Upload
vanque
View
213
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
1
INTRODUÇÃO À HISTÓRIA DA FILOSOFIA
Marcos Aurélio Fernandes
UnB – 2017_2
I. INTRODUÇÃO À FILOSOFIA ATRAVÉS DO ESTUDO DO
PENSAMENTO GREGO.
I.1. COMEÇAR, EM BUSCA DO PRINCÍPIO
Pretendemos, neste curso, realizar uma introdução à história da filosofia. “Intro-
duzir” significa: levar para dentro (intro-ducere). O percurso que pretendemos realizar
neste curso pretende ser um caminho que abra para nós o acesso à compreensão da
história da filosofia e que nos conduza para dentro de seu reino, de seu domínio, de seu
âmbito de vigência.
Entretanto, será que estamos de fora da história da filosofia para ser preciso uma
introdução, isto é, um percurso que nos conduza para dentro dela? Ou será que, sem o
sabermos, estamos já de algum modo envolvidos na história da filosofia e implicados
com ela? Ainda que fosse assim, seria preciso nos elevarmos a um saber disso, por meio
da reflexão. Essa elevação à reflexão e à consciência de nosso estar dentro da paisagem
da filosofia seria então o propósito de nosso começo. Começar é, antes de tudo,
estabelecer um relacionamento decidido com aquilo que queremos realizar. Começar
bem é de fundamental importância em tudo quanto o homem faz. Há um provérbio
italiano que diz: “chi ben comincia è a metà dell’opera” (quem começa bem está na
metade da obra)1. Mas, para começar bem, o homem precisa pegar o jeito de ser
1 Cf. o mesmo provérbio em francês: à moitié fait qui commence bien.
2
relacionar com aquilo com que ele está lidando, ou seja, em torno de que ele se dispõe
a caminhar – no nosso caso, a filosofia e sua história. Este pegar o jeito do
relacionamento é fundamental em todo o começar – é o sentido do verbo latino
incipere, que quer dizer começar2.
No começar é importante que quem começa tome um bom impulso. É como
numa corrida, em que a largada é decisiva. Pensemos no atleta que, na largada, dobra
o seu corpo ao chão, se aquieta e se concentra todo, e, quando ouve o tiro, dá os
primeiros passos. Cada passo é como um salto. Do mesmo modo, num salto a distância
ou num salto triplo, a arrancada e cada passo se dão no intuito de ir potencializando o
impulso, até que se realize o salto final, em que o corpo do saltador se lança e se
abandona na espera do inesperado.
Começar, segundo a sabedoria da linguagem guardada na etimologia das línguas
neolatinas, é co-iniciar3. Mas, o que é iniciar? Resposta: iniciar é ir para dentro4. No
iniciar se realiza, pois, a introdução, o ser levado para dentro de um âmbito. Mas o
sentido mais próprio do iniciar se revela numa experiência que, desde tempos
imemoriais, a humanidade fez, a saber a experiência da iniciação. Nossa indicação é a
seguinte: começar é entrar num relacionamento com o início. Mas não é todo e qualquer
relacionamento que interessa. Pode-se começar muito, sem, porém, entrar em um
relacionamento pleno e próprio com o início. Mas o relacionamento pleno e próprio
com o início é iniciação. Entretanto, hoje, quando estamos sempre começando muitas
coisas e sempre de novo começando, no movimento da inovação da tecnologia e do
progresso, pouca experiência temos do que é início em sentido pleno e próprio, ou seja,
somos pouco experimentados nesta experiência fundamental de toda a vida humana,
que é a iniciação.
Iniciação é um relacionamento pleno e próprio com o início. Início se dá como
iniciar, isto é, como o movimento de ir e vir para dentro de uma recinto, de um âmbito.
