experiências artísticas que acontecem a partir destas relações. Hibridizar identidades, compar-tilhar a autoria e construir de maneira co-letiva vem ao encontro do que Silva (2000) define como hibridismo quando menciona a combinação de identidades culturais que resultam em grupos renovados, estes se reforçam a partir das somas, construindo novos e amadurecidos projetos.

Sandra Rey (2012) relaciona os proces-sos híbridos contemporâneos ao que ela

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zzimenciona como modus operandi, explica que esta definição é na verdade um cruzamento

onde os artistas devem proceder de maneira aberta, sabendo lidar com os dados que a cultura contemporânea dispõe. Podemos entender que nestes dados estão incluídos tam-bém os sujeitos interatores, os também autores, porém desconhecidos que farão parte das obras a partir de sua relação com as mesmas. O artista, assim como sua obra, passa a ser um sujeito híbrido que, com base nas construções coletivas proporcionadas por ele aos observadores e espectadores, reconstrói-se, utilizando-se deste repertório criado e construído, hibridiza-o aos repertórios de vida que embasam suas obras e projetos, assim cria sempre algo novo que é construído a partir do que foi hibridizado ao passado.

Tomando por base esta hibridação a partir do coletivo podemos perceber que a arte, dependente da interação, possui resultados imprevisíveis em cada ambiente exposto, a cada público com que se relaciona criará sempre novas consequências, tanto à própria obra quanto ao artista e aos observadores. A interatividade promove uma capacidade de renovação constante tendo em vista que não causarão as mesmas reflexões, não serão vistas pelas mesmas pessoas, não possuem um manual de como interpretá-la, mas sim possuem lacunas que dão liberdade para serem preenchidas.

Criar a partir da tecnologia, aliada à autoria compartilhada, revela a força que os pro-cessos híbridos possuem dentro do contexto artístico contemporâneo e pós-moderno, percebemos que os antigos ideais de pureza foram consumidos pelas alianças criadas pe-los desiguais. Na arte, hibridizar e colaborar passou a significar mais somas e trocas do que rupturas ou desqualificação, permitindo que haja influências e que os saberes sejam coletivos, não mais somente individualizados, assim adquirimos e dividimos conhecimen-to científico, tecnológico e habilidades interdisciplinares que irão construir em cada sujeito subjetividades individuais que só são permitidas aos que possuem a oportunidade deste tipo de vivência.

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FOMOS PARA CROATÃ! A INSURGÊNCIA DE UM

TERRORISMO POÉTICO NO CAMPUS UNIVERSITÁRIO

DA UNESP-BAURURichard Augusto Silva3

José S. Laranjeira4

Dorival Campos Rossi5

3. Graduado, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, [email protected]

4. Professor Doutor, Departamento de Artes e Representação Gráfica - FAAC – UNESP, [email protected]

5. Professor Doutor, Departamento de Design - FAAC – UNESP, [email protected]

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Resumo

Influenciada pelo movimento de contra-cultura Provos (1965), discute-se sobre um processo artístico em que a cidade apre-senta-se como plataforma e o virtual como as camadas de interface, mediando ações artísticas e território coletivo no contexto contemporâneo, através da narrativa poéti-ca - Ilhas de Croatã. Apresenta-se uma breve análise sobre duas de suas ações artísticas: TRANSITOSitus (Situações Transitórias), im-plantação experimental de uma bicicleta branca como transporte coletivo, público e livre, inserida no campus universitário da Unesp-Bauru; e na ação TRANSITOSensorium (Transitos Sensoriais), reterritorializando uma cidade imaginária a partir de QRcodes, espalhados pela cidade de Bauru, onde o usuário encontra um hibridismo entre as lin-guagens visuais, sonoras e escritas. A pesqui-sa relaciona a ideia de território por meio de uma relação entre espaço e poder, elencan-do as concepções de Psicogeografia – estudo de ações afetivas no espaço coletivo e Zonas Autônomas Temporárias. Trata-se de um es-tudo experimental, com a inserção de novas tecnologias.

Palavras-chave: Território, ações, apro-priação, desterritorialização e arte.

Abstract

Influenced by the counterculture moviment Provo (1965), it discuss an artistic process in which the city presents itself as a platform and the virtual as the layers interface, mediating artistic actions and collective territory in the contemporary context, through the poetic narrative - Croatan Islands. Presenting a brief analysis of its two artistic actions: TRANSITOSitus (Transits Situations), the experimental deployment of a white bicycle as collective, public and free transport, inserted in the campus of Unesp-Bauru. And TRANSITOSensorium action (Transits Sensory), reterritorializing an imaginary city from QRcodes throughout the city of Bauru, where the user finds a hybridity between visual, sound and written language. The survey relates to the idea of territory through a relationship between space and power, listing the concepts of psychogeography - the study of affective actions in collective space and Temporary Autonomous Zones. This is an experimental study, with the inclusion of new technologies.

Keywords: Territory, actions, appro-priation, deterritorialization and art.

Richard Augusto Silva, José S. Laranjeira e Dorival Campos Rossi

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ossiIntrodução

No final da década de 1960, a articula-ção entre movimentos sociais, mobiliza-ções estudantis e o surgimento e influência da contracultura, resultaram em propa-gações nas relações de práticas artísticas com práticas políticas. Sucedeu, então, a formação de grupos, coletivos e movimen-tos caracterizados por um ativismo político e artístico, os quais levantavam questiona-mentos e propostas quanto ao território coletivo, referente ao espaço público, há-bitos culturais e ações artísticas no meio urbano.

Influenciada pelas concepções dos gru-pos Provos (1965) e Situacionismo (1957), os quais surgiram no contexto do parágrafo citado acima, a pesquisa propõe por meio de uma narrativa poética, denominada “Ilhas de Croatã”, externar a ideia de terri-tório, numa relação entre espaço e poder. Discute-se, então, o processo artístico em que a cidade apresenta-se como platafor-ma, e o virtual como camadas de interface mediando ações artísticas e território cole-tivo no contexto contemporâneo.

As ações interventivas das Ilhas de Croatã relacionam de forma poética a arte e o espaço público, manifestados numa

Zona Autônoma Temporária. A proposta faz alusão ao mito de Croatã, o qual cons-trói-se como interfaces de extensões ter-ritoriais (ilhas), conectadas com Croatã, cidade imaginária.

As ilhas são projetadas como zonas de espaço-tempo de caráter artístico em ruas, esquinas, praças públicas, territórios de aglomerações nas cidades, conectados por meio de códigos de barra com narra-tivas hospedadas na plataforma virtual do projeto, dentro Campus Universitário da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, na cidade de Bauru, me-diante o uso de uma bicicleta branca, livre e pública.

Busca-se compreender as atividades sociais na contemporaneidade, associa-das com ações artísticas no campo social, entendendo o envolvimento entre arte, público e território, suas concatenações e multiplicidades, apresentando um modo de conhecimento do sujeito atual, o qual concebe novas formas de se apropriar do território.

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DesenvolvimentoO TERRITÓRIO E SUAS INTERFACES

Como constitui-se o território?Ao abordar a concepção de territó-

rio, obtém-se uma relação intrínseca en-tre espaço e poder, na medida em que se apresenta o exercício do poder sobre de-terminado espaço, ele se transforma em território, onde acontece a territorializa-ção. Os campos territoriais além de espa-ços físicos e geográficos são também jurí-dicos, sociais, culturais e subjetivos. Deste modo, o território é uma base natural de reprodução, composto por conjuntos de lu-gares conectados a itinerários.

Rogério Haesbaert (2005, p.2) contextu-aliza que a etimologia da palavra território obtém uma dupla conotação, material e simbólica como terra-territorium e terreo--territor (terror, aterrorizar), no qual a de-nominação sugere uma dominação jurídica e política da terra e com a inspiração do terror, do medo, principalmente aqueles que não detêm o domínio são impedidos de entrar no território. Entretanto, os pri-vilegiados de usufrui-lo, conseguem sua efetiva apropriação. O poder é estabele-cido no sentido simbólico de apropriação, quanto no sentido concreto, de dominação.

Segundo Lefebvre (2006, p.411), a apropria-ção acontece pela possessão, através de um processo simbólico, relacionado ao vi-vido, ao valor de uso e a dominação (pro-priedade), no sentido funcional vinculado ao valor de troca.

O Estado e as Instituições privadas bus-cam a apropriação e o domínio dos territó-rios como meio de relações de poder, que provêm do acesso, do uso e do controle, formulado por realidades visíveis na vida cotidiana, hierarquizada e subdividida por classes econômicas, sociais e culturais.

Concomitantemente, o Estado codifica o território criando cartografias de con-trole, que detêm o poder sobre as diver-sas constituições de espaço e determinam a inclusão ou exclusão do sujeito, o qual está subordinado ao domínio territorial do Estado.

O território constitui poder no/pelo mo-vimento e também na criação e organização de sociedades compostas por três elemen-tos, malhas, nós e redes, sendo a relação espaço-tempo indissociável. No contexto contemporâneo, apresenta-se a reconstru-ção do conceito de território, constituído entre território zona, os quais estabelecem o controle de processos pessoais e territó-rios redes, caracterizados pela mobilidade

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ossie o controle de fluxos e pontos de conexão,

segundo Rogério Haesbaert (2005, p.02). A apropriação de um espaço coletivo permite vivenciar o território em sua multiplicida-de, no qual as relações de poder, mediadas pelo espaço, incluem o poder simbólico.

No livro “Mil Platôs” (1995) dos autores Gilles Deleuze e Félix Guatarri, o conceito de território é definido como o nascimen-to da arte, determinada pelo campo do ter, das propriedades e posturas. O termo desterritorializar parte de um movimento, de processos de mobilidade e de um não lugar, composto por limiares de intensida-des que formam uma trama, segundo os autores, denominado de rizoma.

Os rizomas são formados por dimen-sionalidades, conectados ao território sem pontos fixos ou de ordem, operam em aberto, com multiplicidades de entradas e saídas, surgindo pelos meios, sem início e nem fim. Os rizomas não obtêm concep-ções dicotômicas ou dualistas, são com-postos por estruturas horizontais, que de-senvolvem suas dimensões na medida em que a natureza amplia suas conexões.

O movimento de desterritorialização surge do centro para as camadas periféri-cas, atravessando os estratos6. As formas e matérias se codificam e descodificam

6. Estratos: “...quer dizer um fenômeno de acumulação, de coagu-lação, de sedimentação que lhe impõe formas, funções, ligações, orga-nizações dominantes e hierarquizadas, trans-cendências organizadas para extrair um trabalho útil. Os estratos são lia-mes, pinça.” (DELEUZE; GUATARRI, 1995, p.21).

através de códigos, que quando multiplica-dos ficam expostos a modificações. Os có-digos sofrem um processo de mutação, em que se territorializam e desterritorializam como ondas e fluxos em movimento, mi-grando do centro para regiões periféricas, reterritorializando novos centros reconsti-tuídos, (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p.26).

Os termos não são correspondentes, o código pode ser desterritorializado, assim como a descodificação pode ser uma reter-ritorialização. Todo código possui comple-mentos capazes de variar livremente, sen-do os códigos territoriais que demarcam as zonas de ações, percepções e vivências, derivando numa lógica zonal conectadas em rede composta por meio de uma con-cepção rizomática.

A vida social precisa de “territórios” para existir (leis, instituições, arquiteturas), mas o vitalismo só existe a partir de ten-sões desterritorializantes que impulsio-nam e reorganizam esses “territórios”. A vida social deve ser entendida como mobilidade e fluidez e não como arquite-tura fechada (poder, classe, instituições). A dinâmica da sociedade se estabelece mais por movimentos de fuga do que por uma essência imutável das coisas. O

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que interessa são processos, dinâmicas des-re-territorializantes que marcam o social. (LEMOS, 2006, p.4).

As estruturas e espaços arquitetônicos apresentam variadas interpretações como funcional, estilístico, histórico, afetivo en-tre outros. Todas estas análises produzem narrativas de subjetivação parcial, por exemplo: favelas, bairros e comunidades periféricas impulsionam determinados afetos cognitivos decorrentes do espaço e, que de acordo com Guattari (1992, p.159), “[...] as interações entre o corpo e o espaço construídos se desdobram através de cam-pos de virtualidade cuja complexidade bei-ra o caos [...].”

Os meios interventivos em territórios geográficos influenciam o comportamento afetivo na vida social e nos múltiplos pro-cessos de mapeamentos e criações car-tográficas, as quais permitem indicar em mapas subjetivos as inclusões sociais, cul-turais, poéticas, psicossociais, de mobili-dade, elucidando um processo de conexão entre corpo singular e coletivo.

De acordo com Deleuze e Guattari (1995, p.21), o mapa é constituído de malhas di-mensionais abstratas, linhas de segmen-taridade, que não mudam suas dimensões

sem antes modificar sua natureza, sem co-meço nem fim, entretanto desenvolvem-se pelos meios, como um múltiplo sem se des-conectar do universo, buscando espaços, zonas, territórios livres e abertos como ele-mento de expansão da mente humana. A supercodificação do espaço é intervencio-nado pelo fechamento do mapa, adquirido pela inexistência do território, que emerge das cartografias de controle.

Portanto, as ações e relações humanas decorrentes de um processo de desterri-torialização, no qual a aplicação do poder em determinado espaço direciona-se para a abertura do mapa, expandindo suas co-nexões de campo bloqueadas pelas falsas representações do ser, do sentir e o pensa-mento, constituem-se no processo de des-territorialização, relacionado a criatividade como meio de romper territórios existen-tes, criando outros.

A INTERNACIONAL SITUACIONISTA: A CULTURA? MAS ESSA É A MERCADORIA IDEAL, QUE OBRIGA A COMPRAR TODAS AS OUTRAS. NÃO É ESTRANHO QUE VOCÊ QUEIRA OFERECÊLA A TODOS

A cultura, a arte, o urbanismo quan-do caracterizados pela composição de

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ossisentimentos, criatividade, vivências e co-

letividade, potencializada pelos valores da vida cotidiana na construção de territórios coletivos principalmente em espaços públi-cos, levantavam uma série de concepções e indagações apresentadas pelo Movimento Internacional Situacionista (1957).

A Internacional Situacionista era com-posta por um grupo de ativistas, artistas e pensadores que promoviam em suas ideias e ações a participação ativa do in-divíduo na sociedade, principalmente no campo cultural. O grupo foi fundado por Guy Debord e integrantes como Asger Jorn, Ralph Rumney, Constant, Max Bill e Raoul Vaneigem. Destinavam fortes críticas ao ur-banismo e à produção cultural consumista. Acreditavam na descentralização da arte, o objetivo da obra de arte era de intervir no cotidiano e revolucioná-lo, rompendo com os âmbitos e circuitos fechados da arte promovidos pela elite social, afirmavam a necessidade de renovação artística no sis-tema de arte em sua relação com o público. (BERENSTEIN, 2003, p.72).

Nosso campo de ação é, portanto, a rede urbana, expressão natural da criativida-de coletiva, capaz de compreender as forças criadoras que se libertam com o

declínio de uma cultura baseada no indi-vidualismo. (BERENSTEIN, 2003, p.114)

Para os Situacionistas (1957) as inter-venções artísticas permitem a vivência concomitante de múltiplos territórios, como meio de descoberta do espaço e de suas potencialidades, necessitando de uma organização coletiva e reconhecen-do as melhores possibilidades de dominar a natureza, para propor maior liberdade. Definiam o território como transformação pelo desejo de ser, descobrindo em seu movimento o corpo quanto singularidade de um coletivo, criado por possibilidades entre desejos, tempo e espaços por meio de experimentações e processos de cria-ções artísticas. Criando novos ambientes efêmeros e vivenciados por situações psi-cogeograficas, termo no qual denomina-vam suas ações artísticas no espaço públi-co (GUATTARI, 1992, p.20).

A psicogeografia busca a participação ativa do sujeito em constante vivência, in-corporando e manifestando suas emoções no espaço coletivo, transcodificando-se, desterritorializando e se reterritorializan-do de uma rede de signos para uma rede de órgãos, segundo Deleuze e Guatarri (1995). O corpo sofre metamorfose e flutua

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livremente, desagregado de sua identida-de física, intensificado por seus desejos e vivências.

A psicogeografia propõe intervenções projetadas no campo geográfico e ativida-des variáveis, intervindas pela arte e com efeitos planejados ou não, que operam di-retamente no comportamento afetivo das pessoas. Suas ações estudam o espaço ur-bano, de preferência público, com objetivo de mapear e projetar relações afetivas no território. Na medida em que o exercício do poder acontece por meio de ações co-letivas, estabelecem em potencial as pos-sibilidades das criações de novos mapas afetivos, cartografias subjetivas e territo-rialidades (Deleuze; Guatarri,1995, p.21).

De acordo com Berenstein (2003), a de-riva é o exercício prático da psicogeogra-fia, elaborada a partir da exploração dos espaços urbanos, construindo labirintos ambientais, que permitiam uma vivência artística e sensorial, de caráter lúdico e experimental, referente às condições so-cial-urbanas. Esta, sendo conduzida pela fruição de trajetos indeterminados, nos quais articulavam-se os espaços psicoge-ográficos da cidade, enquanto os públicos eram transformados em cenários de flu-tuações coletivas, difusas de itinerários,

compostas por intervenções urbanas que proporcionam novos meios de se apropriar do território.

Além dos situacionistas discordarem da passividade social, também levantavam fortes críticas ao espaço urbano, tendo como concepção o território, fundamental para estimulo de ações que rompessem com a monotonia da vida cotidiana. A cons-trução de situações impulsionava ativida-des práticas, construídas por um território coletivo, unitário, através de jogos de acon-tecimentos e com o objetivo de revolucio-nar as situações momentâneas da vida.

Vivemos em um espaço-tempo disso-ciado, privados de qualquer referência e de qualquer coordenada, como se não fossemos jamais entrar em contato com nós mesmos, embora tudo nos convide a isso. Existe um lugar onde se faz e um tempo em que se brinca. O espaço da vida cotidiana, onde existe a possibilida-de de se realizar realmente, é circunda-do por todo tipo de condicionamentos. (INTERNACIONAL SITUACIONISTA, 2002, p.106).

Sendo assim, os situacionistas pro-põem uma modificação nas estruturas e

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ossinas relações sociais, como apropriações de

valores subjetivos e nas manifestações dos desejos e emoções, tendo como processo criativo ações que estimulem potenciali-dades na constituição de novos territórios e em seus movimentos. O grupo utilizava como concepção dinâmica do espaço a ideia de labirinto, associado a uma organi-zação mental, que possibilita um processo de criação pautado na deriva, eminente na mobilidade dos trajetos e nos fluxos, opon-do-se a estruturas estáticas, ortogonais de pontos fixos. Deste modo, a influência das relações afetivas no espaço urbano asso-ciada com a arte, urbanismo e vivências ex-perimentais contrapõe a ideia de território estabelecido por uma cultura de consumo, hábitos de uma vida programada e frag-mentada em classes, o qual exclui o sujeito na maioria das vezes ao invés de integrá-lo.

Provos de Amsterdã

O grupo Provos (1965) fundado por Robert Jasper Grootveld, Roel Van Duyn e Rob Stolk em 1965 na cidade de Amsterdam, utilizava a arte associada a vi-vências no espaço público e na criação de territorialidades, intervindo no cotidiano

como meio de desprogramação social, al-terando a percepção de realidade material e desenvolvendo uma consciência coletiva (GUARNACCIA, 2001, p.66).

O nome do grupo se originou da palavra provocação, tendo como objetivo influen-ciar diretamente a política, utilizando a imaginação como instrumento de luta con-tra o poder do Estado, e tendo como obje-tivo dar vazão a criatividade como meio de contestar concepções reacionárias quanto aos hábitos sociais promovidos pelo siste-ma capitalista. De acordo com Guarnaccia (2001), o grupo Provos integralizava ma-nifestações artísticas por meio de ações políticas, provocando o público, o Estado e instituições privadas, questionando o po-der político e a ideia de democracia numa sociedade estruturada por uma enorme desigualdade social.

Segundo Guarnaccia (2001), o grupo Provos indagava a ruptura da arte com as instituições artísticas, as quais favorecem o acesso a sua produção apenas para a eli-te social. Os integrantes do Provos tinham em seu engajamento político, a proposta de democratização no sistema de arte, di-recionando ações artísticas em espaços coletivos, abertos, estimulando o encontro e novas experiências sociais, em que suas

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ações artísticas eram correlacionadas com práticas políticas, contestando a participa-ção do público na construção política nas práticas de governo do Estado.

Uma das ações políticas utilizadas pelo grupo Provos foi o Plano das Bicicletas Brancas, o qual era visto de maneira sub-versiva pelas instituições privadas, indús-trias automobilísticas e Estado. O projeto era de caráter ecológico e propunha a bi-cicleta como transporte coletivo, gratuito, com o objetivo de descentralizar os engar-rafamentos e problemas de mobilidade urbana no trânsito do centro da cidade de Amsterdam. Permitindo apenas o deslo-camento de táxis e meios de transporte coletivos públicos, funcionando com moto-res elétricos, tendo velocidade máxima de quarenta quilômetros por hora.

Devido às ações acontecerem com maior frequência no período noturno, usava o branco para dar maior visibilidade. O grupo também propõe a prefeitura adquirir vinte mil bicicletas brancas ao ano, como forma de integração do transporte público e a vo-luntários a oferecer suas próprias bicicletas, para serem pintadas de branco. A imple-mentação das bicicletas brancas no espaço urbano proporcionou uma nova percepção de cidade, espaço, alterando o movimento

territorial em seu uso e na prática de ações colaborativas entre os usuários.

Segundo Guarnaccia (2001), o Estado rejeitou a proposta, confiscando todas as bicicletas brancas que o grupo Provos colo-cou a disposição na cidade de Amsterdam. Deste modo, o Estado apropria-se do ter-ritório como espaço de dominação polí-tica, exercendo controle no seu fluxo de movimento, interferindo de maneira re-preensiva com as propostas do grupo, não permitindo o diálogo com a população, fa-vorecendo apenas seus interesses.

T.A.Z. ZONA AUTÔNOMA TEMPORÁRIA

Hakim Bey (2001), autor do livro “T.A.Z.: Zona Autônoma Temporária”, propõe aven-turas poéticas, libertárias de manifestação e de apropriação da arte constituída no ter-ritório coletivo, explorando experimenta-ções lúdicas, relacionando os conceitos de psicogeografia e a prática da deriva. Para o autor (2001), o artista não é um indivíduo especial de pessoa, mas sim, toda pessoa é um tipo especial de artista, potencializado pelos fatos e vivências, que estabelecem sua condição de vida, no qual é sujeito a processos criativos de conceber a vida e seus meios de reinventá-la.

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ossiBey (2001), explica que a T.A.Z. são zonas

de espaço-tempo e imaginação, compos-tas de modo rizomático entre suas inter-venções coletivas, por blocos de sensações e vivências libertárias subversivas, desco-dificando os campos de poder e controle do Estado no qual a T.A.Z. acontece muitas vezes de forma subversiva e clandestina. Para o autor, teoricamente no mundo não existem territórios livres de impostos e leis, todos os espaços foram cartografados pelo Estado-Nação ou por instituições de poder e controle.

Quando os mapas do território e de suas interfaces estão fechados, são abertos pela T.A.Z. invisivelmente por intermédio da psicotopografia, que mostra pontos de poder e controle nos mapas fechados, pe-netrando nas malhas abstratas de suas di-mensões fractais, em busca de territórios geográficos, sociais, culturais e imaginá-rios que operam em aberto, liberando zo-nas de espaço-tempo livres e abertas para projetar mapas dimensionais modelados pela criatividade da mente humana, rein-ventando o espaço coletivo e permitindo reconexões com o espaço e suas múltiplas territorialidades.

A T.A.Z. é potencializada por fluxos afe-tivos antagônicos aos padrões normativos

estabelecidos pelo Estado. As zonas de espaço-tempo iniciam com simples ações perceptivas, liberando determinada área territorial sobre o espaço em que as ações acontecem, de modo provocativo, estético, festivo, lúdico e artístico, proporcionando uma descontinuidade no cotidiano social, de modo passivo para o modo ativo, na qual direcionam suas ações à consciên-cia humana através de Terrorismo Poético (BEY, 2001, p.11).

Um dos princípios da T.A.Z. não é con-frontar o Estado diretamente, seus focos estão segmentados nas ideias. A criação de uma rede de informação é fundamental para estabilidade da T.A.Z., como a cons-trução de uma localização na Web, como forma de mediação entre sua existência imediata e seus subsídios informacionais. A arte, para Bey (2001), deve manifestar-se através da T.A.Z., espaço no qual, segundo o autor, pode se afastar o status social e mercadológico que ainda possui.

Portanto, na T.A.Z. as relações entre arte e território são proporcionadas na inten-ção de transformar ações que estimulem o convívio entre as diferenças socioculturais. Apresenta-se uma percepção de liberdade na construção de relações afetivas que mu-dam estruturas de realidades instituídas,

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as quais controlam o fluxo de informação com concepções totalitaristas de socieda-de, promovidas por uma visão hegemônica que contribuem para a manutenção dos interesses do Capital. Na T.A.Z. as relações de poder são direcionadas ao potencial da arte como conexão com o território, como meio de reinventá-lo e explorar as poten-cialidades da vida.

O MITO DE CROATÃ

No quinto capítulo do livro, “T.A.Z. Zona Autônoma Temporária”, Hakim Bey (2001) contextualiza alguns protótipos, como se fossem arquétipos de zonas de espaço--tempo e imaginação, a partir da descober-ta do Novo Mundo e dos séculos XVI e XVII.

O projeto para descoberta do Novo Mundo, a América, foi elaborado pelo Imperialismo Europeu, concebido como uma operação ocultista do mago John Dee, consultor espiritual da rainha Elizabeth I.

A visão alquímica sobre o Novo Mundo era relacionada com a concepção de maté-ria-prima, que permeava os significados e conceitos sobre o hyle (o nada), etimologia da palavra “matéria” no latim, no “Estado da Natureza”. Descobre-se na matéria, o princípio de sua essência, transmutando-se

em ouro, perfeição espiritual e em abun-dância material (BEY, 2001, p.18).

Quando chegaram ao Novo Mundo (a América), os europeus surpreenderam-se ao encontrar não apenas a grande quan-tidade de matéria-prima, como também o homem em seu estado natural (o índio), como parte eminente da natureza, a qual preserva e convive em plena harmonia, sem nenhuma atividade destrutiva quan-to ao sistema natural que se insere, sendo o índio um homem ainda não corrompido por nenhum Estado (governo), poder mo-netário e ambições.

Caliban, o Homem Selvagem, é instalado como um vírus dentro da própria má-quina do Imperialismo Oculto. Floresta/animais/seres humanos são investidos desde o início com o poder mágico do marginal, do desprezado e do proscrito. Se por um lado, Caliban é feio e a nature-za é uma “imensa selvageria”, por outro, Caliban é nobre e livre e a Natureza é um Éden. (BEY 2001, p.18)

O contexto histórico citado no pará-grafo acima refere-se à descoberta da América, o Eldorado, “fonte da juventude”, dando início ao processo de colonização

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ossino continente americano. Bey (2001, p.18)

levanta questionamentos quanto ao mito de Croatã, contestando a história, refe-rente a primeira tentativa de colonização em Roanoke relatada nos livros históricos, ocorrendo massacre na primeira tentativa dos colonos ao encontrarem uma tribo de índios de olhos cinzentos. Deixando apenas a mensagem críptica “Fomos para Croatã!”

Segundo Bey (2001, p.18), os índios de Croatã eram amigáveis e se relacionaram com a primeira colônia, a qual renunciou o seu vínculo com o Império Europeu, e mu-daram com os índios da região litorânea para o interior do território, em direção ao pântano sombrio da Ilha da Tartaruga.

Ao renunciarem ao Império e se junta-rem aos “Homens Selvagens” (Índios de Croatã), fizeram com que a primeira expe-dição de colonos deserdasse do Império Europeu, desvinculando-se de leis, tribu-tos, ordens, entre outras normas e restri-ções com o poder do Estado. Ao tomarem esta atitude, os colonos tornaram-se selva-gens, índios, nativos e homens livres. “...op-taram pelo caos em detrimento dos atrozes sofrimentos de servir aos plutocratas e in-telectuais de Londres.” (BEY, 2001, p.19).

Com o surgimento dos Estados Unidos, após a colonização da Ilha da Tartaruga,

Croatã permanece no imaginário coletivo na América, de acordo com Bey (2001).

Desde então, toda renúncia às normas e leis do Estado, dogmas da Igreja e do sis-tema capitalista, quanto a trabalho, impos-tos e dinheiro, sempre foi uma tentação de abandonar o mundo “civilizado” e conviver no mundo selvagem.

