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MORUS – Utopia e Renascimento, v.11, n. 2, 2016 Interpretatio Linguarum, o mais completo tratado renascentista sobre tradução Mauri Furlan Universidade Federal de Santa Catarina Resumo Lawrence Humphrey compendiou a reflexão renascentista sobre a arte de traduzir produzindo o ingente tratado Interpretatio linguarum (Tradução de línguas), publicado em 1559. Dividido em três livros, com mais de 600 páginas, o tratado do teólogo puritano inglês, que, apesar de sua reconhecida importância, nunca foi reimpresso, nem recebeu edição crítica ou tradução integral a qualquer língua até hoje, é aqui apresentado em tradução ao português brasileiro. Abdicando de boa parte dos inúmeros exemplos oferecidos por Humphrey, selecionamos para esta publicação excertos do primeiro livro, o mais teórico de seu tratado, intitulado De ratione interpretandi (Da arte de traduzir). Palavras-chave Interpretatio linguarum, Lawrence Humphey, teoria da tradução Mauri Furlan é professor de Latim no Departamento de Língua e Literatura Vernáculas da UFSC. Possui Doutorado em Filologia Clássica pela Universidad de Barcelona (2002), Mestrado em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (1998), graduação em LetrasLicenciatura em Alemão pela Universidade Federal de Santa Catarina (1993) e graduação em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação e Turismo Hélio Alonso/RJ (1989). Professor Associado da Universidade Federal de Santa Catarina, atua na área de Letras, com ênfase em Teoria da Tradução da Antiguidade ao Renascimento, e Língua Latina. É fundador das revistas acadêmicas da área dos Estudos da Tradução Cadernos de Tradução e Scientia Traductionis. Coordena o Centrum Inuestigationis Latinitatis, na UFSC, e traduz.

Interpretatio Linguarum, o mais completo tratado

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MORUS – Utopia e Renascimento, v.11, n. 2, 2016

Interpretatio Linguarum, o mais completo tratado renascentista sobre tradução

Mauri Furlan

Universidade Federal de Santa Catarina

Resumo

Lawrence Humphrey compendiou a reflexão renascentista sobre a arte de traduzir produzindo o

ingente tratado Interpretatio linguarum (Tradução de línguas), publicado em 1559. Dividido em

três livros, com mais de 600 páginas, o tratado do teólogo puritano inglês, que, apesar de sua

reconhecida importância, nunca foi reimpresso, nem recebeu edição crítica ou tradução integral a

qualquer língua até hoje, é aqui apresentado em tradução ao português brasileiro. Abdicando de boa

parte dos inúmeros exemplos oferecidos por Humphrey, selecionamos para esta publicação excertos

do primeiro livro, o mais teórico de seu tratado, intitulado De ratione interpretandi (Da arte de

traduzir).

Palavras-chave

Interpretatio linguarum, Lawrence Humphey, teoria da tradução

Mauri Furlan é professor de Latim no Departamento de Língua e Literatura Vernáculas da UFSC.

Possui Doutorado em Filologia Clássica pela Universidad de Barcelona (2002), Mestrado em

Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (1998), graduação em Letras–Licenciatura

em Alemão pela Universidade Federal de Santa Catarina (1993) e graduação em Jornalismo pela

Faculdade de Comunicação e Turismo Hélio Alonso/RJ (1989). Professor Associado da

Universidade Federal de Santa Catarina, atua na área de Letras, com ênfase em Teoria da Tradução

da Antiguidade ao Renascimento, e Língua Latina. É fundador das revistas acadêmicas da área dos

Estudos da Tradução Cadernos de Tradução e Scientia Traductionis. Coordena o Centrum

Inuestigationis Latinitatis, na UFSC, e traduz.

Page 2: Interpretatio Linguarum, o mais completo tratado

MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016

Interpretatio Linguarum, the most thorough Renaissance treatise on translation

Mauri Furlan

Federal University of Santa Catarina

Abstract

Lawrence Humphrey summarized the thought of the Renaissance on the art of translating in his

extensive treatise Interpretatio linguarum (The translation of languages), published in 1559.

Divided into three books and with more than 600 pages, the treatise written by the English Puritan

theologian, which, despite of its great importance, has never been reprinted, nor received a critical

edition or an integral translation into any language up to this day, is here presented in a translation

into Brazilian Portuguese. Forgoing much of the many examples offered by Humphrey, we have

selected excerpts from the first book, the most theoretical in his treatise, entitled De ratione

interpretandi (On the art of translating).

Keywords

Interpretatio linguarum, Lawrence Humphey, translation theory

Mauri Furlan teaches Latin in the Department of Vernacular Language and Literature at UFSC. He

holds a Ph.D. in Classical Philology from the University of Barcelona (2002), a Master Degree in

Literature from the Federal University of Santa Catarina (1998), a degree in Letters - German, from

the Federal University of Santa Catarina (1993) and a degree in Journalism from the Faculty of

Communication and Tourism Hélio Alonso / RJ (1989). He is Associate Professor at Federal

University of Santa Catarina, working in the area of Letters, with an emphasis on Theory of

Translation from Antiquity to Renaissance and Latin Language. He is the founder of the academic

journals in the area of Translation Studies Cadernos de Tradução and Scientia Traductionis. He

also coordinates the Centrum Inuestigationis Latinitatis, at UFSC, and works with translation.

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Interpretatio Linguarum, o mais completo tratado renascentista sobre tradução

13 MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016

AWRENCE HUMPHREY (1527-1590), erudito e teólogo puritano inglês,

escritor prolífico, abordou temas relativos à teologia, à patrística, à

filologia clássica e à tradução. Foi diretor do Magdalen College (1561) em

Oxford, e decano de Gloucester (1571) e Winchester (1580). Das

biografias a seu respeito sabemos que, em sua formação acadêmica,

contam-se os títulos de Bacharel (1548) e Mestre (1549) em Artes Liberais,

Bacharel (1552) e Doutor (1562) em Teologia. Foi discípulo do teólogo italiano e reformador

protestante Pietro Martire Vermigli (1499-1462) e defensor de uma visão protestante

progressista. Por isso, quando da ascensão de Mary Tudor ao trono e o início da recatolização,

em 1553, obteve permissão para viajar ao estrangeiro. Residiu, assim, em Zurique, Basileia,

Frankfurt e Gênova. Durante sua estada na Suíça, reuniu-se com John Parkhurst (1512-1575),

posteriormente sagrado bispo de Norwich em 1560, e John Jewel (1522-1571), sagrado bispo

de Salisbury em 1560 – ambos caçadores de bruxas –, e outros exilados protestantes.

Retornou à Inglaterra em 1558, no início do reinado de Elizabeth I. Assumiu a cadeira de

professor de teologia em Oxford, em 1560. No ano seguinte foi eleito diretor do Magdalen

College, e transformou o centro de ensino num reduto do Puritanismo – uma doutrina da fé

cristã desenvolvida na Inglaterra por uma comunidade de protestantes radicais depois da

Reforma. Por causa de sua posição crítica frente à Igreja Católica foi chamado de

papistomastix (chicote ou castigo papal). Teve 12 filhos com sua esposa Joan Inkfordby

(1537-1611).

Acorde ao espírito de sua época, Lawrence Humphrey interessou-se sobremodo pela

questão da arte da tradução, participando de debates sobre o tema quando de sua permanência

na Suíça, onde foi publicado o que hoje é considerado o maior tratado compendiador sobre

tradução produzido no Renascimento: Interpretatio linguarum, seu de ratione conuertendi &

explicandi autores tam sacros quam prophanos (“Tradução de línguas ou da arte de traduzir e

interpretar autores sacros e profanos”). Nas palavras de Glyn Norton, “It is the only work

from this period that approaches an encyclopedia of doctrine on translation.” (1984, p. 11)

A originalidade de Humphrey está mais na produção do compêndio que nas linhas

mestras de seu pensamento sobre tradução – é de Leonardo Bruni o mérito de ter composto o

primeiro e mais impactante tratado sobre tradução no Renascimento, De interpretatione recta1

(1420), cuja grande novidade é a exigência de produção de arte no texto de chegada –, isto é,

o tratado de Humphrey destaca-se por sua extensão e por detalhar e sumarizar o pensamento

da época em torno da arte de traduzir. No entanto, apesar de sua reconhecida importância, é

ainda uma obra pouquíssimo estudada e referenciada, que nunca foi reimpressa nem recebeu

edição crítica ou tradução integral a qualquer língua. A erudição do teólogo inglês, que

dominava ademais do latim, também o grego e o hebraico, leva-o a rechear o texto latino com

palavras e citações gregas e hebraicas – sem traduzi-las –, servindo-se frequentemente de duas

línguas numa mesma frase, e seu conhecimento transita pelas áreas da filologia, da teologia,

da exegese bíblica, da história da igreja, da filosofia, da literatura e cultura clássicas, da

mitologia, etc. Seu texto também apresenta uma profusão vocabular não dicionarizada. Ele é,

afinal, um homem do Renascimento.

A única edição do tratado humphreyano que veio à luz foi publicada em 1559 pela

editora Froben, na Basileia, constando de 624 páginas, das quais 588 são dedicadas ao tratado,

e as demais, conforme anunciado na segunda parte do título, No final, o profeta judeu Abdias,

traduzido e interpretado, e o livro de Filon de Alexandria De iudice, em grego e latim.

1 BRUNI, L. “De interpretatione recta / Da tradução correta”. Apresentação e tradução de Mauri Furlan, in

Scientia Traductionis, nº 10. Florianópolis, 2011. Online:

https://periodicos.ufsc.br/index.php/scientia/article/view/1980-4237.2011n10p16/27998. N.E.: Outra tradução

deste texto de Bruni está disponível no presente número da revista Morus.

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Mauri Furlan

MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016 14

O tratado Interpretatio linguarum compõe-se de três partes ou livros: I. De ratione

interpretandi, cujos pontos centrais abordados por Humphrey são os três tipos de tradução, as

virtudes da tradução, e as tarefas do tradutor; II. De ratione imitandi, onde o autor dedica-se

principalmente à discussão sobre a imitação; e III. De ratione interpretandi –

progymnasmatum & exemplorum syluulam continens, que trata da prática dos preceitos

teóricos expostos na primeira e segunda partes. Dos três livros, sem dúvida, o primeiro é o

mais importante no sentido de apresentar formalmente a concepção teórica de tradução do

autor inglês. E é sobre este primeiro livro que tratamos aqui e do qual oferecemos excertos,

sobretudo teóricos, traduzidos ao português brasileiro.

Humphrey abre seu tratado com um prefácio de 14 páginas, no qual exalta a tradução,

assinalando sua dignidade, comunidade, utilidade e necessidade, e o dedica a seu amigo Sir

Thomas Wroth2.

De ratione interpretandi, o primeiro livro do tratado, inicia com uma reflexão sobre a

utilidade da língua e da tradução: A utilidade da língua é seu uso, mas ele só será eficaz se ela

for entendida por todos, e é aí que entra o papel da tradução. A seguir define sua concepção

de tradução:

A tradução [interpretatio] foi chamada Ἐξκελεία3 [interpretação] pelos

gregos, mas é ambíguo o nome de tradutor [interpres], pois pode ser tomado

em vários sentidos: nós, por certo, aqui e agora, o atribuímos àquele que

aclara, mediante a tradução a uma língua mais conhecida e familiar, o

dialeto ou idioma pouco conhecido de muitos, e converte algo de uma

língua estrangeira a outra mais considerada e comum.4

Tal definição é acompanhada por um breve relato da história da tradução, no qual cita

os nomes de Jerônimo – e seu opúsculo De optimo genere interpretandi –, Cícero – e seu De

optimo genere oratorum –, Joaquim Periônio – tradutor de obras de Aristóteles –, Moisés –

mediador entre Deus e o povo israelense –, Ptolomeu – responsável pela tradução da

Septuaginta –, São Paulo – e sua Epístola aos Efésios –, Agostinho – por sua crítica e

posterior aceitação à tradução de Jerônimo –, e Orígines – e sua Héxapla5.

Dito isto, Humphrey argumenta em defesa da produção de seu tratado, com o qual

almeja prescrever “uma regra fixa e um método determinado”, seja para aperfeiçoar o

trabalho dos tradutores e render-lhes renome, seja para dar a conhecer a verdade ou avaliar as

traduções. No entanto, ao considerar a abundância de autores gregos e latinos, os diversos

2 Thomas Wroth (1516-1573), cortesão e político, serviu ao rei Edward VI também como camareiro e guarda-

costas pessoal. Depois da morte de Edward VI, exilou-se em Estrasburgo e Frankfurt, regressando à Inglaterra

após a ascensão (1558) de Elizabeth I (também chamada de Isabel I) (1533-1603) ao trono, e foi eleito cavaleiro

e representante no parlamento, entre outras funções. 3 A palavra grega ἑξκελεία (hermeneia), e sua equivalente latina interpretatio, foi na época clássica um termo

técnico para tradução. É interessante observar que o termo ἑξκελεία, que significava inicialmente expressão,

linguagem, produção de um discurso, relação entre linguagem e pensamento, significação, elocutio, muda

paulatinamente de sentido ao misturar-se com outras acepções do termo latino interpretatio: da relação entre um

texto dado e seus leitores se estendeu às funções intermediárias de explicação e tradução, um „ir entre‟, „mediar‟

entre duas línguas. 4 Haec Interpretatio dicta est Graecis α: estque hoc nomen Interpretis ambiguum, et in uarios sensus

trahi potest: nos hoc quidem loco et tempore eum uocamus, qui Dialectum seu idioma minus multis notum,

linguae notioris et familiaris interpretatione illustrat, et aliquid ex peregrina língua conuertit in aliam

celebratam magis et peruagatam. (03) 5 A Héxapla [sêxtupla] é uma edição compilada pelo erudito Padre da Igreja Orígenes (185-254) em seis

colunas, das escrituras do Antigo Testamento com (1) texto hebraico, (2) transliteração para o grego, e as

traduções gregas disponíveis de (3) Áquila, (4) Símaco, (5) Orígenes, e (6) Teodócio. Orígenes, acredita-se,

produziu a primeira excelente crítica textual da Bíblia.

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Interpretatio Linguarum, o mais completo tratado renascentista sobre tradução

15 MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016

gêneros literários e as traduções, com suas discrepâncias, e seus tradutores, bem como

características inerentes às edições existentes dos originais e de suas línguas, e fatores

culturais, Humphrey reconhece a dificuldade de prescrever, mas não de ensinar um modo de

traduzir como o melhor.

Não ouso prescrever esta arte de traduzir, mas ela pode ser ensinada por um

método racional.6

Em seguida, o tratadista inglês passa a abordar os três diferentes tipos de tradução

adotados – uma concepção que no Renascimento se tornou um lugar-comum a muitos

pensadores da questão, manifestamente em Juan Luis Vives7 –, elegendo o terceiro como o

melhor método para traduzir.

I. Tradução pueril e escrupulosa (Interpretatio puerilis et superstitiosa)

Chamada de dura, grosseira, escabrosa, servil, pueril, escrupulosa e presa porque em

nada se aparta das palavras, extremamente literal é a tradução ad uerbum. Nela perde-se a

elegância do autor primeiro, os ornamentos, o idiomatismo, a clareza. Os que produzem tais

traduções são veementemente criticados:

[...] da mesma maneira como as amas de leite que dão aos bebês, na boca,

alimentos mastigados e em pedacinhos, quando balbuciam com os que

balbuciam, assim os professores que foram privados da palavra viva levam

quase que pela mão os aprendizes como que a um tênue conhecimento dos

poetas.8

[...]

Na verdade, neste século áureo e erudito, parecerão ocupar-se de inação, não

do proveito dos estudiosos, os que, desta forma, enquanto tudo esmiúçam,

acrescentam palavras às palavras, de modo que os zelos não deixem nada

para pensar e indagar por si próprios. Não é por maldade que, assim, por

este mesmo aprendizado constante, apresentam aos estudantes, de forma

articulada e distinta, rudimentos em sua prosa, em que cada palavrinha vale

por si, e por fim levam-nos aos poucos gradativamente em frente. E quem,

pois, os ensina a rastejar – quando na poesia deveriam voar às alturas –

buscando o mais sutil, negligenciando o melhor, também atua como se os

quisesse novamente a berrar nos berços, enquanto delicada e

timidazinhamente sustenta-os e nutre-os com este mastigado como fosse

pasto, indulgente com o ócio e a estupidez deles, e inteiramente favorecedor

da indolência. Semelhantemente, como se alguém ensinasse a um outro já

crescidinho e que pode saltar e correr a andar e a mover-se pé ante pé e a

avançar lentamente como criança, assim, na leitura dos gregos, a estes já

crescidos e adultos faz, de certo modo, tornarem-se meninos, e chama

6 Hanc interpretandi artem dicere non audeo: uia tamen et ratione de ea praecipi potest. (03-04)

7 Cf. FURLAN, M. (Org.), Clássicos da Teoria da Tradução - VI. Antologia do Renascimento (séc. XVI)

(bilíngue). 2ª ed. revista e modificada. Florianópolis: UFSC, 2016. Online:

https://www.researchgate.net/publication/309385009_Classicos_da_teoria_da_traducao_-

_VI_Antologia_do_Renascimento_sec_XVI_bilingue 8 [...] tanquam nutrices infantibus mansa ac comminuta frustulatim in os ingerant, cum balbis balbutientes, ut ad

aliquam Poetarum tenuem cognitionem quasi manuducant tyrunculos, qui magistri uiua uoce destituti sunt. (14)

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Mauri Furlan

MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016 16

novamente ao berço os que sustentariam certas tarefas mais varonis e mais

sérias. E também executam rapidamente as que são facilmente aprendidas

sem contenção do espírito, embora as alcançadas com empenho

permaneçam por mais tempo. No entanto, enquanto estão presos às palavras,

não aprendem realmente, e o sentido se perde ou se obscurece, de forma que

é necessário um douto tradutor para as traduções certamente esclarecedoras

dos mesmos, as quais dizem realizar para toscos e aprendizes.9

[...]

Deve-se aprender apenas o melhor desde pequenos. Por isso, portam-se

pessimamente com seus moços os mestres-escolas, que, assim, ensinam

toscamente os toscos, de forma a que aprendam o pior de uma elocução em

ambas as línguas, ζνινηθίδεηλ [falar incorretamente]; a que considerem as

palavras isoladamente, e trabalhem muito pouco sobre as agrupadas; a que

traduzam, assim, palavra por palavra, de maneira a fazer dos bons gregos

algo latino nada bom. Deixam, por certo, sair de sua oficina para construir a

república e a igreja, como se fosse do cavalo de Tróia, artífices pouco

habilidosos, sofistas, bárbaros, scotistas10

que odeiam e perseguem as boas

artes e toda a humanidade.11

Os estragos produzidos por tais traduções se refletem e podem ser exemplificados em

todos os âmbitos, na Dialética, na Filosofia, no Direito, na Teologia.

9 Verum hoc aureo et erudito seculo, consulere uidebuntur ignauiae, non utilitati studiosorum, dum omnia ita

minutatim dissecant, uerba uerbis sic apponentes, ut nihil ad cogitandum et indagandum ipsorum relinquant

diligentiae. Non male uolunt, qui sic, ab ipso statim tirocinio, in oratione soluta rudimenta discentibus,

articulate et distincte ostendunt, quid quaeque uocula per se ualeat, et deinde paulatim ad altiora per gradus

quosdam prouehunt. At enim qui docet eos reptare, quum in poesi ad summa deberent euolare, minutiora

captans, negligens potiora: perinde facit, ac si in cunis eos uelit denuo uagire, dum hoc praemanso uelut pabulo

tenere et molliuscule alit et educat, indulgens eorum otio ac hoc aureo et erudito supinitati, ac plane fouens

socordiam. Similiter ac si quis aliquem grandiusculum iam qui saltare potest et currere, cum infantibus

pedetentim ire et mouere se ac sensim progredi doceat: sic istos in lectione Graecorum prouectos adultosque

iam quodammodo facit repuerascere, et ad incunabula reuocat, qui uiriliora quaedam pensa et grauiora

susciperent. Et cito quoque efficiunt, quae citra contentionem animi cito discuntur: labore acquisita

adhaerescunt diutius. Imo dum uerbis affixi sunt, ne discunt quidem, sed perit sensus, aut obscuratur, ut ad

ipsorum dilucidas scilicet interpretationes, quas rudibus et tyrunculis se dicunt parare, docto opus sit interprete.

(14-16) 10

Scotista: relativo ao scotismo, sistema filosófico desenvolvido pelo franciscano beato Iohannes Duns Scotus

(ca. 1266-1308), teólogo e filósofo escocês. Diferencia-se do tomismo (de Thomas Aquinas ou São Tomás de

Aquino (1225-1274), dominicano italiano considerado o maior dos filósofos medievais) por reconhecer o

primado do amor e da vontade sobre o do conhecimento e do intelecto. O scotismo opõe-se abertamente ao

tomismo em muitas teses: defende o caráter prático da teologia, negando-lhe que possa conter uma verdade

teórica revelada; afirma a indemonstrabilidade de proposições filosóficas e teológicas como a dos atributos de

Deus e da imortalidade da alma; prega a univocidade do ser, na qual a essência do homem e aquela divina é da

mesma natureza, entre outras. 11

Tantum est a teneris optima discere. Pessime merentur ergo de pube sua ludimagistri, qui sic crasse crassos

docent, ut contempta phrasi utriusque linguae, ζ discant: ut simplicia uerba attendant, de coniunctis

parum laborent: sic uerbum ex uerbo exprimant, ut ex bonis Graecis Latina faciant non bona. Emittent hinc

nimirum ex officina sua uelut ex equo Troiano fabros ad aedificandam rempublicam et ecclesiam parum

dexteros, sophistas, barbaros, scotistas qui bonas artes ac omnem humanitatem odio habeant et persequantur.

(19-20)

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Interpretatio Linguarum, o mais completo tratado renascentista sobre tradução

17 MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016

II. Tradução licenciosa (Interpretationis ratio licentiosa)

O segundo método apresentado por Humphrey é o que se permite demasiadas licenças,

extremamente liberal, vai de encontro ao método anterior.