Indica, pois, o fenômeno de entrada e passagem. Pensemos, por exemplo, na
2 Incipere vem de in (em) + capere: pegar nas mãos, tomar, agarrar. 3 Nas línguas neolatinas temos os verbos “cominciare” (it.), “commencer” (fr.), “comenzar” (esp.), “começar” (port.). Nestas línguas, estas palavras se formam a partir do latim vulgar cominitiare – que é a composição do prefixo com (junto) e do verbo initiare (iniciar). 4 “Initiare” é o frequentativo de inire, ou seja, ir para o interior, ir para dentro (in + ire).
3
experiência de entrada em uma caverna. A caverna, alumiada somente na zona da
entrada e ainda assim de maneira fraca, perde-se no escuro. Caminhos e passagens
ligam grandes e pequenos espaços. Alumiada pelo fogo, ela mostra um mundo peculiar
de formas pétreas, que têm algo de apelador e de constrangedor. Os sons soam
diversamente. Tudo percute e repercute estranhamente. A caverna confia seus
segredos como murmúrios e sussurros. Para o homem, é custoso ficar dentro de uma
caverna. Ela atrai, mas também amedronta. Ela é, ao mesmo tempo, familiar e estranha,
ao mesmo tempo proteção e perigo. As pinturas rupestres, as marcas e desenhos de
caverna têm a ver com ir, com vestígios, com o caminho de uma iniciação. Falam de um
entrar, que é um passar do mundo claro do dia para o mundo obscuro da noite, do
mundo do aberto e desencoberto para o mundo do encoberto. Falam de experiência,
isto é, de caminho e de transformação. Têm algo a ver com o despertar do espírito.
Pensemos a experiência de iniciação na filosofia de modo contrário a Platão. Este
pensou a iniciação à filosofia como o movimento de saída da caverna. Nós nos propomos
pensar essa iniciação como o movimento de ir para dentro de uma caverna. Isso quer
dizer: iniciar-se na filosofia é deixar para trás o mundo das clarezas meridianas, das
pretensas evidências do cotidiano, do mundo que nos circunda, do mundo público do
“a gente”, que é “todo o mundo”, mas que, no fundo, não é ninguém. Talvez a filosofia
nos fascine e nos atraia, mas também talvez nos ameace e amedronte. Talvez ela tenha
algo de familiar, algo como um retorno a uma paisagem em que possamos nos sentir
em casa junto do mistério de ser e viver, mas, justamente por se tratar de habitar junto
ao mistério, sentimo-nos expostos ao perigo, ao insólito, ao não domesticável5. O perigo
não só ameaça, mas também convida à coragem – à coragem da transformação. Assim,
ao nos dispormos a ir para dentro da filosofia somos acometidos pela sua ambiguidade
de proteção e ameaça, de fascínio e estranhamento, ou melhor, angústia. Mas talvez
seja justamente o fascínio da admiração e o estranhamento da angústia que nos advirta
para fazermos de nosso “ir para dentro” uma experiência bem cuidadosa.
5 Aliás, a palavra “mistério”, em alemão, se diz “Geheimnis”. “Ge-“ significa recolhimento. “Heim” é lar. Mistério é o recolhimento no lar. É o estar em casa, a serenidade do abandono confiante à cordialidade da vida.
4
Povos não modernos sabiam muito bem o que era a experiência de iniciação.
Hoje, pouco sabemos, pois pouco somos experimentados na perseverança de um “ir
para dentro” de uma dimensão e nela insistir. Iniciação é uma experiência fundamental.
Diz transformação essencial do humano através de uma passagem para uma outra
forma de existência. Os povos, desde os primórdios, cunharam a passagem da terra para
o mundo, da natureza para a cultura, como um processo de iniciação. A iniciação imita
o processo de cozimento. O que se inicia é separado, retirado, velado, encoberto. Depois
de provações ele é trazido de volta para o mundo aberto de todos como um novo
homem. A partir de então ele pertence plenamente ao mundo dos humanos. A
separação e o encobrimento, que é como que uma morte, dá ao homem um novo saber
de si, que se separada da imediatidade. Desperta consciência e reflexão. O homem passa
de uma existência natural, pueril, “inocente” para uma existência cultural, adulta,
“culpada”, isto é, responsável.