No filme “Into the Wild” (Na Natureza Selvagem, 2007), dirigido pelo diretor artís-tico Sean Penn, faz-se a relação com a ten-tativa de renúncia ao Estado e seu sistema social estabelecido por Instituições de po-der e controle. O roteiro do filme é basea-do nos escritos de Christopher McCandless (1990), jovem de vinte e dois anos que, ao concluir sua formação acadêmica na Universidade, doa todo seu dinheiro para uma instituição de caridade, abandona a vida civilizada da cidade e sai em busca de novas viagens buscando transcender o ma-terialismo social.

O objetivo de Christopher era chegar ao Alasca e viver na natureza selvagem em comunhão com a relação homem e natureza. No entender de Bey (2001), o “Estado da Natureza” ainda existe e sem-pre existirá no imaginário coletivo, mas para as Instituições de poder e controle como o Estado, esta ação sempre será vista

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como um risco perante o sistema estatal e capitalista.

POÉTICA ARTÍSTICA AS ILHAS DE CROATÃ. “A CIDADE IMAGINÁRIA”

As pessoas deslocam-se no território urbano como mercadorias, de casa para o trabalho, do trabalho para casa e quando alternam seus trajetos, direcionam-se para mercados, shopping ou instituições que promovem o consumo e entretenimento.

Os processos neoliberais de globali-zação contribuem para a privatização do espaço público, onde a ideologia do medo ocupou as vias e espaços coletivos, causa-do por desocupação dos espaços urbanos, sendo gradativamente esvaziados pela presença de pessoas. A gradual eliminação dos indivíduos dos espaços públicos urba-nos é potencializada por um crescente iso-lamento em seus interesses privados.

Para o filósofo e literário Henry David Thoreau (2010), a individualidade encontra--se na unidade. Para o autor, a civilização necessita de uma região inculta, na qual todos precisam de um estado selvagem, através de experiências que transcendam a realidade apenas física através de uma consciência intuitiva.

No livro “Walden”, Thoreau (2010) levan-ta questionamentos entre a visão materia-lista do homem civilizado em relação ao primitivismo da natureza, argumentando quanto à sensibilidade de se redimensionar perante os valores e princípios da natureza selvagem.

No Estado da Natureza, Thoreau (2010) busca compreender o próprio homem, o qual não apenas cultiva o campo geográfi-co, mas também o pensamento sociocultu-ral, restabelecendo uma nova visão de con-vívio do sujeito com seus meios de vivência e campos habituais.

De acordo com Deleuze; Guattari (1995) é no estado da natureza que o indivíduo começa a conhecer a si mesmo, a singula-ridade e os sentimentos que permeiam o universo, perdendo qualquer vínculo com a “identidade”, civil e política e começa agir pelos seus sentimentos, afetos e intensida-des. Voltam ao estado na natureza, seres primitivos, sem identidade e ambições, criando para si um corpo de potência.

Como chegar a Croatã? A mobilidade e fluidez no mundo contemporâneo têm rom-pido muitas fronteiras territoriais constituí-das por classes hegemônicas que limitam a construção de um território coletivo e uni-tário, o qual permita de modo integralizado

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ossia convivência entre as diferenças econômi-

cas, sociais e culturais, rompendo as desi-gualdades que deterioram a vida social. As limitações impostas pelas fronteiras esta-belecem uma cartografia de poder e con-trole sobre o território, inibindo seu acesso, meios de apropriação, liberdade criativa nas relações e vivências interpessoais.

Analisando a ideia de território como re-lação de espaço e poder, apresentado nos conceitos de psicogeografia do Movimento Internacional Situacionista (1957) e T.A.Z. Zona Autônoma Temporária do autor Hakim Bey (2001), este trabalho propôs uma narra-tiva poética denominada de Ilhas de Croatã, como meio de desenvolver uma pesquisa te-órica e prática, por intermédio de ações in-tervencionais, construídas por um imaginá-rio coletivo, elencando os conceitos citados.

O projeto “Ilhas de Croatã” tem como ob-jetivo apresentar um novo meio perceptivo e sensorial de se apropriar do espaço coleti-vo, intervindo no território e constituir uma Zona Autônoma Temporária, fundamental para práticas poéticas, usando práticas artísticas como conexão entre o público e a forma de ressignificar o espaço, extrain-do do sujeito o encontro com o “Estado da Natureza”, desmitificado pelo mundo civili-zado, capitalista e individualista.

As “Ilhas de Croatã” provêm de ações vivenciais, de forma provocativa e ques-tionadora, quanto ao cotidiano-cárcere da cidade, buscando potencializar este estado vivencial de liberdade. A narrativa poética se constrói em duas ações intervencio-nais no espaço urbano, denominados de TRANSITOSensorium (Trânsitos Sensoriais) e TRANSITOSitus (Situações Transitórias).

As relações da arte com o território operam em aberto a novas conexões no espaço, incorporando diferentes mídias e agenciado por um sistema dinâmico entre relações constantes entre arte, público, ficção e narrativas. Deste modo, as ações artísticas tornam-se fluidas e processuais, abertas para incluir as atuações e intera-ções do público participando do processo artístico em que a arte torna-se parte emi-nente no campo social.

O mundo voltado para o capital, planos políticos, econômicos, matéria e sua produ-ção, demonstra-se cada vez mais incapaz de solucionar os problemas na sociedade como um todo. Cabe ao sujeito contempo-râneo, estabelecer conexões com Croatã, cidade imaginária no inconsciente coletivo social. Sendo necessário projetar zonas lú-dicas de espaço-tempo, que desencadeiam vivências múltiplas, as quais possibilitam

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imersões eminentes com o estado da natu-reza constituídos por territórios livres.

Fomos deixados no mundo e sobre ele permanecemos ao léu, a vida é vivida por condições de incertezas, decorrente de acon-tecimentos que vivenciamos dia a dia. Sendo necessária a inserção da poesia na vida e no cotidiano, e a arte como meio de propor mo-mentos de conexão com os afetos, provoca--se uma reflexão crítica e uma reconexão do sujeito com o espaço no qual está inserido.

Teoricamente no mundo não existem territórios livres de impostos, leis e contro-le, todos os espaço foram cartografados pelo Estado-Nação ou instituições de po-der e controle.

Quando os mapas do território e de suas interfaces estão fechados, são abertos pela T.A.Z., por intermédio da psicotopografia, que mostra pontos de poder e controle nos mapas fechados, penetrando nas malhas abstratas de suas dimensões fractais, em busca de territórios geográficos, sociais, culturais e imaginários que operam em aberto, liberando zonas de espaço-tempo livres e abertas para projetar mapas di-mensionais modelados pela criatividade da mente humana.

A T.A.Z. é potencializada por fluxos afe-tivos antagônicos aos padrões normativos

estabelecidos pelo Estado. As zonas de espaço-tempo iniciam com simples ações perceptivas, que intervém no cotidiano social, de modo passivo para modo ativo, transformando-o em nomadismo psíqui-co, desterritorializando-se antes que seja percebido, se constituindo como máquina de guerra nômade (DELEUZE; GUATTARI, 1995), na qual direcionam suas ações a consciência humana, através de Terrorismo Poético, de acordo Bey (2001).

As manifestações do corpo singular/coletivo ao transitar pela T.A.Z., permitem elos afetivos em seus movimentos de tran-sições, constituindo um corpo de potência, ampliando suas conexões na medida em que amplia sua natureza.

Voltamos ao estado na natureza, se-res primitivos, sem identidade, fronteiras e ambições, criando para si um corpo de potência, livre, sobretudo navegante, no qual permite vivenciar e transcender os afetos e desafetos descobertos pela arte de viver.

TRANSITOSENSORIUM TRÂNSITOS SENSORIAIS

É necessária a poesia na vida e no coti-diano, já que a arte propõe momentos de conexão com os sentimentos, emoções nas

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ossirelações humanas, provocando uma reflexão crítica e uma reconexão do sujeito com o

espaço no qual está inserido. A ação TRANSITOSensorium (Trânsitos Sensoriais), sugeriu uma inserção poética em

espaços públicos de alto fluxo de transeuntes na cidade de Bauru, estado de São Paulo. Desenvolvendo uma produção de áudios sensoriais, poesias visuais e narrativas poéticas, inseridos como impressos de QRCodes codificados e hospedados no site do projeto, os quais estabelecem pontos de conexão no espaço projetado, como meio de constituir um território-rede, que permita uma interferência poética no fluxo de informação e acesso no território. As intervenções tiveram como objetivo criar territórios psicogeográficos, com-postos pela interação dos participantes em diálogo com a composição no cenário virtual, designam codificações no território, além de suas estruturas funcionais e visíveis.

Figura 1. Identidade Visual – Ilhas de Croatã I.Fonte: SILVA, Richard Augusto (2013)

Figura 2. Identidade Visual – Ilhas de Croatã IIFonte: SILVA, Richard Augusto (2013)

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Figura 3. QRCodes – Ilhas de Croatã.Fonte: SILVA, Richard Augusto (2013)

As poéticas utilizadas na intervenção com QRCode estão hospedadas no sites do pro-jeto “Ilhas de Croatã”, no endereço virtual, http://ilhascroata.tumblr.com/. A plataforma virtual permite formar uma relação rizomática entre as narrativas e o território, construin-do também um mapa afetivo, elencando os pontos de conexão entre o discurso poético e difundindo uma convergência midiática entre as linguagens escrita, sonora e visual, como meio perceptivo e sensorial de ressignificação do território coletivo.

Sendo assim, a proposta emerge como um movimento de desterritorialização, derivan-do das vias da cidade e interferindo no ambiente social, como meio de criar situações de experiência, no intuito de transformá-las em energia de produção e reterritorializando ter-ritórios poéticos. Permite uma cultura híbrida de conectividade por meio de um mapa em aberto entre as interfaces fechadas e pragmáticas do cotidiano urbano da cidade.

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Figura 4. Plataforma Virtual Ilhas de Croatã.Fonte: www.ilhasdecroata.tumblr.br

O endereço virtual da narrativa “Ilhas de Croatã” foi hospedado na plataforma de blog Tumblr, que permite postagem de áudios, vídeos, textos e diálogos. Foram criados vinte e seis links de QRCodes conectados ao site http://ilhascroata.tumblr.com/, elaborados pelo dispositivo Google URL Shortener

Sendo impressos três códigos de QRCode por link, foram impressos setenta e oito QRCodes, os quais interviram nos espaços Vitória Régia, Praça do Líbano, Praça Rui Barbosa, Praça da Paz, Praça das Cerejeiras, Transportes Coletivos, Unesp/Bauru, Teatro Municipal Celina Neves, entre outros pontos de encontro e passagem na cidade de Bauru.

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Figura 5. Ação TRANSITOSensorium I – Praça da Paz, Bauru-SP.

Fonte: SILVA, Richard Augusto (2013).

O dispositivo permite analisar o acesso dos usuários por meio de QRCode, como na Figura 6, que mostra os vinte e oito acessos, referentes ao período, mês, semana e local, possibilitando distinguir como em determi-nados lugares ocorreu a interação do públi-co com as ações. Durante os três meses de intervenção, o Google URL Shortener com-putou duzentos e cinco acessos nos vinte e seis links de QRCode na plataforma Tumblr - Ilhas de Croatã.

Figura 6. Aplicativo Google URL Shortener – QRCode Ilhas de Croatã.

Fonte: SILVA, Richard Augusto (2013).

Os áudios foram compostos pelos sof-twares Soundation e Fruity Loops Studio, programas livre e on-line utilizados por Sound Design. Foram anexados às plata-formas Youtube e SoundCloud, para depois serem conectados com o link no endereço virtual das “Ilhas de Croatã”.

A ação buscou explorar relações afe-tivas entre narrativas poéticas e espaço público como meio de criar territórios co-letivos, potencializados por intervenções

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ossiartísticas, apresentando outras perspectivas na relação entre espaço e poder, transfor-

mando ações, que mudam estruturas de realidades instituídas, criando territórios descon-tínuos aos transeuntes, de forma provocativa, lúdica, crítica e reflexiva quanto às experi-ências de trânsitos e vivências numa Zona Autônoma Temporal.

TRANSITOSITUS SITUAÇÕES TRANSITÓRIAS

A intervenção faz referência ao Plano das Bicicletas Brancas do grupo Provos de Amsterdã em 1965, ressignificando e transformando projeções temporárias, como princí-pio de transgressão experimental.

O Plano das Bicicletas Brancas visava o uso da bicicleta como transporte coletivo, de caráter ecológico, colocado como crítica às indústrias automobilísticas, fechando o centro da cidade de Amsterdã para o fluxo de transporte privado.

Os integrantes do grupo Provos (1965) compartilhavam da ideia de imaginário coletivo, utilizando a criatividade como ações de críticas e provocações ao Estado e Instituições de poder e controle, visando ao desenvolvimento de uma consciência coletiva, como forma de criar novas percepções e realidades.

A ação TRANSITOSitus propõe a implantação experimental do uso de uma bicicleta branca, de caráter público e livre, no período de dois meses, inserida no campus universi-tário de Bauru da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”.

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Figura 7. Ação TRANSITOSitus I – Campus Universitário UNESP/BAURU.Fonte: SILVA, Richard Augusto (2013).

O uso da bicicleta é livre, podendo ser utilizada por qualquer pessoa presente no cam-pus universitário, apenas com a preocupação de colocar a bicicleta em alguns pontos visí-veis, de fácil acesso, devido às dimensões geográficas do campus universitário da UNESP, de acordo com o alto fluxo e deslocamentos entre discentes, docentes e servidores.

A bicicleta foi doada e revisada pelo autor do projeto a cada quinze dias, não cabendo a Universidade se responsabilizar pela sua fiscalização, manutenção e situações de furto ou roubo.

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ossi O participante que interagir com a ação

não se responsabilizará caso ocorra algum acidente de percurso. Uma placa informa-tiva e de reconhecimento do veículo será anexada à bicicleta, obtendo também todo conceito mencionado referente ao seu uso. Também foi divulgada na lista de e-mails da Faculdade de Ciências, Faculdade de Engenharia e Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação na Unesp/Bauru.

A ação efetiva-se como uma atualização ao Plano das Bicicletas Brancas, em conse-quência de uma hegemonia do transpor-te motorizado individual, decorrente dos tempos atuais no Brasil consolidado pela Indústria automobilística, refletindo numa transformação das áreas urbanas em cons-truções de vias de passagens, sobrepondo às calçadas e locais de encontro e circula-ção de pedestres.

Após a redução do Imposto dos Produtos Industrializados (IPI) sobre a compra de carros, em maio de 2012, sancionada pelo governo federal, potencializou de modo expressivo o aumento da frota de auto-móveis nas ruas das cidades, refletindo-se nos horários de alto tráfego um colapso no trânsito.

O projeto tem pretensão de apresentar uma nova percepção territorial do espaço

coletivo, por meio de movimentos de des-territorialização, implementando o uso da bicicleta como alternativa de mobilidade urbana, um dos principais temas pauta-do nas discussões sobre desenvolvimento sustentável nas grandes cidades.

A intervenção traz um meio democráti-co, político e social na relação da arte com o público, não restringindo ou privilegiando nenhuma pessoa no Campus Universitário da Unesp/Bauru, cujo espaço é público e hierarquizado por títulos e cargos, esta-belecendo uma relação horizontal entre reitor, diretores, docentes, servidores, dis-centes e visitantes, transformando-se, du-rante o projeto, num espaço homogêneo e rizomático.

Também de caráter ecológico, a ação TRANSITOSitus promove ações colaborati-vas entre temporalidade no território-zona no campus universitário da Unesp/Bauru. Derivando de sua ação, houve a produção de um vídeo arte, registrando as vivências de alguns participantes que utilizaram a bi-cicleta pública, que está presente no ende-reço virtual: https://vimeo.com/100800170.

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Figura 8. Ação TRANSITOSitus II – Campus Universitário UNESP/BAURU.Fonte: SILVA, Richard Augusto (2013).

Manteve-se em aspectos estéticos a cor branca na bicicleta como nos Planos das Bicicletas Brancas do grupo Provos, contrapondo o uso constantemente atual da apro-priação simbólica da bicicleta branca como representação do ciclista morto, colocada de forma antagônica quanto ao seu contexto histórico. Sua proposta inicial levantava críticas, questionamentos e reflexões sobre os aspectos políticos e culturais referentes à mobilida-de urbana e social na década de sessenta na cidade de Amsterdã.

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ossiNa cidade de Berlim (Alemanha), cita-

mos o projeto BikeSurfBerlin de comparti-lhamento de bicicletas, obtendo uma rela-ção similar como da ação TRANSITOSitus. Seu funcionamento procede ao usuário cadastrar-se no site do projeto, por compu-tador ou celular, a pessoa verificará pontos de compartilhamentos onde as bicicletas estão localizadas, informando o seu pe-dido para utilizar o serviço. Após alguns minutos o usuário recebe uma mensagem no seu celular ou e-mail, o código para des-travar o cadeado que prende a bicicleta, o qual dará acesso para utilizar o serviço por tempo indeterminado, devolvendo ao final do dia a bicicleta em bom estado.

O projeto foi idealizado pelo irlandês Graham Pope, o qual questionava pagar caro pelo aluguel de bicicletas na cidade de Berlim. O sistema é elaborado por intermé-dio de doações e funciona por toda cidade de Berlim, cidade que obtém mil quilômetros de ciclovia, facilitando o uso da bicicleta.

No Brasil, o Estado é negligente ao pro-mover Políticas de Mobilidade Urbana com o foco na bicicleta ou em meios alternati-vos. A concepção do neoliberalismo sobre a globalização tem contribuído fortemente para o processo de privatização dos espa-ços públicos.

A gradual eliminação de pessoas nos es-paços públicos urbanos reflete no crescen-te isolamento em seus interesses privados, solidificada pela compressão espaço-tem-po e desterritorialização dos processos produtivos e comunicacionais.

A hegemonia do transporte motorizado individual fortalece a indústria automobi-lística, proporcionando inúmeras trans-formações nas áreas urbanas em lugares de passagem. Os automóveis predominam no imaginário dos planejadores urbanos. Avenidas, rodovias, túneis, pontes tornam--se sinônimos de progresso na cidade.

O espaço público está ocupado por construções que têm como finalidade ex-clusiva melhorar o tráfego dos grandes centros urbanos. Entretanto, no Brasil, se-gundo dados do Denatran, nos últimos 10 anos a frota nacional passou de 24 milhões para 56 milhões de veículos. Além de con-tribuírem para a exclusão das pessoas dos espaços públicos, os automóveis, sobretu-do os particulares, estão entre os principais emissores de poluentes, constituindo-se num “apocalipse motorizado” (LUDD, 2004, p.48).

As ruas, que simbolizam o espaço da diversidade, do encontro, das relações hu-manas, foram radicalmente esvaziadas da

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presença das pessoas, comprometendo, assim, as múltiplas dimensões da sociabilidade humana.

Ao analisar a ação TRANSITOSitus, nota-se que no Campus Universitário da Unesp de Bauru, a inclusão de políticas de acessibilidade entre normas e leis de trânsito referente a estacionamento, velocidade e direcionamentos, entretanto, não existem políticas de mo-bilidade urbana, tampouco estruturas de ciclovias para os ciclistas que se deslocam de suas residências para universidade na cidade de Bauru.

Figura 9. Mapa Campus Universitário Unesp-Bauru.Fonte: http://www.bauru.unesp.br/

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ossiO Campus Universitário na cidade de

Bauru da Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho”, UNESP/BAURU, possui uma área total de 456,68 hectares e 71.087,52 m² de área construída, entre salas de aulas, laboratórios, biblioteca, departamentos de ensino e áreas adminis-trativas. Atualmente, possui 416 docentes e 496 servidores, atendendo diariamente mais de 7.000 alunos.

Nota-se que grande parte dos servido-res, discentes e docentes desloca-se no campus universitário por meio de veículos motorizados, o que implica em um alto flu-xo de automóveis no espaço geográfico da universidade, comprometendo a estrutu-ra geográfica e a mobilidade no cotidiano do campus universitário. Percebe-se que o automóvel particular em deslocamento ou estacionado ocupa uma área espacial, interferindo de maneira significativa sobre o espaço coletivo.

A ação poética indica que para peque-nos e médios deslocamentos entre três e cinco quilômetros, utilizar a bicicleta acaba sendo mais prático e viável do que cami-nhar ou utilizar o transporte coletivo ou pri-vado. Transitar de bicicleta permite estar no território, vivenciando a cidade de outra maneira durante o seu deslocamento, o

que proporciona ao sujeito uma percepção urbana e ambiental do local que está inse-rido, além de conhecer o seu corpo coletivo e singular. O incentivo do uso da bicicleta possibilita ampliar a mobilidade social e seu incentivo também se dirige à Política de Saúde Pública.

Durante os dois meses de intervenção do uso da bicicleta no campus, vale ressaltar que não ocorreu nenhum roubo ou furto do objeto. A ação TRANSITOSitus apresentou a construção de uma consciência generaliza-da da importância do uso da bicicleta no es-paço onde aconteceu a intervenção, permi-tindo no cotidiano do Campus Universitário da UNESP/Bauru o seu uso como mobilida-de urbana permanente.

Considerações Finais

As possibilidades ficcionais manifesta-das pela arte são transgressoras quanto a seu objetivo em conhecer, modificar e transformar a realidade humana. O conhe-cimento da linguagem é fundamental para proporcionar tal transformação, assimila-do com as concepções de territorialidades.

A influência do sistema capitalista e o domínio de poder do Estado, como os

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meios de apropriação do território, estabe-lecem na sociedade hábitos pragmáticos consolidados entre si, propostos na socie-dade de massa como meio de trabalho e di-versão, de produtos e consumidores, con-dicionando o sujeito nas relações de poder e controle influenciados pelo capital.

As territorialidades designam codifica-ções, além de suas estruturas funcionais, visíveis e também simbólicas, citados nos conceitos de psicogeografia e na T.A.Z., que relacionam práticas artísticas no espa-ço público e possibilitam novas percepções de espacialidades como meio de constituir território coletivo. Sendo o território uns dos principais instrumentos de libertação social, seus meios de apropriação permi-tem produções e o desenvolvimento de subsistências materiais e imateriais na vida social.

O projeto “Ilhas de Croatã” propôs, atra-vés de um imaginário coletivo, uma alter-nativa de criar uma realidade não contro-lada e limitada pelo Estado ou Instituições de poder e controle, inserindo a arte nos fluxos de passagem e encontro, entre as relações e diferenças no campo social. Promove-se, assim, a difusão da arte de forma poética no espaço coletivo em as-pectos políticos e estéticos, como na ação

TRANSITOSensorium, e múltiplos proces-sos de troca e conexão com ambiente em forma de um rizoma.

Quanto na ação TRANSITOSitus, difun-diu-se o uso da bicicleta como meio alter-nativo de mobilidade urbana, ampliando a mobilidade social, o que foi fundamental na relação entre a proposta e o território, em que a intervenção apresentou-se de uma forma livre e democrática na apropria-ção e relação do público com a arte.

As ações poéticas aconteceram de for-ma integrada no campus universitário da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” e na cidade de Bauru, pos-sibilitando em sua vivência uma reconexão do sujeito com o território, potencializando uma transversalidade cultural e reinven-tando a cidade e o espaço coletivo. As con-cepções territoriais conectadas com a arte valorizam as relações do campo social ao invés do objeto em si, principalmente nas relações sociais.

Portanto, nos processos criativos da arte contemporânea, existe um campo aberto às investigações com base em cru-zamentos singulares que envolvem ques-tões conceituais, invenções de procedi-mentos diversos, concepções de modos de apresentação, de exposição e estratégias

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osside circulação, que são gestados no âmbito

de cada projeto artístico, promovendo uma hibridação nas relações humanas, na qual o artista torna-se uma espécie de ativista e a arte uma guerrilha cultural.

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A CIDADE COMO ESPAÇO POÉTICO E ALGUNS CAMINHOS PARA A

HISTÓRIA DA ARTE NA CONTEMPORANEIDADE

Regilene A. Sarzi Ribeiro7

7. Pós- doutora em Artes pelo Instituto de Artes – UNESP/SP, FAAC - Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação – UNESP, Bauru/SP. [email protected]

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Resumo

O artigo apresenta diferentes ações ar-tísticas realizadas no espaço urbano ou a partir dele. Estas intervenções surgem na década de 1960 com a perda da aura e da artisticidade do objeto artístico e pro-movem o encontro da arte efêmera com a cidade, tornando-a um receptáculo po-ético. O objetivo da pesquisa foi tecer al-guns caminhos para a história da arte na contemporaneidade após o fim da historia cronológica e narrativa, conforme Danto e Belting. Para tanto, propõe-se novas co-nexões ou diálogos estéticos, como este que toma a cidade como ponto de partida. Para descrever novas experiências estéti-cas, a pesquisa adotou como metodologia o conceito de rede, ou rizoma, associando diferentes contextos, obras e artistas que adotam o espaço urbano como meio para expressão e experiência visual.

Palavras-chave: cidade; ações artísti-cas; história da arte contemporânea.

Abstract

The article presents different artistic ac-tions carried out in urban areas or from it.

These interventions come in the 1960s with the loss of the aura and artistry of the art object and promote the meeting of ephe-meral art to the city, making it a poetic re-ceptacle. The objective was to make a few paths to the history of art in contemporary times after the end of the chronological history and narrative, as Danto and Belting. Therefore, it proposes new connections or aesthetic dialogues like this that takes the city as a starting point. To describe new aesthetic experiences, the research adopted as methodology the concept of network, or rhizome, associating different contexts, works and artists who adopt the urban space as a means of expression and visual experience.

Keywords: city; artistic actions; history of contemporary art.

Alguns caminhos para a história da arte na contemporaneidade

Em meados da década de 1980, o filóso-fo e crítico de arte norte-americano Arthur C. Danto (2006) afirma em seus escritos que “a arte chegou ao fim”. Isso não significa o fim das obras ou dos artistas, mas de um

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ou narrativa escrita em uma perspectiva linear e evolutiva, a “era da arte” (DANTO, 2006).

No livro “Após o fim da Arte. A Arte Contemporânea e os limites da História”, Danto comenta o que ele e outros pensa-dores da sua geração, como Gianni Vattimo e Hans Belting, pensam sobre fim da arte e afirma:

[...] a ideia esteve em circulação em me-ados da década de 1980. [...] Vattimo vê o fenômeno com que eu e Belting nos ocupamos de uma perspectiva bastante mais ampla [...] ele pensa o fim da arte sob a perspectiva da morte [...]de certas respostas filosóficas a problemas estéti-cos suscitados por uma sociedade “tec-nologicamente avançada”. Vattimo fala de earthworks (arte da terra), body art (arte do corpo), teatro de rua, etc. em que a condição da obra se torna funda-mentalmente ambígua: a obra não bus-ca mais um sucesso que lhe permitira se posicionar em determinado conjunto de valores. (DANTO, 2006, p.4).

Ainda segundo Danto, o que eles esta-vam discutindo era como um complexo de

práticas artísticas (desenho, pintura, es-cultura, gravura) que tinham construído a história da arte na forma de narrativas, en-raizadas no conceito de representação, ti-nham se transformado e dado lugar a outro complexo de práticas hibridas (happening, performance art, body art, earthworks) mesmo que este ainda fosse impreciso e em processo. “Uma história havia acabado. [...] O que havia chegado a um fim era a nar-rativa e não o tema da narrativa” (DANTO, 2006, p.5).

Para o historiador de arte alemão Hans Belting, a questão diz respeito às relações en-tre antigos e novos métodos da pesquisa em arte cujas regras foram edificando a discipli-na “história da arte” desde o Renascimento, a partir de um tempo cronológico no qual são inseridas as obras e os artistas.

No Iluminismo (Século XVIII), com a era das academias, a arte passa a ser contem-plada em sua história, e a história da arte torna-se um tema que só pode ser compre-endido nas transformações formais e ine-vitáveis que as obras sofrem, as quais são atribuídas à época ou período histórico.

O que acabou foram os laços que uniam a arte à história e constituíam a base dos es-tilos e movimentos artísticos até meados de 1970. Desde então, na “arte pós-histórica”

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(DANTO, 2006), o compromisso dos artistas passou a ser com a liberdade de criar, apro-priar, adaptar, repetir, colar, reler, citar, en-tre outras operações poéticas.

Ao tratar da história da arte na arte atu-al, Belting defende:

No conceito ‘história da arte’ está contida tanto a história real da arte como a dis-ciplina que escreve essa história. O fim da história da arte não significa para a disciplina o fim de seu tema, mas o pos-sível fim de um conceito único e fixo de acontecimento artístico. [...] pretende chamar a atenção para a situação atual dos artistas que não se movem mais por um caminho retilíneo do desenvolvimen-to histórico, e simultaneamente dirigem o olhar para uma ciência da arte que não reconhece mais um modelo obrigató-rio para a apresentação de seu objeto. (BELTING, 2012, p.205).