Como, pois, o primeiro apresenta-se dentro de uma medida, assim, o

segundo estende-se para fora dos limites com uma audácia totalmente

imódica: abundando em sinônimos, jogando com tropos não necessários,

brincando com as traduções, impudente nos vocábulos que devem ser

formados, rejeitando os próprios, mendigando alheios, afetando adornos e

ornato onde não é o lugar, como diz o ditado In lente unguentum12

,

apregoando o luxo e as delícias do discurso e ostentando ornamentos,

reivindica, com a sentença, a frugalidade e a simplicidade, para o leviano o

sério, para o cômico o trágico, para o frio o quente, o frio para o quente,

toda ela enfim imitando a condução e o fio do seu engenho, mas não

servindo ao autor, que tem um objetivo proposto, que olha atentamente.13

O tradutor licencioso acaba por não se diferenciar do próprio autor. Porém,

O autor, com efeito, é livre para dizer o que quiser, e em qualquer ordem, e

com quaisquer palavras agora aceitas; o tradutor tem uma meta prefixada

diante dos olhos, e não pode apartar-se para além dos termos estabelecidos

se quiser reproduzir fielmente o sentido do autor, se quiser realizar bem sua

tarefa. Aquele vai em busca dos seus sentidos, este, dos sentidos alheios

encontrados; àquele é dada a liberdade, a este acomete a necessidade, não de

refletir sobre quaisquer coisas com seus próprios meios, e, uma vez

refletidas, de explicar expondo-as, mas de buscar o achado (inuentio) do

autor – e de permanecer nele –, e também a elocução (elocutio) e os

ornamentos do discurso, e as palavras da língua para a qual traslada, os

quais devem exprimir a mesma coisa com a mesma forma e figura14

. Estes

sãos os limites, estes os marcos além dos quais o trabalho e a faculdade de

um tradutor não ultrapassam, e que devem ser contidos pelos que o autor

circunscreveu em sua composição.15

12

“Unguento na lentilha”, provérbio de origem grega indicando incongruência, irracionalidade na associação de

idéias. 13

Vt enim illa intra modum consistit, sic haec extra fines sane immodica procurrit audacia: Synonymis

luxurians, tropis ludens non necessariis, translationibus lasciuiens, in fingendis uocabulis inuerecunda, propria

repudians, aliena corrogans, affectans flosculos, et ornatum, ubi locus non est, nimirum quod aiunt, In lente

unguentum, lautitiam et delicias orationis uenditans, et pigmenta ostentans, cum sententia frugalitatem poscit et

simplicitatem, in leuibus grauis, in comicis tragica, in frigidis feruens, frigens in feruidis, tota denique ductum et

filum ingenii sui imitans, non autori seruiens, quem tanquam scopum propositum habet, quem intueatur. (23) 14

A teoria da linguagem pela qual Humphrey plasma sua concepção de tradução é a da retórica clássica, e por

ela se esclarece muito da nomenclatura utilizada nos textos da época. Cf. FURLAN, M. La retórica de la

traducción en el Renacimiento. Tesi doctoral, Universitat de Barcelona, 2002. Online:

http://www.tdx.cat/handle/10803/1717 15

Scriptor enim liber est, ut dicat quae uelit, et quo ordine, ac quibuscunque uerbis, modo probatis: interpres

praefixam habet ob oculos metam, et terminos extra quos euagari non potest, si autoris sensum reddere fideliter,

si officio suo satis uelit facere. Ille sensa sua, hic inuenta aliena sequitur: libertas illi datur, incumbit huic

necessitas, non ut quaecunque suo Marte excogitet, et excogitata dicendo explicet, sed ut ab autore petat

inuentionem, et in ea conquiescat, elocutionem quoque et ornamenta orationis, uerba uero ab ea lingua in quam

transfert, quae eandem rem eadem forma et figura declarent. Hi sunt limites, hi cancelli, extra quos munus et

facultas interpretis non egreditur: sed his contineri debet, quos autor sua scriptione circumdedit. (23-24)

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Mauri Furlan

MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016 18

E compara o tradutor a um pintor, como Horácio o fizera na Ars poetica – “ut pictura

poesis” (como a pintura é a poesia), v. 361. A intertextualidade produzida por Humphrey

perpassa todo seu tratado, abarcando autores de todas as épocas e de vários gêneros.

Que o tradutor nunca difira de seu original, nem acrescentando nem

subtraindo. Age torpemente o pintor que se aparta de seu modelo, se, levado

a desenhar o retrato de algum rei, erra nas pernas ou noutra parte do corpo

ou se se interessa por outra coisa que não pela representação proposta. Mais

torpe, ou, completamente torpe, quem, aplicando-se a traduzir o pensamento

de outrem, não o reproduzir, mas em vez disso nos impuser uma outra ideia

ou representação. Isso é outra coisa, como mostrar uma nuvem em vez de

Juno, uma sombra em vez do corpo, nada em vez de algo. Certamente

Apeles, artífice hábil, representaria, com suas cores vivas e reais, a mesma

coisa que propusera ser imitada e descrita. Nem em lugar de Agamenon

ofereceria Menelau, ou em lugar de Heitor, seu irmão Alexandre, em lugar

de Filipe, seu pai Antígono, nem em lugar de Aquiles, Pátroclo, seu

consímile em tudo, mas representaria o verdadeiro Aquiles, perfeito e não

obscuro, vívido e não ensombreado, verdadeiro e não simulado, inteiro e

não pela metade. Assim o tradutor, escultor e pintor do engenho alheio,

resgatará seu autor com todas suas partes e membros, e não o apresentará

amputado ou mutilado nem diminuído em alguma coisa.16

[...]

Sei também que as vestes e os costumes, assim como a língua de cada país e

povo são diversos, e que não é necessário levar a língua incorrompida e

elegante dos gregos e romanos ao uso vulgar e corrompido da plebe. Νόκνο

θαὶ ρώξα17

, „costume e região‟ [a cada região seu costume], dizem, assim, a

todas as línguas é próprio e vernáculo um certo idiomatismo.18

Sobre os tradutores e os dois modos de traduzir acima apresentados, conclui dizendo:

Destes, porém, deduz-se, por fim, que se encontram em dois vícios, ou

traduzem de forma demasiadamente tímida, ou demasiadamente túmida.

Àquele acuso de escrupuloso, a este de ousado, aquele porque ousa pouco,

16

ut interpres nunquam uariet ab archetypo, uel addendo uel adimendo. Turpe ducimus, si pictor deflectat ab

exemplari, si conductus ad Regis alicuius effigiem delineandam, uel in tibia erret uel in ulla parte corporis: aut

si alio respiciat quam ad propositam imaginem. Turpius sane imo turpissimum, si quis ad interpretandum

alicuius animum accendens, non expresserit, sed pro illo phantasma aliud aut idolum nobis obtruserit. Hoc quid

aliud est, quam pro Iunone nubem, pro corpore umbram, pro aliquo nihil exhibere. Certe Apelles peritus artifex,

ipsam rem quam ad imitandum et describendum proposuit, suis, id est, uiuis atque ueris depinget coloribus. Nec

enim pro Agamemnone Menelaum, aut pro Hectore dabit Alexandrum fratrem, pro Philippo Antigonum patrem,

nec pro Achille Patroclum licet per omnia consimilem, sed uerum Achillem graphice non obscure, uiuide non

adumbrate, uere non simulate, totum etiam non dimidiatum repraesentabit. Sic interpres ingenii alieni fictor et

pictor, suum autorem omnibus partibus ac membris absoluet, truncatum aut mutilum ulla ue in re diminutum

non proponet. (25-26) 17

PLUTARCHUS, De proverbiis Alexandrinorum [Sp.] (0007: 149), edição eletrônica de: Plutarchi de proverbiis

Alexandrinorum libellus ineditus. Ed. Crusius, O. Tübingen: Fues & Kostenbader, 1887. Fragmento 10, linha 1. 18

Scio quoque cuique genti, populoque ut uestes et mores, sic linguam esse diuersa

α α aiunt, mos et regio, sic omnibus linguis proprium quoddam est idioma atque

uernaculum. (27-28)

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Interpretatio Linguarum, o mais completo tratado renascentista sobre tradução

19 MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016

este porque demais; naquele repreendo a rusticidade de linguagem, neste os

ornamentos alheios do discurso.19

III. Tradução intermédia (Interpretationis ratio media)

Capital do pensamento de Humphrey sobre tradução, o primeiro livro, De ratione

interpretandi, revela em seu índice uma visão geral da teoria de tradução do autor. Depois de

apresentar brevemente os dois modos de traduzir que são condenáveis por seus vícios, o

tratadista aborda o cerne de sua proposta, a media uia, como o melhor método de traduzir. Sua

explanação é bipartida em 1. De interpretatione (Da tradução), em que trata da tradução e

suas características, e 2. Officia interpretis (Tarefas do tradutor), quando versa sobre as

características do bom tradutor e os recursos para sua instrução e preparação.

1. De interpretatione (Da tradução) (30-115)

1.1. Plenitudo: plenitude (31-41)

1.2. Proprietas: propriedade (41-57)

1.3. Puritas: pureza (57-80)

1.4. Aptitudo: aptidão (81-115)

2. Officia interpretis (Tarefas do tradutor) (115-200)

2.1. Natura: natureza (116-125)

2.2. Doctrina: instrução (125-170)

2.3. Fides & religio: fé e religião (170-180)

2.4. Diligentia: diligência (180-200)

O terceiro modo de traduzir constitui a via intermédia (media uia), ou seja, participa

de ambos os modos apresentados acima,

da simplicidade mas da erudição, da elegância mas da fidelidade, a qual não

é assim elevada que ultrapasse a medida, nem assim baixa que seja sórdida,

mas frugal, moderada, comedida, que não ama a torpeza nem o fausto, mas

o refinamento apurado.20

1. De interpretatione (Da tradução)

São quatro as virtudes da boa tradução: plenitude, propriedade, pureza, aptidão.

1.1. Plenitudo: plenitude

– assunto & sentença, forma da sentença, ritmo –

Chamo de tradução plena aquela que reproduz o sentido íntegro, em que

uma sentença ecoa a partir da sentença correspondente e segue a mente do

autor em tudo e plenamente, na qual nada falta nem sobra. [...] Por isso, para

que tudo corresponda à perfeição, deve-se considerar que há três coisas a

19

Ex his autem illud tandem efficitur, haec duo in uitio esse, uel nimis timide uertere, uel nimis tumide: hoc

accuso ut superstitiosulum, illud ut audax, hoc quod parum, illud quod nimium audeat; in hoc barbariem, in illo

pigmenta orationis alieniora reprehendo. (29-30) 20

simplicitatis sed eruditae, elegantiae sed fidelis: quae nec ita exaggerata est ut modum transeat, nec ita

depressa ut sit sordida, sed frugalis, aequabilis, temperata, nec sordes amans nec luxuriam, sed mundum

apparatum. (30)

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Mauri Furlan

MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016 20

serem examinadas com atenção em cada discurso. Devem, pois, ser

observadas primeiramente a res [o assunto] e as sententiae [as frases]; em

seguida, a forma e a figura; e por fim o numerus [ritmo], isto é, como disse

Cícero, a própria collocatio [posição] e a conformatio [figura de dicção

relativa à disposição] das palavras. [...] Pois nos bons escritores não há nada

colocado de forma errônea ou descuidada; por isso nada deve ser destruído

ou mutilado. Pois nos assuntos e na sentença, devem ser observados o corpo

do discurso e o nervo do argumento, ou a πξόζιεςηο21

[proslepsis] (Cícero

[De Divinatione, II, 108] chama de adsumptio [proposição menor de um

silogismo]), invocada e demandada a ampliar e adornar22

, bem como o

lugar, o tempo, a ocasião, e as atribuições das coisas e das pessoas. Se não

traduzes em tua elocução o espírito daquele, os sentidos sutis, os

movimentos rápidos do pensamento, que chamo de inuentio, e não adaptas

tua língua à língua e alma daquele a quem segues, então não é a ele mas a ti

mesmo que fazes falar a nós, de onde acontece que o vejamos apenas de

relance, quando deverias apresentar toda sua alma e sua mente como devem

ser vistas num painel, e igualmente observadas num espelho. E por que não

deveria ser conservada a mesma figura do discurso? Por que revestes com

novo semblante a um corpo alheio que não é teu? Pois para nós, também

nisto o autor nos deve ser imitado e não mudado, e, acredito realmente, nem

devem ser seguidos nem aceitos os que convertem interrogações em

sentenças afirmativas e simples, os que alteram totalmente a aparência dos

autores, introduzem espectros ao discurso alheio que não lhe são próprios

nem genuínos. E do mesmo modo, uma atenção diligente deve ser dada aos

períodos e locuções, a fim de que respeitemos o quanto for possível as

diástoles23

, hipodiástoles24

e todo o estilo da sentença do autor, e para que

correspondam não apenas o assunto com o assunto, a arte com a arte, a

causa com a causa, mas as partes com as partes, os pares com os pares, as

figuras com as figuras, a ordem e o ritmo do período.25

21

A proslepsis é entendida aqui não como uma figura de linguagem, mas, parte do silogismo, que é o método do

argumento. As duas premissas (ιεκκαηα, lemata), que preparam a conclusão de um silogismo, são chamadas em

grego, respectivamente, ιεκκα („lema‟, a premissa maior) e πξόζιεςηο („proslepsis‟, a premissa menor). 22

Os argumenta (argumentos) funcionam, além de meios comprobatórios, como recursos da amplificatio

(ampliação) – que é “uma intensificação preconcebida e gradual dos dados naturais mediante os recursos da

arte”, e que participa tanto da inuentio como da elocutio, logo, da argumentação e da ornamentação. Cf.

Lausberg, §§ 259; 400. 23

Na retórica, a diástole (ou êctasis) é uma figura literária de dicção, que em latim permitia que uma sílaba breve

fosse pronunciada como longa. Nas línguas em que não existe a quantidade vocálica, como o português, a figura

se aplica à acentuação: alterar a posição do acento de uma sílaba para outra, como em ocasiões para possibilitar a

formação de certas rimas. 24

Caracteres misturados ao texto para indicar pausa, fim de sentido ou separação entre palavras. Outra marca

textual desenvolvida na antiga Grécia era o hífen, usado entre palavras quando se queria indicar sua leitura como

uma única palavra. 25

Plenam uoco eam interpretationem quae sensum reddit integrum, ut sententia respondeat ex aduerso

, , b […]

Vt igitur omnia ad unguem consentiant, considerandum est, tres esse res in omni oratione perlustrandas.

Intuendae sunt enim primum res atque sententiae: tum forma et figura: post numerus, id est ut ait Cicero, ipsa

collocatio conformatioque uerborum. […] N b b h h

h N b ,

, (Cicero uocat assumpta) ad amplificandum ornandumque aduocata et accersita, ut

locus, tempus, occasio, rerumque ac personarum attributiones. Nisi enim animum eius, argutos sensus, celeres

cogitationis motus, inuentionem dico, elucutione tua exprimas, et linguam tuam ad linguam animumque eius,

quem sequeris, accommodes: iam non illum nobis, sed te ipsum loquentem facis, unde fit ut illum uix per

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Interpretatio Linguarum, o mais completo tratado renascentista sobre tradução

21 MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016

A plenitude de uma tradução diz respeito tanto à manutenção do conteúdo quanto da

forma. E os maiores vícios em que incorre são o pleonasmo e a perissologia.

Tampouco é permitido transformar a forma do discurso, e o tradutor deve

conservar o mesmo teor, e não se afastar em nada do autor que ele traduz.

Por tanto, agem incorretamente os que criam dialogismos26

nas coisas

sagradas a serem traduzidas, e removem narrações κηκεηηθάο [miméticas], e

substituem-nas completamente, com exceção apenas das personagens

envolvidas.27

[...]

Resulta, pois, que é preciso que uma tradução não seja defeituosa ou

mutilada, mas que, observando com suma atenção todo o corpo da sentença,

expressemos o todo e o particular, não apenas o nervo e as forças do

argumento, mas as cores, a pele e a carne, sem dúvida estes três móveis das

artes, a forma e a natureza, e o ritmo e a posição dos períodos. Mormente

isto sobre a tradução plena, que deve ser completa em todas as suas partes.

Na qual, deve-se precaver sobretudo de dois vícios, πιενλαζκόο

[pleonasmo], ou πεξηζζνινγία28

[perissologia], para que não sejam

acrescentadas palavras supérfluas, e para que não pereça ou seja destruído,

ἒθιεηςζηο [desaparecimento], por nossa negligência aquilo que é

considerado no autor.29

1.2. Proprietas: propriedade

– harmonia & analogia das palavras, luta, etimologia –

Resta que se fale a seguir sobre a propriedade, chamada de idiomatismo, que

se observa em todas as línguas. Chamam os romanos de latinidade, de

helenismo os gregos, de aticismo os áticos, os judeus, de hebraísmo,

quando, com efeito, alguma característica marca seu nome de forma real,

transennam aspiciamus, cum totum eius pectus ac mentem quasi in tabula spectandam, et uelut in speculo

contuendam deberes proponere. Et cur non eadem orationis figura seruanda? cur nouam indues faciem alieno

corpori non tuo? Quare et hic quoque autor nobis imitandus non mutandus, nec sunt, ut ego quidem existimo,

sequendi neque probandi qui interrogationes conuertunt in aientes et simplices sententias: qui schema autorum

commutantes, adsciscunt laruas orationi alienae, non proprias neque genuinas. Eodemque modo in periodis et

conuersionibus diligens animaduersio adhibenda est, ut autoris diastolas, hypodiastolas totumque orbem

sententiae quoad eius fieri potest, compleamus, utque non res modo cum re, ratio cum ratione, causa cum causa

consentiat, sed membra membris, paria paribus, fugurae figuris, ordo numerusque periodorum respondeant.

(31-34) 26

Na retórica, figura que consiste em construir uma reflexão sob a forma de diálogo, com perguntas a que o

próprio autor responde, ou em reproduzir em diálogo as idéias e os sentimentos dos personagens. 27

Iam formam quoque orationis non licet transformare, sed eundem tenorem obtinere debet Interpres, nec latum

digitum ab eo autore quem conuertit discedere. Proinde perperam faciunt qui dialogismos tollunt in uertendis

sacris, et narrationes amouent, et perpetuas absque personis interpositis substituunt. (38-39) 28

O solecismo por acréscimo é uma falta contra a breuitas dentro da elocutio. Esta falta se chama „pleonasmo‟

quando há uma ou outra palavra em demasia („os astros do céu‟); mas se o excesso é uma oração ou todo um

pensamento, a falta se chama „perissologia‟ („viva o rei e não morra‟). Cf. Lausberg, § 502. 29

Sequitur igitur, non mancam aut mutilam interpretationem esse oportere, sed ut totum corpus sententiae

attentione summa inspicientes, exprimamus omnia et singula, non modo neruum et uires argumenti, sed colores,

cutem et carnem, nimirum tria haec, momenta rationum, formam et habitum, et periodorum numerum atque

collocationem. Atque haec de plena interpre-tatione, quae suis omnibus expleta sit partibus. In qua duo

praecipue uitia cauenda sunt, α seu α, ne uerba inania adsuantur, et ne quid

quod apud autorem habetur, nostra negligentia pereat aut intercidat. (40-41)

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MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016 22

própria e fiel. Há, pois, helenismo, segundo Aristóteles [Retórica,

1407a.30]: ηνηο ἰδίνηο ὀλόκαζη ιέγεηλ θαὶ κὴ ηνῖο πεξηέρνπζηλ [dizer com os

nomes mesmos e não com os circunstantes], todas as vezes que não

definimos com uma noção geral qualquer, mas nominamos com um

vocábulo próprio. Em cuja forma está o primeiro emprego por nossa raça,

quando o pai Adão deu nomes às coisas no paraíso. E de grande louvor é o

tradutor que traslada com propriedade, θπξηνινγεῖλ30

[ciriologia], assim

como os camponeses e os aldeões que falam mais toscamente, porém mais

claramente, chamam de enxada a enxada, de figo o figo: homens simples e

desconhecedores da retórica enfeitada, a qual, com suas figuras de

amplificar e diminuir, e outras ζθηα... εηο ζθηόεηο [sombras... para as coisas

sombrias], obscurece e obnubila o assunto, ou o oculta com seus rodeios,

fazendo de uma colina uma montanha, de um veadinho um leão, de um

mosquito um elefante, de um anão um Hércules. Por isso, devem ser

observadas as coisas vicinais, como superstição e religião, audácia e

coragem, e os vícios aproximados, que imitam falaciosamente um tipo de

virtude. Não devem ser ditas coisas duras de modo suave, ou coisas cruéis

de modo doce, nem devem ser dissimuladas coisas más sob um bom nome

ou coisas torpes sob um nome honesto. Mas é a θπξηνιεμία [uso das

palavras em seu sentido próprio] que deve ser preservada, para que não nos

afastemos de nosso modelo, e restituamos uma palavra com outra, não

apenas com pertinência mas com propriedade.31

[...]

É realmente necessário conhecer e compreender a natureza e a força das

palavras, a fim de que nossa tradução se iguale à própria ἔκθαζηο [força

enunciativa]. Para que isso se realize mais convenientemente, deve-se

compreender que umas palavras são simples, outras agrupadas; umas

nativas, outras inventadas ou modificadas de certa forma com habilidade. Às

simples Cícero chama de isoladas; eu nomino as agrupadas de compostas,

ou também de expressões. Por outro lado, estão as nativas, que sem alegoria

mostram com propriedade o assunto, as inventadas, as modificadas, as

figuradas. A diferença entre elas não deve ser absolutamente desprezada por

nós, pois é fácil o engano com elas, e torpe quando usamos ou uma isolada

em lugar de uma agrupada, ou próprias em lugar de figuradas. De aí que às

vezes perde-se a graça, e diminui ou perece a força da significação.32

30

Por vezes tomados como sinônimo, os conceitos também podem ser diferençados entendendo a ciriologia

como a significação „própria‟ de uma palavra, seu uso literal, e a „propriedade‟ como o emprego de uma palavra

com o máximo de sua significação. 31

Sequitur, ut de proprietate dicendum esse uideatur: ea Idiotismus dicitur, qui in omnibus linguis conspicitur.

Romani Latinitatem, Hellenismum Graeci, Atticismum Attici, Iudaei Hebraismum uocant, quum scilicet quaeque

res suo nomine signatur uere, proprie et fideliter. Est enim Hellenismus apud Aristotelem, α

α υ : quum non circunscribimus notione quacunque generali, sed propio uocabulo

nominamus. Quo genere usus est primus generis nostri parens Adamus, cum in paradiso sua rebus nomina

imponeret. Et magna laus est interpretis υ , quemadmodum agrestes ac rustici qui rudius loquuntur sed

planius, ligonem ligonem, uocantes, ficum ficum: simplices homines et fucatae rhetoricae ignari, qui suis figuris

amplificandi et diminuendi, aliisque α... obscurant res et obumbrant, uel obuoluunt ambagibus: ex

tumulo montem, ex hinnulo leonem, ex culice elephantum, ex pumilione Herculem facientes. Videnda sunt igitur

uicina, ut superstitio et religio, audacia fortitudo, et propinqua uitia, quae speciem uirtutis imitantur fallaciter.

Nec enim sunt aspera molliter dicenda, aut acerba blande: nec mala bono nomine aut turpia honesto uelo

contegenda. Sed est illa υ α seruanda, ut a duce nostro non deerremus: sed uerbum uerbo proprie, modo

non inepte reddamus. (41-42) 32

Maxime uero naturam uimque uerborum cognitam habere oportet et intellectam: ut φα ipsam

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Interpretatio Linguarum, o mais completo tratado renascentista sobre tradução

23 MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016

[...]