Toda iniciação tem algo a ver com morte e renascimento. Os latinos chamavam
de Initia (inícios) os Mistérios de Ceres, a Deméter dos gregos. Os gregos, em Elêusis,
celebravam a iniciação nos mistérios do amor, da vida e da morte, vigentes no Mito de
Deméter e Perséfone. Esta fora raptada por Hades, o deus do mundo subterrâneo, da
morte. Deméter deixou o Olimpo e saiu pelo mundo, procurando desoladamente à sua
filha. O Sol, que tudo vê, contou a Deméter que Core – a moça – tinha sido raptada por
Hades. Depois de muitas lágrimas e sofrimento, Zeus enviou Hermes, seu mensageiro,
para solicitar a Hades que devolvesse Core de volta à sua mãe. Hades aceitou. Mas
Perséfone tinha já se deixado seduzir pela flor do Narciso e se deixado entregar nos
braços de Hades, e tinha comido também o romã que este lhe havia dado; o que a
vinculou para sempre a Hades. Essa estória de morte e de amor, de éros e thánatos,
termina com o ressurgimento de Perséfone, e seu redescobrimento – Éuresis – por sua
mãe. A natureza, que antes, pelo inverno, padecia e morria, renasceu. Veio a primavera.
Perséfone, como o grão de trigo que permanece encoberto na terra, como que morto,
voltou à vida, e, com o seu retorno, tudo floresceu. Tudo fez-se primavera.
Os árabes, de modo semelhante, têm uma estória que fala de amor e de morte,
que era contada para as meninas quando estavam se tornando mulheres:
5
Quando a adolescente da noite chegou diante do
casebre cuja única saída era uma porta muito estreita por
onde somente um corpo glorioso poderia deslizar, ela
escutou, no silêncio da aurora, alguém que chorava por
causa dela, como se chora pelos mortos.
A adolescente bateu à porta e uma voz perguntou do
interior:
_ Quem está ali?
A adolescente respondeu:
_ Sou eu!
Houve então um grande silêncio e as próprias
árvores pararam seu murmúrio e não deixaram que fossem
ouvidas as primeiras notas da música dos pássaros cantores.
E a voz do interior nada respondia.
E a porta estreita não se abria.
Então a adolescente se revestiu do véu da meditação
e, sem uma queixa, sem um suspiro, se estendeu por terra,
junto à porta.
E todo o dia e toda noite, ficou ali estendida, com a
cabeça imersa no véu da meditação.
Deixou amadurecer em seu coração algo de muito
importante, isto é, que os privilegiados do amor morram
antes completamente a si mesmos, para só então se
apresentarem diante do amor.
Depois de ter compreendido isto, pronta para bater
à porta, levantou-se, foi primeiro lavar-se no rio. Depois,
com um passo decidido, voltou para o casebre e bateu à
porta.
E a voz perguntou do interior:
6
_ Quem está ali?
E a adolescente dessa vez respondeu:
_ És tu!
E a porta se abriu por si mesma.
E o resto é o mistério privilegiado do amor6.
Assim, em toda e qualquer iniciação há algo de morte e de renascimento.
Experiência. Transformação. Identificação com aquilo com que alguém se envolve e
passa a amar.
Iniciação é experiência. Mas, o que significa fazer experiência com alguma coisa?