Neste contexto, cabe buscar novos ca-minhos para a história da arte na contem-poraneidade e, ao contrário do que já se produziu na disciplina, a proposta é pensar em uma história da arte em rede ou rizo-mas elaborada a partir de conexões atem-porais ou associações simultâneas. O que

já se fez foi uma história da arte como his-tória dos estilos; como história das formas; como história da cidade; como história das técnicas e ou como história de temas, mar-cados por categorias e movimentos.

Atualmente, o que se observa é um exercí-cio da crítica de arte que ressignifica a histó-ria da arte como história das imagens; como história dos materiais artísticos, como histó-ria da intertextualidade presente nas obras (RIBEIRO, 2014) ou pelo estudo de suas ope-rações poéticas como uma história da arte a partir do citacionismo ou apropriação.

Nesta pesquisa o que se propõe são no-vas conexões ou diálogos estéticos tendo a cidade como ponto de partida. Para des-crever novas experiências estéticas, a pes-quisa adotou como metodologia o conceito de rede, ou rizoma, associando diferentes contextos, obras e artistas que adotam o espaço urbano como meio para expressão e experiência visual.

A cidade como espaço poético

A psicanalista Miriam Chnaiderman, que adotou o cinema em suas pesquisas sobre identidade e práticas alternativas de uso

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ibeirodo espaço urbano na cidade de São Paulo,

cita o filósofo e curador Nelson Brissac Peixoto ao se referir às cidades como paisagens contemporâneas. Segundo Chnaiderman, Peixoto afirma que “[...] o cruzamento entre diferentes espaços e tempos[...]” (CHNAIDERMAN, 2008, p.119) entre diversos suportes e tipos de imagens é que constitui a paisagem das cidades.

Segundo o psicólogo e filósofo norte-a-mericano John Dewey (2010), não há per-cepção estética se não houver qualidades temporais. Para ter a experiência de um lugar é preciso “[...] circular, por dentro e por fora, deixar que ao longo de visitas reiteradas, aos poucos a estrutura se en-tregue a nós [...]” (DEWEY, 2010, p.390). De igual forma, a noção geográfica de territó-rio nos remete à ideia de lugares, físicos ou não. A partir das relações com a geografia e arquitetura podemos interpretar territó-rios como espaços da cidade, cujas frontei-ras híbridas são compostas por fluxos de ideias, corpos em redes e novas experiên-cias espaço-temporais.

Para a filósofa francesa Anne Cauquelin “[...] é o tempo que governa as ativida-des artísticas contemporâneas [...] mes-mo com elas se desdobrando no espaço” (CAUQUELIN, 2008, p.89).

Os artistas do Neoconcretismo ex-pandiram os elementos internos da obra para o espaço exterior, como na espacia-lização da cor e na participação ambien-tal promovida por Hélio Oiticica a partir de seus Parangolés (1964) e Penetráveis, respectivamente.

Na instalação “Penetrável PN27, Rijanviera” (1979), em diálogo com a arte conceitual e a arquitetura, Oiticica buscou a criação de espaços labirínticos, estrutu-rados e participativos explorando diferen-tes tessituras (arame, areia, metal, pedra e água). Segundo o crítico de arte Ferreira Gullar (2012), a ideia era levar as pessoas a caminharem descalças pelo ambiente onde havia luzes e cores diferentes, para tocar, experimentar e sentir o espaço.

Nas manifestações ambientais de Oiticica e “[...] a situação arquitetural é constantemente estruturada pela experi-ência vivencial de um tempo e de um lugar, tendo em si como potência outras situa-ções. É a dilatação do ser no mundo, exten-são do corpo, ou, tomando Merleau-Ponty, voluminosidade” (SPERLING, 2011, p.135).

Para o arquiteto David Sperling as situ-ações arquiteturais não estão vinculadas à experiência dos sites specifics. As proposi-ções destes artistas não são posicionadas

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em um lugar específico, mas “[...] situa-das em um contexto pessoal e coletivo” (SPERLING, 2011, p.135).

Figura 1. Penetrável 27, Rijanviera (1979). Hélio Oiticica. Instalação.

Fonte: Galeria Sérgio Caribe, São Paulo. In: http://galeriasergiocaribe.com.br/

As experiências arquiteturais (espaço--tempo) propostas por Oiticica marcam a desmaterialização do objeto em direção à investigação das ações cotidianas, das re-lações entre arte e vida e intervenções no espaço urbano, que se somam ao seu “pro-grama ambiental”.

No final dos anos 1960, o rompimento de fronteiras entre linguagens, a discussão sobre autonomia da arte e unicidade do objeto artístico resultam na desmateriali-zação da obra de arte (CAUQUELIN, 2008)

diante da utilização do lugar como forma de experiência estética.

Novas relações com novas situações ge-ográficas e sociais mudam o status do ar-tista, o lugar de transformações políticas é também o lugar de transformações artísti-cas: o etnógrafo converte-se em paradigma da arte contemporânea (PEIXOTO, 2012). O artista torna-se um pesquisador e a partir da cidade produz novas imagens.

Em 1986, Lygia Pape, integrante do Neoconcretismo, publicou parte de sua pesquisa de mestrado no artigo “Morar na cor”, na Arquitetura Revista, na qual expressa seu entusiasmo pelas pessoas e suas vivências com a cor na “chamada não arquitetura”, termo usado para definir a ar-quitetura na periferia do Rio de Janeiro.

A artista afirma que nestes lugares, de geografia suburbana e rural, era possível encontrar uma “liberdade existencial” e o uso espontâneo da cor, a experiência da cor. O texto somado às fotografias “[...] re-gistram momentos dessa mutante arquite-tura cromática” (CONDURU, 2009, p.125), que Lygia descobriu em suas peregrinações pela cidade que lhe provocou esta experi-ência visual.

Lygia também registrou a cidade do Rio de Janeiro em outra série de fotografias

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Figura 2. Da série “Morar na Cor”. Lygia Pape. Fotografia. 1986.Fonte: CATÁLOGO Lygia Pape: espaço imantado. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2012. 75

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titulada “Espaços imantados”, em 1986. A artista relata que durante suas andanças (vagabundagens) de carro pela cidade, percebeu um novo tipo de relação com o espaço, uma espécie de teia que os deslo-camentos e trajetos tecem pelo espaço ur-bano: “[...] é um tal de vai daqui, cruza ali, dobra adiante, sobe e desce viadutos, entra e sai de túneis, eu e todas as pessoas da ci-dade” (PAPE, 2012, p.285).

Figura 3. Da Série “Espaço Imantado”. Lygia Pape. Fotografias. 1986.

Fonte: CATÁLOGO Lygia Pape: espaço imantado. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2012.

A experiência do espaço constrói as diferentes territorialidades, cartografias, constantemente em mutação, em mobi-lidade. A fotografia de Lygia Pape oferece a partir da experiência artística um modo

de habitar transitoriamente a cidade, mo-rar na cor, experimentar novos itinerá-rios e errâncias, vivenciar o nomadismo (MAFFESOLI, 2001).

O historiador da arte Roberto Conduru (2009) questiona: o espaço imanta ou é imantado? Por quem? Pelas pessoas que habitam estes espaços ou pela artista que o torna lugar de representação artística? O espaço por si só não é artístico, nem mes-mo o espaço da fotografia que registra a realidade de forma objetiva ou subjetiva. Logo, como Lygia transforma o espaço ur-bano em um espaço poético?

Em “Espaços imantados”, a fotografia é um lugar de apropriação e produção artís-tica, não para documentar práticas, coisas, pessoas ou lugares, mas para ressignificar pessoas e lugares, para ativar potências. Ao se apropriar da cidade utilizando a lin-guagem fotográfica, Lygia Pape opera a fotografia como imagem-registro que po-tencializa o lugar e o espaço urbano como experiência visual na contemporaneidade.

A educadora Ana Mae Barbosa e a artis-ta Lilian Amaral perguntam: “[...] que luga-res, num mundo marcado pelo nomadis-mo, impermanência e simultaneidade, as manifestações artísticas podem ocupar?” (BARBOSA e AMARAL, 2008, p.20).

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ibeiroNa contemporaneidade, a cidade como “[...] espaço de ação da cultura das redes é um

espaço informacional, mediado por redes de comunicação” que estão implodindo as no-ções de distancia e localidade, os limites entre os lugares da arte, da propaganda e da in-formação, e as relações entre lugar e não lugar (BEIGUELMAN, 2008, p.190).

Sobre a Passarela Joaquim Macedo na cidade de Rio Branco, no Acre, a artista paulista Lilian Amaral propôs intervenções urbanas e a instalação de banners produzidos durante ofi-cinas poéticas, na Usina de Arte João Donato. Os banners com frases como “o que você sente ao atravessar a passarela?” ou “para onde você vai?” obstruíam parcialmente a passagem dos pedestres, indiferentes àquele espaço de conexão entre bairros (AMARAL, 2008).

Figura 4. Interterritorialidades: projetos colaborativos. Lilian Amaral. Intervenções Urbanas, Rio Branco, Acre, 2007.

Fonte: BARBOSA, Ana Mae Tavares Bastos; AMARAL, Lilian (org.). Interterritorialidade: mídias, contextos e educação. São Paulo: SENAC/SESCSP, 2008. p.45-62.

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O trabalho “Interterritorialidades: pro-jetos colaborativos”, em Rio Branco, in-tegrou o projeto “Rede Nacional de Artes Visuais” da Funarte (2007) e foi realizado também em Santo André e Guarulhos, em São Paulo.

Segundo Amaral (2008), o projeto Interterritorialidades buscou encontros do eu com o outro (identidade); leituras da cidade (local) e leituras do mundo (glo-bal), recompondo os imaginários urbanos a partir da relação dos participantes com os espaços e experiências com os lugares e constituindo uma imagem coletiva da cida-de, híbrida e transitória. A prática de arte pública que aconteceu sobre a Passarela Joaquim Macedo, ampliou a espacialida-de da rua e a transformou em uma grande performance coletiva.

Depois da earthworks, da land art e das operações expositivas dentro e fora da ga-leria, do espaço idealizado, o cubo bran-co da arte moderna (O’DOHERTY, 2002), o debate sobre o lugar e o espaço da arte na contemporaneidade desloca-se para o am-biente (espaço/lugar) urbano, para a cida-de (CAUQUELIN, 2008).

Entre os anos de 1960 e 1970, animados pelo clima político e intelectual francês e eu-ropeu, os artistas tinham posições críticas

veementes em relação ao mundo em que viviam. Alguns combinavam preocupações estéticas e políticas e criavam proposições, intervenções e ações que envolviam a cida-de e as pessoas locais, como o grupo CoBrA (Copenhagen, Bruxelas e Amsterdã, cida-des de onde provinham os participantes) e a Internacional Situacionista, sob o coman-do do francês Guy Debord (1931-1994).

Debord acreditava que as rotinas e as convenções da vida cotidiana, como as que são organizadas pelo sistema capitalista, alienavam e esmagavam o indivíduo. Por isso, ele questionava as supostas liberda-des do capitalismo, que nada mais eram do que projeções espetaculares de uma ide-ologia de controle social. Debord será um dos pioneiros na prática das andanças, de-rivas e estudos em psicogeografia.

Há cerca de 60 anos, no final dos anos 1950, o francês Guy Debord sugere um mé-todo de estudo das ações do ambiente das cidades nas condições psíquicas e emocio-nais das pessoas conhecido como “Deriva”. O conceito era baseado na psicogeografia e ,,a pessoa ou grupo devia partir de um lugar comum e deixar-se levar “a deriva” pelos caminhos que o próprio meio urbano lhes oferecessem. Nas proposições poéti-cas que envolvem a deriva, a cidade é um

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ibeiroespaço libertador que potencializa a experiência vivida no cotidiano e gera uma ruptura,

uma fratura estética.

Figura 5. The naked city: illustration de hypothè se des plagues tournantes en psychogé ographique/G.-E. Debord. 1931.

Fonte: Postwar Culture. Guy Debord. In: http://www.beineckepostwar.com/#!guy-debord/c114c

As reflexões teóricas e as práticas poéticas da Internacional Situacionista articulavam arte e vida, arte e política, arte e cidade: eixos da “Internacional Letrista” retomados pelo Situacionismo. A poesia era vista como “para lá da estética”. Práticas como a “deriva”, a

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“psicogeografia” e o “desvio” defendem as perambulações ao acaso pela cidade e estimu-lam as reinterpretações do espaço com base na experiência vivida.

O urbanismo e a arquitetura são centrais para os letristas e situacionistas que tornam suas intervenções no espaço urbano uma crítica à vida cotidiana. Buscando demarcar cla-ramente suas posições sociais, culturais e políticas, os situacionistas realizaram uma série de intervenções como a distribuição de panfletos, declarações, envio de telegramas e arte postal, entre outras práticas e eventos.

Não por acaso, as cartografias (itinerários, territórios) e o nomadismo ou derivas psico-geográficas, conforme descreve Michel Maffesoli (2001), dominam as exposições artísticas nos últimos anos. Estas estruturas implicam na transformação das condições de percep-ção, na ocupação do espaço e nas mudanças nos procedimentos de criação e organização institucional da arte no mundo contemporâneo.

O historiador italiano Giulio Carlo Argan, autor de História da arte como história da ci-dade (1998), citado por Danilo Miranda, defende que o espaço urbano é o lugar da arte. A cidade não é apenas o invólucro da arte, mas a própria matéria da arte. Miranda defende: toda a poética do espaço é também uma arte dos lugares (MIRANDA, 2008).

No final dos anos 1960 e começo dos 1970, interessado na fenomenologia de Merleau-Ponty, o artista norte-americano Vito Acconci apropria-se do próprio corpo e passa a se referir à presença do corpo no espaço. A “qualidade fantasmática do corpo”, um corpo está aqui, mas enquanto está aqui, também está lá, deixando suas marcas: uma presença na ausência (MATTOS, 2009).

Em “Following Piece” (1969), Acconci seguiu diferentes pessoas por algumas ruas da ci-dade de Nova York, entre os dias 03 e 25 de outubro de 1969 durante o evento Street Works IV e registrou em fotografia esta ação. O artista escolhia um transeunte aleatoriamente e o seguia até que ele entrasse em um carro ou edifício.

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Figura 6. Following Piece. Vito Acconci. Registros fotográficos e textos da ação. 1969.Fonte: Gebert Foundation. Contemporary Art Daily.

In: http://www.contemporaryartdaily.com/2014/05/69-96-at-gebert-foundation/1969followingpiece3/

Como um nômade (MAFFESOLI, 2001), Acconci fazia do trajeto do outro o seu percurso. O resultado é uma cartografia (geografia) das andanças de Acconci representadas por dife-rentes coreografias (dança) conforme o rumo de cada passante. Para o artista interessava

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discutir como o nosso corpo está sujeito a ações externas que não estão sob o nosso con-trole (política).

No lugar de ser apenas mais um objeto que contemplamos na galeria, as ações perfor-máticas de Acconci participam da revolução da década de 1960, que buscou levar a arte para fora da galeria, a fim de explorar questões reais como espaço, tempo e corpo. Em suas anotações, Acconci registra a necessidade de alguns procedimentos do artista como um diagrama (plano ou esquema), abrir mão do controle para se deixar aproximar da pessoa (relação subjetiva), entrar no meio das coisas com respeito à maneira de se deslocar (fora do tempo e fora do espaço) durante a ação performática.

Entre os meses de maio e junho de 2001, Katia Canton (2009) fez a curadoria do projeto “O afeto e a cidade”, que reuniu trabalhos realizados no entorno do Centro Cultural Banco do Brasil, no centro de São Paulo, instituição sede do evento. O projeto foi constituído de uma série de intervenções urbanas feitas nos arredores do centro da cidade, por ocasião da inauguração do novo prédio do CCBB.

Participaram do projeto jovens artistas cuja obra se relaciona com o espaço da cidade e tratam de questões existenciais vinculadas ao afeto. Uma das artistas convidadas por Canton foi Beth Moyses que apresentou a performance-instalação coletiva “Memória do Afeto” (2000).

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Figura 7. Memória do Afeto. Beth Moyses. Performance-instalação coletiva. São Paulo. 2000.Fonte: Foto Patrícia Gato.

Desde os anos de 1990, a artista brasileira Beth Moysés assumiu o vestido de noiva como instrumento de articulação simbólica para comentar as relações amorosas e tudo o que as cercam. Beth Moyses levou esta obra para diferentes cidades ao redor do mundo.

Na obra “Mosaicos Brancos”, as noivas e seus vestidos encontram-se no espaço da grande metrópole São Paulo. Beth reuniu 60 mulheres vestidas de noivas que percorre-ram as ruas do centro da cidade levando nas mãos peças de mármore branco que juntas formavam um fecho éclair. Em uma “abertura”, uma fratura (vazio visível) no chão de uma

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calçada em frente ao mosteiro São Bento, no centro antigo da cidade, as mulheres enter-raram as peças uma a uma formando um mosaico na forma de uma mandala (circulo) de encaixes perfeitos.

Para a artista, foi como se cada mulher depositasse ali um pedaço do seu afeto para que o amor potencializado pelo círculo se tornasse um centro amoroso no centro da cida-de. Beth propõe, com sua performance-instalação coletiva, uma reflexão sobre questões de gênero, e a genuína troca de memórias e sentidos que constitui um território de trocas afetuosas no espaço que é matéria da arte contextual.

Em 2005, a performance aconteceu em Sevilha, na Espanha e, em 2008, em Shangai, na China, quando o trabalho recebeu o nome de “Lembranças Veladas” e discutiu, sobretudo, o papel da mulher na sociedade chinesa.

Figura 8. Lembranças Veladas. Performance-instalação coletiva. Shangai, China. 2008.Fonte: O Poder de Beth Moyses. In: Revista Performatus. Ano 2. No.08, Janeiro de 2014. performatus.net

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A intervenção interrompe o fluxo cotidiano do espaço urbano e reconfigura o lugar. É como se cada mulher depositasse ali um pedaço do seu afeto para que o amor potencia-lizado pelo círculo se tornasse um centro amoroso, dentro do centro da cidade. A genuína troca de memórias, lembranças e sentidos que buscam os artistas contemporâneos, pro-curando o próprio eu através do outro.

Resgatar o outro é também uma das bases conceituais do projeto “Sem título” (1991) do artista Felix Gonzalez-Torres (americano, nascido em Cuba - 1957-1996) que leva para fora das galerias e museus uma ausência, um vazio visível (ausência na presença). Em 1991, o artista expôs em painéis publicitários a foto de uma cama desarrumada com as marcas das pessoas que tinham dormido nela, criando cenas de evocação íntima acentuadas pelo contexto público em que elas eram expostas: nas ruas da cidade de Nova York.

A imagem da cena íntima ganha uma dimensão psicológica intensa quando é colocada no espaço público de ruas e avenidas. Essa fusão de locais públicos com a cena da vida pri-vada, obtida pela sensibilidade do artista, permite que o observador projete no trabalho suas próprias experiências e interprete-o com seus significados pessoais (COTTON, 2010).

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Figura 9. Sem título. Félix Gonzalez-Torres. Fotografia. Outdoor. 1991.Fonte: INSIDEART. In: http://insideart.eu/tag/feliz-gonzales-torres/

No início de 1990, a crise da AIDS levantou muitas controvérsias em torno da homosse-xualidade e a perda de muitas pessoas queridas. A cama também representou um lugar de conflito, ausência, simbolizando o amor e a morte.

O companheiro de Gonzalez-Torres, Ross Laycock, morreu de AIDS em 1991, o que con-fere a este trabalho um caráter pessoal, mas ao mesmo tempo com associações universais como conforto, intimidade, solidão ou perda.

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Em 2012, um projeto do MOMA, levou o trabalho novamente às ruas em seis outdoors distribuídos por Manhattan, Brooklyn e Queens. Várias pessoas puderam vê-lo alterando as paisagens e causando uma “fratura” nas imagens publicitárias e no fluxo da cidade.

Desprovido de textos, logotipos ou legendas este trabalho convoca um segundo olhar, desperta a percepção, ou mesmo uma pausa momentânea na agitação da cidade, dada a qualidade introspectiva da imagem. Gonzalez queria que suas obras se espalhassem “como um vírus que vai para muitos diferentes lugares-casas, estúdios, lojas, casas de ba-nho” (CONATY, 2012).

Figura 10. Sem Título. Felix Gonzalez-Torres. Instalação do outdoor com a foto original de 1991 na 11ª Avenida com a Rua 38, em Manhattan, entre 20 de fevereiro e 18 de março de 2012. The Felix Gonzalez-Torres Foundation, New York.

Fonte: MOMA. INSIDE/OUT. In: http://www.moma.org/explore/inside_out/2012/04/04/printout-felix-gonzalez-torres

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No díptico “Disponha” (2001), o artis-ta brasileiro Rubens Mano, formado em arquitetura, apresenta duas fotografias que acentuam as correspondências entre imagem e espaço, fotografia e arquitetu-ra, vinculando processos de construção de espaços às oscilações de nosso sistema perceptivo.

As fotos de Rubens Mano são apreendi-das no interior de uma narrativa marcada pela ideia de constância e repetição dos atos que realizamos na construção de es-paços, sobretudo os espaços da cidade e podem ser entendidas como elementos de ligação ou elos entre nós e o ambiente que nos envolve. São cenas construídas duran-te ações do artista projetadas para os espa-ços da cidade, visando ampliar o campo de investigação sobre as dimensões da espa-cialidade urbana.

Em entrevista à Thais Rivitti para o site Fórum Permanente, Rubens Mano comen-ta a visão do geógrafo brasileiro Milton Santos sobre os espaços sociais e a cidade e afirma que ele:

[...] pensava o espaço como sendo a sín-tese provisória entre o conteúdo social e as formas espaciais. Um eterno Presente resultante de processos e funções atuais.

Uma construção visível principalmente no espaço comum das ruas, cuja metáfo-ra é a da impermanência. A arquitetura, por sua vez, nasceu sob o signo da per-manência, da fixidez e portanto distante dessa dimensão, digamos, mais fluida. E, apesar de ser uma ação física que define e molda o ambiente que nos envolve, na maioria das vezes ela ainda teima em nos ver como meros usuários, deixando de aproximar suas respostas das necessida-des e prioridades dos habitantes das ci-dades. Enquanto para a arquitetura o es-paço ainda aparece como uma dimensão exclusivamente física, para a arte ele vem sendo compreendido como lugar onde a conversão de usuários em sujeitos é uma possibilidade real (RIVITTI, s/d).

Figura 11. Disponha. Rubens Mano. Díptico de fotografias. Impressão lambda em papel RC, montada

em metacrilato, 110x231cm. 2001.Fonte: Galeria Millan, São Paulo. In: http://galeriamillan.com.br/

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ibeiroRubens explora a possibilidade de in-

terrogar como o espaço se produz introdu-zindo nele um dispositivo que causa estra-nhamento, como os carros nestas fotos. A intervenção permite explicitar a maneira como o espaço surge tanto para aquele que o contempla e observa de fora quanto para aquele que nele vive e por ele passa.

O artista busca mostrar como a inter-venção interfere no espaço-tempo do lugar, deslocando-o e conferindo-lhe uma quali-dade nova. O lugar é o mesmo de sempre e, no entanto, é outro. Na série “Disponha” ocorre uma subtração do espaço somente apreensível no tempo, isto é, no intervalo entre as imagens (SANTOS, s/d).

Alegorias da deterioração e fragilidade do lugar, a arquitetura é fotografada no ponto em que os edifícios se deterioram ou sobrevivem ao seu propósito original e foram abandonados por seus ocupantes. Os locais são investidos de sentido. O espa-ço em que o discurso é apresentado passa a ser um componente essencial da obra (CAUQUELIN, 2005).

Para a filósofa francesa Anne Cauquelin, a arte contextual se exprime no ambien-te (espaço) introduzindo aspectos sen-síveis na realidade para transformá-la (CAUQUELIN, 2008).

Em 2002, a artista Tatiana Grinberg par-ticipou da exposição “Love’s House: 13 ar-tistas em curta temporada”, na qual cada artista recebeu um quarto no Hotel Love’s House, no bairro tradicional e boêmio da Lapa, no Rio de Janeiro, para criar um site specific que ficaria a mostra por apenas onze dias. O nome do lugar da interven-ção urbana, “casa do amor”, nos remete às metáforas sobre o corpo, a sexualidade e a intimidade.

Nos trabalhos de Tatiana Grinberg no-ta-se uma relação expressiva com a arqui-tetura. Neles estão sempre presentes ma-neiras de coabitar lugares. Os projetos da artista exploram as relações entre o corpo e o espaço, a partir do tato, audição e pro-priocepção (percepção do próprio corpo), admitem o mistério e a delicadeza como elementos poéticos. A artista afirma que considera o espaço como matéria e que suas referências (casa, abrigo, proteção, tamanho e proporção) estão ligadas às experiências que viveu quando criança na casa de seus avós (GRINBERG, 2012).

Em 2011, a obra “Espaço em branco en-tre 4 paredes” foi remontada no MAM/RJ, na exposição Placebo_01 e ficou, a pedido do projeto original, no espaço “apertado”

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Figura 12. Fachada do hotel Love’s House, na Lapa, no Rio de Janeiro e interior do quarto reservado para a

obra de Tatiana Grinberg “Espaço em branco entre quatro paredes”, site-

specific, 2002. Fontes: Fachada do Hotel. In: Flickr.com. Tatiana

Grinberg. Prêmio PIPA, 2012.

Figura 13. Espaço em branco entre 4 paredes. Tatiana Grinberg. 2011. MAM, Rio de Janeiro.Fonte: Tatiana Grinberg. Prêmio PIPA, 2012. In: http://www.pipa.org.br/pag/tatiana-grinberg/A

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ibeirode um corredor entre os banheiros masculino e feminino e o vidro do jardim configurando

um não lugar no museu.Para a artista, o entendimento do espaço não é só visual, mas uma questão de proprio-

cepção requisitado pela obra. Quando se coloca a mão dentro do trabalho não se vê mais o que se está fazendo, perde-se o controle visual e o tato passa a agir no reconhecimento deste outro-lugar, cuja experiência sensorial envolve o corpo todo.

Esse outro lugar não é metafórico ou teórico, é outro lugar mesmo, construído a partir de um novo espaço que estende (alarga, desdobra) a corporalidade do público na medida em que ele é parte estrutural da obra. Da mesma forma como Sperling (2011) afirma ser o resultado das “situações arquiteturais” de Hélio Oiticica.

O lugar e o espaço da arte na contemporaneidade passam pela experiência de habitar (corpo) lugares e não lugares, espaços entre, espaços de fronteira e tessituras híbridas, um vazio cheio de ausências e presenças, último reduto da experiência e de novas práticas poéticas.

Para o etnólogo e antropólogo francês Marc Augé, os não lugares passam a ser a me-dida da nossa época que converte superfície, volume e distância em vias aéreas, ferrovi-árias, rodoviárias, domicílios móveis, grandes cadeias de hotéis, redes a cabo ou sem fio. Estes dispositivos mobilizam o espaço para uma comunicação que coloca o indivíduo em contato com outra imagem de si mesmo (CHNAIDERMAN, 2008, p.121-122), mediados pela cidade.

Em suma, o espaço urbano como espaço poético na arte da contemporaneidade está relacionado à experiência visual da cidade e à maneira como esta experiência acontece a partir das conexões e vivências que tecemos com as cidades cotidianamente.

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IMERSÕES DA INDÚSTRIA CULTURAL SOBRE O ENSINO

DE ARTE: DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

Ana Beatriz Buoso Marcelino8

8. Mestranda em Comunicação Midiática, FAAC – Unesp. Arte [email protected].

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O presente texto, de caráter teórico-crí-tico, pauta-se no âmbito da arte educação e sua relação com os Meios de Comunicação de Massa (mass media), sobretudo aos fe-nômenos eliciados pela Indústria Cultural em vista da arte como disciplina precursora de inferência, análise e ação. O processo de estudo, entretanto, resume-se na análise comparativa das teorias implantadas pelos estudiosos da escola de Frankfurt, através de um debate de ideias que argumentam e analisam os pressupostos da Teoria Crítica, como a vertente da Estética da Recepção junto às proposições da Semiótica, que vi-sam elucidar sobre as possíveis influências exercidas pela cultura de massa na arte e no seu ensino. Contudo, tais esferas apare-cem como efetivas e difusoras da ação edu-cativa, de modo que, se pensadas como proposições didáticas em arte educação, são passíveis de investir na formação de alunos mais críticos, sensíveis e leitores do mundo, como uma das possíveis soluções para a superação de tal problemática.