Não apenas a harmonia das demais palavras nas línguas deve ser observada,

mas também seu combate e dessemelhança. E entre os sinônimos, não há

nada tão afim que não difira em algum aspecto, ou no som ou na

significação; algo que Aristóteles ensinou perfeitamente na Retórica [III,

1405b.10ss.], dizendo: “Uma coisa é mais própria do que outra”, θαὶ

νἰθεηόηεξνλ, ηῷ πνηεῖλ ηὸ πξᾶγκα πξὸ ὀκκάησλ. [...] θαὶ νὔησο ἄιινπ ἂιιν

θάιιηνλ θαὶ αἴζρηνλ ζεηένλ.33

[e mais apropriado, para que o feito salte à

vista. [...] por isto há de se aceitar que um nome seja mais belo ou mais feio

que outro]. Por certo, há uma que é mais apropriada para expor o assunto à

vista, e uma que é mais bela que outra ou mais distinta. Necessitamos, por

isso, de preparo, e de palavras provindas de todas as partes, recolhidas e

obtidas com muito empenho nos melhores escritores, que possam estar à

mão para escolhermos cuidadosamente e com discernimento aquelas que

mais se aproximam da coisa.34

A tradução com propriedade implica, por vezes, colar-se às palavras ou mesmo

estruturas da língua estrangeira.

De modo breve, o quanto seja possível: tomemos a via intermédia, a fim de

traduzirmos as palavras sagradas não de um modo mais altivo nem mais

econômico e frio, mas empregando um método em que estejamos pegados

às palavras, muitíssimo mantenedores da propriedade, muitíssimo

observadores dos idiomatismos das línguas, sobretudo nas letras sagradas,

onde aquele que mais se aproxima das palavras, mais se aproximará do

sentido; aquele que se afasta das palavras, também se afastará muitíssimo do

pensamento. Não desdenhemos grecizar, às vezes, com Cristo, como eu

disse, nem fujamos dos helenismos sagrados, do mesmo modo como Cristo

não hesitou em hebraicizar com o Pai. Pois a palavra Amen, ainda que seja

hebraica, conservaram-na os gregos, e foi usada pelos homens antigos,

como é evidente em Paulo, quando o povo cantava Amen com função de

interpretatio nostra exaequet. Quod ut praestetur commodius, intelligendum est alia uerba esse simplicia, alia

coniuncta: alia natiua, alia reperta, uel arte aliqua modificata. Simplicia Cicero singula uocat: coniuncta

composita, seu etiam phrases appello. rursus natiua sunt quae citra figuram proprie rem declarant, reperta ac

modificata, figurata. Horum discrimen est a nobis minime cotemnendum: facilis est enim in his lapsus, sed

turpis, quum uel simplici utimur pro composito, pro figuratis propriis: unde saepe gratia amittitur, et uis

significationis aut imminuitur, aut deperit. (44-45) 33

A citação completa é: ἔζηηλ γὰξ ἄιιν ἄιινπ θπξηώηεξνλ θαὶ „σκνησκέλνλ κᾶιινλ θαὶ νἰθεηόηεξνλ, ηῶ πνηεῖλ

ηὸ πξᾶγκα πξὸ ὀκκάησλ, ἔηη νὐρ „νκνίσο ἔρνλ ζεκαίλεη ηόδε θαὶ ηόδε, ὤζηε θαὶ νὔησο ἄιινπ ἄιιν θάιιηνλ θαὶ

αἴζρηνλ ζεηένλ, Retórica, III, 1405b.10ss. [há, pois, nomes mais específicos que outros, e também de maior

semelhança e mais apropriados, para que o feito salte à vista. Além do que, não estando numa disposição

semelhante, significam ora uma coisa ora outra, de modo que também por isto há de se aceitar que um nome seja

mais belo ou mais feio que outro.] 34

Caeterum non modo uocum concordia in linguis est notanda, sed pugna et dissimilitudo. Et in Synonymis nihil

est tam affine, quod non aliquo discrimine, uel sono, uel significatione differat. Quod Aristoteles ad Theod. 3

, , , α , α [ ] α

υ α α Nimirum aliud esse accommodatius, ut rem ponat ob oculos, et

aliud esse alio pulchrius, seu honestius. Apparatu nobis ergo opus est, et uerbis undique summo studio ex

optimis scriptoribus collectis et accersitis, ut ad manum esse possint, quo ea quae rem attingunt maxime,

studiose et cum iudicio seligamus. (46-47)

Page 14: Interpretatio Linguarum, o mais completo tratado

Mauri Furlan

MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016 24

exclamação. E igualmente não rejeitaram Hosanna, Sabaoth, Alleluia35

e

outras introduzidas na linguagem e usadas comumente. Que disso

aprendêssemos que, se as palavras não podem ser reproduzidas com tanta

graça e propriedade, permaneçam gregas, na forma em que foram recebidas,

para evitarmos as significações absurdas, estranhas e impróprias, que não

expressam inteiramente ou suficientemente a natureza das palavras.36

[...]

Por tanto, é necessário que nesta parte evitemos o vício da ἀθπξνινγία

[impropriedade], se quisermos traduzir com propriedade e devolvermos os

pares de um modo não inferior, o que seria, por certo, como o Glauco de

Homero [Ilíada, VI, 236], ἄκεηβε ρξύζεα ραιθείσλ [trocou a armadura de

ouro37

], mudar completamente a áurea Eneida.38

1.3. Puritas: pureza

– elegância & verdade –

A terceira virtude é a pureza, θαζαξόηεο, algo clara e elegante como deve

ser uma tradução. Não nos agrada, pois, a propriedade, assim como nos

desagrada a elegância pura, se, contudo, se apresenta como perda ou

violação dos sentidos; ou seja, ela deve ser buscada se não vem por sua livre

vontade. É, pois, algo certamente magnífico e divino não apenas dispor aos

ouvidos latinos, de modo verdadeiro e próprio, os ensinamentos escritos de

homens notáveis, mas também e muito mais traduzi-los de modo puro,

correto, esplêndido, não apenas o que se quer que entendam, mas que leiam

com avidez e vontade. Nem me parece inteiramente digno deste grande

nome o tradutor que não consiga reproduzir com elegância os sentidos do

outro, com ornato os seus pensamentos. E querer confiar às letras latinas

autores egrégios, que não aprenderam a falar nem a se expressar em latim, e

não atrair os leitores pela elegância de estilo, é demasiada audácia e

desconsideração de homens que escrevem, bem como demasiado descaro de

homens que abusam da paciência no ócio e nas letras. Por isso, o tradutor

deve dedicar-se muito e por muito tempo a esta parte, para que se conserve a

riqueza da expressão e do discurso, na qual tenham sempre tomado parte a

proporção (commoditas) e os recursos (facultas), que devem ser buscados

35

Amen, na verdade, assim seja; Hosana, exclamação de júbilo, com que se vitoria alguém: salve!; Sabaoth,

„exércitos‟, „hostes‟, denominação de Deus, o Senhor ou Deus dos exércitos, indicativo de poder e soberania

absoluta; Alleluia, interjeição de alegria, significando „louvar a Deus‟. 36

Breuiter, quantum fieri potest, mediam uiam teneamus, ut nec magnificentius nec parcius et frigidius sacras

uoces conuertamus, sed modum adhibentes, uerborum simus tenaces, proprietatis retentissimi, linguarumque

idiomatis obseruantissimi, in sacris praesertim literis, ubi qui quam proxime ad uerba accedit, proxime ad

sensum perueniet: qui recedit a uerbis, a sententia quoque abit longissime. Ne dedignemur cum Christo

interdum graecari, ut dixi, et sacros Hellenismos ne refugiamus: quemadmodum Christum cum Patre non piguit

Hebraissare. Nam uerbum Amen quum sit Hebraicum, Graeci retinuerunt, et ueteribus hominibus frequentantum

est, ut ex Paulo liquet, quum acclamationis uice populus accineret Amen. Item Osanna, Sabaoth, Alleluia et

caetera in consuetudine posita, et uulgo usitata non reiecerunt: ut inde disceremus, si non reddi tanta gratia

uerba possint et proprietate, relinquant Graeca, modo recepta, ut absurdas, alienas et improprias significationes

fugiamus, quae uel non omnino, uel non satis exprimunt uerborum naturam. (55-56) 37

É a passagem em que Glauco troca sua armadura de ouro pela de bronze de Diomedes, o valor de cem bois por

nove. 38

Itaque uitium υ α in hac parte deuitemus necesse est, si proprie uelimus interpretari, et paria

reddamus non deteriora, quod est β α α , nempe cum Glauco Homerico, aurea permutare

aeneis. (57)

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Interpretatio Linguarum, o mais completo tratado renascentista sobre tradução

25 MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016

em tudo, e alcançados inteiramente pelos escritores; e o estilo deve ser

produzido e polido com longo esforço, exercitado na reflexão, no

comentário, na fala, na escrita, de modo que possa abundar em palavras as

mais escolhidas, e não apenas ter em abundância, mas uma seleção, a fim de

que esteja presente esta elegância do falar e o uso das boas palavras. Pois se

não for apurada a abundante ornamentação, deve-se preferir uma pobreza

elegante e esmerada a uma opulência sórdida. Seja, portanto, não apenas

rico e apropriado o tesouro da linguagem latina à nossa disposição, mas, o

quanto pudermos, bom e o mais puro; dele elejamos o mais adequado e

mostremos o mais distinto para nosso uso.39

Entre os vários exemplos que Humphrey oferece de tradução pura em vários âmbitos

da escrita, o da pureza vocabular merece destaque, seja pela clareza do exemplo, seja pelo

estilo do tratadista:

Porque a suma da religião cristã foi colocada por seres hediondos em

palavras exóticas e estrangeiras, afastada da pureza da língua romana. Que

outra coisa, pois, atormenta hoje os teólogos, inquieta os estudiosos, é

tratada nas discussões dos cristãos, além da missa, do purgatório, das

exéquias, das opera supererogationis40

, opera de congruo e de condigno41

,

praeuisa42

, fé formada e informe43

, quando, em toda a Escritura, não se

39

Tertia uirtus puritas, α α , perspicua quaedam et elegans ut sit interpretatio. Non enim ita nobis placet

proprietas, ut displiceat pura elegantia, si modo citra sensus detrimentum ac uiolationem se offerat: imo

quaerenda, si sponte sua non ueniat. Est enim magnifica profecto res et diuina, non solum uere et proprie

scripta hominum doctrina excellentium, Latinis auribus tradere, sed ac multo etiam magis, pure, emendate,

splendide conuertere, ut non solum quid sibi uelint, intelligantur, sed cum auiditate et uoluptate legantur. Nec

sane mihi interpres magno hoc nomine dignus uidetur is, quinon alterius sensa eleganter, cogitationes ornate

proferre posset: Et literis Latinis mandare uelle egregios autores, qui nec dicere nec loqui Latine norunt, nec

styli elegantia allicere lectores, hominum est audacter nimis et inconsiderate scribentium, et ocio et literis et

hominum patientia nimis impudenter abutentium. Quare elaborandum diu multumque est in hac parte interpreti,

ut adsit dicendi copia et orationis, in quam se cumque partem dederit, commoditas atque facultas, eaque ex

omnibus est conquirenda, et undique aucupanda scriptoribus, diutinoque studio ornandus stylus et perpoliendus,

meditando, commentando, loquendo, scribendo exercendus, ut uerbis abundare queat electissimis, et non modo

copiae cornu domi habere, sed delectum: quo demum suppetat haec loquendi elegantia, et uerborum usus

bonorum. nam si copiosa suppellex sit non munda, praeponenda est elegans et nitida paupertas, sordidae

opulentiae. Sit ergo nobis ad manum orationis Latinae thesaurus non diues solum et locuples, sed quantum

maxime possumus, bonus et purissimus: ex quo aptissima eligamus et lectissima ad usum nostrum proferamus.

(57-59) 40

Humphrey elenca nesta oração várias questões teológicas altamente polêmicas da Igreja de seu tempo. Opera

supererogationis (obras pagas em acréscimo), doutrina escolástica, elevada a dogma em 1518 por Pio X, sobre o

mérito de Jesus Cristo, segundo a qual Ele teria feito mais do que o necessário para a salvação dos homens. Esta

doutrina está relacionada à das indulgências. O mérito de Cristo e o mérito dos santos, que fazem mais do que o

exigido pela lei para sua salvação, produzem um excedente que compõe o thesaurus ecclesiae, o tesouro da

Igreja, que fica à disposição do papa. Este tesouro de graças representa de certa forma o capital com o qual o

papa salda a dívida imaterial do pecador mediante um contrapagamento material, vendendo-lhe indulgências,

para reduzir-lhe o tempo ou livrá-lo do purgatório. 41

A escolástica elaborou a noção de mérito e as condições necessárias para que uma obra seja considerada

meritória. As opera de congruo [obras de congruidade] e as opera de condigno [obras de condignidade] referem-

se ao tipo e valor do mérito dos que produziram boas obras. Santo Tomás de Aquino diferencia entre a obra

enquanto procedente do livre arbítrio, e a obra enquanto efeito da graça do Espírito Santo que habita no justo.

Tem o meritum de congruo aquele que agiu com suas débeis forças humanas; tem o meritum de condigno, aquele

que atuou pela graça do Espírito Santo. 42

Questão teológica de várias ramificações sobre a predestinação: praedestinatio ante praeuisa merita

[predestinação antes dos méritos previstos], ou seja, há predestinação à vida eterna sem consideração das ações

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Mauri Furlan

MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016 26

encontra uma única letra de suas palavras? O que está na boca de quase

todos, o que é tratado nos círculos dos doutos e indoutos, ademais de

aquelas palavras transelementatio44

, substantialiter, realiter, corporaliter,

essentialiter, figuraliter, significatiue45

? 46

De que África ou de que povos ciméricos47

foram, pois, tomadas estas

quimeras de palavras? Pois tão prodigiosos vocábulos não nasceram nem se

educaram em Roma, e por causa deles todo o universo cristão, que se

estende amplamente, muito se atormenta há tempos e quase se digladia de

modo o mais cruel; contudo, não os conheceu a sacra língua dos hebreus

nem as letras gregas na Bíblia. Se a má índole dos adversários ou uma razão

mais séria nos empurrar a isso por necessidade, sirvamo-nos das palavras

dos gregos, desde que nas palavras a serem formadas e criadas haja, por um

certo privilégio seu sobre as demais, tanto as mais ditosas como as mais

audaciosas: em vez de transubstantiatio [transubstanciação], κεηνπζία

[participação], em vez de transelementatio [transelementação],

κεηαζηνηρείνζηο [mudança da natureza elementar de uma coisa];

substituamos os advérbios por ζσκαηηθῶο [corpνralmente], ὄλησο

[verdadeiramente], ou, νὐζίσο [essencialmente], e, ζπκβνιηθῶο

[simbolicamente], e, ηξνπηθῶο [figuradamente]; ou, com segurança, as mais

das pessoas? A predestinação é consequência da previsão absoluta dos méritos? Para os tomistas, a execução do

decreto divino, contudo, depende das ações humanas. Ou seja, o processo é predestinado, não o resultado final. 43

Fides formata et informis [fé formada e informe], doutrina católica na qual a fé ativa na caridade e nas boas

obras (fides formata) possui poder para justificar o homem, enquanto que a fé desprovida de caridade e de boas

obras (fides informis) é uma fé morta e insuficiente para a justificação aos olhos de Deus. 44

A transelementatio, do grego κεηαζηνηρεηνζηο [mudança da natureza elementar de uma coisa], refere-se ao

mistério da eucaristia, que começa a ser explicado ainda no século IV e V pelos Padres gregos: por meio da

transelementatio os elementos do pão e do vinho se convertem e transformam no corpo e sangue de Cristo.

Passando por diversas interpretações entre os latinos, desde Tertuliano e Agostinho, que acentuam mais o caráter

sacramental do símbolo do pão e do vinho, é com Tomás de Aquino que se acentua mais no caráter sacramental

da missa e o modo em que Cristo se torna presente na Eucaristia: não é o corpo glorioso de Cristo que se

transfere para o pão e o vinho na consagração destes elementos, mas são estes elementos que se convertem em

corpo e sangue de Cristo. Para este fenômeno cunhou-se o termo transubstantiatio [transubstanciação]. Os

fundadores do protestantismo ofereceram outras interpretações, contra as quais o Concílio de Trento apropriou-

se do termo transubstantiatio e o definiu, em 1551, como “a conversão de toda a substância do pão na substância

do corpo de Cristo... e de toda a substância do vinho na substância do seu sangue” [Ecclesia de Eucharistia,

2003, cap.1 §15], que se realiza com as palavras do sacerdote no momento da consagração. 45

Substantialiter, realiter, corporaliter, essentialiter, figuraliter, significatiue [substancialmente, realmente,

corporalmente, essencialmente, figurativamente, significativamente]: advérbios de uso frequente entre os

escolásticos, com importantes implicações em questões teológicas. 46

quod summa Christianae religionis in his uerbis exoticis et peregrinis, a castimonia Romanae linguae ab

horrentibus, sita est. Quid enim hodie aliud torquet Theologos, exercet studiosos, tractatur in disputationibus

Christianorum, quam Missa, Purgatorium, Exequiae, opera supererogationis, opera de congruo, de condigno,

praeuisa, fides formata et informis, cum in tota scriptura illorum uerborum ne litera una reperiatur? Quid

iactatur in ore pene omnium, quid in circulis agitatur doctorum et indoctorum, praeter illa, Transelementatio,

substantiliter, realiter, corporaliter, essentialiter, figuraliter, significatiue? (68) 47

A Ciméria é um país descrito por Homero como a região da noite eterna (para alguns, situado ao norte ou

noroeste do Mar Negro, atual Ucrânia): Odisséia, XI, 13-19:

Nessa paragem se encontra a cidade dos homens Cimérios,

Que se acham sempre envolvidos por nuvens e brumas espessas;

Nunca foi dado alcançá-los os raios do sol resplendente,

Nem ao subir, ao vingar ele a estrada do céu estrelado,

Nem quando baixa de novo, na volta do céu para a terra.

Noite nociva se estende sem pausa sobre esses míseros.

(trad. de Carlos Alberto Nunes)

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Interpretatio Linguarum, o mais completo tratado renascentista sobre tradução

27 MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016

latinas: mutatio elementorum [mutação dos elementos] ou mutatio

substantiae [mutação da substância], reuera, reapse [realmente], figurate,

symbolice [figuradamente], ou, se há, outras deste gênero. Sejam, pois,

aquelas exiladas do domínio da língua romana, banidas dos confins latinos,

retornem aos infernos de onde partiram, na refrega dos homens eruditos, e

não sejam doravante ouvidas entre as boas letras dos instruídos. Nasceu a

Ate homérica48

das coisas humanas, e o inimigo da tranquilidade pública,

que as Graças49

de toda a caridade e concórdia repudiem os engodos. Não

discuto aqui sobre a questão: estas palavras sármatas50

, e góticas51

,

compostas com os tipos ηνῦ δηαβόινπ [do diabo], e impressas no prelo ηνπ

θαθνδάηκνληνπ [do desgraçado], e publicadas por um certo gênio mau

enquanto tipógrafo autor e corretor, desde as oficinas liberais dos cristãos e

das escolas, as quais têm perturbado há tantos anos a paz da Igreja com

grande dor e calamidade dos devotos, creio, devem ser extirpadas

completamente, uma vez que nem Deus as usou no Antigo Testamento, nem

Cristo as cunhou no Novo, nem Cícero e a tribuna romana alguma vez as

ouviram. Além disso, aquelas, seguramente inventadas agora, coloco-as

nesta classe de barbarismos52

: tentoriauit, sinistrauit, dextrauit, aurizauit,

posteriorauit, inimicatus est, ingrossatus fuit, primogeniauit, superioritatem

obtinuit, e praeualescentiam incinerauit, as quais alguns, cujos ouvidos e

olhos se acostumaram aos livros ciceronianos, antes admiram que

entendem; e assim temas hebraicos são reproduzidos pelos lexicógrafos, e

traduzidos por muitos, e, em razão de ensinar, como dizem, são empregados

48

Ate, do grego ἄηε [cegueira da alma, loucura], filha de Zeus. A deusa Ate, segundo Homero, preside o destino.

A Ate homérica é uma espécie de erro trágico, com sentido religioso, em que os deuses ou um princípio

demoníaco cegaria arbitrariamente os homens, deixando-os em situação de consciência perplexa. A consciência

perplexa é aquela que, tendo sido posta diante de um dilema, julga haver pecado em qualquer opção tomada, e

„não vê como evitar a culpa. Ilíada XIX, 85-94 (Agamenon dirigindo-se a Aquiles e aos gregos):

Frequentemente inculpavam-me os fortes Argivos; contudo,

culpa não tenho nenhuma, senão tão-somente, Zeus grande,

a fatal Moira e as Erínias que vagam nas trevas espessas.

Uma cegueira feroz me ensejaram tais deuses no peito,

A qual me fez no conselho, ao Pelida privar do alto premio.

Como pudera eu reagir? São os deuses que tudo dispõem.

A Culpa é filha de Zeus, deusa excelsa que os homens conturba,

Nume funesto de pés muito leves, que a terra não roça,

Ao caminhar, mas passeia por sobre a cabeça dos homens

Ocasionando tropeços. Té seres mais altos enleia.

(trad. de Carlos Alberto Nunes) 49

As três Graças ou Cárites, Ληηαη, Litae, são, na mitologia grega, filhas de Zeus e Eurínome, companheiras de

Afrodite. 50

Os sármatas, valorosos guerreiros, nômadas e pastores, compreendem um número de tribos iranianas mais ou

menos autônomas procedentes da Ásia Central que se instalaram, entre os séculos VI-IV a.C., ao norte do Mar

Negro até ao Mar Cáspio. Ainda hoje a língua indoiraniana dos sármatas nos é quase completamente

desconhecida. Imagina-se que tenha sido um agregado de diversos dialetos locais. 51

A língua gótica, a mais antiga das línguas germânicas, não possui descendentes modernos. Seu declínio

começa por volta do séc. VI, com a derrota dos godos pelos francos e por sua eliminação da Itália; sobrevive,

contudo, na Espanha, até o séc. VIII, extinguindo-se no séc. X. 52

Humphrey apresenta aqui uma série de neologismos, a que chama de barbarismos. Vocábulos como esses,

criados na Idade Média e no Renascimento, não foram assimilados pela língua latina, e o significado de muitos

deles, para o leitor contemporâneo, pode apenas ser intuído: tentoriauit [armou uma tenda], sinistrauit [provocou

dano], dextrauit [prestou juramento], aurizauit [escutou às escondidas], posteriorauit [postergou], inimicatus est

[está mal-intencionado], ingrossatus fuit [foi aumentado], primogeniauit [agiu como um primogênito],

superioritatem obtinuit [obteve a posição mais elevada], e praeualescentiam incinerauit [reduziu a onipotência a

cinzas].