Fazer uma experiência com algo, seja com uma coisa,
com um ser humano, com um deus, significa que esse algo
nos atropela, nos vem ao encontro, chega até nós, nos
avassala e transforma. “Fazer” não diz aqui de maneira
alguma que nós mesmos produzimos e operacionalizamos a
experiência. Fazer tem aqui o sentido de atravessar, sofrer,
receber o que nos vem ao encontro, harmonizando-nos e
sintonizando-nos com ele. É esse algo que se faz, que se
envia, que se articula.7
Falamos, aqui, de experiência no seu sentido mais vasto e originário. Significa,
aqui, um ser atingido, afetado, pelo real, pelas realizações, pela realidade. É algo como
o “full contact” (contato pleno) de uma luta corpo a corpo. A experiência se dá, aqui,
como uma simples apreensão: “significa, portanto, perceber, captar algo, de imediato e
corpo a corpo, de cabo a rabo, de tal forma que esse algo, aquilo que se capta, torne-se
trans- (per) – parente (aparecente). Trata-se, pois, da percepção simples, imediata, da
coisa ela mesma: evidência”8. Experiência, aqui, portanto, quer dizer a evidência corpo
a corpo da e na vida em sua simplicidade e imediatez, o seu modo de captação, a simples
6 Apud Buzzi, Arcângelo. Itinerário: a clínica do humano. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 31-32. 7 Heidegger, Martin. A caminho da linguagem. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2003, p. 120. 8 Harada, Hermógenes. Fragmentos de pensamento humano-franciscano. Org.: Ênio Paulo Giachini. Curitiba: Ed. Bom Jesus, 2016, p. 127.
7
apreensão (ver simples). Experiência não é, aqui, portanto, em nenhum sentido,
experimento, uma vez que o experimentado é sempre mediato e mediatizado9. Falamos
de experiência, aqui, portanto, de experiência em sentido pré-científico, no sentido do
“mundo da vida” (Husserl), da “experiência fáctica” (Heidegger).
Nós não fazemos experiência. Talvez seja mais exato dizer que nós sofremos
experiência. Pois aquilo de que nós fazemos experiência sobrevém a nós, nos atinge e
atropela. Toca-nos. Faz-nos dar de cara e topar com ele. Nisso, nossos olhos se abrem.
Acontece a descoberta. Nós nos encontramos, então, afeiçoados desse ou daquele
modo com isso que nos atingiu. Entretanto, talvez seja melhor ainda dizer que o
essencial não é que nós fazemos nem que nós sofremos a experiência, mas seja dizer
que a experiência mesma se faz. O fazer-se da experiência não é nem ativo nem passivo,
mas é, antes, medial. A experiência é o medium no qual nós vamos nos transformando,
quer em fazendo quer em sofrendo. Essa transformação, no entanto, é uma
transformação que acontece num caminho, na destinação de uma história, na travessia
do viver. No caminho da experiência, nós afinamos e desafinamos com aquilo de que a
experiência é experiência. Mas tanto o afinar-se quanto o desafinar-se se dá como busca
de dispor-se para receber o vigor essencial daquilo de que a experiência é experiência.
Dizíamos que toda iniciação tem algo de morte e renascimento. A iniciação à
filosofia, que é uma experiência do aprender a pensar, não é diversa. Será por acaso que
9 Na pesquisa da ciência moderna, a experiência é subsumida a partir e dentro do projeto intelectual (o matemático) e, assim, se transforma em experimento e se põe à disposição da formação de hipóteses e teorias, em vista do conhecimento e do saber. Uma conexão de percepções e representações é submetida a categorias. A experiência científica é experiência da experiência. Uma certa reflexividade, portanto, é a condição de possibilidade para a experiência se constituir num experimento. Na ciência, nós não somente fazemos experiências, mas fazemos experiências com nossas experiências, ou seja, experimentos. Experimentos são experiências realizadas e controladas com vistas à observação, vale dizer, à decisão acerca de determinadas perguntas, formuladas com base no projeto de determinadas teorias. A reflexividade da experiência leva, por sua vez, a produzir instrumentos de expansão do raio da observação (microscópios, telescópios, radar, etc) e a desenvolver um sensorium muito mais abrangente do que aquele da sensibilidade cotidiana. A reflexividade da experiência exige, ainda, que se aperfeiçoe, do ponto de vista qualitativo e quantitativo, as condições dos experimentos e que se alargue, cada vez mais, a envergadura de seu âmbito. Como se pode ver, a experiência, no âmbito da pesquisa científica, adquire contornos e determinações essenciais, fundamentalmente diferentes daquelas determinações e contornos da experiência cotidiana do mundo da vida. O experimento é uma espécie toda própria, portanto, de experiência, que se distingue qualitativa e decisivamente da experiência cotidiana, pois, enquanto a experiência cotidiana é imediata, a experiência do experimento só pode acontecer graças a diversas mediações.