Palavras-chave: Arte educação; Indústria Cultural; Cultura de Massa.

Abstract

This paper, theoretical and critical nature, is guide within the art education and its relation to the Mass Media (media), especially the phenomena elicited by the Cultural Industry in view of art as a precursor discipline of inference, analysis and action. The study process, however, comes down on the comparative analysis of theories deployed by scholars of the Frankfurt School, through a debate of ideas that argue and analyze the assumptions of Critical Theory, that part of the Aesthetics of Reception near the propositions of semiotics, aimed to elucidate the possible influences exerted by the mass culture in art and teaching. However, these spheres appear as enabling effective educational actions, so if you think of them as didactic propositions in art education, they may be subject to invest in the formation of critical, sensitive students and readers of the world as one of the possible solutions to overcome such problems.

Keywords: Art education; Cultural in-dustry; Mass culture.

Ana Beatriz Buoso Marcelino

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noIntrodução

A presente abordagem é norteada pelo questionamento e análise das imersões ge-ridas pela Indústria cultural sobre o ensino de arte, atingindo diretamente a formação crítica dos alunos, e, por conseguinte, as es-feras que os englobam: cultural, social e po-lítica, comprometendo assim a elaboração de seu senso crítico e sua atuação como ci-dadãos e construtores histórico-culturais.

Theodor Adorno, Max Horkheimer (1985) e Walter Benjamin (1975), pensado-res da Escola de Frankfurt, abordam sobre o tema e elucidam as questões pertinentes sobre as influências exercidas pelos meios de comunicação de massa e seus mecanis-mos perniciosos na formação cultural dos sujeitos, atuando com ênfase sobre o pro-cesso educativo, sobretudo à arte e seu en-sino. Suas ideias são articuladas e analisa-das pelos estudiosos: Umberto Eco (2004), Rainer Rochlitz (2003) e Hans Robert Jauss (1994), que apontam questionamentos pertinentes às teorias formuladas pelos frankfutianos.

Dessa forma, este artigo tem como obje-tivo analisar, comparar e validar as proposi-ções desses pensadores para esclarecer a influência exercida pela Indústria Cultural

sobre a arte e a educação, apontando ideias que elucidam este processo, definin-do e argumentando sobre sua atuação no contexto contemporâneo.

Entretanto, justifica-se esta pertinência temática pela necessidade de se educar para a formação cultural dos sujeitos, com ressalvo para a problemática da força per-suasiva exercida pelos mecanismos per-niciosos da Indústria Cultural e seu poder de manipulação sobre as mentes ingênu-as. Moran (1990) justifica este conceito ao apontar que:

(...) compreender melhor os Meios de Comunicação e os processos de comu-nicação torna-se indispensável para se passar de uma consciência ingênua, que não questiona os Meios, para uma cons-ciência crítica, que supere os preconcei-tos existentes e capte a complexidade de dimensões envolvidas. (MORAN, 1990, p. 21)

Assim, sublinha-se a real necessidade de educar o olhar para os meios de comu-nicação de massa através do ensino de arte, que mesmo comprometido com suas intervenções, tem em seu corpo recursos que, se bem planejados, podem apontar

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soluções para a superação desta proble-mática, apostando na formação de cida-dãos críticos, questionadores e reflexivos, legítimos construtores culturais.

Através do método de revisão e análise crítica bibliográfica, serão apontados es-tudiosos do ensino de arte como Ana Mae Barbosa (1991), Anamelia Bueno Buoro (2002) e Fernando Hernández (2000) que propõem soluções práticas através da arte educação para solucionar a forma-ção do olhar crítico do leitor, apoiando-se nas linhas teóricas da Proposta Triangular do Ensino da Arte, Semiótica, Estética da Recepção e Cultura Visual. Tais autores apostam em projetos transdisciplinares e elevam a arte como disciplina fundamental para a formação de sujeitos críticos peran-te a cultura e seu universo de significações.

DesenvolvimentoARTE EDUCAÇÃO E EDUCOMUNICAÇÃO

O ensino de arte na contemporaneidade é caracterizado pelas influências exercidas por vários fatores que o tornam diverso e pluralizado. Dessa forma, em meio a este universo de significações, está o arte-edu-cador em seu desafiador papel de mediar

situações educativas propositoras de refle-xão, de modo a capacitar seus alunos a iden-tificar, discernir e organizar informações de forma crítica, para assim apostar na forma-ção de leitores de mundo competentes.

Contudo, um dos principais fatores que se destaca negativamente, por sua eficaz capacidade de persuasão, são os chama-dos Meios de Comunicação de Massa (mass media), incumbidos de influenciar o pro-cesso digestivo da cultura em todas as suas dimensões. Daí o alerta para a real necessi-dade de uma melhor compreensão de seus processos, para se passar de uma consci-ência ingênua, que não questiona os Meios, para uma consciência crítica, que supere os preconceitos existentes e capte a complexi-dade das dimensões envolvidas.

Moran (1991) argumenta sobre a impor-tância da inserção e participação dos meios de comunicação na escola como pauta de estudo e análise, propondo reflexões e argumentos sobre esta problemática ao colocar o que considera uma “poderosa in-fluência” dos Meios na cultura, exprimindo o caráter de reflexão, recriação e atuação dos mesmos “que se torna(m) importan-te(s) socialmente tanto ao nível dos acon-tecimentos (processo de informação) como do imaginário (são os grandes contadores

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node estórias)” (MORAN, 1991, p. 21), além de afirmar que também desempenham um importante papel educativo, conside-rando-os, na prática, uma segunda esco-la, paralela à convencional: “Os Meios são processos eficientes de educação informal, porque ensinam de forma atraente e vo-luntária” (Idem, p. 21). O autor, entretanto, argumenta que cabe à escola “repensar urgentemente” sua relação com os Meios de Comunicação, procurando evidenciá--los de maneira pedagógica, apostando em uma educação diversificada, pautada no senso crítico do aluno.

Moran reitera que não deve haver a in-tenção de imitação ou reforço dos Meios, salvo o caráter lúdico que os cabe, com o cuidado de não substituir a “organização da compreensão do mundo e das atitudes” por entretenimento, usurpando de seu usu-fruto a motivação como ponto de partida mais dinâmico rumo ao conhecimento. Ele aponta também para a valorização da co-municação dentro da proposta pedagógica da instituição de ensino, como um processo mais amplo dentre todos os outros compo-nentes curriculares, de forma a promover uma consolidação mais participativa entre os mesmos, visando a construção de uma sociedade respaldada em democracia.

Assim, como “meios de motivação”, o autor aborda propostas e soluções práti-cas para o uso dos Meios em sala de aula, inerentes à construção do saber, sugerindo como instrumentos pedagógicos meios im-pressos, o rádio, a televisão, o cinema, etc., que acoplados a uma fundamentação es-crita e explicativa, resultam em atividades práticas como: confecção de programas audiovisuais, slides, gravações sonoras, ou qualquer outro produto que recrie os pró-prios Meios:

Essas novas formas de pesquisa, de pro-dução, de expressão conferem um novo dinamismo à relação Escola – Meios de Comunicação, superando a dicotomia escrita-audiovisual, pois ambos são anta-gônicos, devem ser praticados. Os alunos se motivam muito mais, sem dúvida, com qualquer proposta de expressão audiovi-sual. (MORAN, 1990, p. 23)

Também como conteúdo de ensino, o Meios, segundo Moran, são passíveis da educação formal como peça chave do professor para ajudá-lo no desenvolvi-mento da tarefa de se obter uma visão to-talitária do conjunto, como propriamente

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julga “educar para uma visão mais crítica” (MORAN, 1991, p. 24), evidenciando a im-portância da educomunicação como um dos recursos possíveis para auxiliar o ensi-no de arte diante de tais desafios.

ARTE EDUCAÇÃO E INDÚSTRIA CULTURAL

O termo Cultura de Massa, oriundo das pautas dos críticos modernos do século XX, aparece entrelaçado à ideia de Indústria Cultural e permeiam significações voltadas aos diversos fenômenos decorridos dos amplos avanços tecnológicos da sociedade moderna, em particular dos diversos mo-dos de produção em sintonia com a socie-dade industrial e o Sistema Capitalista, que realçados pelos mass media, inferem dire-tamente no ser social, a questão da indi-vidualidade, a ética, a política, os próprios sistemas de comunicação e sobretudo a Cultura, a Arte e a Estética, conforme nos apontam os teóricos frankfurtianos Adorno e Horkheimer (1985).

Ao delimitar tal fenômeno os autores descrevem que o processo da Indústria Cultural tornou duvidosas as “livres cria-ções do espírito”, atingindo diretamente a Arte, que por sua vez torna a ser ameaçada por efeitos de prostituição, já que tudo se

transforma em mercadoria e, consequen-temente, produto para o consumo, gerado pelo Sistema do Lucro - confirmando-se a teoria marxista, precursora e fonte de ins-piração para o desenrolar de tais ideias. Ao aprofundar esses argumentos, eles colo-cam em xeque as premissas deste processo que segundo Adorno havia se tornado uma “ideologia para as massas”. “Reiterar, fir-mar e reforçar” a mentalidade das massas era a meta ideológica priori e imutável da Indústria Cultural.

Adorno (1964 apud COHN, 1971) levanta a suspeita de que a ideologia da Indústria Cultural anestesiou a atitude de ação e per-suasão do sujeito, que indefeso às “artima-nhas midiáticas” torna-se o objeto de sua ação, conferindo assim, efeitos de imedia-tismo calculado à autonomia dos produtos que, por sua vez, possuem eficácia compro-vada. Assim, o sujeito/objeto coagido é peça de confiança à mercê dos detentores do po-der, que via processual tornam a distância social cada vez maior entre as classes.

Dessa forma, a legitimidade da Arte fica comprometida ao gerar uma distinção ra-dical entre a arte popular produzida pela Cultura de Massa que a define, através de produtos adaptados para o consumo das massas que por sua vez, é determinado:

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noA indústria cultural é a integração deli-berada, a partir do alto, de seus consu-midores. Ela força a união dos domínios, separados há milênios da arte superior e da arte inferior. Com o prejuízo de am-bos. A arte superior se vê frustrada de sua seriedade pela especulação sobre o efeito; a inferior perde, através de sua domesticação civilizadora, o elemento de natureza resistente e rude, que lhe era inerente enquanto o controle social não era total. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 287-288)

Adorno continua sua crítica, reiteran-do a questão da mercadoria cultural, que é motivada pela Indústria Cultural através da práxis do lucro às criações do espírito, que acabam por se contaminar ao assegurar a vida de tais produtos no mercado:

A autonomia das obras de arte que, é verdade, quase nunca existiu de forma pura e que sempre foi marcada por co-nexões de efeito, vê-se no limite abolida pela indústria cultural. (...) As produções do espírito no estilo da indústria cultu-ral não são mais também mercadorias, mas o são integralmente. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 288-289)

Dentro da arte educação, um bom exem-plo desse fenômeno reflete-se no repertório artístico escolhido pelos alunos, sejam mú-sicas, filmes ou mesmo representações que traduzem a arte como mercadoria, em des-taque à questão da formação do gosto, apa-tia e alienação, que conforme a proposição de atividades em aula, reagem timidamente e com dificuldades, sobretudo à leitura visu-al das imagens e sua interpretação de sig-nificados, com baixo (ou até nulo) nível de criticidade. O grande desafio do arte-edu-cador na contemporaneidade é, entretanto, mediar ações educativas que evidenciem a superação do conformismo generalizado que se instaurou na escola, questionando--se a imposição de gostos, padrões, normas e leis que assolam o senso comum.

O que para Adorno já não era novida-de, assim como a arte, tudo havia se tor-nou mercadoria e objeto de consumo, unicamente um produto gerador de lucro, detento de um poder sutil e sedutor de induzir os indivíduos. O progresso pro-míscuo e a geração do “insistentemente novo estandardizado” havia se tornado o elixir do consumo, do qual a sociedade não hesitava de se embriagar, fortificando assim o individualismo: “a individualidade mesma contribui para o fortalecimento da

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ideologia, na medida em que se desperta a ilusão de que o que é coisificado e me-diatizado é um refúgio de imediatismo e de vida.” (ADORNO; HORKHEIMER, p. 289). São, portanto, informações pobres e fúteis que dão a falsa sensação de abastamento, repercutindo em comportamentos confor-mistas e a ilusão de uma vida verdadeira, gerando o processo de uma dialética ne-gada, no qual o indivíduo aceita sem defe-sa o “imperativo categórico” da Indústria Cultural, negando a sua própria liberdade de ação: “o sistema da indústria cultural reorienta as massas, não permite quase a evasão e impõe sem cessar os esquemas de seu comportamento” (Idem, p. 294), im-pedindo a formação de indivíduos autôno-mos, independentes, capazes de julgar e decidir conscientemente, muito comum no perfil dos alunos durante as aulas de arte.

Eco (2004), entretanto, aponta argu-mentos positivos e negativos para com a Indústria Cultural, o que chama de “de-fesa” e “acusação” da cultura de massa, colocando outro ponto de vista sobre o fenômeno da Indústria Cultural, apontan-do não só os efeitos negativos que Adorno defendia, mas também os positivos.

A defesa, conforme supõe, coloca pontos de relevância para a análise do fenômeno.

Inicia afirmando que a Indústria Cultural não é típica do Sistema Capitalista, mas “... nasce inevitavelmente, em qualquer socie-dade de tipo industrial” (ECO, 2004, p. 44). Afirma, por conseguinte, que a Cultura de Massa é uma parte integrante da Cultura, por isso não se pode unificar a ambas. Aponta também que os mass media, em sua natureza podem incitar estímulos à in-teligência (mentes mais críticas), o que de-nomina “mutação qualitativa”. Também a cultura local, segundo Eco, seria valorizada a partir da premissa que “a homogeneiza-ção do gosto [...] contribuiria para unificar as sensibilidades nacionais, e desenvolve-ria funções de descongestionamento an-ticolonialista em muitas partes do globo” (Idem, p. 47). E a divulgação de conceitos seria estimulada e passível de aquisição por valores mais acessíveis, ampliando os repertórios de valores estéticos e culturais, explicitados em “dimensões macroscópi-cas”. A sensibilização do homem contem-porâneo, segundo o autor, seria elucidada pelo acervo de informações e o seu nível de acesso, tornando-o mais participativo e sensível à vida associada. Por fim, coloca o fenômeno da intensa renovação estilística, precursora de novas linguagens, promo-vendo o desenvolvimento.

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noTodavia Eco propõe em acusações que a questão da originalidade é afetada pelas “médias de gostos”, repercutindo em uma “cultura de tipo homogênea” interferindo por sua vez nas características culturais de cada etnia, originando o fenômeno da massificação. Em sintonia com essa pre-missa, afirma que o processo de “embota-ção” denota ao indivíduo a falsa sensação de aprendizagem e abastamento, que in-cônscio de si “sofre as propostas sem saber que as sofre” (ECO, 2004, p. 40). A seculari-zação do gosto e sensibilização promíscua também seriam afetadas pela Indústria Cultural, totalizando e homogeneizando a cultura. Influi também no sentir, no pensar, segundo um processo de fruição profun-damente inferido por sensações prontas e premeditadas. Daí uma possível justificati-va para o comportamento inerte dos alunos frente a questionamentos e proposições do ensino de Arte. A visão dos mesmos para as artes ficou parada na antiga “Educação Artística”, característica também de gran-de parte dos profissionais da escola e co-munidade. Dessa forma, o arte-educador deve se posicionar de modo impositivo, valorizando seu trabalho e insistindo no es-clarecimento e clarificação de ideias sobre a complexidade do ensino de Arte.

Eco, entretanto, confere à Indústria Cultural o caráter prolixo, como instância que reafirma o pensamento em opiniões comuns, gerindo uma “ação socialmente conservadora”. Impõe o conformismo no campo dos costumes, introduzindo pre-conceitos, favorecendo assim “projeções orientadas para modelos oficiais”. Por fim conclui que os mass media apresentam-se:

(...) como o instrumento educativo típico de uma sociedade de fundo paternalista mas, na superfície individualista e de-mocrática, e substancialmente tendente a produzir modelos humanos hetero-dirigidos (...) usada para fins de contro-le e planificação das consciências (...) e como controle das massas. (ECO, 2004, p. 42-43)

Dessa forma, através do apontamento de Eco, o arte-educador deve nortear seu trabalho focando não apenas os aspectos negativos do repertório de seu aluno, mas extraindo dele as qualidades, valorizando a legitimação de seu âmbito cultural, seus saberes artísticos e culturais mais precio-sos e, portanto, trabalhar a partir deles, levantando proposições que estimulem a formação crítica e reflexiva, ajustando

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a autoconfiança e a autoestima dos mes-mos, elevando a diversidade como parte integrante da pluralidade cultural.

Dentro deste contexto, Benjamin (1975) descreve considerações sobre a autentici-dade da obra de arte, em consonância aos efeitos de reprodução dos Meios, questio-nando a presença da aura (instância de primeira natureza da obra de arte) nas re-produções técnicas da Indústria Cultural. O autor argumenta que a arte em sua legi-timidade torna-se ameaçada pelos efeitos massificadores, sendo passível de uma fruição promíscua, permissiva do desenla-ce histórico cultural, já que:

(...) as técnicas de reprodução destacam o objeto reproduzido do domínio da tra-dição [e] substituem por um fenômeno de massa um evento que não se produ-ziu senão uma vez [levando ao] abalo da tradição, o que é a contra face da crise que atravessa atualmente a humanidade e de sua atual renovação [que] se mostra em estreita correlação com os movimen-tos de massa, que hoje se produzem. (BENJAMIN, 1975, p. 211-212)

Ao explanar sobre o caráter de reprodu-ção da arte, cronologicamente, Benjamin

aponta anteparos aos meios de reprodução tecnológicos que surgiram junto à constante do século XX e suas radicais mudanças que resultaram em consideráveis divergências no cenário artístico da época, convergindo para uma mudança de atitude das massas perante a obra de arte, na qual o espectador conjuga o prazer da apreciação a uma expe-riência vivida correspondente, surtindo des-ta ligação uma importância social:

“À medida que diminui a significação social de uma arte, assiste-se no público a um divórcio crescente entre o espírito críti-co e a fruição da obra. Fruir-se, sem criticar, aquilo que é convencional; o que é verda-deiramente novo, é criticado com repug-nância” (BENJAMIN, 1975, p. 229), ilustran-do com o Dadaísmo9 esta problemática.

A aura define como a “única aparição de uma realidade longínqua, por mais pró-xima que ela possa estar” (Idem, p. 214) e argumenta com a fórmula espaço e tempo como “valor cultual da obra de arte”, con-forme explana sobre a problemática da perda da obra de arte e seus efeitos para com as massas:

Despojar o objeto de seu véu, destruir sua aura, eis um sintoma que logo assinala a presença de uma percepção tão atenta

9. O conceito antiarte apoia-se na ideia dada-

ísta da determinação do valor estético não como

procedimento técnico, mas como um puro ato

mental, uma atitude diferente em relação à

realidade: “Com suas intervenções inesperadas e aparentemente gratui-

tas, o Dadaísmo propõe uma ação perturbadora,

com o fito de colocar o sistema em crise, voltan-do para a sociedade seus próprios procedimentos

ou utilizando de maneira absurda as coisas a

que ela atribuía valor.” (ARGAN, 1999, p.356).

O estilo inventivo e provocativo de Duchamp

chamou a atenção da crítica pelo caráter

enigmático de suas obras, consideradas

quebra-cabeças desa-fiadores a estudiosos

e o grande público: “Precisa-se apenas de

virar o caleidoscópio da interpretação para des-

cobrir que os fragmentos da vida de Duchamp e da sua obra formaram

um novo padrão.” (MINK, 2000, p.8)

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noao que “se repete identicamente no mun-do”, que, graças à reprodução, ela chega a estandardizar o que não existe mais que uma só vez. (BENJAMIN, 1975, p. 213)

Em anteparo à natureza da arte, afirma a característica das massas em investir na perda da aura, ao tender para o consumo de proximidade conforme relação espacial e humana, acolhendo às reproduções pro-postas e depreciando “o caráter daquilo que só é dado uma vez”. Optam pela quan-tidade à qualidade. Isso também se traduz no repertório dos alunos que esboçam pre-conceito ao ouvir música erudita, ou ao as-sistir um espetáculo de dança contempo-rânea, ou mesmo de valorizar e entender as artes visuais na contemporaneidade. Benjamin nos justifica propondo que:

A massa é uma matriz de onde brota, atualmente, todo um conjunto de novas atitudes em face à obra de arte. A quanti-dade tornou-se qualidade. O crescimen-to maciço do número de participantes transformou seu modo de participação. Que esta participação apareça inicial-mente sob forma depreciativa, é algo que não deve absolutamente enganar o ob-servador do processo. (Idem, p. 234)

Rochlitz (2003) elucida a filosofia de Benjamin descrevendo um discurso disci-plinar entre filosofia da linguagem, estéti-ca e história, apontando para a filosofia da arte e o resgate do caráter ético e político da crítica da arte. Ao explorar a teoria de Benjamin, o autor evidencia o caráter su-gestivo dos textos publicados conforme o que define de “momentos” de crítica sig-nificativa, compondo-se uma unidade filo-sófica virtual, jamais formulada como tal. “Escritores e artistas parecem estar ligados por uma solidariedade intelectual, defi-nida sobretudo por sua comum recusa de uma ordem do mundo simbolizada pelos totalitarismos” (ROCHLITZ, 2003, p. 348). Dessa forma, define Benjamin como filóso-fo construtor de esclarecimentos, pautado num norte sistemático e uma identidade que parece escapar à redução de um esti-lo, conforme o próprio admite que às vezes não consegue conciliar os extremos que constituem seus polos.

Ao refletir sobre a obra de arte - grande preocupação de Benjamin em seus escritos - Rochlitz coloca que esta tem “lugar estra-tégico em que se manifesta a situação te-ológica da época contemporânea, fonte da tradição e de memória, ela é também a di-mensão moderna de múltiplas subversões

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que visam ao logro de sua aparência, de sua beleza ilusória, do mito, da ideologia.” (Idem, p. 348) Reiterando a necessidade de uma filosofia da arte “formulada em nome da verdade e de uma necessidade de reduzir a ambiguidade e as ilusões que se vinculam à arte, em nome dessa mesma verdade” (idem, p. 349). O processo de de-sencantamento estaria segundo o Rochlitz “ligado a uma experiência recorrente de salvação. Mas esse processo assemelha-se ao da própria arte moderna e de sua aven-tura autodestruidora da qual Benjamin se tornou, por isso mesmo, um dos teóricos exemplares.” (Idem, p. 349).

Esse desencantamento proposto pelo autor também deve ser discutido pelo pro-fessor de arte em suas aulas, apontando caminhos para que o aluno reflita sobre os conceitos da arte, tente compreendê-la, respeitando suas qualidades e legitimida-des, tornando seus olhares menos “éticos”.

Sobre o olhar ético versus estético, Jorge Coli (2000) argumenta sobre a necessidade de clarividência dos sujeitos fruidores da arte. Segundo o autor, olhar para um ob-jeto artístico significa descobrir algo novo, descobrindo-se, portanto, em si, através da leitura visual da arte, daí a importân-cia do professor de arte como mediador

da experiência estética, esta, relatada por Jauss (2002), que postula a Teoria Estética da Recepção, ao considerar sobre o que define “efeitos da arte” discursados pelos mass media. Segundo o autor, a obra de arte como produto é objetivado, hábil atra-vés do espaço e tempo produzido, de de-senvolver in actu a práxis histórica e social.

Jauss aponta para o problema de como fruir um produto da arte em momentos históricos distintos, consolidando a expe-riência estética como particular do reper-tório de cada espectador e não apenas privilégio dos especialistas. Voltando-se a Adorno como o sujeito de deslegitimação da arte moderna e contemporânea, Jauss posiciona-se como apologista da experiên-cia estética (desacreditada pelo teórico da Indústria Cultural), argumentando que:

A teoria de Adorno (...) despertou (...) o preconceito de que a arte de uma elite cultural cada vez maior, diante da mul-tidão crescente de consumidores da in-dústria cultural, não tem mais salvação. Mas o contraste entre uma arte de van-guarda, apenas voltada para a reflexão, e uma produção do mass media, apenas voltada para o consumo, de modo algum faz justiça a situação atual. (...) Tampouco

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noestá provado que a experiência estética, tanto da arte contemporânea quanto da arte do passado, que, pelo mass media, já não só atinge uma camada culta, mas se abre para um círculo de destinatários até hoje nunca alcançado, deva inevita-velmente degenerar numa relação con-sumista e corroboradora do status quo. ( JAUSS, 2002, p. 52)

Assim, justifica-se a necessidade do arte-educador em prover seus alunos de questionamentos reflexivos sobre esse processo de massificação, valorizando suas percepções pessoais, encorajando-os a argumentar e analisar coletivamente as opiniões críticas pessoais de cada um.

Entretanto, Jauss também analisa a su-jeição da arte a produtos mercadológicos apontando para o questionamento da es-sência, conforme coloca:

(...) a produção e reprodução da arte, mesmo sob as condições da sociedade industrial, não consegue determinar a recepção: a recepção da arte não é ape-nas um consumo passivo, mas sim uma atividade estética, pendente da apro-vação e da recusa, e por isso, em gran-de parte não sujeita ao planejamento

mercadológico. (...) para sair do suposto ‘contexto de enfeitiçamento’ total da prá-xis estética contemporânea, restaura-se, sem se dizer, a obra de arte revestida de aura e sua contemplação solitária, como medida estética de uma essencialidade perdida. ( JAUSS, 2002, p. 52)

Ao justificar a recepção estética – con-

traditória a Adorno e Benjamin – Jauss co-loca a tríade criação-comunicação-recep-ção como funções da linguagem e aponta o controle por parte do receptor que vai per-mitir a possibilidade de viver a experiência estética, passando pela sensação de domí-nio da situação, justificando sua teoria da prática consensual da qual irá proferir o espectador, ao determinar uma escala de valores que filtra e define a práxis da expe-rimentação, permitindo adesão ou rejeição estética.

Também, entidades da pragmática da comunicação humana, movidas por um processo contínuo incluindo o subcons-ciente, de classificação humana, atitudes como dedução, indução e analogia são to-madas a todo momento, sem que se possa refreá-las. Dessa forma, fomenta a recep-ção estética da arte como passível de im-permeabilidade relativa ao status quo, da

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qual a arte educação deve se apoiar, pelas vértices de seu caráter democrático em busca da autonomia, peça de ação para o caminho de uma educação do olhar dos sujeitos, investindo contudo na formação de cidadão mais perceptivos, perspicazes e críticos ante aos subsídios intrincados pe-los mass media.

DESAFIOS DA ARTE EDUCAÇÃO NA CONTEMPORANEIDADE

Dentro destas imersões providas pela Indústria Cultural, Buoro (2002) evidencia soluções na Arte Educação para solucionar a formação do olhar crítico do leitor, atra-vés da leitura de textos visuais dos quais apresentam as imagens artísticas, apoian-do-se na Semiótica na metodologia peda-gógica da Proposta Triangular do Ensino da Arte: o apreciar, o fazer, o contextualizar:

A presença da obra de arte possui, na vida do sujeito leitor, várias possibilida-des e manifestação. Um olhar sensível e aberto, (...) é capaz de captar ainda que intuitivamente os sentidos que a obra de arte lhe disponibiliza. Ante aos processos de massificação que as culturas impri-mem ao homem urbano contemporâneo,

vetando-lhe a capacidade de ver o mun-do com nitidez, a construção de um leitor dependerá do resgate realizado no con-texto de um trabalho sistemático e em-basado de educação do olhar. (BUORO, 2002, p. 237)

A autora afirma que a educação do olhar

é permissiva de uma interação mais satis-fatória do indivíduo com o meio no qual está inserido, e, norteada por um trabalho pedagógico respaldado em leitura de ima-gens da arte, é passível de aguçar o olhar do educando e sua percepção visual, con-fluindo maior capacitação para o desenvol-vimento do senso crítico e sensível, ineren-tes ao ser humano, conforme as condições do atual contexto político-sócio-cultural.

Buoro (2002) ressalta a importância da construção de leitores da imagem visual, operando no campo da sensibilização para aquisição de competências, em busca da mobilização de um olhar mais significativo sobre imagens da pintura e sobre o mun-do como imagem. Dessa forma, aponta a necessidade de se educar o olhar desde a educação infantil, possibilitando ativida-des de leitura, para que além do fascínio das cores, das formas, dos ritmos, possa-se compreender o modo como a gramática

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novisual se estrutura e pensar criticamente sobre as imagens, que não devem ser as-sociadas à simples ação pedagógica, es-tratégia prevista em planejamentos e inse-rida no quadro de ensino da arte de forma quase mecânica e burocrática. Ressalva também a necessidade de uma reciclagem contínua do profissional, eliciando ações não permissivas de transgressões quanto à atitude pedagógica, o que determina o “processo de conscientização e formação do professor”.