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MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016 28

pelos professores. Como estas palavras são novas, produzidas em nosso

século, e não corroboradas mediante uma boa tradição, são desaprovadas

nas escolas, e nos murmúrios de todos. Que as cátedras sagradas dos

teólogos não se corrompam pela torpeza de tais palavras, e nem se firam e

se irritem os ouvidos dos cristãos, e o mais importante, que a dignidade dos

mistérios de Deus não decresça pela indignidade de palavras inauditas e as

mais obscuras; que possam ser traduzidas o quanto possível mais

expressivamente, mais claramente, mais elegantemente, se não uma palavra

por outra, uma por duas, como fez muitas vezes Cícero e recomendou como

deve ser feito, e nós, forçados pela necessidade, como soem os pobres que

trabalham na indigência, devemos e somos compelidos a fazê-lo.53

Depois de todo o exposto, Humphrey reitera a necessidade de cuidar da força da

sentença, da eloquência e do gênero do autor.

São, contudo, duas as coisas que devemos diligentemente observar: uma,

que, enquanto nos dedicamos à elegância das palavras, não percamos e

negligenciemos a força da sentença; a outra, que não afetemos ou aspiremos

a uma eloquência nossa, mas das próprias fontes dos autores que

traduzimos, e que acomodemos a cada gênero dos autores o seu próprio, não

um ornato postiço. Nem deve ser maior o cuidado das palavras que o das

coisas, nem se deve apartar do modelo, como alguns florilégios que

mencionamos; nem devemos apresentar e traduzir todos os escritores da

mesma forma e modo, com o mesmo tipo e gênero de discurso, doutos e

indoutos, profanos e sacros, eloquentes e concisos, os maiores, os medianos,

os menores; mas atribuamos virtudes diferentes e desiguais aos desiguais,

nem meçamos a todos os homens com o mesmo pé e medida.54

53

Hae chimaerae uerborum ex qua tandem Aphrica, aut ex quibus Cimmeriis gentibus petitae sunt? Non enim

Romae nata nec educata sunt tam prodigiosa uocabula, pro quibus totus orbis Christianus late patens, misere et

diu conflictatur, et modo non acerbissime digladiatur: quae tamen Hebraeorum sacra lingua non agnoscit, nec

literae Graecae in Bibliis. Si uel aduersariorum importunitas, uel grauior causa eo necessitates nos detrudat,

utamur Graecorum uerbis, quoniam in fingendis ac faciendis uocibus, sint reliquis suo quodam priuilegio et

feliciores et audaciores, pro Transubstantiatione υ α, pro Transelementatione α , pro

aduerbiis, substituamus, α uel et et υ β et : aut certe Lationiora,

mutatio elementorum aut mutatio substantiae, reuera reapse, figurate symbolice, aut si quae sint alia eiusdem

generis. Exulent uero haec ex ditione Romanae linguae, ex Latinis finibus eiiciantur, redeant ad inferos unde

profecta sunt, in coetu hominum eruditorum, et bonis literis excultorum posthac non audiantur. Genuit Ate

Homerica rerum humanarum, et tranquillitatis publicae hostis, expellant Litae omnis charitatis, concordiaeque

illices. Non de re hic disputo: uerba haec Sarmatica et Gottica, typis αβ υ composita, et υ

α υ praelo impressa, ac malo quodam genio autore Typografo et correctore edita, e liberalibus

Christianorum officinis ac Gymanisiis, quae magno piorum cum dolore tum malo tot annos Ecclesiae pacem

turbarunt, prorsus profliganda censeo: cum nec Deus in Veteri Testamento usus fuerit, nec Christus in Nouo

cuderit, nec Cicero unquam Romanaque rostra audierint. Praeterea illa nunc demum excogitata, in hac classe

barbarorum repono, Tentoriauit, sinistrauit, dextrauit, aurizauit, posteriorauit, inimicatus est, ingrossatus fuit,

primogeniauit, superioritatem obtinuit, praeualescentiamque incinerauit: quae nonnulli, quorum aures et oculi

Ciceronianis libris assueti sunt, mirabuntur potius quam intelligent: at sic a Lexicographis redduntur, et a

multis transferuntur Themata Hebraica, et a professoribus docendi causa, ut aiunt, adhibentur. Quae uoces cum

nouae sint, nostro seculo repertae, et nulla consuetudine bona confirmatae e scholis explodendae sunt, omnium

sibilis: ne turpitudine talium uerborum sacrae Theologorum cathedrae inquinentur, auresque Christianorum

radantur et exasperentur, et quod praecipuum est, ne dignitas mysteriorum Dei, indignitate uerborum

inauditorum et obscurissimorum imminuatur: maxime cum significantius, clarius, elegantius, reddi queant, si

non uno uerbo, at duobus, quod saepe fecit M. Tullius et faciendum praecepit, et nos coacti necessitate, ut

pauperes solent qui laborant inopia, facere debemus et compellimur. (68-71) 54

Duo tamen sunt nobis diligenter tenenda: unum ne dum uerborum studemus elegantiae, sententiae uim

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Interpretatio Linguarum, o mais completo tratado renascentista sobre tradução

29 MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016

[...]

Omito muitas coisas obscuras e ambíguas, que ofuscam a sentença, e

destroem aquela elegância, de que falo. Não abordo todas as coisas; bastante

mostrei do que estabeleci e propus para impedir de traduzir barbarismos, e

levar a elegância e a pureza; e esta não a bel prazer, mas a que nasce da

própria letra e do autor, não a que é produzida por nós em oposição ao

pensamento e ao plano do autor. Tem, pois, cada um o seu gênio, cada um a

sua língua, mediante a qual Deus concedeu falar.55

1.4. Aptitudo: aptidão

– é adquirida dos assuntos, dos gêneros de estilos, da variedade de autores, das línguas –

O modo realmente apto e congruente de traduzir, em todos os gêneros, tem

as maiores vantagens. O essencial, pois, desta arte é ser conveniente, e torpe

é o que é inconveniente; e quem faz o que não convém, o que é indigno de

uma pessoa, é inepto e grosseiro. Pois deve-se ter consideração pela

dignidade das coisas e das pessoas. Não nos apresentemos torpemente neste

espetáculo, e, como maus atores, representemos de forma inepta nossa

história.56

É necessário adequar temas, estilos, gêneros, caráteres, escritores, etc.

Nem os temas são, pois, sempre os mesmos, nem o movimento do discurso

é sempre similar. [...] Os temas sublimes devem, pois, ser tratados de forma

tal a que não sejam expostos de modo exagerado, os ordinários, de um modo

não excessivo, os frívolos, de um modo não lacônico e seco. Mas aqueles

três estilos dos retóricos, o grande, o moderado e o humilde, devem ser

postos e expostos cada qual em seu lugar. Nem convém, pois, qualquer

sapato a todos os pés, nem qualquer roupa a Hércules; do mesmo modo nem

qualquer forma de discurso a todos os temas, mas devem ser expressas as

coisas sérias dignamente, as moderadas temperadamente, as ínfimas num

certo estilo humilde e simples. Depois, deve ser traçada a natureza dos

personagens, e é grande a diferença entre os escritores. Os poetas requerem

um tipo de discurso, os oradores outro, e os historiadores57

outro; e, entre

amittamus et negligamus: alterum, ut eam elegantiam non affectemus, aut a nobis petamus, sed ex ipsis autorum

fontibus, quos interpretamur, utque cuique autorum generi proprium suum non ascititium ornatum

accommodemus. Nec enim uerborum maior, quam rerum cura habenda est, nec ut accersamus aliquot flosculos,

discedendum est ab exemplo: nec omnes scriptores, doctos indoctos, prophanos sacros, copiosos breues,

summos, medios, infimos, eadem forma et modo, eadem specie ac genere orationis exhibere debemus et

conuertere: sed dissimiles uirtutes ac dispares tribuamus disparibus, nec uno omnes homines pede, ac mensura

metiamur. (71-72) 55

Praetereo multa obscura, et ambigua, quae offuscant sententiam, et hanc, qua de loquor, tollunt ellegantiam.

Non prosequor omnia: satis docui quod institui et proposui, ad interpretandum officere barbariem, conducere

elegantiam et puritatem: eamque non quamlibet, sed quae ex litera ipsa et autore nascitur, non quae a nobis

praeter autoris mentem et institutum adfertur. Suus est enim cuique genius, et sua singulis lingua, qua loqui

dedit Deus. (80) 56

Aptum uero et congruens interpretandi genus, in omnes partes, maximas commoditates habet. Caput enim

artis est, decere, et turpe est quod indecorum est: et qui facit quod dedecet, quod rebus, quod personis indignum

est, ineptus est, et inconcinuus. Nam et rerum et personarum pro diginitate ratio est habenda: ni turpiter nos

dare uelimus in hac scena, et ut mali actores, inepte nostram agere fabulam. (81) 57

Esta tríplice distinção de estilos entre os escritores vem desde a Antigüidade. Historici se referia não apenas

aos „historiadores‟, stricto sensu, mas a qualquer escritor que tratava seu tema de uma forma instrutiva,

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MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016 30

estes mesmos, um mais elevado que outro, mais copioso, mais pleno; outro

mais polido, mais rebuscado, mais suntuoso; outro mais austero, mais

rasteiro, mais árido. Mas nem sempre cada um corresponde ao seu, nem

significa do mesmo modo em todas as passagens.58

Alguns exemplos:

Virgílio apresenta um estilo chão nas Bucólicas, e canta os bosques e os

humildes tamarindos59

; nas Geórgicas é um pouco mais cultivado e florido.

Já na Eneida [I, 1-5],

Ille is qui quondam gracili modulatus auena,

Carmen, et egressus siluis uicina coegit,

Vt quamuis auido parerent arua colono,

Gratum opus Agricolis: at nunc horrentia Martis,

Arma uirumque canit60

;

fazendo, na verdade, ecoar o bélico da guerra. No modo como Teócrito fez

nas Églogas, Hesíodo em Os trabalhos e os dias, e Homero na Ilíada,

Virgílio seguiu aos três naqueles livros. E assim como entre os gregos,

Platão ζαπκαζηώηαηνο [maravilhosamente], Aristóteles κεζνδηθώηαηνο

[metodicamente] ao ensinar, θξππηηθόο [obscuramente] ao argumentar,

Isócrates κνπζηθώηαηνο [à maneira das musas], também entre os latinos

cada um excede e se sobressai em seu estilo, o que é necessário que o

tradutor não ignore a fim de atribuir a cada qual o seu: a Píndaro δεκλόηεηα

desapaixonada, caracterizada pelo desejo de informar. De maneira que a este grupo pertenciam os filósofos e os

tratadistas de qualquer assunto. Quanto aos oratores e poetae, a linha que os separava era determinada pela

quantidade e pelo tipo de ornamentação empregados; era mais da ordem da técnica que da substância. 58

N , […] b

tractandae sunt ut non tumide, mediocres ut non nimie, tenues ut non exiliter ieiuneque dicantur. Sed tria illa

genera Rhetorum, Grande, modicum, humile, suo quodque loco ponendum et exponendum est. Nec enim omni

pedi quiuis calceus conuenit, nec Herculi quaeuis uestis: sic nec omni rei quaelibet orationis idea, sed grauia

ample, moderata temperate, infima humili et attenuato quodam stylo sunt enuncianda. Deinde personarum ratio

ducenda est, et in scriptoribus magna est dissimilitudo. Aliam enim orationis speciem, Poetae, aliam oratores,

aliam Historici desiderant: et inter hosce ipsos alius alio grandior, copiosior plenior: alius nitidor, comptior,

lautior: alius horridior, abiectior, aridior. Imo nec unus semper sibi constat, nec eodem modo in omnibus locis

dicit. (81-82) 59

Bucolicae, IV, 2: Non omnis arbusta iuvant humilesque myricae [Não a todos agradam os bosques e os

humildes tamarindos]. 60

Humphrey trouxe aqui os primeiros versos da Aeneis [I, 1-5] trocando a primeira pessoa do singular do

original pela terceira:

Ille ego qui quondam gracili modulatus auena

Carmen, et, egressus siluis, uicina coegi

Vt quamuis auido parerent arua colono,

Gratum opus agricolis: at nunc horrentia Martis

Arma virumque cano [...]

Eu, que entoava na delgada avena

Rudes canções, e egresso das florestas,

Fiz que as vizinhas lavras contentassem

A avidez do colono, empresa grata

Aos aldeãos; de Marte ora as horriveis

Armas canto, e o varão que [...]

(trad. de Odorico Mendes)

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31 MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016

[a magnificência], δεηλόηεηα [o talento oratório] e a força de Demóstenes, a

sutileza de Lísias, a agudeza de Hipérides, a suavidade de Ésquines. Se ele

trasladar Heródoto, que lhe permita continuar sem qualquer aspereza, como

o fluir de um rio tranquilo; se Tucídides, que seja mostrado mais incitado e,

sobre os feitos bélicos, que conclame, de certo modo, às armas. Assim, pois,

retratou-os o Orator 61

, de Cícero, dedicado a Bruto, e não são, pois, todos

semelhantes, ainda que tratem de coisas semelhantes, mas dessemelhantes

no mesmo gênero, como, entre os historiadores latinos, Tito Lívio é

chamado com o nome peculiar de lácteo, proveniente de um certo estilo de

discurso de uso corrente, rico. Salústio, por outro lado, sobressai-se por sua

expressão e brevidade; pelo candor do discurso e pela propriedade de outras

coisas, Júlio César sobrepuja. Por conseguinte, os que não conservam esta

conveniência, fazem-no ineptamente, como os que crêem que nada se

diferencia nas comédias, se fala Davo ou um soberano, Taís ou Fedria, o

jovem Panfilo ou o pai e velho Simo62

. 63

É tarefa do tradutor preservar a diversidade:

De um modo representam os comediantes seus papéis no teatro, de outro, os

atores de tragédia. Se tratarem de atores em cena, o que convenha, o que não

convenha a cada personagem; se Homero não descreve do mesmo modo

seus heróis, mas expõe o deforme Tersites com cores dignas, faz Aquiles

πνδάξθεο [de pés ágeis] e πόδαο ὠθύο [rápido de pés], Heitor θνξπζαίνινο

[guerreiro impetuoso], Agamenon como pastor de povos, e como que um

belíssimo touro que se eleva a chefe de uma manada, e que excede aos

demais em grandeza e estatura64

. Acaso não julgaremos ser tarefa do

61

Orator, 39: Alter enim sine ullis salebris quasi sedatus amnis fluit, alter incitatior fertur et de bellicis rebus

canit etiam quodam modo bellicum [Um, pois, sem qualquer aspereza, flui quase como um rio tranqüilo, o outro

é mostrado mais incitado e, sobre os feitos bélicos, conclama, de certo modo, às armas]. 62

Davo é nome de escravo; Taís ou Taide é o nome de uma célebre meretriz de Atenas, e Fedria é nome de

personagem cômico; Panfilo é nome de personagem cômico, e Simo é o nome com que designavam o ator que

fazia de velho nas comédias. 63

Humi repit Virgilius in Bucolicis, et arbusta canit, humilesque myricas: in Georgicis cultior est et floridior

aliquanto. Iam in Aeneide,

Ille is qui quondam gracili modulatus auena,

Carmen, et egressus siluis uicina coegit,

Vt quamuis auido parerent arua colono,

Gratum opus Agricolis: at nunc horrentia Martis,

Arma uirumque canit:

De bello nimirum resonans bellicum. Vt Theocritus fecit in Aeglogis, Hesiodus in Operibus et Diebus, et

Homerus in Iliade, quos Virgilius tribus hisce libris est sequutus. αυ α α ,

α , υ , υ α sic apud Latinos

suo quisque in genere excellit et eminet: quod interpretem ignorare non oportet, ut suum cuique attribuat,

α, h α et uim, Lysiae subtilitatem, acumen Hyperidi, lenitatem Aeschini. Si

Herodotum uertat, illum sinat sine ullis salebris quasi sedatum amnem fluere, si Thucydidem, incitatior feratur

hic, et de rebus bellicis canat quodammodo bellicum. Sic enim illos depinxit Ciceronis ad Brutum Orator, nec

enim sunt omnes similes, etiamsi tractent simila, sed in eodem genere dissimiles, ut apud Latinos Historicos,

Liuius peculiari nomine lacteus dicitur, tracto quodam orationis genere usus profluente, ubere. Sallustius sua

contra dictione praestat et breuitate: candore sermonis et proprietate caeteris Iulius Caesar antecellit. Proinde

hoc decorum qui non tenent, inepte faciunt, ueluti qui in Comoediis nihil interesse putant, Dauus loquatur an

herus, Thais an Phaedria, Panphilus iuuenis, an Simo pater et senex. (82-84) 64

Ilíada, II, 480-483:

Bem como o touro de grande manada, que a todos os outros

bois sobre-excede, e após si vai levando, reunidas, as vacas:

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MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016 32

tradutor conservar esta diversidade, a fim de que se a traslade a qualquer

parte, de que represente bem e convenientemente quem criou o que deve ser

traduzido, para que não seja vaiado no palco sob a zombaria de todos, dando

a todos o que pode ser objeto de escárnio? Porque a mim bastante parece

que estes gostariam de como que todos os autores compreendessem o

mesmo do mesmo modo, expusessem os sentimentos das almas com as

mesmas palavras e a mesma língua, bem como desejariam que todos os mais

dissímiles falassem de consímile modo e expressão, os escritores de

tragédias, os comediógrafos, os poetas, os historiadores, os sacros, os

profanos; e que todos forçassem uma certa imitação inepta e às avessas de

Cícero, de forma a que Platão, Aristóteles, Moisés, Cristo, Paulo, Homero,

Aristófanes não entoassem outra língua que a ciceroniana; algo que os

próprios não quiseram, nem nunca puderam, a não ser que queiramos

misturar tudo indiferentemente, perverter o sagrado e o profano, o divino e o

humano; a não ser que façamos da Igreja um senado, de Cristo um acólito,

dos anciãos e epíscopos pontífices ou flâmines, ou senadores. Não me refiro

à expressão, quando se dá, quando não é forçada e afetada, quando

representa plenamente o espírito do escritor, mas ao gênero de estilo,

quando alguns são grandiosos, outros simples, outros intermediários, alguns

pagãos, outros cristãos, alguns relaxados e livres, outros rítmicos e

prosaicos, alguns concisos, econômicos, débeis, outros copiosos, amplos, e

acompanham o modo de dizer claro e fluente; considero algo ineptíssimo

que todos eles concluam com os mesmos períodos, se expressem com as

mesmas palavras sem diferença e misturadamente.65

Não ignoro que todos possam extrair do mesmo Cícero tesouros de

eloquência, ou que fales de modo historiográfico, ou de modo filosófico, ou

de modo oratório, ou de modo teológico, ou ainda de modo poético; há pois

uma fonte copiosíssima, de onde haure o tradutor, esteja ele empenhado no

gênero estilístico elevado, ou no mediano, ou ainda no humilde. Cícero sabe

dizer de forma moderada e comedida, passar a um modo inferior e débil,

conformar-se ao jeito de ser dos meninos, e também, quando quer, elevar-se

a um gênero de discurso nobre e sublime. Quem, pois, mais distinto que ele

tal aparência emprestou nesse dia Zeus grande a Agamêmnone

(trad. de Carlos Alberto Nunes) 65

Et aliter Comoedi suas partes in Theatro agunt, aliter Tragoedi. Si in scena Histriones obseruent, quid

quamque personam deceat, quid dedeceat: si Homerus heroas suos non eodem modo describit, sed Thersitem

deformem dignis exprimit coloribus, Achillem et α facit, Hectorem υ α ,

Agamemnonem ut pastorem populorum, et uelut pulcherrimum taurum in grege caput efferentem, et magnitudine

ac proceritate antestantem reliquis: nonne interpretis officium esse existimabimus, hanc diuersitatem tenere, ut

quocunque se uertat, apte appositeque fingat quem suscepit interpretandum, ne in hoc proscenio cunctorum

irrisione exibiletur, et deridendum se propinet omnibus? Quod sane hi mihi uidentur uelle, qui perinde quasi

omnes autores idem saperent, eodem ore et lingua sensa animorum efferrent, ita omnes dissimillimos consimili

modo et oratione loqui uolunt, Tragicos, Comicos, Poetas, Historicos, Sacros, Profanos: omnesque ad ineptam

quandum et praeposteram Ciceronis imitationem astrigunt, ut Plato, Aristoteles, Moses, Christus, Paulus,

Homerus, Aristophanes, non aliam sonent linguam, quam Ciceronianam: quod neque uoluerunt ipsi, nec

unquam poterunt, nisi omnia susque deque miscere, sacra prophana, diuina et humana peruertere uelimus, nisi

ex Ecclesia senatum, ex Christo Camillum, ex Senioribus et Episcopis Pontifices aut Flamines, aut Patres

Conscriptos faciamus. De phrasi non loquor, quum se offert, quum non est coacta et affectata, quum plene

mentem scriptoris repraesentat: sed de genere styli, quum alii grandes sint, alii tenues, alii intermedii alii

Ethnici, aii Christiani, alii soluti et liberi, alii numerosi et pedestres, alii concisi contracti minuti, alii copiosi,

fusi, et liquidum ac profluens dicendi genus sequantur, quos omnes iisdem periodis claudere, iisdem uerbis

exprimere citra discrimen et delectum, ineptissimum iudico. (84-86)

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Interpretatio Linguarum, o mais completo tratado renascentista sobre tradução

33 MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016

em todos os gêneros? Quem mais sublime no estilo superior, mais simples

no inferior, mais comedido no mediano? Pois que, ensinou tudo na Retórica,

e naquilo que ensinou, qual excelente mestre excedeu. Por isso, diz-se haver

contendido com Róscio66

, qual dos dois venceria pela abundância e

variedade; aquele pela gesticulação e declamação variada, este pela

diversidade e corrente de palavras. E nunca neguei que o mesmo autor

latino, esmerado, limado pudesse ser acomodado a todos os gregos; por

outro lado, apenas relutantemente eu permitiria a um tradutor rematar o

discurso de outros não polidos a serem lidos, exceto deste. No entanto, que a

verdade das coisas e a propriedade dos autores ocupem o primeiro lugar,

para que não pareçam outras do que o são por causa de uma versão nossa

diferente e díspar.67

E sempre considerei que Joaquim Periônio, ao traduzir Aristóteles,

trabalhou com empenho a belíssima obra, o qual, mediante esplêndida

expressão, libertou de vocábulos bárbaros os livros de dialética, física,

moral e outros. Mas observei, pois, em Aristóteles, aquilo que já demonstrei

e provei anteriormente: que difere a expressão latina da vernácula e grega

em quase todo o gênero, que são omitidos os estorvos dos períodos, que de

uma circunlocução mais breve faz-se uma conversação longa e estendida,

ora no início das sentenças, ora em outro lugar. O que é próprio de Cícero

não deve tornar-se comum a todos; que os tradutores repudiem isto ao

máximo em sua língua sempre que puderem. Tão sutil quanto arguto é

Aristóteles, preferindo palavras próprias, não metafóricas, não dilatando os

limites do discurso, restrito a uma certa concisão severa, aspirando a uma

brevidade, não àquele ὄγθνο, ou amplitude. Porque quem subtrai esta

propriedade e as argúcias de Aristóteles, e apresenta novos períodos ou

metáforas a partir de si, não me parece um tradutor veraz de Aristóteles, mas

quase um novo autor, o que certamente diz respeito a uma maneira de falar.