8
Platão definiu a filosofia como uma preparação para a morte? Schelling certa vez
escreveu: “Somente aquele que chegou ao fundo de si mesmo e conheceu toda a
profundidade da vida, que já tudo abandonou e foi ele mesmo por todos abandonado,
para quem tudo naufragou e que se viu sozinho com o infinito, foi capaz do grande
passo, que Platão já comparou com a morte”10.
Em vez de morte podemos falar de salto. A única maneira de iniciarmos na
filosofia é dando um salto de regresso às origens de nosso existir humano, isto é, de
retorna ao que nos é constitutivo em nossa existência:
Em filosofia não há possibilidade de introdução. Um
abismo separa o espaço ordinário da existência, em que se
move tanto o modo de ser habitual, familiar e imediato da
vida cotidiana, como o modo de ser objetivo, técnico e exato
da vida científica, do espaço extraordinário, em que se agita
a investigação filosófica. E nenhuma ponte o poderá
transpor. Não, certamente, por estar o espaço da filosofia
demasiado distante e sim demasiado próximo de todos os
modos de ser da existência histórica.
Daí também toda a dificuldade da filosofia para o
homem moderno, que vive, habitualmente, no espaço da
ordem do dia. Dessa perspectiva o mais longo e o mais difícil
dos caminhos é sempre aquele que leva ao que é mais íntimo
e está mais próximo. É tão íntima a presença da filosofia no
país dos homens, que se torna impossível uma introdução e
muito difícil o acesso à sua paisagem. A filosofia já está
sempre operando em todo pensamento, que nela se procura
iniciar e introduzir. O único caminho possível é retorno
brusco da existência à sua origem. A paisagem da filosofia
não está em lugar algum, esperando que nela se introduza o
pensamento. A paisagem da filosofia se instaura e origina
pelo movimento da própria investigação filosófica, que,
10 Schelling, F. W. Na introdução de: “A essência da liberdade humana”. Petrópolis, Vozes, 1991, p. 15.
9
pondo-se em questão, retorna às origens, donde ela mesma
provém11.
Num a iniciação na filosofia o que está em jogo é nos deixar aviar a um caminho
que nos leva ao que nos está mais próximo: à origem a partir donde se abre a nossa
própria existência histórica. No entanto, como, normalmente, vivemos esquecidos da
origem, este caminho que nos leva ao que nos é mais próximo se nos torna o mais
distante. O acesso, porém, a esta origem se abre somente à medida que nós nos pomos
a caminho na busca do aprender a pensar. Neste empenho e nesta busca de aprender a
pensar já atua o vigor do próprio pensamento, que funda a filosofia. Somente por já
morarmos no país do pensamento e na paisagem da filosofia, quer saibamos ou não,
quer queiramos ou não, é que nós podemos buscar nos introduzir na filosofia. “Só a
filosofia é começo dela própria; só ela é medida dela mesma; só ela é acesso a ela
própria; por fim, só ela pode se revelar a si própria. Nada de fora dela pode nela
pretender introduzir, ou explicá-la, ou justificá-la”12.