Hernández (2000), entretanto, explana sobre a Cultura Visual acrescentando so-luções práticas do Ensino de Arte em ação transdisciplinar e íntegra na escola, como disciplina fundamental para a formação de sujeitos críticos perante a mesma e seu universo de significações. O autor justifica a Arte na educação como instrumento de formação da percepção crítica ante aos me-canismos de manipulação dos Meios, assim como meta a ser superada enquanto con-teúdo disciplinar, apoiando-se à constante que determina as ideias em renovação e à mudança das representações que atinge os indivíduos, sugerindo uma proposta que ultrapasse o domínio da disciplina como mera provedora de “habilidades manuais ou tecnológicas, aproximações formalistas

de caráter essencialista, ou propostas di-dáticas baseadas num conhecimento sem contexto” (HERNÁNDEZ, 2000, p. 10):

O universo do visual é, na atualidade, como sempre foi, mediador de valores culturais (não nos esqueçamos [...] que as referências estéticas e artísticas tam-bém são construídas socialmente). Mas o visual é hoje mais plural, onipresente e persuasivo que nunca. As relações dos indivíduos, de maneira especial dos me-ninos, das meninas e dos adolescentes, com esse universo não conhece limites disciplinares e institucionais. (Idem, p. 10-11)

Assim, Hernández eleva a Arte ao cará-ter de “múltiplas direções”, posicionando o artista como eliciador de “histórias com-partilhadas”, à medida que “move a coisa latente” ao contar sua história, dialogando com a experiência do espectador. Dessa forma, a arte como disciplina repensada e reformulada é passível de direcionar atitu-des “superativistas”. O autor elege os Meios de Comunicação – em ressalvo à televisão - como educadores privilegiados pelo pú-blico, ilustrando o cinema como mediador das representações da realidade “jogando”

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com o universo do sensível; a publicidade como vendedora das “representações ide-ais do eu”, amplificando identidades ine-xistentes; e a Internet permissiva da subs-tituição do real pelo virtual “possibilitando a construção de identidades inventadas e ocasionais e aproximando-se de lugares que expandem ou dispersam a própria ideia de informação e de conhecimento” (HERNÁNDEZ, 2000, p. 11).

Contudo, o autor reafirma a necessi-dade de uma resposta educativa à altura, passível não só de introduzir uma “noção de cultura visual�, mas também de incitar uma atitude por parte da educação, ele-vando os projetos como solução eficiente, salvo a despretensão de se limitar aos “in-teresses corporativistas dos especialistas, em que as relações entre ideologia, valores e práticas sociais, propostas educativas e construções da identidade (individual, de grupo e nacional) estão presentes de ma-neira meridiana” (Idem, p. 9), conforme elucida a arte na educação em anteparo ao problema de sua “posição de relevante marginalizada” como:

Um campo digno onde é possível organi-zar sem excessivas pressões, propostas transdisciplinares, a partir de problemas

que vão além de uma disciplina e que são reflexos das mudanças que se es-tão produzindo na sociedade. Mas que, sobretudo, permitem interpretar o pre-sente a partir do conhecimento do pas-sado e vincular as experiências educati-vas com as representações da realidade que constroem de si mesmos e do meio, com a pressão dos meios e da indústria do consumo na maioria dos casos, os meninos, as meninas e os adolescentes. (HERNÁNDEZ, 2000, p. 9)

Coloca a proposta como norteadora de caminhos que podem solucionar a si-tuação, permissiva da quebra de paradig-mas impostos, consolidando a arte como instrumento legitimador do processo em educação para a cultura visual, embora as-suma que:

(...) a dúvida, a incerteza e a curiosidade são necessárias para continuar enfren-tando os desafios que a educação apre-senta hoje àqueles que consideram que a escola (desde a primeira infância à uni-versidade) pode oferecer uma potência de emancipação e de melhor conheci-mento de si mesmo e de transformação do mundo. (Idem, 2000, p. 13)

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noO autor, entretanto, conclui que “a com-preensão da cultura visual pode contribuir para realizá-lo.” (Idem, p. 13). O processo de superação desta realidade pode ser res-paldado por tentativas de ação e inferên-cia ante ao duto fenomenológico do qual compõe seu corpo através de estudos que apostem num método mais participativo de pesquisa, investindo na resolução não só de dados ou resultados, mas sobretu-do, de um entendimento no que compete ao processo como superação, para assim, investir numa possível transformação do social.

A arte educação, contudo, é pouco valo-rizada ou reconhecida, porém importante instrumento de mudança. Os mantenedo-res do poder pouco estão interessados em mentes críticas, ou leitores de mundo, con-forme passível do ensino da arte. Barbosa (1991) chama a atenção para esta questão:

Sonegação de informação das elites para as classes populares é uma constante no Brasil, onde a maioria dos poderosos e até alguns educadores acham que esta estória de criatividade é para criança rica. Segundo eles, os pobres precisam somente de aprender a ler, a escrever e contar. O que eles não dizem, mas só

sabemos, é que, assim, estes pobres serão mais facilmente manipulados. (BARBOSA, 1991, p. 37)

A atual cultura brasileira, apoiada e cada vez mais difundida através dos Meios, caracteriza-se por dois fenômenos: o da democratização e o da permissividade, os quais resumem-se pelo fácil acesso aos bens comunicativos, facilitando a divulga-ção da informação, esta de baixa qualidade cultural, já que a grande massa receptora concentra-se nas classes inferiores, rati-ficando as ideias eliciadas por Eco (2004). O Brasil como um país subdesenvolvido, precursor de um nível de escolaridade con-siderado baixo e caracterizado pela predo-minância da pobreza e da miséria, designa uma população mais vulnerável à má in-fluência da mídia, aumentando satisfato-riamente a ignorância e a capacidade de discernimento dos indivíduos, facilitando assim a presença de governantes corruptos e de má fé, principalmente nas regiões em que o número de miseráveis apresenta-se alarmante, substituindo-se uma tentativa de melhoria à realidade desses indivíduos.

Contudo, pouco se investe na gestão de-mocrática da informação pelos Meios. O de-senvolvimento da consciência crítica através

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da educação, portanto, se faz jus, para que o indivíduo construa desde cedo, de forma sistematizada, seu modo de olhar e perce-ber o mundo. Educar para ler as imagens, educar para o mundo, esta é também fun-ção do educador artístico que deve usar das próprias imagens como propiciadoras do aprendizado. “Ler, observar, interpretar as imagens”, devem ser atitudes privilegiadas na didática do mesmo. Considerar imagens do mundo interno, externo e culturais (in-cluindo-se a arte), é fundamental a esta pro-posta pedagógica, segundo elucida Buoro (2002). Construir leitores sensíveis para o mundo é um dos papéis principais do educa-dor artístico, pois com o um olhar educado e perspicaz, o educando é capaz de interagir sensivelmente na sintaxe do mundo, reper-cutindo em melhor integração e compreen-são do mesmo, conforme coloca a autora:

Uma das funções centrais do ensino da arte na escola deveria ser esta: a de construir leitores sensíveis e competen-tes para continuar se construindo, adqui-rindo autonomia e domínio do processo, fazendo aflorar, desse modo, ao toque do próprio olhar, uma sensibilidade de ser-estar-viver no mundo. (BUORO, 2002, p. 63)

Barbosa (1991) também considera a arte como passível de transformação, afir-mando que:

O que a arte na escola pretende princi-palmente é formar o conhecedor, fruidor, decodificador da obra de arte [...] a esco-la seria a instituição pública que pode to-mar o acesso à arte possível para a vasta maioria de estudantes em nossa nação [...] A escola seria o lugar em que se po-deria exercer o princípio democrático de acesso à informação e formação estética de todas as classes sociais, propiciando--se na multiculturalidade brasileira uma aproximação de códigos culturais de di-ferentes grupos. (BARBOSA, 1991, p. 38)

A estética, contudo, deve integrar-se como formação do indivíduo, propiciando--o ao entendimento da gramática visual e a reflexão acerca das imagens em contexto geral, ou seja, ler o mundo. A autora chama a atenção:

Num país onde os políticos ganham eleições através de televisão, a alfabe-tização para a leitura da imagem é fun-damental e a leitura da imagem artística,

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nohumanizadora. Humanização é o que precisam nossas instituições entregues aos predadores políticos profissionais que temos tido no poder nos último trin-ta anos. (Idem, p. 38)

Contudo, devido a essas imersões pro-vidas pela Indústria Cultural, pode-se di-zer que o ensino de arte torna-se de certa forma abduzido. Em sala de aula, pode-se identificar a força exercida pelo apelo esté-tico, que se instaura como uma estratégia mercadológica, com o intuito de promover o produto, seduzindo o consumidor, aquém à transmissão do conhecimento através da cultura artística (mesmo que o faça a sua maneira), periciando as ações dos alunos, minimizando-se a possibilidade suprema do processo fruitivo, restringindo a estética da recepção, defendida por Jauss (2003), reiterada por Benjamin (1975) em relação à questão da aura e a reprodução em série, que perde sua essência ao interpolar-se com os meios de reprodução: “Este proces-so tem valor de sintoma; sua significação ultrapassa o domínio da arte” (BENJAMIN, 1975, p. 211).

Os teóricos frankfurtianos Adorno e Horkheimer (1985) previram este quadro

ao abordar a ideia de dialética negativa da Indústria Cultural, a qual fundamenta-se sobre o poder de manipulação das massas, utilizado pelos meios para aniquilar as legí-timas manifestações culturais do ser social, alienando e anestesiando as consciências, mecanizando o ser humano. A partir desta ideia, elucidaram um sistema que nega (ao mesmo tempo em que se afirma ideologi-camente) ao homem o direito de ser e estar no mundo, sob todos os aspectos (biológico, social, intelectual, político, econômico, etc.).

Adorno (apud COHN, 1971) afirma em seu discurso que “(...) as ideias de ordem (...) são aceitas sem objeção, sem análise, renunciando à dialética, mesmo quando elas não pertencem substancialmente a nenhum daqueles que estão sob a sua in-fluência” (p. 293), traduzindo a recepção visual dos objetos da arte perante o espec-tador, que ao deparar-se com os mesmos, recebe-os em extasia, sem ação de respos-ta, como uma magia única eliciada pela Indústria Cultural.

O processo criativo e expressivo, além da construção de uma linguagem estética pessoal (auto poiésis) é corrompido pela im-posição de gostos e padrões estéticos que a Indústria Cultural exerce nos alunos, que recheiam seus trabalhos de estereótipos e

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cópias de modelos veiculados pelos Meios. Evidencia-se na escola, entretanto o culto ao Kitsch, definido como um objeto que possui a pretensão de ser arte, utilizando--se de recursos peculiares de ludibrio.

Segundo o dicionário da língua inglesa, Longman (1995) define o termo kitsch apon-tando para conceitos referentes à Cultura de Massa e Indústria Cultual, bem como tais pinturas em questão se caracterizam:

(...) kitsch é um objeto ou estilo que, si-mulando uma obra de arte, é apenas imitação de mau gosto para desfrute de um público que alimenta a indústria cul-tural da cultura de consumo ou cultura de massa; atitude ou reação desse públi-co em face de obras ou objetos com essa característica. (LONGMAN, 1995, p 65)

Este poder da Arte através da Estética, antepara-se com o poderio dos Meios, con-frontando paradigmas, superando relevân-cias positivas e/ou negativas de ações pro-vidas do status quo. A arte se salva com o tempo, renovando-se a estética, contudo, as mentes receptoras do presente funda-mentar-se-ão pelo ranço da culturalização, da qual se surpreende a educação como uma das vertentes de tangência para a

superação desta realidade, salvo uma vi-são positiva de mundo.

Considerações Finais

Em vista de todas as proposições acima citadas, torna-se evidente o importante pa-pel de se educar para o senso crítico através da arte educação e o educador, por sua vez, deve dinamizar sua didática, ao sistematizar este problema, visando de forma pedagógi-ca interagir sobre o assunto com seu aluno, na tentativa de superar a dialética negativa elucidada por Adorno, para contudo, formar cidadãos conscientes e mentes críticas, ca-pazes de transformar a realidade, quebran-do os paradigmas de um sistema manipula-dor, assim como a vitalíssima valorização da arte em todas as suas instâncias de compre-ensão e relevâncias, passíveis de promover o desenvolvimento crítico-perceptivo tão aspirantes aos indivíduos da sociedade con-temporânea. Assim, ficam tais ideias, passí-veis de serem repensadas enquanto prática do ensino de arte, no caminho da superação de tais desafios apresentados pela contem-poraneidade em vista do importante traba-lho do arte-educador enquanto profissional competente para isso.

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ROCHLITZ, Rainer. O Desencantamento da Arte. Bauru: Edusc, 2003.

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ARTE TÊXTIL, BORDADO E SUA INSERÇÃO NO

REPERTÓRIO ARTÍSTICONatalia Nascimento Nogueira10

Maria Antonia Benutti11

10. Professora, Graduada em Artes Plásticas, FAAC – UNESP

11. Professora Doutora, Departamento de Artes e Representação Gráfica - FAAC – UNESP, [email protected]

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Resumo

Este trabalho propõe uma breve revisão histórica sobre a arte têxtil. Apresentamos em um levantamento bibliográfico o de-senvolvimento histórico dessa arte tão an-tiga, dos seus primórdios na Idade da Pedra Lascada, no Período Paleolítico, aos dias atuais. Com foco tanto na tecelagem, como no bordado, abordamos o itinerário da te-celagem, meio inerente ao desenvolvimen-to do “adornar com agulhas”, para depois tratar do desenvolvimento do bordado tan-to no velho continente, como nas Américas e no Brasil. Apresentamos também o seu uso no cenário artístico contemporâneo no qual as técnicas e pontos do bordado são apropriados por artistas para a construção de sua obra.

Palavras-chave: tecelagem; arte têxtil; bordado.

Abstract

This paper proposes a brief historical review of textile art. Presented in a literature review the historical development of this very ancient art, from its beginnings in the Old Stone Age, the Paleolithic Period, to

the present day. Focusing both on weaving, embroidery as we approach the itinerary of weaving, through inherent in the development of “adorning with needles,” and then treat the development of embroidery in both of the old continent, as in the Americas and Brazil. We also present its use in the contemporary art scene in which the techniques and embroidery stitches are suitable for artists to build his work.

Keywords: weaving; textile art; embroidery.

Introdução

O universo da arte que se refere aos tra-balhos têxteis,

[...] por terem sido sempre associados ao corpo e ao gênero femininos, foram muito inferiorizados como objetos de es-tudo, se comparados a outras tipologias materiais. Herdamos e preservamos por séculos a antiga noção de que um teci-do, dada sua proximidade com o corpo e os sentidos, não deveria ser supor-te de expressão. Arte decorativa, arte menor, artesanato foram algumas das

Natalia Nascimento Nogueira e Maria Antonia Benutti

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nuttidenominações atribuídas aos tecidos por

um mundo masculino, de homens viajan-tes, homens cientistas, homens de Deus, homens historiadores e homens de mu-seu. (PAULA, 2006, p. 256)

Apesar dessa marginalização, principal-mente em território brasileiro, grande par-te dos gêneros da artesania associados à arte têxtil, como o caso da arte de bordar, sobreviveram, ainda que sem repercussões graúdas seja na esfera acadêmica, de pro-dução bibliográfica, seja na esfera artística e curatorial, de exposições, sobretudo pela transferência oral da tradição e da técnica.

Nesse contexto, em que se sobressai o interesse no bordado, abordamos o itine-rário da tecelagem, meio inerente ao de-senvolvimento do “adornar com agulhas”, para depois tratar do desenvolvimento do bordado, tanto no velho continente como na Terra Brasilis, além de discutir o seu uso no cenário contemporâneo e suas técnicas e pontos.

A Tecelagem

A tecelagem surgiu no período Paleolítico quando o ser humano quis vestir

algo que não fosse a pele dos animais. A sua história é um itinerário de milênios e está relacionada à interação humana com a na-tureza, o início da sua interferência e apro-priação sobre o meio em que vive. Duarte afirma que, “Por meio de seus gestos e ins-trumentos, os materiais, as fibras, fios, tra-mas e cores adquirem textura e forma nes-tes objetos que desde as mais remotas eras são intimamente ligados às sociedades hu-manas: os tecidos”. (DUARTE, 2009, p. 11).

Fato é que o nascimento desta ativida-de, considerada uma das artes mais primi-tivas e que escolta o homem desde a aurora da civilização, se deu em diversas regiões e civilizações isoladas em épocas distin-tas, sobretudo durante a Idade da Pedra Lascada – Período Paleolítico. Arqueólogos afirmam terem encontrado instrumentos empregados no tecer que chegam a datar mais de 30 mil anos.

O ponto unânime entre todas as regi-ões onde se desenrolaram atividades que possibilitaram o nascimento do ofício de tecer diz respeito ao porquê, às suas fun-ções. Pezollo (2007) nos traz a questão de que “O homem, nos abrigos que a natureza lhe oferecia, encontrava na trama de ga-lhos e folhas uma forma de se resguardar. Ele também se valeu desse tipo de trabalho

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para proteger seu corpo.” (PEZZOLO, 2007, p. 11). Ou seja, trata-se de uma atividade, ainda que indiretamente, intrínseca ao ser humano, pois relaciona-se com as necessi-dades de se agasalhar, se abrigar e até mes-mo de se expressar.

O princípio básico do ofício da tecela-gem veio das tramas criadas através de emaranhados de fibras, tais como casca de árvores, fibras de caules e de folhas, reali-zados com os dedos na produção de ces-tarias. A aplicação dessas tramas em outra função – agora, aquecer o corpo – se deu quando “o ser humano deixou de matar os animais de forma sistemática e preferiu aproveitar de forma regular o que estes lhe proporcionavam (leite, crias, pelo, lã, etc.).” (BRAHIC, 1998, p. 11). É da evolução desta técnica, a princípio de cestarias, que surge a arte têxtil. E o decorrer desta atividade se deu pela diversificação dos materiais tra-mados e do modo de entrelaçar, resultan-do em distintos desenhos e texturas.

A antropóloga Olga Soffer da Universidade de Berlim afirma ter desco-berto objetos cerâmicos com marcas que seriam de corda ou tecido, as quais, ainda úmidas, foram apoiadas sobre algo pare-cido com uma sacola, cesto ou corda, na

República Tcheca que chegam a ter mais de 24.000 anos.

Há outros inúmeros vestígios encontra-dos em distintos lugares do planeta e técni-cas, tais como agulhas e outras ferramen-tas de tecer, fios, tecidos, bem como outros utensílios elaborados em trama, sem pro-vável intercâmbio. Há tecidos egípcios de linho (Figura 1) com 8 milênios de existên-cia, tecidos em lã da Idade do Bronze na Escandinávia e Suíça, algodão sendo fiado na Índia e seda na China com 3 mil e mil anos a.C., respectivamente.

Figura 1. Têxtil do Império Egípcio, com representação de duas mulheres tecendo fios de linho

em um tear horizontal.Fonte: http://www.ilikeegypt.com/pictures/ill_4b9a12a7533b5112.jpg

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nuttiEm território europeu, na região da

Península Ibérica foram descobertos ves-tígios têxteis que datam de meados de 2.500 a.C. Eram farrapos de linho em sepul-turas. Dois mil anos mais tarde o algodão se tornaria conhecido pela cultura clássi-ca. Em viagem à Índia, o historiador gre-go Heródoto relatou ter encontrado lã em árvore. Porém, “a chegada do Algodão à Europa ocorreu no segundo século da Era Cristã, cabendo aos árabes a dispersão dos produtos originado de sua fibra e da pró-pria semente.” (BUENO, 2005, p. 27).

Sob o domínio do Império Grego e Romano, os egípcios, utilizando sobretudo a lã – mais suscetível ao tingimento vege-tal - produziram tapeçarias e outros têxteis com duas ou mais cores e figuração geomé-trica, vegetal e humana (Figura 2). Também era tecido lã, a qual, em coloração verme-lha, era fabricada exclusivamente para os imperadores romanos, como determinava o Código de Justiniano.

Figura 2. painel egípcio com figuração da ninfa Nereide. Lã em linho.

Fonte: Acervo do Museu de Arte de Cleveland.

A partir do primeiro século depois de Cristo, a Rota da Seda se transformou no meio central de contatos e relações – cultu-rais, comerciais e artísticas – entre Europa e Ásia. Plínio, o Velho, em sua História Natural, relata que a seda vinda da China, além de especiarias vindas da Índia, eram transportadas pelo Mar Cáspio, através do Rio Ciro (PLÍNIO, apud LOPES, 2011, p. 43). Embarcada em solo, esta seda seguia para centros como Roma, Alexandria e

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Constantinopla. Daí a seda se espalhou para inúmeros países europeus, os quais, agilmen-te, se desenvolveram na fabricação têxtil.

A partir do séc. VII o algodão chega à Península Ibérica através do povo muçulmano (Figura 3). E um século depois já obtinha grandes progressos na produção de lã. Vale ressal-tar que antes disso, nos primeiros tempos da Idade Média, a Inglaterra já possuía a produção da lã como matéria prima. Outro fato que merece destaque, refere-se ao modelo de fabrica-ção desses tecidos. Tratam-se de produções em empresas familiares, baseado em atividades artesanais por parte de tecelões e fiandeiras qualificadas, as quais permaneceram assim du-rante o Renascimento até o desenvolvimento da indústria inglesa no século XVIII.

Figura 3. Tiraz, um têxtil escrito da civilização islâmica do período medieval.Fonte: Coleção de Arte Islâmica Madina

Mas é durante o período do Renascimento, por meio dos grandes desenvolvimentos navais, que as técnicas e os produtos têxteis deixam suas províncias e se disseminam por todos os cantos. É importante saber que durante inúmeras dessas viagens, “navegantes

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e conquistadores europeus assinalaram a existên-cia dessa fibra no Brasil, México, América Central e Peru, com ampla dispersão pelas Américas”. (BUENO, 2005, p. 27)

Marylène Brahic atesta o mesmo fato. “Tanto os índios dos territórios do Norte (Navajos, Sioux, Hopis...), como os andinos ou os da América Central (Maias, Astecas, Mixtecas) conheciam e usavam o tear muito antes da chegada dos colonizadores.” (BRAHIC, 1998, p. 22) (Figura 4). Tais fatos reforçam a premissa já enunciada sobre o desenvolvimento têxtil por diversas civilizações isoladas.

É interessante percebermos que os maquiná-rios e ferramentas de tecelagem foram se aprimo-rando, baseados na propulsão animal e manual, até a Revolução Industrial. Em 1589, Willian Lee criou a primeira máquina retilínea de tecer malhas.

Décadas depois, em 1733, John Kay inventou a lançadeira volante, aperfeiçoando o antigo tear, li-berando a mão do tecelão e expandindo a largura do tecido fiado. Já em 1785, Edmund Cartwright in-ventou o primeiro tear mecânico (Figura 5), o qual era manejado por um único homem, pois a máqui-na fazia o serviço de muitos. Embora a Revolução Industrial tenha revelado inúmeros maquinários fabris e outros equipamentos, substituídos su-cessivamente na evolução tecnológica, além da alteração de inúmeros métodos da tecelagem, a estrutura fundamental e os processos básicos são os mesmos ainda hoje.

Figura 5. “Power Loom”, o tear mecânico criado por Edmond Cartwright em 1785.Fonte: http://www.culturabrasil.org/imagens/powerloom.gif.

Figura 4. Tapeçaria peruana com figuração de lagostas em algodão e pêlo de camelo, datado entre o século XII e XV.Fonte: Acervo do Museu Fowler da Universidade da Califórnia.

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Fato é que o surgimento da tecelagem desenvolveu a vontade e o desejo de ador-ná-lo, seja como forma de diferenciação e identidade, seja por função de divisão ou destaque social. Dessa maneira, os tecidos foram suporte para o desdobramento das chamadas artes têxteis, uma delas é o ofí-cio de bordar.

O Bordado

Adjacente ao tecer surgiu o ofício de bor-dar. Considerando-a resultado da costura, partimos da pré-história, e sob o mesmo pretexto da tecelagem: a necessidade de aquecer o corpo. Assim, o homem mesolíti-co juntava diferentes pelagens de animais, atingindo o tamanho do seu corpo, pelo ar-tifício de passar fios, os quais eram fibras ou vísceras animais. Para além do anseio funcional, parece surgir, no homem, uma vontade de executar pontos ornamentais já em suas vestes mais primitivas.

E é justamente nisso que se consiste o bordar, uma ação artística sobre uma su-perfície flexível por meio de fios, ou seja, uma costura adornada que adquire um nível mais complexo, sendo sua natureza díspar das outras atividades artesanais que

possuem origem utilitária – seu fim é estri-tamente estético. Relatos bíblicos apontam que os primeiros bordados teriam apareci-do no alvorecer da civilização babilônica, e comercializado a outros territórios. Estes foram superados pelos egípcios, que pro-duziam tecidos finos e tapeçaria com as técnicas mais avançadas. O fato teria leva-do Plínio, o Velho, a dizer que o tear egípcio havia vencido a agulha da Babilônia.

O período dos grandes impérios e a ex-pansão territorial trouxe o bordado para a Europa. O notório Homero faz relatos dos bordados de Helena durante os aconteci-mentos da Guerra entre gregos e troianos. Os gregos, como apreciadores natos das artes, adicionaram os adornos às suas ves-tes, que, inclusive, podem ser percebidos em muitos monumentos onde as figuras aparecem com túnicas bordadas, cultivan-do esse gosto e passando paras os roma-nos. Mariano Teixeira, que publicou alguns documentos no século XIX, afirma que

[...] o rei Atalus de Pérgamo – século III a.C. – foi um dos primeiros homens a juntar o ouro aos estofos, porque quase todos os materiais se podem empregar no bordado: ouro, peles, pérolas, sedas, lãs, cabelo, missangas, pedras preciosas

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apud SILVA, 2006, p.1)

No Império Romano os primeiros bor-dados eram aplicados aos vestidos por meio de tiras de tecido de lã – estofos. Posteriormente, seguiu-se as decorações imitativas de folhagens compondo orna-mentações, as quais foram paulatinamente adicionando formas naturais ao “vocabulá-rio”. Os romanos denominavam esta ativi-dade de “plumarium opus”, devido à simi-laridade de alguns adornos com as plumas de aves, e de “opus phrygium”, por que obti-nham muitos bordados através do comércio com os Frígios, povo da região da Ásia Menor com o mesmo nome que hoje pertence a Turquia.

Durante todo esse período clássico os produtos têxteis, incluindo os objetos bor-dados, foram comercializados entre civi-lizações orientais e ocidentais. Outro fato é que tanto os gregos quanto os romanos consideravam o bordado como atividade similar à pintura – pintura de uma agulha –, por isso os romanos denominavam o vestuário com bordados de “túnica picta”. Deve-se frisar, ainda que só haja tecidos or-namentados oriundos do Império Romano, que é admitida a existência de bordado na

Idade Antiga na Ásia, Egito e Grécia, além de Roma, por haver inúmeros testemunhos escritos nos quais são relatados.

A civilização bizantina exerceu o princi-pal papel de preservação do bordado com o advento da Idade Média, sendo que as Cruzadas foram o meio propulsor de sua disseminação para todo o Ocidente. O des-taque desse período estava nos mosteiros e abadias, onde foram instaladas verdadei-ras oficinas artesãs, produzindo inúmeros bordados, sobretudo para as vestes dos clérigos (Figura 6). Não é de se espantar que, sendo a Igreja o centro da educação formal da nobreza do período, o bordado comece a se transformar em uma atividade doméstica, a qual havia se tornado ativida-de rotineira até de rainhas e suas damas.

Outra proeminência da época foi a ela-boração da que viria a ser conhecida como Tapeçaria de Bayeux (Figura 7) no século XI. Odo, o bispo da região de Bayeux, na Normandia, encomendou tal obra para selar sua vitória sobre os anglo-saxões na Batalha de Hastings, em 1066. O tapete foi bordado em lã tingida (base vegetal) sobre um tecido de linho pelos monges da Abadia de Santo Agostinho na década seguinte da batalha e tem cerca de 70 metros de com-primento. Sobre o bordado, trata-se de

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figurações em linguagem românica, com cerca de 60 cenas, que descrevem os fatos que antecede-ram em todo o conflito, além da própria vitória de Odo e seu meio-irmão Guilherme II, o Duque. Há alusões, inclusive, que a Tapeçaria de Bayeux seria o antecessor da história em quadrinhos.