Hoje, pois, não atentam os doutos para aquela corrente áurea do discurso em

Aristóteles, para aquela admirável abundância, que, em época anterior,

Cícero viu e elogiou nele; tais qualidades convêm antes ao preceptor Platão

que ao discípulo. Por isso, para que se conserve aquele ηό πξέπνλ [aspecto],

uma vez empregada esta atenção diligente e distinção, deve ser reproduzido

na traslação, com discernimento, o que a cada um é próprio seu, e devem ser

tomadas de Cícero não aquelas coisas que cheiram a Cícero, mas que

possam da melhor maneira e a mais adequada saber a idiomatismos,

natureza, engenho e expressão em seu sabor nativo. 68

66

Róscio, famoso comediante de Roma. 67

Non me latet omnes ex Cicerone uno thesauros eloquentiae depromi posse, siue historice, siue filosofice, siue

oratorie, siue theologice, siue etiam poetice loquaris: est enim fons uberrimus, unde hauriat interpres, seu in

summo genere occupatus sit, seu in medio, seu etiam humili: nouit ille modice et temperate dicere, ad depressum

ac tenuem modum descendere, et ad puerorum captum se demittere, et etiam ubi uult, ad altum et exaggeratum

genus orationem attollere. Nam quis illo in omni genere praestantior? quis in illo summo charactere sublimior,

gracili tenuior, in medio temperatior? Quoniam in Rhetoricis omnia docuit, et quae docuit uelut optimus

magister praestitit. Itaque cum Roscio contendisse dicitur, uter alterum copia uarietateque superaret: ille gestu

ac pronunciatione uaria, iste uerborum diuersitate et flumine. Neque unquam inficias iui, posse omnibus Graecis

eundem autorem Latinum, tersum, limatum accomodari: imo uix alios impolitos praeter hunc interpreti ad

exaedificandam orationem suam admitterem sequendos. Tamen ueritati rerum, proprietati autorum primus locus

sit, ut non alii quam sunt, nostra uersione differente et dispare uideantur. (86-87) 68

Et Ioach. Perionium pulcherrimam operam in Aristotele conuertendo nauasse semper existimaui, qui

Dialectica, Physica, Moralia, aliosque libros a barbaris uocabulis, splendida dictione uindicauit. Sed enim illud

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Mauri Furlan

MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016 34

O respeito ao gênio de cada língua, o da qual traduzimos e o para a qual traduzimos.

De tudo isto, dois preceitos devem ser observados: primeiramente que, o

quanto for possível, conservemos o idiomatismo da língua da qual

traduzimos. Assim, com efeito, os estudiosos das línguas obtêm mais

rapidamente conhecimento sobre aquela que lhes interessa. Há, pois, grande

afinidade e relação entre idiomatismos, como já se viu em exemplos

apresentados. Portanto, menor a possibilidade de nos equivocarmos de

caminho se trilharmos aquele que o autor nos mostra e, sobretudo, nos abre.

Do contrário, confiados em nosso engenho, podemos muito facilmente, e

costumamos muito frequentemente, enganar-nos, iludir-nos, delirar.69

Em segundo lugar, que ajamos cautelosamente, e não sirvamos àquela

língua a ponto de termos pouquíssima obrigação com a nossa, que

utilizamos, mas que lhe seja dada toda a atenção, a fim de que utilizemos as

palavras adequadas ao uso da língua na qual traduzimos. Do contrário,

trasladarás muitas coisas de modo ridículo, inadequado, obscuro,

monstruoso, visto que há como que uma certa proximidade e semelhança,

bem como uma insigne e clara desarmonia entre todas as línguas.70

[...]

Para este ponto se dirige todo este discurso, para que se atinja a aptidão, por

ser necessário, de conhecer perfeitamente a similitude e a dissimilitude das

línguas; para que, uma vez conhecidas todas as palavras, as simples e as

compostas, com suas propriedades e suas diferenças, aprendamos exata e

adequadamente a traduzir as coisas, e não comecemos, como pintores

inexperientes humano capiti ceruicem iungere equinam71

[a juntar a uma

cabeça humana um pescoço equino], e a unir coisas discordantes que não

in Aristotele obseruaui, quod et ante demonstraui et probaui, dictionem Latinam a uernacula et Graeca toto

propemodum genere dissidere, periodorum septa transiliri, ex breuiore ambitu, longam et circumductam

conuersionem effici, tum in sententiarum initiis, tum alibi: quod quum sit Ciceronis proprium, cum omnibus fieri

commune non debet: maxime quum ipsi hoc quantum possunt repudient in sua lingua: et subtilis est Aristoteles

et argutus, propriis uerbis non translatitiis gaudens, non dilatans orationis pomoeria, sed quibusdam arctis

circumscriptus angustiis, breuitatem, non illum , seu amplitudinem affectans. Quare hanc proprietatem et

argutias qui Aristoteli detrahit, et nouas circumductiones aut metaphoras accersit de suo, no mihi germanus

explicator Aristotelis, sed nouus fere autor uidetur, quod ad eloquutionem quidem attinet. Non enim hodie

aureum illud flumen orationis, animaduertunt docti in Aristotele, non illam admirabilem copiam, quam in eo,

superiori aetate, uidit et praedicauit Cicero: illae uirtutes praeceptori potius Platoni, quam discipulo congruunt. Itaque quo illud conseruetur, hac diligenti animaduersione et distinctione adhibita, cum iudicio suum

est cuique proprium in translatione reddendum, et ex Cicerone sumenda sunt non quae Ciceronem redoleant,

sed autoris idiomata naturam, ingenium, dictionemque resipere natiuo suo sapore optime possint et aptissime.

(87-89) 69

In his omnibus, duo praecepta tenenda sunt: primum ut quantum fieri potest, eius linguae idiotismum

retineamus, ex qua transferimus. Sic etenim citius pertingent linguarum studiosi ad eam quam cupiunt,

cognitionem. Est enim magna idiomatum affinitas et cognatio, ut iam adductis exemplis declaratum est. tum

minus errabimus a uia, cum eandem ineamus, quam autor et monstrat, et prior intendit: alioqui nostro freti

ingenio, labi, falli, hallucinari et possumus facillime, et solemus saepissime. (99) 70

Alterum est, ut caute agamus, ne ita seruiamus illi linguae, ut nostrae qua utimur parum pensi habeamus, sed

danda omnino opera est, ut uerbis utamur aptis ad eius linguae consuetudinem, in quam conuertimus. Alio qui

multa uerteris ridicule, inepte, obscure, monstrose, quippe cum sit, omnium linguarum ut quaedam uicinitas et

similitudo, sic insigne et manifestum dissidium. (99-100) 71

Horácio, Ars poética, 1-2: Humano capiti ceruicem pictor equinam / iungere si uelit [Quisesse um pintor

juntar a uma cabeça humana um pescoço equino].

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Interpretatio Linguarum, o mais completo tratado renascentista sobre tradução

35 MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016

permitem qualquer associação. Nem é, pois, único e mesmo o sistema de

todas as línguas, ou seja, não há uma paridade única com nenhuma, nem

entre as palavras isoladas, nem na junção das palavras.72

A clareza, companheira de todos.

Apresento agora a clareza (perspicuitas) seguidora de todas estas virtudes,

mais propícia no conhecimento, necessária no uso, para que seja levada,

como se um tipo de sangue, a todas as partes do discurso. Que é, pois, um

discurso se for de tal modo obscuro que não possa ser entendido, de tal

modo tenebroso que não possa ser apreendido? Aristóteles convoca a

ζαθήλεηα [clareza] e afirma sua necessidade e utilidade quando diz que não

deve ser proferido qualquer discurso, nem é cumprido seu dever, se não

significar clara e perspicuamente. Será, pois, o discurso do tradutor dilúcido

e aberto, se trouxer de novo ao espírito e guardar na memória aquelas coisas

por mim referidas sobre a propriedade, a pureza e a aptidão. São, pois, a

propriedade e a clareza companheiras inseparáveis; e nada mais dilúcido que

a pureza, ao contrário, nada mais obscuro que a barbárie. E claro é o que

quer que for apto, e é mais emaranhado, atrasa o movimento do leitor e

estorva a inteligência o que não é traduzido de modo conveniente e

conforme. Cícero, em De partitione oratoria, sobre a ilustre e dilúcida luz

do discurso, e Aristóteles, πεξὶ θαὶ πξὸ ηῶλ ὀκκάησλ πνηεῖλ73

[fazer

próximo e diante dos olhos], devem ser consultados a fim de entendermos

os preceitos da clareza, se, ao traduzir, tivermos querido trazer luz, e não

espalhar trevas, o que muitas vezes acontece quando o autor é não raramente

mais claro que o tradutor.74

Vícios a serem evitados: hermetismo, hipérbato, sínquese.

O tradutor deve se afastar dos vícios, se não quiser falar de modo bárbaro e

ambíguo e nem as sentenças sejam mutiladas, nem as palavras obscuras,

nem a ordem perturbada ou destroçada, nem o discurso transborde ou

vagueie, nem claudique no sentido. Se eles forem também espinhos ou

pedras no autor, se herméticos, uma expressão de certa forma mais arrastada

72

Huc tendit omnis oratio, ut ad hanc aptitudinem deueniatur, per opus esse, linguarum callere similitudinem et

dissimilitudinem: ut cognitis omnium uerborum, simplicium et continuatorum proprietatibus ac differentiis, apte

discamus et commode res interpretari, nec cum imperitis Pictoribus, Humano capiti ceruicem iungere equinam,

incipiamus, et absurda connectere, quae nullam societatem patiuntur. Nec enim una est et eadem ratio omnium

linguarum, imo unius est non una parilitas, nec in uerbis singulis, nec in uerborum coniunctione. (112) 73

Em Retórica, 1411b : ηῷ πξὸ ὀκκάησλ πνηεῖλ. 74

Pedissequam harum uirtutum omnium nunc addo perspicuitatem, cognitione facillimam, usu necessariam: ut

quae per omnes partes orationis, tanquam sanguis quidam, sit diffusa. Quid enim est oratio si ita sit obscurata,

ut non intelligi, ita tenebricosa, ut comprehendi nequeat? Aristotel. αφή α uocat, eiusque declarat

necessitatem et utilitatem, cum ait ne orationem qudem dici debere neque officium suum facere, si non clare et

perspicue significet. Erit autem sermo interpretis dilucidus et apertus, si quae de proprietate, puritate et

aptitudine sunt a me recitata, animo repetere uelit et memoria tenere. Sunt enim proprietas et perspicuitas

indiuiduae comites:et puritate nihil dilucidius, e contrario barbarie nihil obscurius. Et clarum est, quicquid est

aptum, et impeditius est, ac remoratur cursum legentis, impeditque intelligentiam, quod non apposite et

accommodate transfertur. Cic. de Illustri et Dilucido orationis lumine in Partitionib. Oratoriis, et Aristot.

α , in consilium adhibendi sunt: ut perspicuitatis praecepta intelligamus: si lucem

affere, non tenebras offundere, uoluerimus interpretando: quod saepe fit cum autor non raro sit explicatore

lucidior. (114-115)

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MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016 36

e mais longa, se uma elipse ou uma reticência, se uma sínquese75

ou um

hipérbato, se um anantapódoto76

, fazem parte e são tarefas do tradutor

competente aplainar, encurtar, ampliar, completar, explicar, corrigir.77

2. Officia interpretis (Tarefas do tradutor)

A segunda parte do primeiro livro do tratado de Humphrey, que é também a segunda

parte que aborda a uia media, trata das tarefas do tradutor: natureza, instrução, fé & religião,

diligência.

Resta que eu trate, com a brevidade que possa, da formação do próprio

tradutor. Requer-se, pois, dele, principalmente quatro coisas, com as quais

deve se preparar e se munir: uma natureza idônea, uma educação refinada,

uma fé religiosa, uma dedicação exclusiva. Pois de modo algum incluo nesta

classe de pessoas o homem indócil e inepto, ignorante e inexperiente, de

pouca fé e irreligioso, que boceja e mesmo dormita. Os recursos, pois, de

tradução, que supra mencionei, poderiam ser apresentados e preservados por

um homem deste tipo? O tradutor provido e dotado deve ser considerado

por sua boa condição e pleno mérito, se sua natureza sabe criar, sua arte

nutre e educa, sua fé realiza e fortalece, impele e anima a fazer um trabalho

com aplicação. E se foi feito e gerado pela natureza para esta tarefa, mas for

indouto, nada produzirá; e se, embora douto, não realizar pela boa fé aquilo

que deve, e se também for negligente e de parca consideração, parecerá

pouco digno ante tamanha dignidade do tradutor. São, por isso, essas coisas

praticamente imprescindíveis. Outras ainda são auxílios e reforços, mas

porque, apesar de serem muito úteis, não são fundamentais, omiti-las-ei

neste livro e momento. Em outro lugar, haverá um espaço maior para

desenvolvê-las.78

75

Inversão da ordem natural das palavras, que obscurece a frase. 76

Tipo de anacoluto, no qual se dá ausência de apódose, isto é, quando falta a segunda parte de um período

gramatical, de cujo sentido é complemento; uma oração incompleta. 77

Vitia sunt declinanda interpreti, ne barbare loquat, ne ambigue: ne discerptae sint sententiae, ne uerba

obscura, ne ordo perturbatior, aut hiulcus, ne fluat aut uagetur oratio, aut ne in sensu claudicet. Si quae sint

etiam spinae aut salebrae in autore, si Hermes, tractior scilicet conuersio ac longior, si Eclipsis aut reticentia, si

Synchysis aut hyperbata, si anandapodota: complanare, contrahere, dilatare, supplere, explanare, corrigere,

probi interpretis partes sunt et munia. Sed de interpretatione finem dicendi faciam. (115) 78

RELIQVVM est, ut de formando ipso interprete quanta possum breuitate agam. Quatuor itaque in eo

requiruntur potissimum, quibus praeparari et praemuniri debet. Natura idonea, doctrina elegans, religiosa fides,

singularis diligentia. Nam hominem indocilem et ineptum, ignarum rerum ac imperitum, parum fidum et

irreligiosum, oscitantem denique et dormitantem in hoc numero neutiquam colloco. Quae enim supra posui

interpretationis ornamenta, ab eiusmodi homine adhiberi et praestari qui poterunt? His ornatus et auctus

interpres iure bono et suo sane merito habendus est: si Natura fingat, doctrina alat et educet, fides perficiat et

corroboret, moueat et excitet ad opus faciendum diligentia. Et si a natura ad eam rem factus et natus sit, tamen

indoctus, nihil efficiet: sin doctus quoque, nisi bona fide quod debet exequatur, et si negligens quoque sit et

incogitans, minime dignus hac tanta interpretis dignitate uidebitur. Sunt ergo haec pene necessaria. Alia quoque

sunt adiumenta et subsidia interpretis, sed quia utilia sunt tantum, non ita pernecessaria, hoc libro et loco missa

faciam: alibi fusius explicandi de illis locus erit. (115-116)

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37 MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016

2.1. Natura: natureza

– feliz, mediana, inepta –

A disposição natural, pois, por ser a primeira na ordem e no tempo, deve,

assim, ocupar aqui o lugar principal. Os pagãos pensavam ser essa uma certa

força admirável, ou um deus; eu acredito que é o fogo e o sopro do Espírito

Santo para as coisas que devem ser geradas com ardor e realizadas com

valor, introduzido e concedido ao homem, e um certo dom superior de Deus,

estendido a elas por um arrebatamento generoso da alma, que, diz-se, foi

estabelecida, ou antes, instruída, pela natureza ou pelo Espírito Santo.79

Assim como Platão atribui aos vates uma certa loucura e uma fúria, e os

poetas apoderam-se, reivindicam uma certa luz com a qual deve-se recitar a

poesia, também devemos considerar que cada um recebe por graça divina

sua inspiração, ἐλζνπζηαζκόο [inspiração], e estando ela em atuação, ele se

inflama e é por ela tomado; não a mesma para todos os homens, mas de

acordo com sua origem, têm naturezas distintas, para que não todos possam

tudo, mas cada um uma determinada coisa, consoante foi chamado pelo

Deus justo dispensador e administrador dos bens. Ninguém, na verdade,

assuma uma tradução, se não tiver sido para isso provido com os dons da

natureza. “Os engenhos forçados desempenham-se mal” [De tranquillitate

animi, VI, 4], escreveu Sêneca. Assim, pois, deve-se considerar a habilidade

e o engenho, do mesmo modo que para outras coisas, também para esta

obter o máximo vigor; e, de certo, ninguém, a não ser um desprovido da luz

da natureza, negará o lustre e o brilho de todas as coisas mais belas dali

nascidos. De modo preclaro, Cícero disse [Oratio por Archia, VII]: “Mais

freqüentemente a habilidade sem educação contribuiu para a glória e a

virtude do que a educação sem habilidade”.80

Pode-se, pois, perceber muitos, tão hábeis e aptos por graça da boa mãe

natureza, que parecem não natos mas feitos por Deus. Por outro lado,

outros, de tal modo infelizes, deselegantes e inapropriados, como se, contra

Minerva81

e com as Graças iradas e as Musas pouco favoráveis, tivessem

nascido apenas por direito. Assim são os ἀπάιαηζηξνη [desvalidos] e os

totalmente incapazes, aos quais se dirigem aquelas palavras de Horácio82

:

nada fazem ou dizem estando contrária Minerva, isto é, na interpretação de

79

Natura igitur, ut prima est ordine et tempore, ita hic principem locum obtinere debet. Hanc Ethnici

admirabilem quandam uim esse putauerunt, siue Deum: ego Spiritus S. inflammationem atque afflatum ad res

gnauiter suscipiendas, et perficiendas fortiter homini inditum ac tributum esse credo, et Dei quoddam donum

eximium, quo fertur generoso animi impetu ad quae est a natura institutus, uel a Spiritu S. potius edoctus. (116-

117) 80

Vt Plato Vatibus furorem quemdam et rabiem attribuit, et Poetae sibi numen quoddam quo ad carmen

canendum rapiuntur, uendicant: sic consiteri debemus esse cuique suum diuinitus ἐ υ α ,

agitante incalescit et corripitur: nec eundem uni homini, sed ut orti sunt, dissimiles habent singuli naturas, ut

non omnia possint omnes, sed quaedam quisque, prout est a iusto dispensatore et administratore bonorum Deo

uocatus. Ad hanc interpretationem uero nemo se recipiat, nisi muneribus naturae ad id instructus. Male enim ut

Seneca scripsit, respondent coacta ingenia. Sic enim est existimandum naturam atque ingenium, ut ad caetera,

sic ad hoc uim afferre maximam: et profecto scintillas et igniculos omnium rerum pulcherrimarum hinc natos

nemo nisi naturae lumine uacuus diffitebitur. Praeclare Cicero ut omnia, Saepius ad laudem, inquit, et ad

uirtutem naturam sine doctrina, quam sine natura ualuisse doctrinam. (117-118) 81

Inuita Minerua, isto é, contra a natureza, o gênio, o talento, a aptidão. 82

Ars poética, 385: Tu nihil inuita dices faciesue Minerua [Tu nada farás ou dirás contra a vontade de Minerva].

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MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016 38

Cícero [De officiis, I, 110], “contrário e incompatível com a natureza”. É,

pois, necessário aqui o voto de Minerva para aprovar a lista e a ordem dos

bons tradutores. A estes os gregos chamaram de engenhosos e bem

nascidos, εὐθπεῖο [talentosos], nos quais infundiram-se as falculdades tanto

da eloqüência quanto de todas as outras coisas, como Isócrates deixou

escrito em Contra os Sofistas. A técnica pode ajudar, mas não dar; limar,

mas não inserir; corrigir e melhorar, mas não dar ou conceder a qualidade

própria da natureza.83

[...]

Na verdade, estas coisas não devem ser tratadas por muitos, pois envolve

toda a questão da natureza, não da técnica, e por isso nenhum preceito pode

ser aqui estabelecido, a não ser o de que a boa qualidade do engenho e da

natureza seja aperfeiçoada mediante uma preservação e um cultivo

diligente; e a formação, que pouco vale para aqueles outros, seja

continuamente estimulada e fortalecida, para que progrida. Contudo, porque

cada um se distingue do outro de uma forma, aplique nisso suas forças e

engenho, o quanto for conveniente. Assim como fazem os histriões, que

representam não as melhores histórias, mas as mais adequadas, escolham

aqueles os livros mais convenientes para os traduzirem.84

Existem, pois, alguns de uma natureza mais grave e recôndita, estes são

levados à tragédia; e outros impetuosos, como Homero ou Tucídides,

preferem cantar a guerra. Em outros, encontra-se a graça e a alegria, e mais

os deleitará o cômico da urbanidade. De outro lado, este lê e traduz com

prazer a história, aquele é atraído mais avidamente para a poética, outro é

impelido mais vivamente para os oradores; todos são seduzidos por uma

certa paixão inata sua e são chamados para onde a alma, a vontade e a

natureza melhor conduz. Embora todos possamos todas estas coisas, tanto o

cantar de modo poético, como o declamar de modo oratório, e o narrar de

modo histórico, contudo, preferimos lançar-nos sobre umas mais que outras,

como se dependesse de nossa vontade e arbítrio a escolha dos autores, e não

da obediência à solicitação, à deliberação, à ordem de outros. Na verdade,

como já disse, o procedimento sobre estas coisas não pode ser prescrito pela

técnica, e nem toca, pois, obviamente, na técnica. Deve-se rogar a Deus para

que não se recuse a conceder este talento, se faltar; se existir, que o

engrandeça; que suavize o engenho plúmbeo, aguce o obtuso, para que seja

permitido aos mais notáveis escritores publicarem os textos ocultos em pó e

deterioração, e darem à luz os emendados, a fim de que possam ser

83

Cernere enim licet multos, ita naturae benignae parentis beneficio habiles et aptos, ut non nati, sed ficti a Deo

esse uideantur. Contra alios adeo infelices, inelegantes et auersos, ut inuita Minerua, et iratis Gratiis, Musisque

parum propitiis genitos fuisse iures. Ita sunt α bh b H ,

Nihil eos facere aut dicere inuita Minerua, id est, Cicerone interpretante, repugnante et aduersante natura. Est

ergo necessarium hic Mineruae suffragium, ut in hoc album ordinemque bonorum interpretum asciscatur. Istos

b φυ , b f ,

caeterarum rerum omnium ingenerantur, ut scriptum reliquit in Orat. contra Sophistas Isocrates. Hanc naturae

bonitatem adiuuare potest Ars, non dare, limare non inserere, corrigere et meliorem facere, non donare aut

tribuere. (118-119) 84

Verum haec pluribus non sunt tractanda, est enim res haec tota naturae non artis, itaque nulla hic comparari

potest praeceptio: nisi ut ingenii ac naturae bonitas cultu diligenti et custodia excolatur: et disciplina, qui illis

aliis parum ualet, se assidue exerceat atque confirmet, ut proficiat. Quoniam autem alius in alio genere praestet,

ad id uires suas ingeniumque conferat, ad quod erit accommodus: ut histriones faciunt, qui fabulas agunt non

optimas sed aptissimas, sic illi libros sibi ad interpretandum deligant accommodatissimos. (123-124)

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Interpretatio Linguarum, o mais completo tratado renascentista sobre tradução

39 MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016

abarcados pela ciência, expostos em discurso latino, e conservados na

memória.85

2.2. Doctrina: instrução

– conhecimento dos assuntos, polimento do discurso –

A seguinte é a formação, guia e aperfeiçoadora da natureza; o que Cícero, o

mais eloquente dos sábios, o mais sábio dos eloquentes, assim ensinou em

Oratio pro Archia poeta [7]: “E também sustento eu que, quando a uma

natureza superior e distinta se tenha unido uma formação metódica e

profunda, então costuma resultar um não-sei-quê luminoso e

extraordinário”.86

[...]