O movimento de ir para dentro da, isto é, de introduzir-nos na filosofia, tem,
então, o sentido de um retorno à origem da nossa própria existência histórica. Somente
no movimento deste retorno, por meio da aprendizagem do pensar, que é,
fundamentalmente, uma aprendizagem do questionar, que se nos abre o acesso àquilo
que buscamos: o país do pensamento, a paisagem da filosofia. No curso, portanto, em
seu caráter introdutivo, não se dá num percurso horizontal e progressivo, mas sim num
percurso vertical e regressivo. Isto quer dizer: voltar atrás e ir para o fundo donde
emerge a história da filosofia. Pode até ser que, em vez de passos, o que teremos que
realizar são saltos. Pode ser que a origem só se nos torna acessível como salto para
dentro do fundo-abismo de onde emerge e procede a história da filosofia.
Aprender a pensar com o pensamento dos pensadores requer, antes de tudo, a
disposição para a pobreza da filosofia. Entretanto, como se caracteriza esta pobreza?
Fundamentalmente, como pobreza da ignorância, do não-saber. Ensinar filosofia não
tem nada a ver com transmitir informações ou construir conhecimentos. Em
correspondência, aprender filosofia não tem nada a ver com angariar informações ou
11 Leão, Emmanuel Carneiro. Aprendendo a pensar (2ª edição). Petrópolis: Vozes, 1989, p. 107-108. 12 Fogel, Gilvan. Da solidão perfeita: escritos de filosofia. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 53-54.
10
apossar-se de conhecimentos. Ensinar filosofia é deixar-aprender a filosofar. Do mesmo
modo, aprender filosofia é aprender a filosofar. Com efeito, filosofia não é doutrina, mas
movimento, ação de pôr-se a caminho através da busca questionadora do sentido de
ser, consumação de nossa referência de ser com o mistério de ser que está na origem
de nossa própria existência histórica, numa palavra, filosofar. Filosofia é filosofar. Para
além de uma mera repetição vazia, que marca passo no mesmo lugar, isto constitui um
aceno para um movimento, um engajamento, uma ação que provém do âmago do ser
humano mesmo e que lhe requer todas as forças para poder ser realizado: o movimento
do perguntar, da busca investigadora do sentido do ser de tudo aquilo que é. Por sua
vez, para que o questionamento aconteça, é preciso a pobreza da ignorância. É a
ignorância, o não-saber, que acende em nós a centelha, a faísca, do desejo de buscar,
de questionar, o sentido de ser de tudo o que é. Na aprendizagem do pensar, portanto,
o que está em jogo não é a transmissão do conhecimento, mas a suspensão dele.
Somente na contenção e na suspensão do não-saber é que o questionamento do sentido
de ser de tudo o que é pode viver. A ignorância é, pois, o elemento em que vive e de
que vive todo o empenho de aprender a pensar. Informações e conhecimentos dão
segurança. Ignorância e pensamento, porém, enviam nossas existências numa via de
apertos e perigos, em que deixamos para trás a familiaridade do que nos é familiar e
ordinário: a (aparente?) segurança do cotidiano e da ciência. Estudar para aprender a
pensar é, pois, diverso de estudar para acumular informações e angariar conhecimentos.
Quem estuda para aprender a pensar “quer esvaziar-se mais e desaprender mais para
arriscar-se mais a ser mais. Se não se apostar a vida, não se aprende nada”13. Quem
estuda para acumular informações e angariar conhecimentos busca um repertório de
respostas. Quem estuda para aprender a pensar dispõe-se à aventura do
questionamento e à espera do inesperado, que é sem vias de acesso; e esta disposição
acarreta transformação no seu próprio ser. “Quando se aprende, crescem as
possibilidades de ser e realizar-se; aumentam-se, em consequência, as possibilidades de
viver e de morrer”14.