No que tange os aspectos formais do bordado, a produção do período tinha muitas influências da produção persa mesclados com os motivos cristãos, os quais foram se sobressaindo cada vez mais, assim como da arte românica. O caso da re-gião Ibérica é um exemplar deste fato, uma vez que foi local de expansão do império turco-otomano, tendo sofrido grande influência de suas tradições e técnicas (SOUSA, 2012) além de outros países eu-ropeus como Inglaterra, França, Suíça, etc. Linhas verticais, além de motivos ogivais e vegetalistas, predominam nos bordados portugueses na Idade Média. (SILVA, 2006)

A partir do século XIII, também por influência das Cruzadas, aparecem as bordaduras com moti-vos cavalheirescos - brasões, escudos, armas, etc. em tons prata e dourado, prática comum até os dias atuais em fardas e fâmulas. No caso dos bor-dados em ouro, o que se vê é a mescla de fios deste material com fios de seda. Neste mesmo período aparecem as lantejoulas nos bordados, que seria uma invenção dos árabes, a qual ganha grande consumo no século XV por toda Espanha. Ao mes-mo tempo, o bordado toma caráter de alto-relevo,

Figura 6. Casula medieval brocada com bordados em seda e prata.

Fonte: Acervo do Museu Victoria & Albert.

Figura 7. Detalhe da tapeçaria de Bayeux mostrando Odo liderando suas tropas.

Fonte: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/com-mons/9/9c/Odo_bayeux_tapestry.png.

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nutticom figurações dotadas de sombras e gra-

duações de cores, bem próximos da técnica pictórica do período. No século seguinte o uso de canutilhos se tornam muito popula-res (BORDADO, 2014).

Sobre o ofício de bordar, nesse perío-do, podemos fazer outras duas considera-ções. A primeira é sobre a transmissão dos conhecimentos e técnicas que eram feitos através da tradição oral, seja de âmbito fa-miliar, seja por meio de grupos – corpora-ções e mosteiros. Já a segunda diz respei-to às atribuições de gênero que são dadas ao homem e a mulher. Quando o bordar é uma atividade doméstica, esse é feito por mulheres, enquanto que quando se refere à um trabalho é executado por homens.

Jean-Yves Durand (2006) firma que na “Encyclopédie” de Diderot et D’Alembert, publicada no século XVIII, apenas constava o termo “brodeur”, traduzido em “borda-deiro”, e inexistia o “brodeuse” (bordadei-ra). O vocábulo feminino, com relação ao bordado, presente na “Encyclopédie” é “linge”, palavra francesa que se atribui aos objetos têxteis de uso doméstico, como to-alhas e lençóis, e roupas íntimas. O autor alega também que o “linge” era nesse pe-ríodo uma atividade

[...] reservada às mulheres, que eram de certo remuneradas, mas que não podiam pertencer a nenhuma corporação e que, portanto, não beneficiavam de um real reconhecimento enquanto profissionais, enquanto participantes ativas na vida econômica. (DURAND, 2006, p.4)

Já Silva (2006) relata que

[...] existiam homens em Lisboa, no séc. XVI, capacitados para bordar ou “broslar”. Este ofício exigia perícia e determinadas aptidões para ser efetuado, de tal modo que, por vezes, era necessário obterem um diploma. Tinham de prestar provas tais como realizar debuxo e fazer um bor-dado imaginário onde constava um rosto bordado a seda. (SILVA, 2006, p.1)

Com o desenrolar do Renascimento e nos séculos seguintes o bordado continua presente nas vestes do clero, mas com sintonia estética com as obras pictóricas e escultóricas renascentistas, e também começa a ganhar espaço na indumentá-ria “comum” como ícone de status e valor social. O fio de ouro, o qual havia perdido espaço no final dos tempos medievais, volta a ser usado em contraponto com os

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bordados figurativos que se tornam menos corriqueiros, sendo sua aplicação quase restrita às casulas - marcado pela verticali-dade e em recortes centralizados.

Encontramos nesse período os famo-sos bordados em Blackwork (“trabalho em preto”), os quais teriam sido achados por arqueólogos no Egito e popularizados na Inglaterra (Figuras 8 e 9). Este tipo de traba-lho, que ficou conhecido através dos bor-dados produzidos por Catarina de Aragão, esposa de Henrique VIII, consiste em linhas decorativas pretas e fios de ouro sobre te-cidos brancos (cânhamo e linho).

Figura 8. Almofada em linho, do século XVI, com bordado inglês com fios metálicos dourados e de seda.

Fonte: Instituto de Arte de Chicago.

Os pontos utilizados no Blackwork são o ponto Médicis – também chamado de Holbein, em homenagem ao pintor alemão Hans Holbein – e o ponto Atrás (Backstitch). Outra característica deste bordado é o brilhantismo de quem o executa, que, de acordo com a tradição, deve fazer o ponto em dois movimentos e que pode ser usado também no avesso (CURSO DE BLACKWORK, 2014).

Figura 9. Retrato de Elizabeth I (1575-76), atribuído à Nicholas Hilliard, revelando indumentária com rico

bordado em Brackwork. Fonte: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/7/7a/

Elizabeth1_Phoenix.jpg.

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apresentam de maneira ornamental, anta-gônico à figuração do período anterior, e muitas são as peças com saturação de me-tais e relevos, alinhados ao barroco (Figura 10), o que as tornavam pesadíssimas. A in-dumentária civil era marcada pelos borda-dos florais e de linhas finas, além de ainda estar presente nas roupas de homens de elevado destaque social.

Figura 10. Traje teatral masculino italiano (1740-60) em veludo de seda com bordardos.

Fonte: Acervo do Museu Victoria & Albert.

Em grande parte, a popularização do bordado nesse período ocorreu, além do fato de ter se tornado um costume domés-tico, também pelo surgimento das publica-ções com “samplers” (amostras), espécie de moldes, com motivos florais e naturalis-tas para bordar. Também serviam de fon-tes para algumas letras, mas eram pouco comuns devido à alfabetização ser restrita aos homens. Outro fato que se deve à im-prensa foi a publicação do The Needle’s Excellency (1631) que tratou de formalizar e disseminar os tipos de pontos, bem como os seus nomes (GARDENTON, 2010, p.7).

Contudo, o bordado sofre sua deca-dência no final deste período e começo do século XIX, quando é, inclusive, substi-tuído o bordado manual – lento – pela fa-bricação por máquinas de costura – rápido (BORDADO, 2014). Para se ter uma ideia, a máquina do francês Bartélemy Thimonnier, criada em 1829, chegava a executar 200 pontos por minuto.

Embora iniciativas de retomada da ar-tesania tenham surgido no século XIX, que culminaram na criação da Bauhaus, perce-bemos que o discurso igualitário e de exal-tação do artesanato era em parte vazio e dotado de preconceito, como no caso do bordado e da arte têxtil. Esses ainda eram

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tratados como “artes menores” e era o es-paço reservado às mulheres. Mais mulheres do que homens se inscreveram nos cursos da Bauhaus em 1919, porém, praticamente todas as mulheres aceitas foram destina-das ao departamento de tecelagem (Figura 11), revelando um olhar medieval de Walter Gropius (GLANCEY, 2009).

Figura 11. Otti Berger no tear alto, na década de 1920.Fonte: Arquivo da Bauhaus – Fotografo desconhecido.

Esse pensamento parece perdurar até os dias de hoje, ainda que possamos per-ceber algumas iniciativas interessantes na arte contemporânea.

O bordado na arte brasileira

Ainda que os portugueses, assim como toda a Europa, tenham tradição no borda-do de milênios, não se deve à chegada de suas caravelas a introdução deste nas ter-ras da América. É errada “qualquer genera-lização do tipo que insere estas artes como parte de um saber-fazer “importado” pelo colonizador” (QUEIROZ, 2011, p.6), mesmo que pesquisas revelem que a prática do bordado seja algo não frequente nos povos nativos da América do Sul (RIBEIRO, 1986, p. 404). Muitos exemplares dessa produ-ção pré-colombiana, sobretudo dos Incas, foram doados por Max Uhle ao Museu Paulista em 1912 e que hoje fazem parte do acervo do MAE (Museu de Arqueologia e Etnologia da USP).

De maneira geral, os povos autócto-nes da América Latina, na cultura pré-co-lombiana, já exerciam trabalhos têxteis, como o tecido, os trançados, a cestaria, o bordado, as redes, etc., marcada por uma

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ram ensinados aos colonizadores, mas que sofreram a supressão provocada pelo eu-ropeu, supervalorizando as suas tradições em detrimento da indígena, fenômeno que refere como “razão indolente” (SANTOS, 2006 apud QUEIROZ, 2011, p. 7).

Já no período do Brasil Colônia sabe-se que muitas eram as escravas que empre-gavam suas mãos a bordar enxovais para a família de seus senhores. De fato, a tece-lagem era uma atribuição dada aos escra-vos, indigna, mesmo depois da abolição e, em São Paulo, por exemplo, [...] a profissão de costureira era associada à prostituição urbana, provavelmente devido ao fato de as atividades de fiar, tecer e costurar con-tinuarem ligadas à imagem da escravidão doméstica, reforçada, ainda, pelo fato de a maioria das costureiras ter a cor da pele parda”. (GIBERT, 1993 apud PAULA, 2006, p. 256–257)

A partir de 1950 percebemos que o vo-cabulário da costura e do bordado se tor-na interesse de artistas brasileiros e parte integrante, muitas vezes protagonistas, de suas obras. Artifício da arte moderna, tais artistas parecem levar a fundo a proposta de elevação do processo, do meio artesa-nal, da busca por novos materiais – e suas

especificações de manuseio –, além da per-petuação das tradições culturais populares em detrimento da erudição e o relaxamen-to dos padrões estéticos. São exemplos: Leonilson, Arthur Bispo do Rosário, Edith Derdyk, Hilal Sami Hilal, Walter Goldfarb, entre outros.

Leonilson (Figura 12) e Bispo do Rosário (Figura 13 e 14) convergem na questão de materiais, sendo aglutinadores de obje-tos cotidianos e que se relacionam com suas vidas, os quais são introduzidos em suas criações. Dessa maneira, as obras são dialéticas plásticas de suas memórias transformadas por meio do bordar.

Porém, em Leonilson “há um diálogo entre as artes visuais e a literatura” no qual se apresenta “a vida, o secreto, o particular, o romântico, que migrou de forma fluente e poética de seu cotidiano para sua pro-dução artística.” (CASSUNDÉ; RESENDE, 2011). São letras, símbolos, algarismos, repetições, etc., em arranjos simplistas, dotados de um primitivismo, em uma arte que parece ser gestual, quase involuntária.

Já a obra de Bispo do Rosário “envol-ve a noção de arte como transgressão do elemento comum e corriqueiro da vida, ligando as esferas da estética e do sagra-do” (CAETANO, 2010, p. 207), onde sua

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Figura 12. Bordado “Empty Man” (1991), de Leonilson. Fonte: http://4.bp.blogspot.com/_W6eHz6jVwh4/TOpeZcf2SgI/AAAAAAAAAZs/k7C66LfI8HQ/s1600/ima7.jpg

Figura 13. À esquerda, “Manto de Apresentação”, considerado o carro–chefe na obra de Arthur Bispo do Rosário. À direita, face interna do “Manto de Apresentação”.

Fonte: http://lounge.obviousmag.org

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discurso seu, mas um testemunho de di-vindades, as quais usariam o artista como seu interlocutor, e deverá servir para seu encontro diante de Deus. Sucata, talheres, estatuetas, canecas amontoados em uma ação de ressignificação. Até seus bordados eram à base de linhas que desfiava de seu próprio uniforme.

Edith Derdyk não passeia pelo bordado, mas sim pela matéria intrínseca ao bordar: a linha. Dos artistas aqui citados, Derdyk é a que mais se aproxima daquela arte eru-dita e, talvez, a que mais ousa e extrapola o conceito tradicional da costura (Figura 14). Suas obras, por vezes instalações, são fecundações de espaços por meio de fios suturados. Em seus escritos, Edith relata que a linha

[...] potencializa a sutileza do limite, pre-vê um ponto de partida e um ponto de chegada [...] ocupa um espaço entre. [...] A linha é contorno, é carne, é ossatura. [...] A linha empresta contorno ao mun-do, caminha pela superfície das coisas. E quando isso acontece a linha se estende infinitamente. (DERDYK, 1997)

Figura 14. Detalhe da instalação Arcada de Edith Derdyk.

Fonte: http://www.funarte.gov.br/wpcontent/uploads/2013/02/01_arcada_detalhe_edith–derdyk_2013.jpg.

Tanto Hilal Sami Hilal (Figura 15) como Walter Goldfarb são artistas de técnicas mistas que possuem o ofício de bordar em seus vocabulários que, no geral, trabalham com grandes proporções. O primeiro, por

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meio de fibras de algodão, oriundas de trapos, conforma bordados levitantes, os quais “ganham volumes e gamas de cores fortes que despertam para a sua qualidade física e plástica” (CIRILLO, 2010, p. 630).

Figura 15. Obra sem título da Hilal Sami Hilal, em trapo de algodão e pigmento. Fonte: Acervo da Proarte Galeria.

Em contrapartida, Goldfarb borda “trechos” de obras clássicas, compondo por meio de pontos – principalmente gobelin e richelieu – citações de artistas notórios - Gustav Klimt, Johannes Vermeer (Figura 16), Rembrandt van Rijn -, resultando em obras irônicas e que aguçam o caráter simbólico, não só dos aspectos formais, mas também dos materiais empregados.

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Tais artistas reforçam a constatação de que a razão atual da arte tem sido o valor dado pelo seu criador que, enquanto artista, revela sua biogra-fia, sua origem, sua individualidade, sua posição na sociedade, sem se preocupar em estar dentro de caixas etiquetadas entre figurativo e abstrato, construtivo e informal, ou mesmo em se alinhar aos códigos preestabelecidos da pintura, da escul-tura ou da gravura (CHIARELLI, 1997).

No cenário internacional da arte contemporânea também encontramos artistas que se apoiam no bordado para produzir. Caso da americana Cayce Zavaglia que se dedicou ao bordado, (Figura 17) e do Daniel Kornrumpf (Figura 18) que produzem retra-tos (ambos atuam também como pintores) borda-dos à mão que de uma distância se leem como pin-turas hiper-realistas, e só depois de uma inspeção mais minuciosa faz verdadeira construção da obra se revelar. E do italiano Maurizio Anzeri (Figura 19), que aplica seus bordados sobre fotografias.

Figura 16. Figura 48: obra Lição de Corte e Costura I, de Walter Goldfarb.Fonte: http://www.ignezferraz.com.br/img/dicas/arteb_4_goldfarb_cortecostu.jpg.

Figura 17. Retrato e detalhe de autoria de Cayce Zavaglia. Fonte: http://www.caycezavaglia.com/

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Figura 18. Bordado sobre fotografia de Maurizio Anzeri.

Fonte: http://danielkornrumpf.com/home.html.

Figura 19. Bordado sobre fotografia de Maurizio Anzeri.

Fonte: http://sixthfinch.com/anzeri.jpg.

Considerações finais

A tecelagem e o bordado surgiram com a necessidade do ser humano de se pro-teger. Da costura das peles ao trabalho de tramar fibras, evoluiu para a produção industrial na idade moderna, quando per-de sua característica de artesanato. Mas a Arte Têxtil e o Bordado manual e artístico não se perderam com a industrialização, ao contrário, se mantiveram como artesania, sendo ensinados às novas gerações. No de-correr dos tempos a técnica foi apropriada por artistas plásticos para a construção de sua obra e ganha o status de arte, como é possível verificar nas obras dos artistas ci-tados nesse trabalho.

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nuttie Antropologia da Universidade de Católica de Goiás.

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CAETANO, Cristina de Oliveira. Bordado e memória: a figuração do manto em Bispo do Rosário e Hilal Sami Hilal. Anais do XIX Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas – ANPAP. Cachoeira: ANPAP, de 20 à 25 de setembro, 2010. p. 207–209.

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CAMINHOS NÃO-TRADICIONAIS PARA A GRAVURA: A POÉTICA NO ENCONTRO COM A LINGUAGEM E

CONSIGO MESMO.

A xilogravura como veículo para minha expressão

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Resumo

Como resultado de uma identificação não focada no desenho convencional, aca-bei por encontrar a xilogravura como lin-guagem artística a qual eu mais me iden-tifico. Mesclando a minha infância e suas referências visuais, fui aos poucos ligando o que chamo de instinto com o que, até en-tão, eu tinha apontado como uma grande área de interesse, que partem dos mesmos impulsos criativos e investigativos. Os inte-resses se encontravam. Todas as gravuras tem insistência cada vez maior: as matri-zes, que para mim funcionam como o cen-tro de uma grande teia, e as revelações em tecido, como se pudessem ser eternas.

Palavras-chave: xilogravura; tecido; Vicent Van Gogh; matrizes.

Resumen

Como resultado de una identificación fuera de foco en el diseño convencional, al final me encuentro la xilografía como len-guaje artístico que me identifico más. La fusión entre mi infancia y sus referencias visuales, me estaba convirtiendo poco a poco lo que yo llamo instinto con que lo

había señalado como un área importante de interés, partiendo de los mismos impul-sos creativos y de investigación. Los intere-ses eran. Todos tienen una insistencia cada vez mayor: las matrices, que para mí la fun-ción como el centro de una gran web, y las revelaciones en los tejidos, como si pudie-ran estar juntos para siempre. Siempre.

Palabras-clave: xilografia; tejido; Vicent Van Gogh, sede.

IntroduçãoO ENCONTRO COM A XILOGRAVURA

Quando investigo a origem da gravura em minha trajetória acadêmica, a tendên-cia é investigar e obter uma conclusão não objetiva. Há certo tempo aprecio o dese-nho de maneiras não tão convencionais, me interesso muito mais por criações em argila, metal, gesso, madeira, do que em Debret ou tela.

Gravura, em geral é uma linguagem que sempre me chamou a atenção, antes mes-mo de saber o que eram gravuras, sobretu-do a xilogravura. Assim, surgiram questões: por que o desenho é transferido para o pa-pel? Porque o desenho é geralmente feito com alteração de detalhes se comparado a

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eum desenho realizado no papel, por exem-plo? Dentre muitas outras perguntas.

Sempre gostei das gravuras que costuma-mos ver, sobretudo as da literatura de cordel, mas sempre tive a sensação, inclusive física, de que faltava alguma coisa ali. Nunca conse-gui nenhuma resposta para algumas dessas questões, algo que foi positivo durante meu estudo e prática na xilogravura, porque me impulsionou a investigar o assunto.

A sensação que obtive ao entrar em con-tato com a gravura é de como se ela não pudesse ser limitada em nenhum aspecto. Como se a totalidade do que conheço sobre gravura não fosse suficiente. Eu possuía al-guma limitação em relação a essa lingua-gem, além do instinto de ir e de fato exer-citar a linguagem e enfim testar os meus limites, os da madeira, dos instrumentos.

Quando parei para testar, investigar, es-tudar e decifrar, descobri novas questões, e no primeiro ano de faculdade, em 2010, o SESC de Bauru ofereceu um curso rápido de xilogravura, com duração de uma sema-na, com Nireuda Longobardi. Ao saber, não tive dúvidas em imergir no vasto universo da madeira sulcada. Como esperado, logo no início do curso vieram as sensações re-ais, que funcionaram como um incentivo para continuar o processo.

Após o curso no Sesc, iniciei livremente uma pesquisa sobre xilogravura. Tamanha foi a minha surpresa quando descobri que as imagens de calendários orientais que eu tanto olhava e durante toda minha in-fância habitaram o escritório do meu pai, eram reproduções de xilogravuras orien-tais. Tudo o que me instigou desde criança, que eu gostava de passar longos períodos observando, entrando e saindo de dentro da imagem, eram xilogravuras. Nesse mo-mento encontrei mais sentido ainda para o que me instinto dizia.

Assim, a partir de casos particulares mapeiam-se recorrências que revelam semelhanças entre diferentes processos de diferentes artistas. Entre essas recor-rências pode-se identificar que a expe-riência vivida por determinados artistas são materializadas em suas anotações e revelam uma interação entre a noção de tempo e de memória impressas nesses projetos poéticos intercambiantes nesse nó da temporalidade. (SALLES, 2008; p 30 e 31)

A partir deste encontro com a xilogravura oriental, passei a me dedicar então a histó-ria desta tão antiga e fascinante prática, e

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a cada descoberta acerca de sua tradicional execu-ção no oriente, com todos os seus detalhes, todas as suas sub divisões de trabalho, mais fascinada eu ficava. Não parei a investigação neste continente, e fui caminhando e descobrindo, tomando conheci-mento de inúmeros fatos. Durante todo esse pro-cesso, identifiquei preferência por determinados artistas, um dos primeiros foi Hiroshigue. Consegui apontar quem era um dos artistas da minha infân-cia, um mestre das estampas japonesas e da técni-ca xilográfica Ukiyo-e (posteriormente explicarei). Após um processo de reflexão e ligações artísticas, novamente me deparei com Vicent Van Gogh, que realizou releituras de suas gravuras. Dois artistas que valorizo muito.

Além de Van Gogh, e de Hiroshigue, houveram outros artistas que também tenho como referên-cias, destes posso citar Edvard Munch, Goya, Thomas Bewick, Escher, Lasar Segall, Maria Bonomi, dentre outros. Cada um destes artistas possuem peculiar-idades que me fizeram citá-los, seja quanto a di-mensão das obras, como Maria Bonomi, sejam os detalhes, que é o caso de Escher e Thomas Bewick, os temas sombrios de Goya, ou a simplicidade e pro-fundidade de Lasar Segall.

Logo identifiquei a minha linguagem prepon-derante dentro das artes, a xilogravura.

Figura 1. Hiroshigue, Pomar de Ameixeiras

em Kameido, woodblock print,

36,3 x 24,6, The Brooklyn Museum.

Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Cem_vistas_de_Edo#/media/File:Hiroshige_Pruneraie_%C3%A0_

Kameido.jpg

Figura 2. Vicent Van Gogh 1853 –

1890, Japonaiserie: Ameixeira em Flor

1887 óleo sobre tela, 55 x 46 cm. Amsterdã,

Van Gogh MuseumFonte: http://commons.

wikimedia.org/wiki/File:Hiroshige_Van_

Gogh_1.JPG

55 x 46 cm. Amsterdã,

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Quais os materiais que experimentei e que utilizo para cavar a matriz

Durante todo o meu processo de co-nexão com essa linguagem, um dos mais curiosos e instigantes, é o processo de en-contro com as ferramentas. Digo encontro, porque considero estar sempre suscetível a novas tentativas, a novas experiências, visto que apenas colocando em prática posso realmente saber o que obtive de resultado.

O reconhecimento das ferramentas, o entendimento da função de cada uma de-las, a maneira pessoal de pegar cada goi-va, isso tudo me fascinou. Só que não eram exatamente apenas as goivas que eu que-ria ter em minhas mãos. Sempre pensei em possibilidades alternativas para ferramen-tas, até mesmo como parte de um proces-so autoral e de crescente aprendizado.

Me recordei de quando a Nireuda, artis-ta plástica que ministrou a oficina no Sesc, contou algo pessoal de sua trajetória. Ela me disse que aprecia cavar com o estilete. Nesse momento consegui identificar o que tan-to procurava, o estilete. Até hoje, inclusive, para linhas finas, prefiro estiletes a goivas. O traço do estilete é completamente oposto

ao traço das goivas. A combinação dos dois é ácida e delicada. Expressa perfeitamente os limites levados quase a exaustão.

Quando cavo uma superfície muito grande, na qual tenho que extrair grande quantidade de madeira, na maior parte da obra, eu utilizo a goiva reta para tirar material.

Porém quando estou cavando detalhes da imagem, áreas delicadas e que possuem traços finos, ou até mesmo os contornos desta, sem nenhuma dúvida eu utilizo o estilete.

A grande diferença visual entre estilete e goiva, é que o estilete deixa riscos finos, e as goivas deixam sulcos.

Sobre as goivas, sou bastante sistemá-tica. Utilizo sempre quase uma goiva reta, que caminha junto com meu estilete largo, o qual quebro dentes de lâmina o tempo todo, porque a lâmina tem que estar perto do seu desempenho total a maior parte do tempo, ou seja, eu preciso da lâmina afiada o máximo possível.

As goivas são ferramentas fáceis de se-rem encontradas, talvez nem sempre com a variedade desejada, mas elas são vendi-das em lojas físicas e não somente virtuais.

Quanto aos estiletes, embora sejam fá-ceis de ser encontrados, existem em uma

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considerável variedade. E por acreditar que não seria fácil atender as minhas necessidades, pas-sei a dar preferência aos mais caros e corpulentos, chegando a ganhar alguns de presente. Mas não me adaptei. Ao resolver comprar o estilete mais comum, o mais barato, que não tem formato ana-tômico nem plástico mais maleável, encontrei nele tudo o que precisava: firmeza, facilidade em trocar a lâmina, transparência pra ver o comprimento da mesma, ergonomia, por ser fino e não pesar nas mãos.

Há alguns meses, achei em casa um instru-mento que parece ser um buril, que era do meu avô. Sem pestanejar eu o recolhi para minha cai-xinha de ferramentas, onde guardo meus outros instrumentos.

A primeira xilogravura que eu fiz e que tenho até hoje, é uma placa de MDF de 20 x 20cm, onde de-senhei uma paisagem cheia de cactos. Pequenina, pessoal, remete a traços da minha personalidade, já que coleciono cactos há muitos anos.

O lado descontraído e não tão reflexivo dessa gravura, é o fato de não ter mensurado que o que eu cavo não é a parte entintada, ou seja, que ela não vai para a revelação. Quando fui decidir se sul-caria o cactos e as pedras ou o céu, optei por cavar os cactos, simplesmente porque gosto do formato deles e estava, mais uma vez, desenhando em su-portes que não necessariamente possuem uma di-mensão só. Cavei e refiz o desenho com os cortes.

Figura 3.Instrumentos para gravação.Fonte: acervo pessoal (2013).

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eEntintei, revelei e então sorri. Porque a revelação resultou em paisagem noturna sem perceber. Essa sensação surpresa re-sultou em mais impulso para cavar. Tenho essa gravura até os dias atuais, e ela se li-mita a apenas uma revelação, proposital-mente. É como um marco, como uma prova física do início de todo esse processo.

Quais os materiais que uso para entintar e revelar

As tintas foram uma questão curiosa pra mim. Porque gravuristas usam tinta de off set? O nome já denota, “off set”, é utilizada em gráficas, para longas tiragens com le-tras pequenas a serem lidas. Claro que eu estava à procura de tinta realmente própria pra gravura.

As encontrei pela internet, a base de óleo e a base de água, li sobre as duas, es-tudei sobre as marcas e a diferença de com-posição de todas e enfim as adquiri junto com um rolo, que me acompanha até hoje.

E a madeira? Nessa questão me deparei com várias di-

ficuldades. Local nenhum em Bauru vendia MDF em pequena quantidade. Partindo da insaciável vontade de gravura, fui até uma

madeireira, comprei uma placa de mais ou menos três metros de largura por dois de altura. Com certa indecisão, com claro ar-rependimento, encaminhei a placa para ser cortada em tamanhos diversos. Isso porque o desejo era cavar toda a superfície sem que essa precisasse ser separada. Mas é claro que eu poderia posteriormente cavar uma placa com essa dimensão única. Quem sabe até unir duas e cavar imagens que se com-plementam, dessa forma a gravura passaria a ter seis metros. Como sempre o apoio fa-miliar para meus projetos artísticos sempre esteve presente, me acompanhando e fa-zendo parte de todo o processo. Mas como eu estava no início da caminhada, arquivei temporariamente esse plano.

Chegou a hora da revelação. Comecei revelando apenas em papel,

do papel branco passei para o reciclado, para folhas coloridas, testei vários tipos. Do papel branco, passei para o jornal cheio de letrinhas. Mas não era o suficiente, o vazio no meu peito ainda existia.

Revelei em papel jornal, o que me pro-porcionou um resultado incrível e muito satisfatório. Depois em papel Kraft, que considero meu preferido. Consegui então, temporariamente atingir minhas expectati-vas quanto ao suporte em que a imagem é

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transferida. Mesmo dando muito mais im-portância a matriz do que as revelações.

Porque a matriz como foco principal e a insistência no tecido

Depois de cavar muitas matrizes, con-tinuei sentindo falta de detalhes, queria o maior nível possível. Fui estudar um dese-nho impossível, ou quase impossível de ca-var. Durante esse processo de estudo, fiz di-versas gravuras em MDF, de diversas cores, com desenhos de traços diversos. Mas não preciso dizer que não cheguei onde queria.