À formação, portanto, se dirige nosso discurso; é necessário, pois, que seja

experiente aquele que deseja ser um tradutor fiel e verdadeiro, o qual

buscamos. E não queremos, pois, um tradutor rude e ignaro, ou um homem

de recados que, ademais de vazio de palavras, do ruído e do alarido, não é

provido de nenhuma ciência. Frequentemente, pois, adentra um caminho

não sempre uniforme e plano, mas coberto com matagais e espinhos, no

qual encontram-se muitos obstáculos, e retardos e dificuldades, os quais o

artífice versado e douto facilmente desembaraça. Aqui, há de se buscar a

força da instrução e da inteligência, caso ocorra um mau encadeamento.

Mas assim como requeremos erudição, também excluímos desta classe e

posição a má educação. Existem, pois, alguns doutos mas não

suficientemente sãos e corretos, porém corrompidos e enviesados, de modo

que teria sido melhor se lhes tivesse cabido ser rudes e desprovidos antes

que como se cheios de dicas para artes inúteis e desnecessárias, ou

impregnados de opiniões perniciosas; dentre os quais sobressaíram os

donatistas, os arianos, Porfírio, Martion, os maniqueístas87

e outras pestes,

85

Sunt enim quidam natura seueriore et recondita, hi ad Tragica feruntur: et classicum alii animosi cum

Homero aut Thucydide malunt canere. In aliis lepos inest et hilaritas, illos magis comica delectabit urbanitas. Rursus hic legit et conuertit historica lubentius, ille ad poetica rapitur auidius, alter ad oratores impellitur

incitatius: omnes sua quadam innata cupiditate trahuntur et uocantur eo quo animus, quo uoluntas et natura

ducit maxime. Quanquam haec possumus omnes omnia, et poetice canere, et oratorie declamare, et historice

narrare, sed tamen ad alia magis quam ad alia deuolare malumus, si sponte nostra arbitrioque eligendi autores

essent, ac non aliorum impulsu uel consilio uel imperio parendum. Verum de istis, uti iam dixi, arte praecipi non

potest: nec enim uidelicet cadit in artem haec tractatio. Rogandus est Deus, ut is commoditatem hanc non

grauetur dare si desit, si adsit, augere: ac ingenium plumbeum emollire, obtusum exacuere, ut praestantissimos

scriptores puluere et situ obductos publicare liceat, et conuersos in lucem emittere, quo scientia comprehendi,

oratione Latina explicati, queant, et memoria custodiri. (124-125) 86

Proxima est Doctrina, naturae dux et perfectrix: quod pro Archia poeta sic docuit Cicero sapientum

eloquentissimus, eloquentium sapientissimus. Idem ego contendo, cum ad naturam eximiam atque inlustrem

accesserit ratio quaedam conformatioque doctrinae, tum illud nescio quid praeclarum ac singulare solere

exsistere. (125) 87

Sectários de doutrinas religiosas consideradas heréticas pela Igreja Católica.

- O donatismo deve seu nome a dois bispos com o mesmo nome, Donato de Casa Nigra, bispo da Numídia, e

Donato, o Grande, bispo de Cartago. Os donatistas defendiam que os sacramentos só eram válidos se quem os

ministrasse fosse digno. Na religião católica, porém, crê-se que os sacramentos valem por si, seja o ministrante

(geralmente um sacerdote) um indivíduo corrupto ou não. Os donatistas foram muito influenciados por São

Cipriano, Montano e Tertuliano, e muito combatidos por Santo Agostinho, bispo de Hipona.

- O arianismo, um pensamento sustentado pelos seguidores de Arius nos primórdios da Igreja, negava a

consubstancialidade entre Jesus e Deus. Jesus seria subordinado a Deus, seu filho, e não o próprio Deus, que é

único. Esta doutrina foi condenada pelo Concílio de Nicéia, em 325.

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Mauri Furlan

MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016 40

que se esforçaram por atacar os ortodoxos, armados com ciências e línguas

tanto quanto com flechas e dardos; e, com todos os recursos de sua doutrina

e as armas e como que com os aríetes, investir em sacrifício contra a santa fé

dos católicos.88

2.2.1. Conhecimento da matéria, da teologia e da filosofia a serem traduzidas

Há, assim, o conhecimento das coisas, γλῶζηο, e o da elocução das palavras,

ιόγνο. Primeiramente, pois, é mister que se obtenha o conhecimento das

coisas, tanto das divinas como das humanas, a fim de que o tradutor possa

ser formado nas artes e no aprendizado de muitas e grandes coisas. O saber

e o discernimento das artes é, pois, a base e a sede das palavras; assim como

o conhecimento é a luz das coisas, da humanidade e dos escritos dos mais

bem instruídos. Por isso, assim como o tradutor silente, mudo, ineloquente

ao se expressar, costuma ser criticado com razão, porque, ali onde se privou

de recursos deveria manifestar as coisas obscuras e ocultas em sua natureza,

e exibi-las aos olhos e ouvidos dos homens; também não está isento de

repreensão aquele que, nu e desarmado, e sem experiência das coisas mais

úteis para o traduzir, aspira a uma função árdua e difícil. Assim, a ele deve

ser disposto o conhecimento.89

A principal, a primeira e a rainha de todos é a sabedoria de nossa religião,

que é chamada certamente com o mais digno nome de teologia. Ela é

concebida das fontes sagradas dos escritos divinos, de onde a água flui e

avança para a vida eterna. Mas também as explicações, ou esclarecimentos,

- Porfírio (ca.232-ca.304), filósofo neoplatônico e um dos mais importantes discípulos de Plotino, foi um

violento opositor do cristianismo e defensor do paganismo. Escreveu uma obra intitulada Contra os Cristãos, da

qual nos chegaram apenas fragmentos, em que atacava os apóstolos, os líderes de Igreja, o Antigo e o Novo

Testamento. Diversos tratados foram escritos contra ela, destacando-se os de Eusébio de Cesaréia, Sidônio

Apolinário, Metódio de Olímpo e Macarius Magnes. Foi também criticado por Santo Agostinho em famosa

polêmica com o paganismo, expressa na obra De ciuitate Dei contra paganos.

- Martion, herege que ensinava que as criações de Deus, como a carne, o pão, o vinho não valiam nada e eram

impuras.

- O maniqueísmo surge da filosofia ensinada pelo profeta persa Mani (séc. III), na qual um dualismo divide o

mundo entre o Bem e o Mal. A matéria seria intrinsecamente má, e o espírito, intrinsecamente bom. 88

Ad doctrinam ergo nostra se conferat oratio: peritus enim sit oportet qui interpres fidus et uerus esse cupit,

qualem quaerimus. Nec enim rudem et ignarum uolumus, aut baiulum interpretem qui praeter inanem uerborum

sonitum et strepitum, nulla sit ornatus scientia. Saepe enim uiam ingredietur non semper aequabilem aut

planam, sed uirgultis ac spinis obsitam, in qua impeditio multa, ac remorae atque difficultates incidunt, quas

gnarus et doctus artifex facile expediet. Hic ergo doctrinae et intelligentiae cuneus est quaerendus, si malus

forte nodus accidat. Sed ut eruditum requirimus, ita male institutum ab hoc ordine numeroque excludimus. Sunt

enim nonnuli docti sed non satis sane et recte, at uitiose et praepostere, ut praestiterit rudem et uacuum uenisse,

quam inutilibus et superuacaneis artibus quasi retro odore tinctum, aut perniciosis infectum opinionibus: quales

extiterunt Donatistae, Ariani, Porphyrius, Martion, Manichaei et caeterae pestes, qui armati disciplinis et

linguis tanquam spiculis aut iaculis, orthodoxos confodere nixi sunt: omnibusque doctrinae praesidiis et

machinis, quasique arietibus sacro sanctam Catholicorum fidem oppugnare (125-126) 89

, b Primum enim rerum cognitio tum

diuinarum tum humanarum summo est acquirenda opere, ut interpres ab artibus, et a multarum et magnarum

rerum disciplina instructus esse possit. Fundamentum enim et sedes uerborum, est haec artium prudentia et

elegantia: ut lumen rerum est, humanitatis et politiorum literarum notitia. Ergo ut elinguis et mutus ac in

dicendo infans interpres iure culpari solet, quod eo sit destitutus ornamento quo res abstrusas et sua natura

absconditas aperire deberet, et auribus oculisque hominum explicare: ita reprehensione non caret is, qui nudus

et inermis, rerumque utilissimarum peritia inanis ad interpretandi aspirat arduam difficilemque prouinciam. Est

ergo comparanda illi cognitio. (128)

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Interpretatio Linguarum, o mais completo tratado renascentista sobre tradução

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ou homilias, ou sermões, ou comentários, ou anotações, ou notas90

, ou outro

tipo de discussões piedosas devem ser cuidadosa e atentamente lidos pelo

nosso tradutor. Não são poucas as coisas neles contidas, as quais ele pode

verter para sua língua, mas que, com critério, no entanto, selecione as

adequadas. Muitas vezes, pois, o infeliz joio nasce no campo junto ao

melhor trigo.91

Com efeito, a filosofia e outras artes devem ser provadas e absorvidas; em

suma, em todos os casos, ele trata e traduz um assunto, seja na Política, seja

na Ética, seja na Matemática, seja na Lógica, seja também nos livros De re

rustica, ou De re nautica92

, nas demais artes [liberais] ou nas mecânicas, em

sua língua ou em uma estrangeira, e deve entendê-lo e conhecê-lo

perfeitamente; ignorá-lo é vergonhoso e inaceitável. Pois querer traduzir o

que desconheces é estultice e insanidade; e declarar que sabes o que ignoras

é como que mercadejar publicamente tua ignorância com uma declaração

própria.93

Além disso, visto que muitas vezes exemplos ocorrem em todos os escritos,

deve ser ampliado o conhecimento de toda a Antiguidade, deve a história ser

continuamente revisitada, devem ser conhecidos os cânones, os escritores,

os concílios da Igreja, o quanto for necessário, e os anais e as obras literárias

da Judéia, da Grécia, e da República romana. Tudo isso deve estar muito à

mão, porque será de grande proveito. Mas, principalmente porque importa

para a eloquência do tradutor, deve-se dar atenção sobretudo à palavra a ser

polida e aperfeiçoada. Na verdade, esta parte abarca ὁ ιόγνο [a expressão],

evidentemente, todos os elementos lógicos, os quais consideram o aparato, a

construção e a estrutura do discurso. Depois, as línguas. Mas primeiramente

tratarei de umas poucas artes, da Gramática, da Retórica e da Dialética. Sem

90

Homiliae, Commentarii, Annotationes e Scholia são referências a gêneros de textos que tratavam de explicar,

comentar, estudar, assuntos da religião e dos escritos sagrados. 91

Princeps et prima ac regina omnium est religionis nostrae sapientia: quae Theologia nomine certe dignissimo

appellatur. Hauritur illa e sacris fontibus diuinarum literarum unde aqua fluit et exilit in uitam aeternam. Sed et

interpretum enarrationes, siue expositiones, siue Homiliae, siue sermones, siue Commentarii, siue Annotationes,

siue Scholia, siue aliae piae tractationes nostro interpreti diligenter sunt legendae et attente. Habentur in illis

non pauca, quae in usum suum conuertat, sed cum iudicio tamen excerpat consentanea. Agro enim saepe et

tritico optimo infelix lolium innascitur. (128-129) 92

Aparentemente, Humphrey, ao aludir à Política, Ética, Matemática e Lógica, estaria referindo-se ao

pensamento de Aristóteles e sua obra, no entanto, Aristóteles não tratou da matemática. Por outro lado,

Humphrey também poderia estar ampliando o leque de assuntos com os quais o tradutor se depara, seja na

filosofia, seja em outras artes. Na época de Aristóteles, o saber por antonomásia constituía-se pelos quatro

mathemata [conhecimentos]: aritmética, geometria, astronomia e música; são essas quatro artes que comporão o

quadriuium, que, junto ao triuium (gramática, retórica, dialética), constituem a rede de „artes liberais‟, próprias

do sistema educacional durante a Idade Média. Às artes liberales opunham-se as artes mechanicae, que são as

atividades manuais. De re rustica [Sobre questões rurais], de Columela; De re nautica [Sobre questões náuticas]

pode ser a obra de Lilius Gregorius Giraldus, publicada em 1540. 93

Quinimo philosophia et aliae artes sunt uel libandae uel imbibendae etiam: in summa quam rem cunque

tractat et intepretatur, siue in Politicis, siue in Ehticis, siue in Mathematicis, siue in Logicis, siue in libris etiam,

De re rustica, siue re nautica, r ’ h , b

ignorare deforme est et dedecet. Nam quod nescis, uelle interpretari stultitiae est insaniae: et profiteri te scire

quod ignoras, est inscitiam tuam domestico praeconio quasi publice uenditare. (129)

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Mauri Furlan

MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016 42

dúvida, estas são as artes primeiras e menores94

, contudo, elas servem ao

máximo o interesse do tradutor, acima das outras.95

2.2.2. Submetem-se ao discurso: Gramática, Retórica, Dialética, Línguas

A gramática, na forma como foi concebida e compreendida, é considerada a

mais baixa, e o é completamente, porque seu fundamento está colocado na

parte mais baixa; e se tentares construir e rematar outras [artes], sem como

que sujeitá-las à base gramatical, nunca ascenderás ao cume, mas ruirá e

sucumbirá, contudo, toda a esplêndida e ilustre invenção. Nem os fastígios

subsistem sem fundamentos, nem se atinge as alturas sem as profundezas.

“De todas as grandes artes, assim como das árvores, deleita-nos sua altura,

não da mesma forma suas raízes e troncos; mas ela não pode existir sem

eles” [Orator, XLIII, 147], deste modo, expressou-se muito elegantemente o

Orador ciceroniano. Por causa das proporções e dos sentidos das palavras,

ou seja, da „etimologia‟96

, e do mesmo modo que Cícero traduziu ad uerbum

os étimos, sejam, pois, os preceitos e as normas dos gramáticos inteiramente

esmiuçados na mente e guardados na memória. Com efeito, uma multidão

de doutos, porque negligenciaram tais regras e minúcias, que são os

rudimentos da infância, agora que são velhos e educadores de outros falam

mal o latim, e falham muitas vezes em assuntos mais sérios, não sem

zombaria, vituperação e erro de muitos.97

A retórica, hoje, certamente não é mais incômoda, mas está entre os hábitos

dos homens. Deve ser despertada e restituída à sua dignidade. Ela ensina os

tropos de palavras e de linguagem, mostra as partes do discurso e sua

ordem, expõe formas e figuras de pensamento, dispõe preceitos para ornar,

deleitar, ampliar, delineia ornamentos, ideias e modos de falar; sem isto, os

autores não podem ser entendidos nem apresentados, muito menos

traduzidos de modo que realmente alcances o sentido, que descrevas com

94

O chamado triuium (gramática, retórica, dialética) constituía o grupo de artes „primeiras‟ e „menores‟ porque

era considerado a base das artes „maiores‟, ou quadriuium (aritmética, geometria, astrologia e música). 95

Praeterea quoniam saepe incidunt in omnibus scriptis exempla, euoluenda est omnis antiquitatis memoria,

peruolutandae historiae, cognoscendi Canones, scriptores, concilia Ecclesiae, quantum satis erit, annalesque ac

monumenta Iudaeae, Graeciae, Romanaeque Reipublicae. Esse illa maxime ad manum debent, quae maximo

erunt usui. Sed enim quia interest cumprimis interpretis eloqui: orationi expoliendae et excolendae danda est

opera potissimum. Continet uero haec pars ὁ , , m et

fabricam spectant atque structuram. Dein linguas: Sed de artibus primum aggrediar agere, et paucis,

Grammatica, Rhetorica, Dialectica. Nimirum hae sunt primae artes et minimae, tamen interpreti prae caeteris

maxime inseruiunt. (129-130) 96

A etymologia, estudo das palavras enquanto elementos isolados, era considerada, desde a Antiguidade, uma

das matérias da gramática, e buscava a „verdade original‟ ao querer mostrar a coincidência originária entre forma

e significado das palavras. 97

Grammatica cum tenetur et percepta est, uidetur infima: et sane est, quia infimo loco fundamentum

substernitur: at si reliqua extruere coneris et exaedificare, non subiecta tanquam basi Grammatica, ad culmen

nunquam ascendes, sed concidet ac corruet tota quantumuis splendida et illustris machina. Nec enim constant

sine fundamentis fastigia, nec sine imis ad summa peruenitur. Omnium artium magnarum, sicut arborum

altitudo nos delectat, radices stirpesque non item: sed esse illa sine his non potest: quemadmodum Ciceronianus

Orator dixit pereleganter. Quare rationes et interpretationes uerborum, etymologiae scilicet, et, ut ad uerbum

transtulit Cic. ueriloquia, tum praeceptiones ac normae Grammaticorum omnimo animo percursae, ac retentae

sint memoria. Etenim doctorum uulgus, cum has regulas ac minutias neglexerit, quae primae sunt rudimenta

pueritiae, male Latine loquuntur iam senes et doctores aliorum, offenduntque saepenumero in grauioribus non

sine et irrisione et uituperatione et errore multorum. (130-131)

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Interpretatio Linguarum, o mais completo tratado renascentista sobre tradução

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esmero e habilidade sua força e aparência nativa por seu próprio valor. Com

que nome, pois, chamaremos a estes vituperadores da eloquência, que

tratam levianamente as excelsas dádivas de Deus, ou as louvam

maldosamente, ou as difamam abominavelmente? Por certo, são chamados

por São Paulo [Rm, 1:30] de ζενζηπγεῖο [inimigos de Deus], aqueles que

atacam a Deus ou seus dons divinos; algo que fazem alguns homens

tristemente ociosos, os quais, como foram dura e desgraçadamente nutridos

com alimento sofístico, invejam os lautíssimos manjares dos outros; porcos

cobertos de lama, βαιαλεθάγνη [comedores de bolotas98

], saciados e

acostumados com a fumaça, nada lhes cheira bem a não ser o fedorento e o

fuliginoso.99

E do mesmo modo, avalio a dialética, que, com Platão como testemunha,

eleva dos homens os olhos enterrados no lodo, pela qual os pregadores se

tornam δηδαθηηθνὶ [aptos para ensinar], o que Paulo [1Tm, 3:2] cobra de um

epíscopo, e aprendem a νξζνηνκεῖλ [ensinar bem], separar, dividir,

distinguir corretamente a palavra de Deus. Não engana, pois, os homens

com uma probabilidade capciosa, não arma ciladas esta verdadeira doutrina

do dissertar, não impera, como muitos imaginam, somente nas discussões,

na casa e nas reuniões de sofistas e de debates, não consiste numa questão

ou jogo de palavras, mas esclarece teses e conjecturas dos livros divinos,

separa os gêneros em espécies, discerne o verdadeiro do falso, distingue as

ambiguidades; enfim, no que faz por algo, e no que concerne mais

propriamente ao nosso objeto, aporta-lhe a luz das artes; para que então o

tradutor, e se se quiser o autor, veja, e, de alguma maneira, prove,

compreenda, e de certo modo proponha, argumente, conclua, examine

claramente e julgue. Se isto, pois, não for observado, no modo como

anteriormente já foi demonstrado, o tradutor se equivocará no sentido ou na

colocação das palavras e na ordem dos enunciados, e não dirá as mesmas

coisas que aquele, ou não as reconhecerá nem apresentará na mesma ordem.