13 Leão, Emmanuel Carneiro. Filosofia Grega: uma introdução. Teresópolis: 2010, p. 26. 14 Idem, ibidem.
11
Na aparência do ordinário a filosofia aparece ou como ciência ou como visão de
mundo. Mas, na sua paisagem própria, no fundo da existência, a filosofia não é nem uma
coisa nem outra. Filosofia não é doutrina, é atividade. Isso sabia e ensinava
Wittgenstein. Kant também, quando dizia: “nicht Gedanken, sondern denken, nicht
Philosophie, sondern philosophieren lernen” (aprender não pensamentos, mas a pensar,
não filosofia, mas a filosofar)15. Mas, o que é filosofar? É a ação de saltar de retorno ao
fundo-abismo da existência humana. É o movimento de redução, isto é, re-condução à
origem, de penetração, sondagem e ausculta do sentido do ser, que incessantemente
emerge do abismo desvelante da existência histórica – da “vida”, da “nossa vida”16.
Na aparência do ordinário, a filosofia se dissimula como uma “especialidade
científica”, com suas várias disciplinas, uma “área de produção de conhecimento”, um
“campo de pesquisa” entre outros, ao lado das demais ciências, presentes na
universidade. Ou então, ela se dissimula como um conjunto de visões de mundo, de
correntes e tendências, de doutrinas e “ismos”, mais ou menos influentes na cultura de
hoje. Mas, na sua dimensão-paisagem própria, a filosofia não é produção de
conhecimento objetivo, técnico, útil, que constrói e progride; é pensamento que
questiona e que, questionando, destrói e regride, certamente, não no sentido de uma
mera aniquilação, mas no sentido do retorno à origem da existência história, ao abismo
desvelante da possibilidade de ser de que esta emerge. Na sua paisagem própria, a
filosofia é memória desta origem e, ao mesmo tempo, espera do inesperado. Na
aparência do ordinário, a filosofia é visão de mundo, imposição de ideias e ideários, de
ideologias, de doutrinas e “ismos”. Mas, na sua paisagem própria, que é a paisagem do
pensamento do ser, a filosofia é finita, vazia e pobre, frágil e vulnerável – ela não presta
para nada, não serve para impor nada. Melhor, ela apenas propõe o nada – a saber, o
nada criativo do abismo desvelante da possibilidade de ser. Trata-se de uma finitude
alegre e grata – que fica à vontade no “sei que nada sei”. No entanto, é nessa e em
virtude dessa fraqueza que a filosofia consuma o seu vigor, torna-se presença atuante e
atual, embora velada, no país dos homens – fraqueza que se retrai e se encobre,
dissimulada pela aparência de poder e de força da ciência e da visão de mundo, na
15 (AA II, 306 e AA, IX, 25ss). 16 Cf. Harada, Hermógenes. De Estudo, anotações obsoletas. Petrópolis / Bragança Paulista: Vozes / EDUSF, 2009, p. 78-80.
12
exuberância das muitas “filosofias”. Não obstante a pluralidade das “filosofias”, a
filosofia – entendida não como doutrina, mas como atividade de pensar-questionar o
sentido de ser do ente como tal e no todo – é sempre a mesma, embora nunca é igual.
É sempre e cada vez a mesma exposição vulnerável, afetável, para o sentido insurgente,
emergente do sentido de ser do ente como tal e no todo. Esta exposição é o movimento
corajoso do questionamento. É a radicalização da autonomia humana. É engajamento
de libertação dos condicionamentos do ordinário para a liberdade criativa do
extraordinário, que é o mistério de ser17.
Todo aparente cabedal de saber da filosofia esconde na sua aparente riqueza a
pobreza do questionamento. Toda informação filosófica clama pela interpretação
pensante, quer dizer, reflexiva e questionadora, da mensagem que ela aduz. Todo o
conteúdo de conhecimento filosófico é apenas um vestígio de um movimento de
questionamento, isto é, de busca, de interrogação, de investigação. Esta investigação
abre a profundidade abissal, originária do mistério de ser de tudo o que é. O mistério de
ser, no entanto, não é nada daquilo que está sendo. Não é coisa nenhuma. É um nada.