Até que eu estava na UNESP, para ter aula no ateliê, e me deparei com uma pintu-ra magnífica de dois amigos meus, Andrey e Michael. Já havia visto essa pintura antes, inclusive acompanhei o processo de execu-ção dele, mas eu nunca havia passado em sua frente enquanto pensava nas tão valio-sas madeiras. O desenho contempla três órgãos, coração, pulmão e cérebro. Além de duas figuras humanas. Dos três órgãos, o coração é o mais complexo para cavar, e claro que eu logo ao olhar quis cavá-lo.

Amadureci esse projeto e todas as di-ficuldades que ele me traria. Só não tive

interesse em cavar as figuras humanas da pintura. E não quis deixar o pulmão e o co-ração de lado, órgãos tão bem desenhados e pintados quanto o coração. Decidi que a obra dos meus amigos viraria uma série de xilogravura. Conversei com os dois, que ficaram extremamente felizes com meu pe-dido para cavar a obra deles e me olharam com certo estranhamento e riso quando me explicaram que eles jamais tinham co-gitado cavar os órgãos, e nem sabiam se isso seria possível.

É exatamente essa a questão. Cavar o que não parece ser possível. Comecei com o co-ração, claro. Transferi o desenho para uma placa de MDF com 72 centímetros de largura e 92 centímetros de altura. Não tão grande e não tão pequena. Comecei a cavar, inclu-sive para expor a obra, que quando pronta batizei de “puLsa” em uma exposição do GRAVA – Grupo de Estudos em Artes Visuais e Audiovisuais, coordenado pela Profa. Dra Joedy Barros Marins Bamonte, no qual fiz parte até o final do curso de graduação. Ao cavar nós não éramos ainda a mesma coisa. Eu era frequentemente interrompida. O que atrasava a execução da obra. Até que a ex-posição foi chegando perto de acontecer e eu a cavei em dois dias.

O resultado é esse:

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eFigura 4. Matriz de “puLsa”.Fonte: acervo pessoal (2013).

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Revelei-a em papel. E isso sim me deixou vazia. Arquivei as próximas revelações porque então eu precisava cuidar da exposição.

Ocasionalmente revelações não me satisfazem. Eu prefiro olhar a matriz e enxergar toda a vida que há nela, todo o caractere único que nela existe, toda a sua grandeza e certo poder de gerar obras em sequência. Como se a matriz fosse algum símbolo de fertilidade artística, uma certa ode ao feminino, como se dela dependessem novas vidas.

Uma mãe gigante e eterna. Mas é claro que as revelações não poderiam ficar de lado. Eu as amo também. Só preci-

savam agregar mais valor, eu só precisava fazer com que elas chegassem perto da magni-tude da grande mãe matriz. Que elas pudessem estar mais próximas de toda aquela fertili-dade artística depositada na madeira.

Voltei ao “puLsa”. Pensei e pensei qual seria a saída para que eu me completasse. Cheguei à conclusão de

que precisava de lona de caminhão, para alcançar o aspecto exato ou quase exato de sujei-ra, de ação do tempo. Porém não consegui encontrar a lona de maneira acessível. Arquivei esse processo, mas é claro, vou colocá-lo em prática. Após revelações em tecidos diversos, pela possível similaridade com a lona, parei no algodão cru. Grosso.

Porém o algodão cru possui uma cor só, com poucas variações tonais. Resolvi tingir o tecido, mas tintas industrializadas possuem resultados relativamente previsíveis.

Optei por café, pó de café, chá mate, erva mate. Tudo misturado e fervente. O resultado me surpreendeu e me satisfez. Desde a textura da erva e do pó, do cheiro que eu senti ao fazer essa mistura em água fervente, e do cheiro que permanece no tecido. Posteriormente ele vai saindo e isso também faz parte da ação do tempo, mas não deixa de ser uma fase da revelação. Não deixa de fazer parte da história, do nascimento da obra.

Até que, revelei “puLsa” no tecido tingido artesanalmente, pelas minhas próprias mãos. Esse é o resultado, me emocionei porque consegui estabelecer o elo direto entre o criador, matriz, e a criatura, revelação.

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Figura 5. Revelação de “puLsa”.Fonte: acervo pessoal (2013).

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Em partes anteriores do texto, mencionei minhas ideias quanto ao tamanho das matrizes que faço. E entre o nascimento de “puLsa” e a continuação da série, fiz várias matrizes me-nores, mas na exposição do GRAVA em 2013, decidi que eu precisava fazer algo maior, que eu precisava expressar a vontade de deitar em cima de uma matriz. Finalmente comprei uma placa, trouxe-a pra casa, desta vez sem cortá-la, inteiriça, com 3 metros de largura por 2,10 metros de altura.

A sensação de ser uma coisa só foi inebriante, minhas mãos machucadas não doíam, eram apenas lembrança viva do que eu estava construindo.

Foi extremamente trabalhoso construí-la, e neste caso, especificamente, eu não cavei uma matriz cheia de detalhes. Cavei algo como a força bruta que há em mim. Foi um proces-so brutal o tingimento manual do algodão cru. Brutal, intenso e delicioso. Foi também uma força bruta o processo de entintá-la para a revelação. Precisei da ajuda de duas pessoas, claro que da minha mãe, e do Daniel, na época meu companheiro. A matriz e a revelação significam muito porque não possuem apenas grande força pessoal, mas também a união de nós três, um pouco das mãos dos dois junto com as minhas.

Atualmente dou continuidade a série a qual o coração deu início, o pulmão está em pro-cesso, depois cavarei o cérebro. Revelei em algodão cru tingido manualmente, além de “puL-sa” e “Penumbra” várias outras matrizes. Por enquanto esse é o ponto ideal para mim quan-do se trata de revelações, ainda que a prioridade sempre seja a matriz.

Figura 5. Matriz de “Penumbra” sendo revelada.Fonte: acervo pessoal (2013)CA

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Figura 6. Revelação de “Penumbra”.Fonte: acervo pessoal (2013). 151

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APRESENTANDO E DISCUTINDO RESULTADOS

Ao adentrar a linguagem xilográfica, to-mamos conhecimento de uma longa, deta-lhada e vasta história, por ter sido iniciada no Oriente e ter se difundido para outros continentes sem que se perdesse com o passar dos anos. A xilogravura é uma ma-neira de registro muito antiga, nascida com o propósito de comunicação e não de arte, mas que a partir das condições sociais e históricas por onde passou foi agregando valor artístico. Esse valor perdurar atual-mente foi um dos objetivos iniciais para a realização da pesquisa aqui apresentada.

A xilogravura, em cada continente e em cada época que passou sempre teve como objetivo as revelações provindas das matrizes e não as próprias matrizes, que originam quantas cópias o gravador deter-minar. Tal maneira de considerar a gravura como arte, de majoritariamente conside-rar como manifestação artística as revela-ções acabou por me incitar a questionar e a ir na direção contrária.

O processo de encontro com o oposto, processo esse um tanto quanto arrisca-do e incomum, principalmente dentro de uma graduação em Educação Artística, foi

gradativo, deu-se conforme tomava cada vez mais conhecimento de artistas e pe-ríodos históricos e concluía que, em suma, todos encaram a gravura pela mesma óti-ca. Encontrei Samuel Casal, gravador sulis-ta, que realiza matrizes únicas.

Ao tomar conhecimento das obras de Casal, não só consegui obter identificação quanto ao comportamento artístico em relação à xilogravura, na relação matriz/revelação, como também encontrei um artista que havia ido além do que eu havia pensado, fazendo-me enxergar além.

Toda essa trajetória, durante esses qua-tro anos de faculdade, quando me iniciei na gravura, executando-a hoje, com um pouco mais de conhecimento do que eu possuía no início, foi de extrema relevân-cia para meu crescimento acadêmico e artístico.

Sem dúvidas essa pesquisa é só o início, ainda há muito mais para ser descoberto e pesquisado, mas esse trabalho é um enor-me incentivo para que eu continue e, dessa forma aprenda mais sobre essa técnica tão antiga e minuciosa: a xilogravura.

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Referências FAYGA, Ostrower. Criatividade e Processos de Criação. Vozes, Petrópolis, 2010.

SALLES, Cecília Almeida. Redes de Criação: Construção da Obra de Arte. Horizonte, São Paulo, 2008.

SCHLOMBS, Adele. Hiroshigue. Rio de Janeiro: Taschen, 2009.

ARTE, NATUREZA E EXPERIMENTAÇÃO

Cássia Lindolm Bannach12

Eliane Patrícia Grandini Serrano13

12. Graduanda de Bacharelado em Artes Visuais - IC, UNESP Bauru, [email protected]

13. Professora Doutora, Departamento de Artes e Representação Gráfica - FAAC – UNESP, [email protected]

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Resumo

Este artigo é um relato de experiência que se refere à aplicação do projeto de iniciação científica chamado “Arte e Meio Ambiente: pigmentos orgânicos para a prá-tica pictórica” ligado a UNESP Campus de Bauru e PIBIC - CNPq e tem como objeti-vo pesquisar pigmentos naturais para uso em práticas artísticas, buscando maneiras simples e acessíveis para a obtenção de pigmentos naturais presentes em coisas da vida quotidiana. Os ensaios foram realiza-dos com matérias-primas naturais de fácil acesso. O projeto foi implementado em dois grupos de escolas públicas de Bauru onde a proposta artística foi a utilização destes pigmentos, explorando as cores, texturas, formas e também o sentido do ol-fato para o sabor, resultando na produção de obras pictóricas de grande expressivi-dade. Os objetivos foram alcançados com êxito, uma vez que foi possível fazer uso de materiais simples e de fácil acesso para ob-tenção das cores.

Palavras-chave: Pigmentos natu-rais; experimentação; meio ambiente; educação.

Abstract

This article is an experience report that refers to the application of the research project called “Art and Environment: orga-nic pigments to pictorial practice” on the UNESP Campus of Bauru and PIBIC - CNPq and aims to research natural pigments for use in artistic practices, seeking simple and affordable ways to obtain natural pigments present in everyday life things. The tests were conducted with natural raw materials easily accessible. The project was imple-mented in two groups of public schools in Bauru where the artistic proposal was the use of these pigments, exploring the co-lors, textures, shapes and also the sense of smell to the taste, resulting in the pro-duction of pictorial works of great expres-siveness. The objectives were successfully achieved, since it was possible to make use of simple materials and easy access to ob-tain the colors.

Keywords: Natural pigments; experi-mentation; environment; education.

Cássia Lindolm Bannach e Eliane Patrícia Grandini Serrano

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Introdução

O presente artigo expõe um relato de experiência: refere-se à experiência viven-ciada durante o desenvolvimento do pro-jeto de iniciação científica intitulado “Arte e Meio Ambiente: Pigmentos naturais para a prática pictórica”, vinculado à UNESP (UNESP/PIBIC-CNPq/Reitoria) sob orienta-ção da Prof.ª Dra. Eliane Patrícia Grandini Serrano.

De acordo com o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (1998), a Arte deve ser iniciada na Educação Infantil, pois “o pensamento, a sensibilidade, a ima-ginação, a percepção, a intuição e a cogni-ção da criança devem ser trabalhadas de forma integrada, visando a favorecer o de-senvolvimento das capacidades criativas das crianças” bem como sua relação com o Meio Ambiente, no qual as crianças têm os primeiros contatos com tintas e materiais de pintura, porém sempre de uma forma mais programada, muitas vezes até com espaços no papel pré-definidos, onde o ex-plorar fica delimitado. A experimentação de elementos naturais pode ser transfor-mada em excelentes vivências de explora-ção para as crianças, que de forma praze-rosa e significativa, pode despertar desde a

criatividade até o cuidado com o meio am-biente e resultar em um futuro adulto mais consciente em relação aos cuidados com o meio onde vive, atingindo uma série de questões como sustentabilidade, desper-dícios de materiais e alimentos, educação alimentar e ainda contribuindo para seu desenvolvimento artístico, pois através da arte pictórica também podemos desenvol-ver na criança um ser humano mais sensí-vel e criativo.

A pesquisa sobre pigmentos naturais surgiu de uma aula de Artes, que tinha como proposta a experimentação de ele-mentos diversos, a partir de um decalque com a própria folha verde; o “encantamen-to” com o pigmento verde se transformaria em muitos trabalhos e, também, no início de uma iniciação científica.

Os pigmentos naturais foram desco-bertos pelo homem no período da Pré-história. O homem vivia ainda em cavernas e suas primeiras expressões ficaram mar-cadas na história por meio de registros de imagens pintadas nas paredes das caver-nas, que usavam nada além de corantes naturais como o carvão vegetal, a própria terra, cal branco. Como ferramentas usa-vam pedras pontiagudas e ossos queima-dos, resultantes dos animais que caçavam

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para sua alimentação. (FAJARDO, MATHIAS e FREITAS, 2002)

As pinturas rupestres das cavernas, como são chamadas, foram feitas de uma materialidade natural com diversos tons da sua própria terra, os chamados tons ocres, uma variação de tons marrom, preto e ver-melho; e combinados com tons de verme-lho, amarelo e lilás, resultantes do óxido de ferro retirado das paredes da caverna e que, após seu aquecimento, uma nova cor de pigmento se atingia.

Os pigmentos são substâncias coloridas que se dissolvem em líquidos e que conce-dem a outros materiais seus efeitos de cor, manchando-os ou sendo por eles absorvi-dos: são chamados de tinturas ou corantes. Os pigmentos podem ser classificados em sua cor, seu uso e sua permanência, mas a principal classificação se dá pela sua origem, que pode ser inorgânica ou orgânica. Os pig-mentos inorgânicos são os de origem mine-ral, tendo-se como exemplos as terras natu-rais; o ocre e os pigmentos orgânicos são de origem vegetal ou animal. (MAYER, 1999)

O conceito mais simples para um pig-mento é aquilo que resulta em cor e que transfere os efeitos de cor a outro material.

Considerados como magos, os artistas da pré-história também descobriram que

o pigmento poderia ter uma consistência melhor quando misturado com outro ele-mento de composição diferente, um aglu-tinante, como é chamado hoje, e assim o buscaram dentro da natureza: gordura e sangue de animais, urina e a seiva retirada das árvores. “Aglutinante é aquilo que une as moléculas do pigmento, dando a liga. [...]. Dependendo do aglutinante, temos di-ferentes tipos de tintas, adequadas a diver-sas técnicas e/ou superfícies.” (FAJARDO, MATHIAS e FREITAS, 2002, p. 38)

Na História da Arte, muitos mestres da pintura fizeram uso de pigmentos naturais. Podemos citar Leonardo Da Vinci (1452-1519) e Rembrandt Van Rijn (1606-1669). Os pigmentos terrosos eram usados na forma natural ou torrados, pois assim obtinham tonalidades de cores diferentes. (DEGELO, 2009)

No Brasil, o artista Candido Portinari (1903-1962) usou pigmentos naturais no início de seu trabalho; também podemos citar Alfredo Volpi (1896-1988) que fez uso de pigmentos naturais durante toda sua vida, ele que não abria mão dos pigmen-tos puros. O artista usava a técnica da têmpera, a qual se mistura o pigmento ao ovo, que exerce o papel de aglutinante, ou seja, que dá liga, tornando-o uma tinta de

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anosecagem rápida. Volpi, ao entrar em conta-

to com obras renascentistas se aprofundou nessa técnica, passou a colocar gotas de óleo de cravo como um fungicida natural. Disto resulta o cheiro diferenciado e que possivelmente criava uma atmosfera de trabalho mais agradável comparado com as tintas industriais.

O artista, que já preparava os chassis e as telas para suas obras, passou a criar também as suas tintas. A têmpera é uma técnica antiga na qual os pigmentos são misturados a um aglutinante, em geral o ovo. Seu tempo de secagem é muito rá-pido o que faz com que o tracejado do pincel torne-se visível. A técnica também deu a ele uma cultivada liberdade [...]. Com o tempo seu domínio da têmpera foi atingindo a excepcionalidade, e iria torná-lo dono e senhor da Cor. (MATTAR, 2014, p. 6)

Com o tempo as tintas foram evoluindo junto com o homem e ganharam espaço no mundo das artes e também no mercado de consumo com uma infinidade de ma-teriais para técnicas artísticas diversas. “A pintura, como as demais artes, nos primór-dios da humanidade, também se propôs

exercer um papel utilitário...” (LOWENFELD; BRITTAIN, 1977, p. 7).

Mesmo com toda evolução das tintas, alguns artistas brasileiros ainda hoje usam pigmentos puros ou naturais, como Frans Krajcberg e Carlos Vergara em seus traba-lhos artísticos.

Ao revisar a literatura, muitos autores sugerem o uso de tintas naturais no ensino de Artes como uma atividade diferenciada e divertida.

FAJARDO (2002, p. 50) destaca no capí-tulo pinturas especiais: o prazer de fazer, que o ateliê é um local para se ficar à vonta-de para o ato de experimentar, sem preocu-par-se com o “sujar”. O autor cita como ma-teriais básicos de tintas e texturas, terras coloridas e minérios, encontrados na forma de pedras, são encontrados na natureza.

CANTON (2006, p. 8) descreve que du-rante a pré-história, os homens percebe-ram que, ao retirar o sumo das plantas e ao misturar diferentes tipos de terra, semen-tes e óleos, obtinham uma diversidade de pigmentos que se transformavam em tintas naturais. Em seu livro Pintura Aventura, ao citar a origem das tintas na pré-história e com elas as primeiras pinturas nas paredes das cavernas, faz um convite: “Você tam-bém pode produzir tintas “pré-históricas”,

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usando plantas espremidas, sementes, fru-tos e terra. Que tal experimentar?”, no qual mostra possibilidades de trabalhos que po-dem ser feitos de forma divertida e criativa num espírito de liberdade e aventura.

Segundo Barbosa e Cunha (2010, p. 213), o uso de materiais na educação como ex-perimento artístico podem resultar em mais significado, despertando assim habi-lidades e competências na criança que po-derão ainda ser contextualizadas de forma que atinjam a interdisciplinaridade.

Casimiro (2013, p. 48) considera o uso das cores na pintura e desenho como algo mágico para as crianças, devido às mudan-ças de cores e texturas. A autora propõe um trabalho ligado à Educação Ambiental e em-basado em conceitos de sus tentabilidade com uma abordagem interdisciplinar. Em seu trabalho com as crianças, elas mes-mas produziram diferentes tonalidades de tintas com terra para criarem traba lhos ar-tísticos. Isso acabou por explorar sensorial-mente a criança, objetivando também que ela aproveitasse recursos naturais que não prejudicam o meio ambiente.

Mallmann (2014) apresentou estudos com materiais potencializadores para in-terações com bebês, citando diversos elementos da natureza como materiais

naturais e diversos elementos comestíveis, relacionando com experiências, envolven-do os sentidos.

Barbieri (2014, p. 54) destaca que “o contato com as sementes, com a terra e o próprio espaço podem despertar reflexões e sensações, possibilitar descobertas e no-vos modos de perceber a vegetação que nos cerca”, e assim sugere a natureza como material, a partir de uma pequena quan-tidade de terra, sementes, folhas secas e gravetos variados, que podem ser transfor-mados em trabalhos artísticos, exploran-do suas formas e cores. A experimentação é feita com a mistura de terra, água e cola branca.

O projeto nas escolas

O projeto foi aplicado em duas escolas da rede pública de Bauru-SP, o EMEII Gisele Marie Savi de Seixas Pinto, Rua Alfredo Rodrigues de Souza, q. 13, Vila Celina – Bauru-SP e o EMEI Wilson Monteiro Bonato, Av. Nossa Senhora de Fátima, 16-29, Jardim América - Bauru-SP, com a partici-pação dos alunos do Jardim II da Educação Infantil, com autorização da Secretaria de Educação e de seus responsáveis legais,

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anoesclarecendo que somente após o recolhi-

mento da autorização dor pais por escrito para participação no projeto bem como do uso de suas imagens para a pesquisa é que o projeto foi iniciado.

O objetivo principal do projeto foi pes-quisar pigmentos ou corantes encontrados em materiais alternativos e sustentáveis da natureza, para uso no ensino de artes, priorizando recursos de fácil acesso e que estivessem dentro da realidade dos alunos e professores, e que também pudessem proporcionar uma pigmentação adequada, ou seja, de qualidade.

Os objetivos específicos foram realizar experimentações com materiais de ori-gens naturais e alternativos, explorando matéria-prima de fonte renovável e de fá-cil acesso, que viabilizasse atividades na escola; propor atividades de experimenta-ção e pintura no ambiente escolar, promo-vendo uma exploração de cores, formas e texturas.

O projeto teve como intenção demons-trar que é possível executar atividades de artes com elementos simples da própria natureza e, assim, auxiliar tanto escolas com muitos recursos materiais quanto aquelas sem recurso algum; tornando-se uma ótima alternativa aliar os recursos

naturais disponíveis na natureza e da re-alidade do aluno para trabalhar a arte de forma interdisciplinar, significativa e praze-rosa, proporcionando a criança um contato com materiais diferentes do habitual.

Materiais e métodos

Após estudos teóricos, foram realiza-dos testes experimentais a partir de ele-mentos que podemos considerar naturais, encontrados na natureza ou de consumo comum, sendo estes selecionados confor-me seu fácil acesso por educandos e pro-fessores, como: Folhas de temperos diver-sos: Manjerona, hortelã, salsinha, cheiro verde; Folhas de hortaliças: Couve, rúcula, alface, espinafre; Condimentos diferencia-dos: Açafrão, canela e camomila natural; Leguminosos: Repolho roxo, cascas de be-terraba; Frutas: Abacate, uva, jabuticaba; Reaproveitamento de pó de café usado e Folhas, terra e areia.

A análise dos materiais procedeu por meio de experimentações, nas quais foram testados em sua forma natural e também cozidos. Foram testados como conservan-tes: o sal de cozinha, o vinagre e o álcool etílico, por serem de fácil acesso.

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Metodologia

Quanto à metodologia, foi utilizada a pes-quisa aplicada, com objetivos exploratórios, utilizando como procedimentos e métodos a pesquisa bibliográfica, experimental e a pesquisa-ação. “A pesquisa ação é aquela que, além de compreender, visa intervir na situação, com vistas a modificá-la. O conhe-cimento visado articula-se a uma finalidade intencional de alteração da situação pesqui-sada”. (SEVERINO, 2007, p. 120)

O projeto foi aplicado por etapas atra-vés de atividades que eram trabalhadas de forma contextualizada. Ao plantar o cheiro verde, levamos as crianças a pensarem no cuidado com a natureza, seu uso na culiná-ria, sua importância para a saúde, a coleti-vidade e por fim, sua cor na arte. Permitir a experimentação de forma prazerosa e sig-nificativa, envolvendo os sentidos, a cria-tividade, que, de acordo com LOWENFELD e BRITTAIN (1977); BARBOSA e CUNHA (2010).

O primeiro passo foi visitar as escolas com uma antecedência de 7 a 15 dias an-tes da aplicação, objetivando apresentar o projeto ao diretor e professor, conhecer as escolas e seus espaços, sua realidade e assim prever possíveis materiais que pode-riam ser usados na aplicação do projeto.

O projeto foi dividido em 6 etapas principais:

Etapa 1: A primeira atividade tinha como propósito conhecer os alunos, de for-ma que eles pudessem ficar mais a vontade durante as próximas etapas do projeto. A proposta de atividade para atingir este ob-jetivo foi a construção coletiva de uma ces-ta feita com materiais reciclados, no caso, uma caixa de papelão que seria usada em outras atividades. A cesta foi confecciona-da de forma simples, uma faixa de papelão foi fixada como alça na caixa, transforman-do-a em uma cesta, em seguida os alunos a ornamentaram com recortes de frutas e verduras encontrados em revistas. Outra opção seria a de aproveitar panfletos de supermercados, os próprios alunos podem guardar e levar para a atividade. Durante esta atividade pode-se explorar questões como a reciclagem, alimentação, aprovei-tando os itens ilustrados nos panfletos de supermercado ou revistas e principalmen-te as cores contidas nas frutas e verduras que eles mesmos recortaram.

Etapa 2: As crianças foram convidadas a desenharem algo que gostassem com materiais de uso comum da própria escola,

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lápis de cor, giz de cera ou canetinhas, encerrando a atividade com uma roda de conversa sobre as co-res dos alimentos e sua importância.

Na Figura 1, visualizamos o momento em que as crianças foram colando sob a caixa recortes de re-vista; enquanto alguns procuravam pelas figuras, outros aguardavam para colar. É um momento de muita empolgação, todos querem participar e as-sim cabe orientá-los a respeitar seus coleguinhas, pois afinal, trata-se de um trabalho coletivo.

Etapa 3: Realizado no segundo dia, as crian-ças foram surpreendidas com uma atividade to-talmente diferente, que era a de plantar tempe-ros em um vaso. Antes de plantar o cheiro verde, suas folhas foram cortadas porque seriam usadas em uma atividade posterior e porque faz parte do processo de plantio cortar as folhas e o excesso de raiz para a planta crescer mais forte. Um detalhe: as folhas do cheiro verde cortado foram colocadas na cesta confeccionada por eles no dia anterior. O momento foi também oportuno para explicar de forma simples como é o processo de plantar, quando as crianças puderam acompanhar tudo na prática e ainda com a participação coletiva no plantio. Um dos objetivos da atividade era resgatar um hábito de ter uma pequena horta em casa, o que antigamente era muito comum, costume que hoje se perdeu pela praticidade dos supermerca-dos, e assim despertar nas crianças a vontade de

Figura 1. Confecção e decoração da cesta com recortes variadosFonte: Cassia Lindolm Bannach (2014) Acervo particular

Figura 2. Plantando cheiro verde e manjeronaFonte: Cassia Lindolm Bannach (2014) Acervo particular

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se ter uma horta também em suas casas. A criança participando deste processo pode influenciar os pais a fazerem em casa um cantinho para alguns temperos e até hortaliças.

A atividade foi recebida com muito entusiasmo pelas crianças que demonstraram gostar muito. A participação foi coletiva, cada aluno colheu algu-mas pedrinhas próximas do parque da escola e de-pois eles pegaram um punhado de areia. Durante a atividade alguns alunos contaram que plantas tinham em casa e outros manifestaram a vontade de fazer uma horta em casa também. Os cuidados com o vaso continuaram, eles se alternavam para regar os temperos, pois a água precisava ser colo-cada de forma moderada, conforme se observa na Figura 3. Todos queriam regar o vaso, mas eles en-tenderam que se colocasse água demais elas mor-reriam, assim como se faltasse a água. Então era necessário um equilíbrio.

Etapa 4: Utilizando o cheiro verde e a salsa sepa-rados durante o plantio, as crianças puderam fazer uma experimentação das folhas de temperos, con-forme demonstram as figuras 4 e 5, ao pressionar as folhas de cheiro verde sobre o papel eles perceberam que o verde coloriu a folha branca e a esse verde dei-xado no papel se dá o nome de pigmento ou corante.

Nesta atividade o objetivo era que as crianças explorassem a cor, suas formas e texturas; seus sentidos, o tato, o olfato e a coordenação motora.

Figura 3. Cuidando das plantas com água.Fonte: Cassia Lindolm Bannach (2014) Acervo particular

Figura 4. Experimentando a cor verde dos temperos no papel

Fonte: Cassia Lindolm Bannach (2014) Acervo particular

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Dessa forma as crianças tiveram a oportunida-de de fazer uma experimentação com um pigmen-to puro, natural e de forma bastante inusitada, o que causou de início muita estranheza, mas tam-bém uma vontade de explorar as formas, o cheiro, o que tornou a atividade muito prazerosa por ser algo totalmente diferente para eles, com elemen-tos que eles não imaginavam poder explorar.

E nada foi desperdiçado, o cheiro verde que so-brou foi para a cozinha da escola e os amassados pelo atrito proposital no papel foram colocados no vaso plantado por eles como forma de proteção para o próprio cheiro verde recém-plantado. Assim as crianças tiveram um exemplo de não desperdí-cio, mas de preocupação com o meio ambiente.

Etapa 5: A quinta atividade foi a experimenta-ção das tintas naturais, conforme pode se visuali-zar nas figuras 6 e 7

Figura 5. Experimentando o cheiro verde e salsa no papel.Fonte: Cassia Lindolm Bannach (2014) Acervo particular

Figura 6. Experimentação dos pigmentos naturaisFonte: Cassia Lindolm Bannach (2014) Acervo particular

Figura 7. Trabalho realizado com pigmentos naturaisFonte: Cassia Lindolm Bannach (2014) Acervo particular

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Etapa 6: A atividade desenvolvida foi com areia e terra, as crianças misturaram os elementos com cola branca. Para esta atividade as crianças penei-raram areia e terra da própria escola e no final da atividade as crianças devolveram para o parque toda areia que sobrou, notando que devemos ter atitudes de preservação.

No momento da atividade ficou bem claro o distanciamento das crianças com a natureza, mais especificamente com a terra, pois muitos tinham receio de mexer a terra com os dedos das mãos.