Uma vez que, assim, esta faculdade confere não só sagacidade para discutir

e sutileza para arbitrar, mas também acrescenta agudeza ao método de

ensinar e de avaliar, de modo algum podemos desprezar tamanha mestra de

instrução, regra de julgamento, guia de caminho, árbitra de controvérsias,

juíza de causas, luz nas trevas mais espessas. Abracemos, pois, aquela

eloquência contraída e comprimida, e esta dialética propagada, para, com

razão, tomarmos desta a força e como que o gume do argumento, daquela,

98

Ainda hoje, em algumas regiões da Europa, os porcos são alimentados com bolotas, os frutos do carvalho, da

azinheira e do sobreiro. 99

Rhetorica hodie iacet non quidem suo uitio, sed moribus hominum: Excitanda est et suae dignitati restituenda. Tropos uerborum et linguarum docet, partes orationum et dispositionem monstrat, colores et figuras

sententiarum aperit, ornandi, delectandi, amplificandi praecepta tradit, lumina, ideas et formas eloquendi

deliniat: sine his non intelligi autores nec exponi possunt, nedum conuerti, ut sensum attingas uere, ut graphice

et affabre uim natiuamque speciem cuiusque pro dignitate describas. Quo ergo nomine appellabimus istos

uituperatores eloquentiae, qui excellentia Dei munera aut leuiter curant, aut maligne laudant, aut odiose

lacerant? υ f

homines male feriati, qui cum ipsi duriter ac male pasti Sophistico pabulo fuerint, lautissimis aliorum deliciis

, βα α φ , f mo satiati et adsueti, quibus nihil bene olet nisi olidum et

fuliginosum. (131-132)

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Mauri Furlan

MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016 44

os ornamentos e embelezamentos do discurso aplicados não tanto para

persuadir quanto para ornar.100

Das línguas clássicas:

Passarei às línguas, as quais é necessário sobretudo que o tradutor saiba e

domine. Mediante as línguas, pois, ele realiza seu trabalho, e o que realiza

mediante as línguas é dado por certo, mas, se tiver carências nas línguas,

também terá carências o título e o nome do tradutor. As artes tornam-no

hábil, as línguas, elegante na expressão; aquelas encherão o seu espírito com

vasto conhecimento e com experiências, e o seu depósito com colheitas;

estas lapidarão sua linguagem; aquelas obrarão para que não seja

considerado inábil, superficial, inexperiente, estas, para que, ao se expressar,

não seja tomado por ressequido, seco, estéril. De todas elas, deve-se tomar a

abundância e os recursos do falar.101

A língua latina, uma vez que se tornou comum na boca e na conversação de

todos os povos em toda a parte, e é declarada própria dos cristãos, e faz-se

tradução de todas as línguas para ela, não há como não conhecê-la, mas

convém estar cientíssimo dela, cujo conhecimento edificou de muitos

modos pelo escrever, pregar, ensinar, em livros, sermões, escolas, na igreja

cristã. Seu desconhecimento e imperícia apresenta e oferece diariamente

ocasiões de erro a muitos. Daí que certos judeus temerários, não tendo

nenhum ou muito pouco conhecimento desta língua, põem-se, contudo, a

traduzir da língua hebraica, os quais podem até ser grandes rabinos e os

mais doutos na língua pátria, mas não sendo bons latinos é inevitável que

realizem mal e perfidamente seu ofício, o que também pode ser traduzido

com erros por alguns tradutores cristãos, com escassez da opulência latina

pelos trabalhadores, e um hebraísmo e um grecismo de modo pouco latino

pelos trasladadores. E acredito mesmo que muitas coisas dos antigos gregos,

que falaram grego de modo muito elegante, foram traduzidas por alguns que

100

Eodemque modo de Dialectica iudico, quae Platone teste, oculos hominum coeno defossos attollit, qua

f α , quod in episcopo exigit Paulus: et dis ,

secare, diuidere, distinguere. Non enim captiosa probalitate fallit homines, non struit insidias uera haec

disserendi doctrina, non in palaestris solum et umbra et phrontisteriis sophistarum et disputantium, ut multi

somniant, dominatur, non in concertatione aut captatione uerborum consistit: sed theses et conciones diuinorum

codicum explicat, genera in species dispertit, uera a falsis diiudicat, distinguit ambigua: denique, quod ad rem

facit, propiusque ad institutum nostrum pertinet, lucem artium affert: ut inde interpres et quid uelit scriptor,

uideat, et quo modo probet, intelligat, et quo ordine proponit, argumentatur, concludit, clare perspiciat et

iudicet. Haec enim nisi obseruentur, ut ante quoque demonstratum est, aut in sensu aberrabit interpres, aut in

collocatione uerborum et serie enunciationum: ut non eadem dicat quae ille, aut non eodem probet et proponat

ordine. Cum ergo non ad disputandi solum prudentiam subtilitatemque disceptandi conferat haec facultas, sed

ad methodum docendi iudicandique acumen conducat: tantam doctrinae magistram, regulam iudicii, uiae

ducem, controuersiarum disceptatricem, causarum iudicem, densissimis in tenebris facem, contemnere nullo

modo possumus. Amplectamur potius et hanc astrictam compressamque eloquentiam, et illam dilatatam

dialecticam: ut ex hac uim et mucronem quasi argumenti, ex illa pigmenta et insignia orationis adiecta non tam

confirmandi quam ornandi causa addita deprehendamus, ut nihil nos praeteriisse uideatur. (132-134) 101

Veniam ad linguas, quibus ualere et excellere potissimum interpretem necesse est. Linguis enim suum

officium facit, linguis quod facit acceptum fert, linguis si careret, interpretis quoque titulo careret et nomine. Artes illum prudentem reddent, linguae disertum: illae pectus multiplici cognitione et rebus tanquam horreum

messibus complebunt: hae linguam polient: efficient illae ne imprudens, leuis, imperitus dicatur, hae ne in

dicendo exuccus, siccus, sterilis habeatur: ex quibus omnis sylua atque copia eloquendi ducenda est. (134)

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Interpretatio Linguarum, o mais completo tratado renascentista sobre tradução

45 MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016

não tinham aprendido muito bem nem a língua grega nem a latina, como se

vê em Crisóstomo e Orígenes e em outros.102

[...]

A língua grega já não pode ser ignorada sem vergonha, pois todas as artes, e

quase todos os livros que devem ser traduzidos, sejam aqueles profanos,

sejam os sacros, encerram-na, e não ouse chamar-se de tradutor, teólogo ou

estudioso o inexperiente ou ignorante da língua grega, cuja riquíssima

abundância, grandíssima utilidade, admirável encanto, certíssima

necessidade e várias oportunidades para muitas coisas são celebrados no

elogio de todos e nos escritos de todos. Desta língua são tirados os nomes

das artes, da gramática, da retórica, da dialética, da filosofia, da aritmética,

da geometria; sem ela os próprios artífices e os professores não sabem

corretamente e com certeza as designações de suas artes. A partir dela, a

língua romana, que agora é comuníssima, se originou, foi adornada, e

separou-se. A partir dela, Cícero se fez e se poliu tão grande quanto é. A

partir dela floresceram todas as coisas dignas de dizer, a inteligência de

julgar, a habilidade de entender, em cujas artes, que devem ser traduzidas a

outra língua, é leve e fácil um deslize nas coisas mais graves. Pelo que, os

estudos de suas letras devem ser cultivados pelo tradutor, que, de modo

algum, deve ser estrangeiro ou peregrino na filosofia, na teologia e nos

outros saberes, como são alguns, não poucos, teólogos, cardeais da igreja,

afastados também da própria gramática, ὀςηκαζεῖο [velhos demais para

aprender], ou antes ἀκαζεῖο [ignorantes], e verdadeiramente καηαηνιόγνη

[vaníloquos].103

Sobre a língua hebraica, é importante dizer várias coisas, porque ora é

negligenciada por muitos, ora é ignorada, mas a santíssima língua tem

injustamente má fama. Sem ela ninguém pode ser versado, de algum modo,

com louvor, ao traduzir o Novo ou o Antigo Testamento. Tudo está repleto

de muitos hebraísmos. Por isso, o texto hebraico deve ser manuseado dia e

102

Latina lingua cum omnium ore et sermone ubique gentium percrebuerit, et Christianorum propria censeatur,

et ex aliis linguis in eam plerunque fiat conuersio: non modo illam non nescire, sed eius scientissimum esse

conuenit, cuius cognitio multis modis aedificauit scribendo, praedicando, profitendo: libris, concionibus,

scholis, Christianam ecclesiam: ignoratio et ruditas quotidie occasiones errandi multis praebet et porrigit. Hinc

quidam temerarii Iudaei huius linguae cum nullam aut pertenuem cognitionem habeant, tamen ad

interpretandum ex lingua Hebraea assiliunt, qui licet essent Rabini magni, et patrii sermonis doctissimi, si

tamen Latini non sint boni, suo male et perfide fungantur officio necesse est. quod etiam Christianis

interpretibus nonnullis uitio uerti potest, Latinae opulentiae penuria laborantibus, et Hebraismum ac

Graecismum parum Latine reddentibus. et sane puto, multa antiquorum Graecorum Graece elegantissime

loquentium, uersa esse ab aliquot qui nec Graecam satis nec Latinam linguam perdidicerant, ut in Chrysostomo

et Origene et aliis apparet. (134-135) 103

Graecus porro sermo sine dedecore ignorari non potest: quo artes omnes, libri pene omnes qui uertendi sunt,

seu prophani illi sint, seu sacri, continentur. neque se uel interpretem, uel theologum, uel studiosum audeat

nominare, Graecae linguae expers aut ignarus: cuius ubertas amplissima, utilitas maxima, iucunditas

admirabilis, necessitas certissima, opportunitatesque ad multa uariae, omnium praedicatione, omniumque

monumentis celebrantur. Ex hac lingua nomina artium, Grammaticae, Rhetoricae, Dialecticae, Philosophiae,

Arithmeticae, Geometriae deducta sunt: sine qua ne suarum artium nomenclationes recte et certo scient ipsi

artifices et professores. Ex hac, Romana lingua, quae nunc communissima est, orta, ornata, absoluta est. Ex hac

Cicero totus quantus quantus est, effectus est et perpolitus. Ex hac omnia dicendi insignia, iudicandi

intelligentia, intelligendi scientia, effloruerunt: quibus artibus in alium sermonem conuertendis, lenis et facilis

est prolapsio in grauissimis. Quare harum literarum studia colenda sunt interpreti, qui in Philosophia, ac

Theologia, aliisque scentiis hospes esse aut peregrinus nullo pacto debet: ut sunt quidam absque Grammatica

etiam ipsa Theologi non pauci, cardines ecclesiae, α , α , α α (140-141)

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Mauri Furlan

MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016 46

noite. Se há algo insigne entre os rabinos, transmitiram-no de boa fé

Pagninus, Munsterus, Pellicanus104

e outros homens cristãos, embora talvez

alguém ainda queira procurar algo quiçá precioso, por muito tempo e em

vão, de modo impuro nos livros hebraicos, com muito suor e nenhum fruto

ou tão pequeno quanto em um monte de estrume. Mas é necessário não

desconhecer a gramática, nem se deve desprezar o menor detalhe que seja,

nem um i, nem um ponto. Santo Agostinho, porque não dispensava uma

atenção mais especial às línguas, lamenta sua sorte, e os doutores gregos,

como fossem inexperientes, erraram mais de uma vez enquanto se

esforçavam para traduzir as palavras hebraicas. Portanto, os mínimos pontos

dos hebreus devem ser conhecidos, para que não se obrigue a confiar em

outros argumentos de comentadores, mas deguste os princípios elementares,

cuide na leitura, grave na memória, fixe com o exercício. Pois enquanto

estas coisas estiverem sujeitas à negligência e ao desprezo, tropeça-se,

muitas vezes, como o Velho tradutor, com a propriedade dos nomes.105

Louvor e defesa das línguas clássicas:

Todo o labor dos tradutores é despendido não para que o estudo das línguas

seja desprezado, ou os estudiosos se entorpeçam, mas para que aquele seja

mais inflamado, estes, mais dispostos. Ainda que, em verdade, grande parte

das coisas tenham sido disponibilizadas às línguas vulgares, não o foram,

contudo, todas elas, e as que se sobressaem não são verdadeiramente todas,

não são claramente todas, nem são todas inteiramente expostas. Todas as

coisas, pois, ao traduzir, são piores, como o vinho transvasado a um e outro

recipiente, e a árvore muitas vezes transplantada de seu lugar. E aquelas

línguas têm algo genuíno e seu, que as outras não podem enunciar com igual

proporção e destreza, esforcem-se o quanto quiserem, e extraiam todos os

tesouros da eloquência. Envergonha, por isso, que certas coisas sejam ditas

104

- Santes Pagninus (1470-1541), hebraísta italiano, da ordem dos dominicanos, estudou línguas orientais e foi

o primeiro despois de São Jerônimo a traduzir a Bíblia para o latim (1528) baseado nos originais hebraico e

grego, uma tradução reconhecidamente literal. Foi também o primeiro a dividir os capítulos da Bíblia em

versículos numerados.

- Sebastianus Munsterus (1489-1552), humanista e hebraísta alemão, convertido à Reforma luterana, foi

professor de teologia e de hebraico, e entre numerosas obras publicou a famosa Cosmographia uniuersalis

(1554), uma das primeiras descrições do mundo em língua alemã, traduzida a várias línguas; esta foi uma das

obras mais lidas no séc. XVI, sendo-lhe atribuído o segundo lugar em popularidade depois da Bíblia.

- Conrad Pellicanus (1478-1556), humanista e teólogo alemão, professor de grego e hebraico – foi um dos

maiores especialistas de seu tempo da língua hebraica –, estudou e traduziu grande quantidade de textos

rabínicos e talmúdicos, produziu um vasto comentário sobre a Bíblia. Em 1501 escreveu a primeira gramática

hebraica em uma língua europeia. 105

De Hebraea lingua opus est pluribus dicere, quia tum negligitur a pluribus, tum ignoratur: sed immerito

male audit lingua sanctissima. Nemo sine ea in nouo aut ueteri Instrumento interpretando cum laude aliqua

uersari potest. tot Hebraismis plena sunt omnia. Textus itaque Hebraicus diurna est ac nocturna manu terendus.

In Rabinis si quid est insigne, Pagninus, Munsterus, Pellicanus, et alii homines Christiani bona fine tradiderunt:

nisi quis etiam uelit in libris impure Hebraicis, magno cum sudore, nullo cum fructu aut exiguo tanquam in

sterquilinio aliquid forte pretiosum diu et frusta quaerere. Sed Grammaticae rudem esse non oportet, nec

contemnendum est quantumuis minutulum, non iota, non apiculus. Augustinus quod his linguis operam magis

egregiam non impenderit, uicem suam deplorat, et Graeci doctores quum imperiti fuerint, non semel errarunt,

dum in uocibus Hebraicis interpretandis laborant. Proinde minima Hebraeorum puncta debent esse cognita: ne

cogatur fidere aliis commentis commentatorum, sed elementa puerilia degustet, lectione obseruet, memoriae

imprimat, exercitatione confirmet. Dum enim ista neglectui habentur et contemptui, saepe impingitur ut in

propriis nominibus Vetus interpres. (141-142)

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por homens no aspecto e na veste sábios, e pelos que ostentam grande

prudência, de que as línguas mais preclaras sejam inúteis; porque ninguém,

na posse do juízo e da razão, ou do bom senso, pode dizer isso sem

enrubescer. E sem aquelas, nosso tradutor, seja germano, seja ítalo, seja

inglês, seja gaulês, seja hispano, não poderá ocupar-se com suas tarefas e

responder satisfatoriamente ao seu dever, nem o pregador será apreciado em

todas as passagens comuns, nem abundará em notas escritas, ainda que

instruído em todas as bibliotecas, e tendo toda a Bíblia traduzida, nem seu

trabalho valerá ser visto abundante, completa e honrosamente, se não souber

latim, grego ou hebraico.106

2.3. Fides & religio: fé e religião (170-180)

– paixão & contenda, amor à gloria, desejo de lucro –

Deve-se tratar ainda da fé [= compromisso] e da religião. Pois nos autores

profanos a fé deve ser mantida, nos sacros, a religião e a fé. Traduz

fielmente quem traduz como deve, e com o propósito que convém. Estas

duas coisas devem ser compreendidas. Pois a fé postula que não se mutile a

sentença, mas que se a deixe inteira e incorrompida. É próprio da fé que

nada de seu seja acrescentado, nem nada do autor seja suprimido. Mostrará a

fé aquele que não apenas restabelece de modo não superficial ou

negligentemente em qualquer parte de forma casual e fortuita tudo aquilo

que o cálamo gravara, mas o faz o quanto puder do modo mais verdadeiro e

mais elegante. E acompanham estes preceitos aquelas coisas que foram

acima expostas por mim, quando falei da tradução propriamente dita.

Assim, como eu disse, fará fielmente e como deve.107

Paixão & contenda:

Também agora deve-se refletir sobre o caráter daquele que traduz. Três

coisas, em nome da fidelidade, devem ser evitadas pelo tradutor. Chamo o

tradutor fiável ou fiel de homem bom. Ele não segue suas paixões, nem

busca louvor, nem sua comodidade. A paixão, com efeito, cega, não quer

ver a verdade, e, sem dúvida, é uma não desconsiderável praga dos estudos,

106

Huc totus labor interpretum impenditur, non ut studium linguarum iaceret, aut studiosi torpescerent: sed ut

illud foret inflammatius, hi alacriores. Etsi uero uulgaribus linguis tradita sint pleraque, tamen non omnia: et

quae extant, non omnia uere, non omnia explicate, nec ad plenum omnia expressa. Sunt enim uertendo omnia

deteriora: ut uinum in aliud atque aliud uas transfusum, et arbor saepe de suo loco transplantata. Et habent hae

linguae quippiam geniuinum et suum, quod aliae pari commoditate et dexteritate non possunt eloqui,

quantumuis nitantur, omnesque thesauros depromant eloquentiae. Pudeat itaque haec dici ab hominibus fronte

et pallio sapientibus, magnamque prae se ferentibus prudentiam, inutiles esse linguas praeclarissimas: quia hoc

nemo mentis et rationis sensus ue communis compos posset sine rubore dicere. Nec sine his interpres noster siue

Germanus sit, siue Italus, siue Anglus, siue Gallus, siue Hispanus, satagere suarum partium, officioque suo satis

respondere poterit. nec Concionator licet omnibus locis communibus, Postillisque abundet, omnibus bibliothecis

instructus, omniaque Biblia translata habeat, tueri suum munus abunde, cumulate, magnifice ualet, nisi Latine

sciat, Graece, aut Hebraice. (146-147) 107

FIDES et religio tractandae sunt. Nam in prophanis autoribus fides praestanda est, in sacris religio et fides.

Fideliter uertit, qui conuertit ut debet, et quo decet animo. Haec duo sunt tenenda. Nam fides postulat, ut

sententiam non mutilet, sed ut totam ponat ac syncere. Fidei est, nihil uel ex suo assuere, uel de autore

circuncidere. Fidem praestabit is qui non obiter aut negligenter quocunque modo temere ac fortuito reponit

quicquid in calamum incidit, sed quam poterit uerissime et elegantissime: eaque praecepta sequitur quae sunt a

me supra posita, quum de ipsa interpretatione uerba facerem. Itaque faciet fideliter, uti dixi, ac ut debet. (170)

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MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016 48

um veneno da religião, quando o que deve ser verdadeira e cuidadosamente

avaliado é corrompido sujeitando-se às paixões e ao poder. Por outro lado,

realiza de boa fé sua tarefa aquele que almeja mais a utilidade pública que a

privada, aquele que dirige seus trabalhos para a glória de Cristo, não para

sua própria ostentação, aquele que olha o proveito dos outros leitores, não a

cegueira ou o lucro ou a vantagem de seu próprio parecer. Não posso não

louvar veementemente aqueles que, piedosamente ocupados com os escritos

dos Padres divulgados em língua latina, não os interpretam e distorcem ao

seu gosto, mas os conservam como que em sua seiva natural, de modo que

os expõem seja piamente, seja impiamente, os proferem seja contrariamente

à nossa opinião, seja favoravelmente, que permanecem com seu Senhor e

Juiz, ou perecem. Tradutores, não adulteremos o que não percebemos da

mesma maneira, mas reproduzamos como o autor o percebeu, em seu

sentido perfeito e completo.108

Amor à glória:

Certamente, submete-se e entrega-se à paixão e é também levado por certas

cócegas a um desejo de glória aquele que tenta, com uma certa má intenção,

não traduzir bem, mas de uma forma nova, não recolocar os elementos

primeiros e talvez mais congruentes, mas os divergentes dos daquele que lhe

precedeu. Deve-se considerar então uma tal façanha vã em todo seu

conjunto como uma sarna e um comichão pestíferos e detestáveis. Na

verdade, dever-se-ia desejar, se fosse possível, um consenso e uma

conspiração dos tradutores, e, para dizer realmente o que eu percebo de um

modo não ruim, deve-se condenar as inquietações e os cuidados,

πνιππξαγκνζύλε [zelo excessivo], de alguns que furam os olhos às

gralhas109

, deixam o caminho conhecido e público em situação precária; não

contentes com as traduções dos outros, os mesmos acrescentam as suas

novas, o que está mais para um exercício a fim de apresentarem outras e

diferentes opções do que melhores, buscam nó no junco110

, constroem as

maiores tragédias com coisas de pouca importância; e se por acaso

surpreendem alguma palavra não trasladada corretamente pelo tradutor, todo

o livro é traduzido de novo, é reconduzido ao prelo, e é impresso, para que

os demais pareçam míopes e remelentos, eles próprios perspicazes e

108

Iam etiam et animus eius considerandus est, qui uertit. Tria enim sunt fido interpreti euitanda: fidum seu

fidelem uoco interpretem uirum bonum. Is nec affectum sequetur suum, nec laudem quaeret, nec suum

commodum. Affectus etenim caecutit, uerum uidere non uult. ac sane studiorum pestis est non minima,

religionisque uenenum, dum quod iudicio uere considerateque fieri debet, id obsequendo affectui ac factioni

corrumpitur. Contra fide bona praestat officium suum, qui utilitatis publicae auidior est quam priuatae, qui ad

gloriam Christi, non ad suam ostentationem labores suos refert, qui aliorum legentium spectat emolumentum,

non iudicii sui caecitatem aut lucrum, aut compendium. Eos non possum non uehementer probare, qui in Patrum

scriptis euulgandis Latina lingua, pie occupati, non trahunt et detorquent ad suum stomachum, sed suo ipsos

quasi naturali succo relinquunt, ut siue pie, siue impie dicant, siue aduersaria nostrae opinioni, siue

consentientia proferant, suo stent Domino ac Iudici, aut cadant: ne adulteremus quod ita non sentimus, sed quod

sensit ille, sensu perfecto et completo reddamus, interpretes. (170-171) 109

A frase de Humphrey reproduz o provérbio latino, extraído de Cícero, Pro Murena 25 : Cornicum oculos

configere [furar os olhos às gralhas], cujo significado equivale, de certa forma, ao nosso “ensinar o pai-nosso ao

padre”, ou seja, querer enganar o mais esperto, querer ver melhor que os outros, etc. 110

Nodum in scirpo quaerere [buscar nó no junco] (em Plauto, Menaechmi 247; em Terêncio, Andria 941), isto

é, procurar dificuldades onde não as há, à semelhança de nossos “procurar cabelo em ovo”, “procurar chifre em

cabeça de cavalo”.

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esclarecidos. Vimos isto em traduções latinas e também em vernáculas,

tanto em sacras quanto em profanas, feito por homens complacentes

sobretudo com seu desejo, e que se amam mais que à verdade.111

Desejo de lucro:

O terceiro ponto vicioso, além daquele da glória e da paixão, é o desejo do

lucro e da vantagem. Considera-se, pois, algo muito pobre, quando aquilo

que devia ser realizado pelo amor às letras, é empreendido por cobiça de

dinheiro; e isto se dá nas artes lucrativas, e por mercenários imorais, em

cultores das musas, por certo, e, do modo mais sórdido, por doutos

candidatos das artes liberais. Que a deusa e rainha do mundo afaste das

Camenas virgens a θηινθεξδεία [afeição ao lucro] e a θηιαξγπξία [avareza].

Deve-se, contudo, recear que alguns, levados a traduzir por pagamento, os

quais alugam seu serviço para outros, realizem fraudulentamente seu ofício,

e muito pouco se ocupem de suas questões. Presumo que isso, em parte,

aconteça porque, quando as traduções deles são chamadas à pedra de toque,

às fontes, certamente, observa-se que algumas foram mudadas ao traduzir,

outras, aniquiladas, umas apresentam faltas, outras, redundâncias, e às

vezes, simultaneamente, muitas linhas subtraídas por estes que somam.