Decorridas duas semanas, o cheiro verde cres-ceu e as crianças permaneceram durante todo este tempo cuidando do vaso de cheiro verde, colocan-do água todos os dias.

A Professora da turma organizou um rodízio para que cada dia um aluno ficasse responsável de molhar o vaso no final da aula quando o sol já está se pondo.

Passado este período, as crianças participaram do momento de cortá-las e entregar para a meren-deira, conforme mostra a figura 9, que usaria na alimentação de todos os alunos da escola.

Figura 8. Trabalho realizado com terra, areia e cola

Fonte: Cassia Lindolm Bannach (2014) Acervo particular

Figura 9. A merendeira recebendo o cheiro verde das crianças.

Fonte: Cassia Lindolm Bannach (2014) Acervo particular

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Resultados e discussão

A aplicação do projeto confirmou que é possível extrair e usar pigmentos da natu-reza em sala de aula e até reaproveitar ali-mentos descartados.

Os materiais que apresentaram melho-res resultados foram a beterraba, cheiro verde, manjerona, açafrão, repolho roxo, areia e terra.

Durante o desenvolvimento de pesquisa percebemos que a experimentação dos co-rantes aplicados de forma natural e prática é o ponto chave, pois envolve a sensibilidade, curiosidade pelo novo, concreto, coletivida-de, meio ambiente, entre outras áreas e as-suntos afins que podem ser envolvidas jun-tamente com a Arte, de acordo com as bases teóricas: Lowenfeld (1977), Ana Mae Barbosa (2010), Canton (2006), Barbieri (2014).

Esta pesquisa também evidenciou que é possível organizar atividades pictóricas que vão de encontro a uma educação ambiental inovadora, contribuindo para um aprendi-zado com práticas pedagógicas mais atrati-vas, significativas e prazerosas, nas quais as crianças poderão sentir uma maior expres-sividade nos materiais trabalhados, que os levará a terem uma maior liberdade para se expressarem e até a serem mais criativos.

Conclusão

A pesquisa mostra que a Arte e a Natureza são indissociáveis por uma essên-cia de origem e que a partir delas é possí-vel uma infinidade de ações exploratórias, sensíveis e criativas para a criança. Com elementos simples e acessíveis, o profes-sor pode envolver a criança em atividades que propiciem contatos com a natureza, explorando cores, texturas, formas e seus sentidos, o que poderá contribuir para o desenvolvimento da expressão artística com aprendizado mais concreto e signifi-cativo, podendo despertar neles a criativi-dade e até a consciência ambiental. Através do professor poderão ser ultrapassadas as barreiras existentes entre as várias áreas do conhecimento, alcançando-se um conhe-cimento transdisciplinar, ou seja, através de um experimento poderá o aluno ligar a matéria à cor, artistas diversos, indústria, sustentabilidade, meio ambiente, alimen-tação, saúde, culturas e hábitos, ciências e até valores.

Essas ações podem ser inseridas num planejamento curricular, sendo elabora-das e trabalhadas de forma coletiva, onde o corpo docente poderá envolver toda co-munidade escolar. O projeto pode ser uma

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alternativa viável para tornar as aulas mais atrativas e contextualizadas com a realidade dos alunos, proporcionando aos educandos atividades que possam explorar o fazer, o tes-tar, o conhecer de forma real, porque é experimentando e fazendo na prática que se alcan-ça o aprendizado significativo para a vida.

Referências BARBIERI, S. Lugar para Plantar. São Paulo: SESC Osasco, 2014.

BARBOSA, A. M.; CUNHA, F. P. Abordagem Triangular no ensino das Artes e Culturas Visuais. São Paulo: Cortez, 2010.

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CANTON, K. Pintura Aventura. São Paulo: DCL, 2006.

CASIMIRO, M. B. B. A magia das cores: uma proposta de trabalho em Geociências. Geologia USP, v. 6, n. Especial, p. 47-54, 2013.

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MAYER, R. Manual do artista de técnicas e materiais. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

SEVERINO, A. J. Metodologia do Trabalho Científico. São Paulo: Cortez, 2007.

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Atividades artísticas na terceira idade: ações

desenvolvidas pelo projeto de extensão

“Rejuvenescendo com arte”

Michele Rosane Cardoso14

Thaís Regina Ueno Yamada15

Erika Gushiken16

Jeferson Denzin Barbato17

14. Graduanda em Artes Visuais - Licenciatura, Unesp – Campus Bauru/SP, [email protected]

15. Professora Doutoranda, Departamento de Artes e Representação Gráfica - FAAC – UNESP, [email protected]

16. Graduanda em Artes Visuais – Unesp – Campus Bauru/SP, [email protected]

17. Graduando em Artes Visuais – Unesp – Campus Bauru/SP, [email protected]

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Resumo

Com o aumento da população idosa no mundo em decorrência do aumento da ex-pectativa de vida, é de grande importância que a comunidade acadêmica volte seu olhar para os que estão na fase da terceira idade, preparando-se para melhor aten-dê-los. Sabe-se que a terceira idade pode tornar-se mais do que uma fase de aposen-tadoria e acomodação, mas uma fase ativa, de aprendizado, de renovação e de produ-ção, na qual novas capacidades podem ser descobertas e desenvolvidas. Estudos rela-tam que a prática de atividades coletivas e ligadas ao fazer artístico trazem benefícios, melhorando a habilidade mental e a socia-lização. Assim, a arte tornou-se um meio de terapia aplicável a todas as faixas etárias e vem sendo fundamentada como arte-te-rapia, como campo de conhecimento e aplicada inclusive em ambiente hospitalar, pois se estabelece o estímulo ao prazer, ao exercício criativo e à capacidade de criação através da comunicação de sentimentos e expressões, enriquecendo a vida interior do ser humano. Assim, este artigo apre-senta o trabalho desenvolvido nos últimos anos pelo Projeto de Extensão da UNESP em Bauru, intitulado “Rejuvenescendo

com Arte”, que aplica arte como forma de promoção de qualidade de vida e socializa-ção na terceira idade, atuando diretamente com a comunidade.

Palavras-chave: Arte-Terapia; idosos; projeto; qualidade de vida.

Abstract

With the increasing number of elderly population in the world due to a better life expectancy, it is very important that the academic community turns his sights on those who are at the stage of old age, preparing to better serve them. It is known that the elderly can become more than a retirement and accommodation stage, but an active, learning, renewal and productive stage of life, where new capabilities can be discovered and developed. Studies report that the practice of collective activities, which are linked to art activity, are beneficial because they can improve mental ability and socialization. Thus, art has become a means of therapy applicable to all age groups and has been founded as art therapy, as a field of knowledge, and applied even in the hospital, because it establishes stimulating pleasure, creative

Michele Rosane Cardoso, Thaís Regina Ueno Yamada, Erika Gushiken e Jeferson

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rbatoexercise and better development capacity

through communication and expressions of feelings, enriching the inner life of human beings. Thus, this paper presents the work carried out in recent years by UNESP Extension Project in Bauru, entitled “Renewing with Art”, which applies art as a way to promote quality of life and socialization in old age, working directly with the community.

Keywords: Art Therapy; aged person; design; quality of life

Introdução

A população idosa mundial está em constante crescimento graças ao aumento da expectativa de vida pelas melhorias pro-porcionadas à saúde, especialmente pelo saneamento básico e tratamentos mais adequados das doenças. No Brasil, em 2013, o número de idosos foi cerca de 26,1 milhões, o dobro do registrado em 1991. Com esse aumento surge a necessidade de se pensar mais no idoso, em melhorar sua qualidade de vida e em fornecer recur-sos pra isso. O processo de envelhecimen-to proporciona perdas ao indivíduo, tais como: fragilidade muscular, e consequente

dependência de outras pessoas; baixa autoestima gerada por sentimento de in-competência, solidão e exclusão; e outros problemas de saúde próprios da idade avançada. Esse panorama geral torna im-prescindível a busca por melhorias na qua-lidade de vida dos mesmos, através de pro-jetos sociais, de atividades físicas, da arte e do convívio social. Segundo Neri (1995):

Descobrir as virtudes da velhice, prolon-gar a juventude e envelhecer com boa qualidade de vida individual e social tem sido preocupações constantes do ser humano, manifestas nos domínios da filosofia, das religiões, do direito, da me-dicina e das ciências sociais. A literatura gerontológica internacional tem dado importância crescente á compreensão do significado de uma boa e saudável ve-lhice, ou como muitos têm preferido nos últimos anos, de uma velhice bem-suce-dida. (NERI, 2995)

As universidades vêm almejando isso por meio dos Programas Unati- Universidades Abertas à Terceira Idade, os quais objetivam a promoção da quali-dade de vida e a autoestima por meio de espaços e cursos oferecidos aos idosos. O

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Departamento de Artes e Representação Gráfica da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da UNESP de Bauru desenvolve o Projeto de Extensão “Rejuvenescendo com Arte” que busca proporcionar um espaço, ao mesmo tem-po estimulador e cultural, beneficiando os idosos através de oficinas que estimu-lem seu desenvolvimento intelectual e artístico, sua própria aceitação perante o grupo e perante o próprio processo de envelhecimento.

Assim, o “Rejuvenescendo com Arte” tem como objetivo facilitar e promover o convívio social, o estímulo ao aprendizado na terceira idade, a redescoberta de suas próprias capacidades, de modo a contri-buir para que o envelhecimento aconteça de modo saudável e produtivo, através do trabalho teórico e prático com conteúdos ligados à Arte. Neste contexto, a arte apre-senta-se como uma ótima opção para tra-balhar estes aspectos tanto com o idoso como com o ser humano em geral, pois uti-liza expressão artística e diferentes técni-cas (desenho, pintura, escultura, colagem etc.), para estimular a sensibilidade e a renovação pessoal, exigindo esforço cria-tivo, autenticidade e expressão pessoal do indivíduo, como reforça Camargo (1999):

Uma das funções da arte é a de possibi-litar a reconciliação do homem com suas raízes mais profundas como ser íntegro e total capaz de atingir a plenitude do prazer no fazer e no viver autoconstruí-do. Essa reconciliação é um direito e uma necessidade do ser humano. Incentivar o indivíduo, e em especial o idoso, por meio de processos que possibilitem exer-citar sua sensibilidade artística, é abrir--lhes caminhos de renovação espiritual, através da vitória da originalidade sobre o hábito, da ousadia sobre o conformis-mo e de tudo que viveu e descobriu. (CAMARGO, 1999)

O Idoso e o processo de envelhecimento

O envelhecimento é uma fase da vida que, assim como as outras, traz muitas transformações, mas é especificamente conhecida como uma fase de descanso, ociosidade, ou ainda, para os mais pre-conceituosos, uma fase onde o indivíduo não teria mais “utilidade”, tornando-se um “fardo” para a família e sociedade. No en-tanto, este não é um retrato fiel da situação do idoso. Sabe-se que o envelhecimento

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rbatoacarreta certas limitações físicas e cuida-

dos de saúde especiais, porém isso signi-fica apenas que as atividades praticadas devam ser adequadas à estas novas con-dições. Segundo Moragas (2010), os idosos possuem muitas capacidades e todo esse preconceito é apenas um mito, sendo que “a velhice tem potencialidades próprias e permite uma relação peculiar do organis-mo com o meio, sempre que sejam feitas exigências a este organismo, de acordo com seu nível de aptidão funcional.”

Sabe-se que podem haver perdas cog-nitivas em pessoas com mais de 60 anos devido a algumas doenças mais caracte-rísticas dessa faixa etária, mas aos demais casos a perda não é tão diferente de outras fases da vida em que isso também ocor-re, dependendo-se mais do exercício e de manter-se ativo. Moragas (2010) afirma que esse mito de incapacidade para aprender novos conhecimentos na terceira idade foi quebrado:

No passado, considerava-se inexistente a capacidade de aprendizagem, mas atu-almente, graças às escolas de adultos, à aprendizagem de novos ofícios depois da aposentadoria e aos processos de reciclagem pessoal, comprovou-se que

idosos conseguem aprender com facili-dade e que sua motivação, em geral, é su-perior à das gerações jovens. (MORAGAS, 2010)

O idoso possui muito mais do que dife-renças físicas em relação ao jovem, ele pos-sui experiência de vida, o que o torna muito mais maduro e consciente do que o jovem, favorecendo essa maior motivação.

Levando-se em consideração todos esse aspectos, pode-se compreender o quanto foi necessária a criação de políticas públicas que garantissem o envelhecimen-to ativo, digno e saudável para a população idosa no Brasil. Em 2003, foi sancionado o Estatuto do Idoso, que regulariza e garante os direitos de pessoas acima de 60 anos, à saúde, com atendimento prioritário, à ali-mentação, moradia, lazer, cultura, ao tra-balho e etc. O capitulo V especificamente trata do acesso à educação, à cultura, ao esporte e ao lazer, garantindo esse direitos e respeitando-se as peculiaridades de sua faixa etária. Segundo o Estatuto do Idoso, lei n°10.741, de 1° de Outubro de 2003, Capitulo V:

Art. 20. O idoso tem direito a educa-ção, cultura, esporte, lazer, diversões,

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espetáculos, produtos e serviços que res-peitem sua peculiar condição de idade.

Art. 21. O Poder Público criará oportuni-dades de acesso do idoso à educação, adequando currículos, metodologias e material didático aos programas educa-cionais a ele destinados. (BRASIL, 2003)

A terceira idade busca espaço na socieda-de, como classe ativa e disposta, a qual mui-tos ainda trabalham após a aposentadoria, estudam, aprendem, criam, se divertem e fazem muito mais do que muitos acreditam.

O PROJETO DE EXTENSÃO “REJUVENESCENDO COM ARTE”

O Projeto “Rejuvenescendo com Arte” trabalha através da face criativa, renovado-ra e estimulante da arte em prol da terceira idade. Camargo (1999) discute sobre como a aposentadoria não deve ser um “degrau final” na vida do idoso, mas sim um mo-mento de aproveitar o tempo com ativida-des que possam mantê-lo ativo e em contí-nuo aprendizado, sendo que “o resgate de valores transcendentais permite a comuni-cação da rica experiência do idoso, através de expressões artísticas criteriosamente

estimuladas e abre novas perspectivas de reconstrução de vida”.

Muitos estudos veem sendo realizados acerca desse aspecto “curador” da arte, fa-zendo da arte-terapia um campo de conhe-cimento em constante desenvolvimento. A arte faz parte da vida do homem desde a pré-história, como pode-se observar na Arte Rupestre, na qual o homem utilizava as paredes das cavernas como suporte para fazer registros do seu cotidiano, através dos materiais que lhe eram disponíveis (carvão, sangue, argila, fragmentos de rochas, etc.). Com a contemporaneidade a arte ganhou novos sentidos, funções e liberdade de ex-pressão, abrindo espaço para as inovações e pesquisas no campo. A arte-terapia sur-giu a partir do interesse de psiquiatras em analisar as produções de seus pacientes, segundo Païn e Jarreau (1996):

Desde o final do século XIX, psiquiatras estão interessados nas produções plás-ticas dos alienados; eles facilitaram suas produções, colecionaram-nas e estuda-ram-nas. Paralelamente pedagogos ino-vadores encorajaram a expressão cria-dora na criança, praticando os métodos de pedagogia ativa. Entre eles citamos

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rbatoDecroly, Freinet, Montessori, Rudolf

Steiner. (PAÏN, JARREAU, 1996, p. 13)

No Brasil, podemos destacar os psiquia-tras Nise de Silveira e Osório Cesar que tra-balharam a arte em ambiente hospitalar e contribuíram com seus estudos para fun-damentação da Arte-Terapia. Osório Cesar trabalhou no Hospital Jugueri em Franco da Rocha- SP, ele foi influência pela psica-nálise freudiana, fazendo muitas trocas de experiências com Freud, porém muitos de seus estudos foram perdidos. Já Nise de Silveira trabalhou no Centro Psiquiátrico D. Pedro II, numa busca por compreender as produções dos pacientes, realizando um grande estudo sobre o tema (SOUZA, [entre 2000 e 2015]).

A utilização da arte como processo te-rapêutico no projeto de extensão visa es-timular a terceira idade a ampliar seus ho-rizontes e crescimento pessoal de forma espontânea. A Professora Otília Rosângela Silva de Souza da União Brasileira de Associações de Arte-Terapia-UBAAT, afir-ma que:

Enquanto a Arte Educação ensina arte, a arte-terapia possui a finalidade de propi-ciar mudanças psíquicas, assim como a

expansão da consciência, a reconciliação de conflitos emocionais, o autoconheci-mento e o desenvolvimento pessoal. A arte—terapia tem também o objetivo de facilitar a resolução de conflitos interio-res e o desenvolvimento da personali-dade. Por ser bastante transformadora, pode ser praticada por crianças, ado-lescentes, adultos e idosos, por pessoas com necessidades especiais, enfermas ou saudáveis. (SOUZA, [entre 2000 e 2015])

A UBAAT- União Brasileira de Associações de Arte-Terapia, fundada em 2006, busca garantir a qualidade da prá-tica e docência e dos profissionais em ar-te-terapia tendo por objetivos: definição e unificação dos parâmetros curriculares mí-nimos e comuns para cursos na área; luta pelo reconhecimento legal da arte-terapia; assegurar a qualidade e confiabilidade dos serviços, dentre outros. Possui também vários documentos definidos e disponíveis como o Estatuto Social, Código de Ética, Parâmetros Curriculares, dentre outros, sendo uma demonstração do modo como a Arte-Terapia vem ganhando espaço no Brasil, como se torna cada vez uma im-portante opção de tratamento no caso de

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pessoas com algum tipo de problema psi-cológico, ou como opção do trabalho da autoestima, da qualidade de vida, e no caso dos idosos seria uma maneira de manter a mente, a criatividade e o raciocínio ativos.

ATIVIDADES DO PROJETO

O Projeto de Extensão “Rejuvenescendo com Arte” está em atividade ininterrupta-mente há sete anos. As aulas são ministra-das no campus da UNESP de Bauru, uma vez por semana durante todo o ano. Ocorrem também oficinas e visitas a espaços que proporcionem discussões e aprendizagem de temas envolvendo as diferentes faces da arte, buscando proporcionar um ambiente de exercício da mente, de aprendizado, de convivência e estímulo.

As oficinas realizadas são gratuitas e mi-nistradas por estudantes do curso de Artes Visuais, bolsistas do projeto de extensão, ou voluntários desse curso e de outros, como Design, que queiram desenvolver suas pesquisas com esse público específi-co. Também há a participação de profissio-nais colaboradores eventuais no projeto, como artistas e profissionais locais.

Nestas atividades, procura-se sempre estimular os participantes a explorar a arte

em sentido amplo. O objetivo das ativida-des é focar na Arte em si e na conceituação artística, diferenciando do fazer artesanal. Isso porque o projeto tem uma importan-te contribuição na mudança de repertório dos participantes, fazendo com que eles passem a enxergar a estética, a sintaxe visual e o fazer artístico de uma maneira mais ampla e sem barreiras culturais.

O artesanato de modo geral acaba sen-do mais trabalhado em cursos disponíveis para a terceira idade, como a pintura de guardanapos, por exemplo. No entanto, apesar do artesanato possibilitar também a criação, ele não possui necessariamente o enfoque inovador. A arte, como já dito, exige maior esforço criativo e maior en-volvimento do indivíduo. Porém, esse tipo de abordagem com a terceira idade não é muito aplicado pela visão errônea de que o idoso não pode ou não consegue criar algo novo, sendo mais fácil a cópia a partir de um modelo.

Embora seja perceptível no decorrer das atividades que os participantes do projeto possuem mais familiaridade com o arte-sanato e tenham dificuldade e certa resis-tência em criar, as atividades do projeto se esforçam no sentido de aplicar os conteú-dos de arte em atividades que provocam o

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rbatoidoso a sair de sua zona de “conforto” e a experimentar ideias e técnicas diferentes, desen-

volvendo melhor essa capacidade criativa e de renovação.Com isso em mente, são planejadas atividades práticas com aulas teóricas sobre Arte

e Arte Contemporânea, discutindo as suas interfaces e suas relações com o Artesanato. Já foram realizadas aulas teóricas sobre Teoria da Cor, primeiras expressões artísticas, análi-ses e discussões de filmes que englobam o tema Arte, diferentes e variadas técnicas artís-ticas, e visitas monitoradas a exposições de arte.

Para ampliar o repertório dos idosos, que possuem pouco ou nenhum acesso a obras de arte, foram realizadas visitas monitoradas a exposições de arte em espaços culturais, tanto em Bauru, como Centro Cultural e SESC, como na região. É o caso da visita monitora-da à Igreja Matriz de São João Batista, em Bocaina, SP, onde foi possível conhecer as obras de Benedito Calixto, um dos maiores expoentes das artes plásticas da segunda metade do século XIX e início do século XX. Esta viagem ficou marcada na memória das participantes do projeto que comentam até hoje esta experiência.

Em 2012, ocorreu a oficina de origami básico, técnica artística oriental que utiliza do-bras no papel para criar formas tridimensionais (figura 1). Na terapia, o origami é um recur-so benéfico e simples, pois usa um material papel facilmente encontrado, de baixo custo, próximo da vida cotidiana e que não oferece perigo ao ser manuseado. Além disso, o con-tato com esse material, o toque e a manipulação permitem um contato mais pessoal entre sujeito, objeto e terapeuta, podendo haver a verbalização de conflitos afetivos e emocio-nais, conflitos, angústias, medos e ansiedades.

O origami pode ativar os dois hemisférios do cérebro, desenvolvendo tanto a coordena-ção motora de ambas as mãos como a inteligência não-verbal, acuidade visual e visualiza-ção tridimensional (SHUMAKOV, 2000). Como técnica arte-terapêutica, o origami permite e inova ações no papel e através dele, em medidas preventivas de saúde mental, desenvolvi-mento cognitivo e afetivo, estruturação e ordenação lógica e temporal, expressão plástica e prevenção de doenças do sistema nervoso (TOMMASI, MINUZZO, 2010).

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Em agosto de 2012 foi realizada uma oficina de fotografia básica, com a participação voluntária do designer e fotógrafo Ricardo Yamada como minis-trante. As participantes tiveram contato com con-ceitos teóricos da fotografia como enquadramen-to, luz e sombra. Como resultado desta oficina, realizou-se uma Exposição Fotográfica no próprio campus em dezembro de 2012 e no Poupatempo de Bauru em 2013 (figura 2), que proporcionou muito orgulho e sentimento de realização das participantes.

Figura 1. Modelos de origami desenvolvidos durante a oficinaFoto: Thaís R. Ueno Yamada (2013)

Figura 2. Exposição Fotográfica no Poupatempo de BauruFoto: Thaís R. Ueno Yamada (2013)

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rbatoCom o curso de modelagem em papel machê e

em argila, as participantes puderam conhecer me-lhor esses materiais, as ferramentas adequadas e as possibilidades de criação. Com diversas técnicas de modelagem, aulas de manipulação e uso de torno, estudo e discussão de vídeos relacionados a produ-ção de cerâmica e produção de peças variadas, as participantes se surpreenderam com os resultados que elas mesmas alcançaram (figuras 3 e 4).

Para ampliar o repertório de atividades artísti-cas dos participantes, foi realizado um curso bási-co de Bonsai, técnica japonesa para miniaturizar plantas (árvores) através de métodos específicos para manter suas características de proporção entre os galhos, localização das folhas, e desenho da forma geral. Esta atividade foi ministrada pelo artista Luiz Nakamura, da Bonsai House de Bauru, que ensinou variadas técnicas e estilos de bonsai, métodos de tratamento, poda e cultivo. Ao final, os participantes puderam realizar o plantio de uma muda para bonsai, colocando em prática a teoria do curso.

No início de 2015, as alunas tiveram contato com os primeiros meios de expressão através das pinturas rupestres em carvão e puderam conhecer a técnica, fabricando seu próprio material e dese-nhando com carvão. Foi elaborada uma apresenta-ção com slides abordando o tema de forma sucinta e objetiva, focando no que é Arte Rupestre, onde é encontrada, o que os estudos científicos dizem

Figura 3. Trabalhando com argilaFoto: Natália Pilati (2013)

Figura 4. Peças produzidas durante as aulasFoto: Natália Pilati (2013)

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sobre, os materiais utilizados, seu propósito, além de muitas imagens de cavernas e desenhos do pe-ríodo. Também foi exibido um vídeo mostrando o interior dessas cavernas e seus detalhes. Após a apresentação e uma pequena discussão sobre o vídeo, foi proposta a elaboração de um desenho com carvão, tendo como tema o cotidiano. Não houve aplicação de nenhuma técnica, sendo fei-to de forma livre para um primeiro contato com o carvão, enquanto cada integrante falou e discutiu com o grupo sobre seu trabalho.

Foram propostos também desenhos de obser-vação a partir de objetos escolhidos e trazidos para a aula pelo grupo. Técnicas mais simples de sombreamento e perspectiva foram ensinadas, utilizando um papel de gramatura mais alta, bor-racha e carvão, respeitando o limite e o traço de cada indivíduo (Figuras 5 e 6).

A aula seguinte foi dedicada à confecção do próprio carvão. O grupo utilizou galhos de limo-eiro, que foram limpos e cortados por elas, sendo transferidos depois para um recipiente metálico e levados ao fogo. Através do processo de queima, os galhos foram transformados em carvão e utili-zados nas aulas, como pode ser visto na figura 7:

Figura 6. Desenho de observação de

uma garrafa térmica usando o carvão

Foto: Michele Rosane Cardoso (2015)

Figura 5. Desenho de observação de objeto

com uso do carvãoFoto: Michele Rosane

Cardoso (2015)

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Figura 7. Galhos preparados pelas alunas sendo queimados para a fabricação do carvão

Foto: Michele Rosane Cardoso (2015)

Outra técnica de pintura introduzida e que gerou muitas experimentações foi a têmpera, na qual a tinta foi obtida por meio da mistura de água e gema de ovo com pó de café, urucum e açafrão. As cores trans-lúcidas e brilhantes, de secagem rápida, foram utilizadas para o desenho de formas

livres. Ao aplicarmos a técnica de Têmpera, resgata-se ali momentos da pré-história na visão acadêmica, mas mais do que isso res-gatamos memórias, texturas, cores e chei-ros, ativando um relicário de sensações em cada uma das meninas do projeto, e de for-ma sucinta apresentamos juntamente com a proposta do trabalho artistas famosos que trabalharam com o material em uso, no caso tempera, introduzindo-as as famo-sas pinturas de Volpi, Botticelli e Cennini (figura 8).

Figura 8. Trabalhando com TêmperaFoto: Jeferson Denzin Barbato (2015)

As confraternizações também são parte importante do projeto, pois o grupo pode se conhecer de forma mais aprofundada com troca de experiências, de receitas, em um momento de maior socialização e que

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proporciona ao projeto uma aspecto mais humanizado, que vai além de apenas ensinar conteúdos e técnicas, como podem ser observados nas figuras 9 e 10:

Figura 10. Mesa preparada para comemoração do aniversário de uma aluna

Foto: Michele Rosane Cardoso (2015)

Figura 9. Mesa preparada pelas alunas para comemoração de festa juninaFoto: Michele Rosane Cardoso (2015)

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rbatoConsiderações Finais

Todas as atividades realizadas, as dis-cussões, as produções e as visitas, trouxe-ram alegria, envolvimento, dedicação e de-safios pessoais, a cada objetivo diferente e inédito que era apresentado. Dentro do grupo também observou-se a criação de novas perspectivas de convívio social, pois elas começaram a interagir melhor e a aju-dar umas às outras para que todas obtives-sem sucesso no resultado final. Além disso, como o processo de alfabetização visual e aumento de repertório artístico-cultural é um processo que demanda tempo e dedi-cação, é importante que o projeto seja con-tínuo, para que reais mudanças ocorram.

Observou-se também um bem estar e uma melhora na qualidade de vida das participantes, pois a ampliação do conhe-cimento e a possibilidade de ter novas experiências trouxe satisfação pessoal, entretenimento e energias revigoradas. O projeto é considerado por quem parti-cipa como uma oportunidade de mudar essa fase da vida que a sociedade rotula como incapaz, improdutiva, senil e doen-te, para uma fase em que ainda é possível realizar algo novo, de se surpreender com pequenas conquistas, de melhorar sua

autoestima, de fazer novas amizades e am-pliar o contato e a interação social.

Um fato interessante é que há sempre a participação de alunos jovens da UNESP durante as atividades, que além da vonta-de de aprender um fazer artístico, pude-ram também interagir com a terceira ida-de. Essa interação é muito válida, pois um aprende com o outro, diferentes pontos de vista e experiências, como paciência, soli-dariedade, limitações pessoais, energia e alegria, das diversas fases da vida.

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