Acontece que se frauda o leitor, e se injuria o tipógrafo e aquele que

demanda o serviço. Abstenho-me de nomes; contudo, vi e ouvi fazerem isso

muitas vezes. Por conseguinte, aquele que quiser ser considerado um

tradutor fiel não deve agir de acordo com a sua vontade, nem aspirar à

glória, nem se preocupar com sua recompensa antes que com o proveito

público. Seja, portanto, a fé o fundamento, e como que subjaza a verdade

naquele que trata da matéria e com ela se ocupa. Esta fé deve mostrar-se em

todos os autores, ainda que sejam os mais afastados de Cristo. E para eu

falar de religião, a qual deve estar unida às letras sagradas, é preciso aqui

vigiar com a maior atenção e cautela.112

111

Seruit profecto, et indulget affectui, atque etiam gloriae quadam titillatione ducitur, qui malo quodam studio

conatur non ut bene transferat, sed noue, non ut priora reponat, ac fortassis congruentiora, sed ut ab eo qui

praecessit dissentientia. Scabies et pruritus hic uanae laudis in omni re pestifer haberi debet atque detestabilis.

Verum optanda esset interpretum consensio, si fieri posset, et conspiratio: et ut uere dicam quod non male

, x υ α , b , , f

minima tritam et publicam uiam relinquunt: non contenti translationibus aliorum, ipsi nouas affingunt suas,

magisque id studio est, ut alia et diuersa quam ut meliora afferant, in scirpo nodum quaerentes, et in rebus

leuiculis maximas excitantes tragoedias: ac si quam uocem non recte ab interprete redditam arripiunt, totus

liber denuo conuertitur, sub praelum reuocatur, et in lucem excuditur: quo caeteri lusciosi et lippi, ipsi

perspicaces et oculati uideantur. Id in Latinis uersionibus, factum uidimus et in uulgaribus quoque, tam in sacris

quam etiam prophanis, ab hominibus suo potius stomacho indulgentibus, seque magis quam ueritatem

amantibus. (171-173) 112

Tertius finis praeter gloriam et affectum uitiosus, est lucri et quaestus studium. Pessime enim se res habet,

quum id quod amore literarum effici debuit, cupiditate pecuniae suscipitur: idque in quaestuosis artibus, et a

mercenariis uitio datur: in musarum uero cultoribus, et a doctis liberalium artium candidatis sordidissimum.

absit a Camaenis uirginibus Dea ac regina , φ α, φ α υ α V

interpretandum conducti mercede, qui suam aliis locant operam, fraudulenter suum agant negotium, rerumque

suarum parum fideliter satagant. Id partim coniicio fieri, quod ubi interpretationes eorum ad Lydium lapidem

reuocantur, ad fontes nimirum: quaedam in uertendo inuersa, quaedam peruersa, alia deesse, alia redundare,

nonnunquam plures simul lineas ablatas ab his qui conferunt animaduertitur.Ita fit, ut fraus fiat lectori: et

Typographo alterique qui condicit, iniuria. A nominibus abstineo, hoc tamen factitatum uidi et audiui. Proinde

neque animo suo gerere morem, nec gloriam expetere, neque praemium suum potius quam commodum publicum

respicere debet, qui fidus interpres haberi uoluerit. Fundamentum autem sit fides, et materia quasi illi, quam

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Mauri Furlan

MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016 50

Os escritos sacros devem ser traduzidos religiosamente.

Traduz religiosamente aquele que o faz cientemente, não audaciosamente,

considerando que muitos, quanto menos sabem, tanto mais ousam.

Religioso é aquele que suplica e ora, e receia, desconfiando de si, confiado

em Deus, temendo e implorando auxílio daquele que o provê, e não

repreende a ninguém. Produz religião aquele que vem não corrompido por

nenhuma falsa crença, mas contrário a todo modo falso de pensar. O

fundamento da religião e a causa eficiente é a fé. É necessário, portanto,

àquele que traduz, que creia. Pois a fé inflama o fogo do amor divino, o

amor gera admiração, a admiração acende o ardor e a diligência. Assim,

deve-se tirar o calçado com Moisés, lavar os pés segundo o preceito de

Cristo, para que nem a simplicidade da palavra ofenda, nem a sublimidade

destrua e atemorize, e apliquemo-nos com honestidade e integridade àquele

sacrossanto ofício, não com as mãos sujas, mas com os corações puros.113

[...]

Mas talvez tenha exposto mais coisas sobre a religião do que necessário. Ela

não carece, pois, de preceitos, mas a graça do Espírito, que é um excelente

mestre, nos conduzirá a toda a verdade, a fim de que tratemos as coisas

sagradas com prudência, com reverência, com modéstia. É permitido

estender-se mais livremente e apartar-se das palavras em livros profanos;

nas escrituras canônicas, nenhuma licença é tolerável. O homem não tem

nenhuma concessão para mudar a linguagem de Deus. Por isso os judeus

riem de nossas traduções, como testemunha-o Jerônimo, quando, nos

Salmos e em outras passagens, são acrescentadas certas coisas, são tiradas

certas coisas, são expostas muitas coisas de outro modo.114

2.4. Diligentia: diligência (180-200)

A diligência, criada e serva de todas as demais coisas, vem, pois, em último

lugar. O que Demóstenes atribui à atuação [actio]115

, eu atribuo à diligência.

tractet, et in qua uersetur, subiecta sit ueritas. Haec in omnibus autoribus praestanda fides est, licet sint a

Christo alienissimi. Atque ut de religione dicam, quae in sacris literis adhibenda est, hic attentione summa et

cautione uigilandum. (174-176) 113

Religiose conuertit qui scienter, non audacter, ut multi quo minus sciunt, eo magis audent. Religiosus est qui

precatur et orat, et tremit, diffidens sibi, fisus Deo: metuens et implorans auxilium ab eo qui dat, et nemini

exprobrat. Religionem affert, qui nulla falsa superstitione corruptus accedit, sed ab omni opinatione fictitia

alienus. Religionis firmamentum et causa efficiens est fides. Credat ergo oportet qui conuertit. Fides enim ignem

diuini amoris inflammat, amor gignit admirationem, admiratio incendit alacritatem et diligentiam. Sic exuendi

sunt calcei cum Mose, lauandi pedes iussu Christi, ut nec simplicitas uerbi offendat, nec frangat et terreat

sublimitas: sed caste et integre in eo sacrosancto munere non illotis manibus, sed puris animis uersemur. (177-

178) 114

Sed plura de Religione fortassis, quam est necesse. Nec enim praeceptionibus eget, sed Spiritus gratia, qui

magister optimus, inducet nos in omnem ueritatem: ita ut sacra tractemus timide, reuerenter, uerecunde.

Liberius in aliis prophanis licet expatiari, et digredi a uerbis: in Canonica scriptura nulla licentia est tolerabils.

Non enim concessum est homini, Dei linguam mutare. Hinc Iudaei rident interpretationes nostras, ut

Hieronymus testatur, quum in Psalmis aliisque locis quaedam adponuntur, quaedam adimuntur, multa aliorsum

exponuntur. (179-180) 115

Na retórica clássica, a actio [ação, atuação] ou pronuntiatio [expressão] é a realização do discurso mediante a

voz e os gestos que a acompanham. Demóstenes (384-322 a.C.) é considerado o maior orador grego, e são bem

conhecidas as histórias nas quais ele superou sua gagueira com exercícios de recitação com pedras na boca e

também correndo na praia contra o vento.

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51 MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016

A ela dou o primeiro, o segundo, e o terceiro lugar, a ela que é medianeira,

auxiliadora, vigia e conservadora, e sem ela não poderás fazer alguma vez

algo nobre ou grandioso. Que seria, pois das outras virtudes, ainda que

exímias e insignes, se a diligência não estivesse presente como um aguilhão

e como que uma espora? Pois também a boa natureza é diligente, aplicada,

industriosa, mas, como o bom campo, se não é cultivado, torna-se estéril.

Assim, o engenho prolífero e fecundo como que degenera e torna-se um

matagal se não é renovado e conservado mediante um cultivo constante.116

De que modo também o tradutor adquirirá tanta variedade de informação, de

conhecimento das coisas, quanto é preciso, e a elegância, a riqueza, o

esplendor do discurso, se faltar esta θηινπνλία [dedicação ao trabalho] e a

diligência? Pois ele tem necessidade de possuir uma bagagem não somente

rica e copiosa, mas bela, esclarecida, ordenada; de onde ele como que tira de

um enxoval um aparato elegante e abundante, para todas as circunstâncias.

A diligência é igualmente companheira e serva da religião, tornando-se

laboriosa ao buscar, trabalhadora ao traduzir, atenta, cauta, engenhosa ao

obrar muito. Por isso ela pertence a esta esta fé e religião, cujo dever, em

qualquer circunstância, é sempre necessário, e nunca foi desagradável aos

que se exercitam nesta habilidade.117

[...]

Distinta é pois esta virtude, que contém todas as demais virtudes. A

diligência existe para que o sentido seja extraído completamente. Para que o

espírito se exercite em todas as passagens que devem ser consideradas e

investigadas, para que se introduza completamente na matéria, para que seja

profundo no cuidado e na reflexão, para que expresse com propriedade,

pureza, ornato, habilidade e abundância o tema concebido existe a

diligência. Pelo que, ela deve ser cultivada e sempre empregada pelo

tradutor, porque é sempre necessária; deve estar presente em toda parte,

porque será útil em toda parte, tanto porque persegue o que quer, quanto

porque nada há que ela não consegue118

.119

116

Diligentia enim ultimo loco uenit, omnium reliquarum famula et ministra. Quod Demosthenes tribuit actioni,

id ego diligentiae. Huic primas do, huic secundas, huic tertias, quae omnium rerum necessariarum conciliatrix

est, adiutrix, custos, ac conseruatrix: nec sine hac quicquam unquam praeclarum aut magnum effeceris.

Quorsum enim uirtutes caeterae, quantumuis eximiae et insignes, si non stimulus hic et quasi calcar adsit

diligentia? Nam et natura bona est diligens, sedula, industria: ut ager bonus si non colatur, sterilescit. Sic

degenerat, et ueluti syluescit ingenium ferax atque foecundum, si non cultu assiduo renouetur et conseruetur.

(180-181) 117

Quonam etiam pacto tantam doctrinae uarietatem sibi comparabit interpres, rerum scientiam, quanta satis

est, orationisque elegantia , , , φ α ? N h

supellectile non referta modo et copiosa, sed lauta, explicata, digesta: unde tanquam e mundo depromat, ad

omnem usum, apparatum elegantem et abundantem. Religionis item comes et ancillula est diligentia, ut in

quaerendo fiat laboriosa, in uertendo operosa, in opere faciundo attenta, cauta, acuta. Itaque inest haec in fide

et religione, cuius officium omni in re semper est necessarium, ingratum nunquam fuit in hac se palaestra

exercentibus. (181) 118

Humphrey está, aqui, citando livremente Cícero, em De oratore, II, XXXV, 148: Haec praecipue colenda est

nobis; haec semper adhibenda; haec nihil est quod non adsequatur. [Devemos sobretudo cultivá-la e sempre

empregá-la; pois nada há que ela não alcance.] 119

Illustris ergo est haec uirtus, qua omnes reliquae uirtutes continentur. Sensus ut penitus eliciatur, diligentia

est. Vt in illis omnibus locis considerandis et inuestigandis peruoluatur animus, ut se in causam penitus insinuet,

ut sit cura et cogitatione intentus, ut proprie, pure, ornate, apte, plene rem conceptam eloquatur, diligentia est.

Quare haec colenda est interpreti, semperque adhibenda, quia semper ea opus habet: nusquam non adesse

debet, quia nusquam non erit utilis, et quia quod uult sequitur, et quia haec nihil est quod non assequitur. (183)

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MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 2, 2016 52

[...]

Em primeiro lugar, que se estabeleça o verdadeiro significado, o poder, a

força enunciativa, a forma de cada palavra. [...] Em segundo lugar, que não

nos perca, a nós negligentes ou ociosos, algo não considerado. Em terceiro

lugar, que não acrescentemos a partir de nós o que é alheio e não está

presente no autor.120

O tempo ideal para traduzir:

Existem alguns inimigos da diligência que antes arrojam e precipitam com

uma rapidez excessiva seus trabalhos do que publicam, os quais se gabam

de que traduzem em um mês na íntegra o que outros, com dificuldade, em

seis. Mas quando as traduções vêm à luz, vê-se que são imperfeitas, rudes,

cheíssimas de erros. Devem, pois, ser aqui admoestados desta maneira uma

e outra vez para que não sejam precipitados para escrever e para publicar.121

[...]

No entanto, assim como não louvo uma produção muito rápida, tampouco

aprovo a diligência lenta e tarda de outros, que se arrastam, não sei como,

semelhantes a tartarugas, até se tornarem estúpidos e ineptos, pois os

obtusos demoram muito, mas não avançam, e hesitando, detendo-se,

demorando-se, mesmo se se movem, com ou sem dificuldade, contudo

retardam.122

Nunca deve o tradutor desanimar.

Tanto mais devemos nós exigir isto do tradutor de coisas divinas: que seja

ativo, vigilante, diligente! Que sempre repise este ponto, que se dedique

incessantemente a este trabalho santíssimo por dias e noites! São, pois, aqui,

as sacratíssimas palavras, com o favo e o mel, de longe as mais doces; mas

se mel, fel; se queres a amêndoa, quebre-se a noz; se buscas abelhas,

considerem-se os espinhos; se desejas o suave, não se recuse o amaro. Por

isso, se às vezes encontrares um nó, não te desesperes prontamente, não tires

a mão da massa; tampouco deve-se desanimar ou descuidar, mas uma vez e

outra deve-se examinar, reler, analisar a passagem, reunir os sequentes com

os antecedentes, os primeiros com os últimos, para que tu, por fim, possas

superar estas dificuldades pelo trabalho incansável e extrair o sentido oculto

e secreto, para que eles, ao bater e chocar, obtenham, por fim, fogo das

rochas. Assim, tu, se for possível, tira água das pedras. Atacando, pois, os

gregos chegaram à Tróia, e os generais alcançaram os Alpes, e, pela fé,

movem-se montanhas. Em suma, o trabalho contínuo produz e realiza coisas

120

Primum, ut cuiusque uerbi uera significatio, uis, emphasis, figura ponatur. [...] Secundum, ne quid

negligentibus, aut oscitantibus nobis, non animaduersum intercidat. Tertium, ne de nostro adiungamus quod est

alienum, et non in autore collocatum. (184) 121

Sunt nonnulli huius inimici diligentiae, qui nimia quadam celeritate eiiciunt et praecipitant sua opera potius

quam edunt: qui se uno mense translaturos iactitant qd alii uix sex integris. sed cum in lucem prodeunt,

imperfecti, rudes, erratis plenissimi conspiciuntur. Monendi sunt ergo hic huiusmodi iterum atque iterum, ne sint

ad scribendum praecipites, uel ad publicandum. (186) 122

Quanquam ut praeproperam maturationem non laudo, ita nec probo lentam et tardam aliorum diligentiam:

qui nescio quo modo instar testudinum reptant adeo ut hebetes cum sint, et plumbei, ualdeque obtusi moram

faciant, sed non proficiant: et haerendo, insistendo, immorando etsi moueant, tamen uix, aut ne uix quidem

promoueant. (188)

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Interpretatio Linguarum, o mais completo tratado renascentista sobre tradução

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admiráveis, e torna ἀδύλαηα δύλαηα [as coisas impossíveis possíveis], como

ensina Isócrates com o exemplo de Hércules e Teseu.123

Em poucas palavras, a diligência não faz nada que não seja corretamente.

Todas as coisas são, para ela, não somente possíveis, mas fáceis. O que,

pois, é difícil àquele que quer e que trabalha? Ele enxerga todas as coisas

recônditas, explora, examina, percorre os recessos dos autores e os mais

obscuros enredamentos, de modo que nada lhe seja impenetrável. Não em

vão, repito e repiso isto com tantas palavras. Todas as coisas difíceis, belas e

divinas devem ser tratadas pelo tradutor, as quais, por sua sublimidade, às

vezes refreiam a diligência deste, e a destroem. Mas deve-se pensar que

Homero disse espirituosamente que a moli124

é uma erva preciosíssima,

difícil de ser encontrada pelos mortais, tem a raiz negra, a flor láctea, os

frutos dulcíssimos. Hesíodo também disse que a emulação e coisas

grandiosas foram ocultadas por Deus nas raízes da terra, e que o caminho

para o auge da virtude é laborioso125

. Por isso, quanto mais difíceis

encontrares as coisas, quanto maior for o trabalho, tanto mais bela se dará a

vitória.126

Outros recursos do tradutor:

Dispõe, pois, o nosso tradutor de certos outros recursos, que podem aqui ser

referidos mais extensamente. Assim, considerando que a prudência é

necessária, quando os modelos se opõem, quando ocorrem palavras

contrárias, que escolha uma à outra. Também deve ser aqui empregada a

constância, virtude não ínfima, para que o tradutor seja consequente

consigo, e não se contradiga a si mesmo em uma passagem com outra.

Porque acontece muitas vezes que o que se esquece de si mesmo aprova em

alguns lugares a mesmíssima coisa que desaprova em outros por uma

123

Quanto magis hoc requirere debemus ab interprete rerum diuinarum, ut sit gnauus, uigilans, diligens? ut

incudem semper hanc tundat, ut in hoc opere sanctissimo noctes et dies urgeatur? Sunt enim hic fauo et melle

uerba sacratissima longe dulciora. at si mel, fel: si nucleum cupias, nux frangenda: si apes, spinae ferendae: si

suauia uelis, amara non sunt recusanda. Itaque si aliquando in nodum incidas, ne continuo desperes, ne tollas

manum de tabula. nec despondendus est animus aut cura abiicienda, sed iterum atque iterum introspiciendum,

relegendum, locus considerandus, sequentia cum antecedentibus prima cum ultimis componenda: ut tandem

inuicto labore has difficultates superes, et sensum abditum ac latentem elicias. ut hi qui tundendo et collidendo

ex silice tandem ignem elidunt: ita tu si fieri potest, aquam petas e pumice. Tentando enim Graeci uenerunt ad

Troiam, et Alpes ascenderunt duces, et fide montes mouentur. In summa, mira labor continuus producit et efficit,

et α α f α α, H Th x . (191-192) 124

Moli (κῶιπ) é uma planta mágica, fictícia, referida por Homero na Odisséia, X:304ss. :

Tinha a raiz de cor negra, mas branca era a flor, como leite.

Móli chamavam-lhe os deuses; difícil aos homens seria,

De vida curta, arrancá-la; mas tudo os eternos conseguem.

(trad. de Carlos Alberto Nunes) 125

Cf. Hesíodo, Os trabalhos e os dias, v. 11-24. 126

Breuiter nihil non recte facit diligentia. sunt omnia illi non solum possibilia, sed facilia. Quid enim difficile

uolenti et laboranti? Omnia uidet abstrusa, recessus autorum et inuolucra obscurissima explorat, inspicit,

euoluit, ita ut nihil ei sit non penetrabile. Non frustra tot uerbis haec repeto et inculco. Omnia enim difficilia

pulchra, et diuina sunt tractanda interpreti: quae sublimitate sua nonnunquam frangunt eius diligentiam, et

enecant. At cogitandum Homerum non insulse dixisse Moly herbam preciosissimam, mortalibus inuentu esse

arduam, radicem habere nigram, florem lacteum, fructus dulcissimos. Hesiodus quoque ait, aemulationem et res

praeclaras a Deo in terrae radicibus occultatas, et ad uirtutis fastigium iter esse laboriosum. Itaque quo duriora

inueneris, eo sit labor maior, quo pulchrior contingat uictoria. (192)

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avaliação oposta, e, assim, ele mesmo degola sua sentença com sua espada.

É, pois, um grande vício a leviandade e o esquecimento.127

Aqui também uma certa fortuna favorece os exemplares a serem analisados

e comparados, como deva obter todos os livros, tanto editados quanto

manuscritos, e adquiri-los desenterrando das bibliotecas onde foram

arredados e escondidos.128

Ademais, uma particular distinção de um tradutor é a ηαπεηλνθξνζύλε

[humildade], sem dúvida, simplicidade, para que não se arrogue demasiado,

nem tome além de suas forças o que não pode cumprir, porque o vício é um

vigorosíssimo pai. A arrogância e a soberba é a mãe das demais coisas. Pelo

que se diz, brilhantemente, “conhece-te a ti mesmo”129

, e Ele desceu do céu,

sem dúvida, para que cada um examine e conheça a si, suas capacidades,

forças e nervos, e não para saber as coisas mais elevadas130

, e que não abra

asas maiores que o ninho131

, como se diz. Aqui, pois, deve-se buscar e

debater com os mais doutos sobre as passagens duvidosas; e é necessário

não somente tomarmos uma resolução própria, mas também consultar a

opinião de outros.132

[...]

Com isso, põe-se aqui um fim e um limite do falar sobre estas qualidades do

traduzir.133

E Humphrey conclui o primeiro livro de seu tratado apresentando como epílogo um

rol dos pontos abordados.

*****

127

Sunt enim alia quaedam interpreti nostro admnicula, quae huc prolixius referri possent: Nam in iudicando

prudentia est necessaria, cum repugnant exemplaria, cum uoces diuersae occurrunt, ut alteram alteri praeferat.

Constantia etiam huc adhibenda est, uirtus non infima: ut sibi nimirum constet interpres: ne aliis atque aliis

locis sibiipsi sit contrarius. Quod saepe accidit, ut sui immemor alicubi probet, alicubi idem ipsum calculo

diuerso improbet, suamque ipse suo ense iugulet sententiam. Est autem magnum uitium leuitas et obliuio. (198-

199) 128

Huc accedit etiam quaedam felicitas in conquirendis comparandisque exemplaribus, ut habeat omnes tum

editos tum manuscriptos codices, illosque ex Bibliothecis ubi retrusi et abditi sunt, erutos nanciscatur. (199) 129

Oráculo na entrada do templo de Apolo, em Delfos, visitado por Sócrates. Do que resultou o pensamento

socrático “sei que nada sei”, base de sua filosofia e de seu método, a maiêutica. 130

Este nec sapiat altiora, de Humphrey, é provável referência a Eclesiástico 3:22: Altiora te ne quaesieris [Não

procurarás saber o que excede a tua capacidade]. 131

Pennas nido maiores extendere [abrir asas maiores que o ninho], provérbio latino aplicado a quem nutre

ambições maiores que suas capacidades, a quem “dá o passo maior que a perna”. 132

α φ , b , b ,

ultra uires sumat, quod praestare non ualet: quod uitium latissime pater. Est enim mater reliquorum arrogantia

et superbia. Quare praeclare dicitur, Nosce teipsum, de coeloque descendit, nimirum, ut se, facultates, uires

neruosque suos quisque libret et cognoscat, nec sapiat altiora, pennasque nido maiores non extendat, ut dicitur.

Hic ergo quaerendum, et in dubiis locis cum doctioribus conferendum: nec solum in nos descendere, sed etiam

alios in consilium oportet adhibere. (199) 133

Quare de his interpretandi uirtutibus hic dicendi finis modusque adhibeatur. (200)

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Referências bibliográficas

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