Mas, ao ouvirmos isto, convém suspender o que julgamos já saber tanto sobre o que
está sendo, quanto sobre o ser, quanto sobre o nada. Por exemplo, convém
suspendermos o preconceito de que o nada não concerne, não interessa, ao
pensamento, pois o nada não vigora, e do nada nada vem, bem como de que o nada, se
de algum modo ainda vige, vigora, é como privação e negação, sendo, portanto, algo de
negativo, no sentido de ser algo de destrutivo, de aniquilador. Mas talvez, para a
pobreza do pensamento, para o não-saber, a ignorância sábia, o nada vigore de uma
maneira criativa, de modo que do nada tudo vem, dele emergem todas as possibilidades
de ser do que está, de algum modo, sendo. Se for assim, então, pensar é, na pobreza do
não-saber, da ignorância, esperar a doação repentina das possibilidades de ser, que
irrompem do abismo do nada criativo de tudo. Não seria este um modo de interpretar
o “sei que nada sei” de Sócrates?
Apenas como um aceno a esta questão do nada remetemos a uma estória
estranha. É estranha, em primeiro lugar, porque nos vem de uma tradição estranha: a
17 Cf. Harada, Hermógenes. De Estudo, anotações obsoletas. Petrópolis / Bragança Paulista: Vozes / EDUSF, 2009, p. 91-94.
13
do oriente, mais precisamente, da China, pois seu autor é um pensador do Tao
(caminho), chamado Chuang-Tzu. É estranha, em segundo lugar, pois nos leva a
estranhar a vigência do nada em tudo. Vejamos:
No tempo de mando, desmando e comando da
China Imperial, um Imperador Amarelo não possuía a pérola
cor da noite. Mandou, então, a ciência pesquisar. Mas
debalde a ciência não encontrou a pérola cor da noite. O
Imperador mandou a técnica inventar. Mas a técnica
também não encontrou a pérola cor da noite. O Imperador
mandou a análise calcular. Mas em vão, a análise não
encontrou a pérola cor da noite. O Imperador mandou a
filosofia investigar. Mas, sem sucesso, também a filosofia
não encontrou a pérola cor da noite. O Imperador mandou a
arte criar. Mas outro fracasso, a arte não achou a pérola cor
da noite. O Imperador achou tudo muito estranho e ficou
ainda mais abismado quando, com o tempo, descobriu que
o nada que não fora enviado, que não pesquisa, que não
inventa, que não calcula, que não investiga, que não cria
nada é a pérola cor da noite. Desde então, o Imperador
Amarelo deixou de somente mandar, de somente
desmandar, de somente comandar os chineses, para poder
no e com o nada ser também a pérola cor da noite”18 (Leão,
2013, p. 212).
O estudo da filosofia começa com o estranhamento de tudo, sim, inclusive com
a própria filosofia. Quanto mais nós estudamos a filosofia para obter informações e
angariar conhecimento, mais nos familiarizamos com a filosofia e mais diminui a
estranheza inaugural da filosofia. Mais alcançamos o poder, o saber e o ter do
conhecimento, com a sua segurança. No entanto, quanto mais nós estudamos a filosofia
para aprendermos a pensar, mais a estranheza cresce, tanto o estranhamento com
todas as coisas, que somos e não somos, quanto a estranheza com a própria filosofia. E
18 Apud Leão, Emmanuel Carneiro. Filosofia contemporânea. Teresópolis: Daimon, 2013, p. 212. Cfr. a versão de Merton, Thomas. A via de Chuang-Tzu. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 118.
14
mais somos enviados ao país do não-saber, do não-poder, do não-ter, e
experimentamos o perigo de viver. “No estudo da filosofia, começa-se com estranheza
da disciplina. Estranheza aumenta na medida em que com ela nos familiarizamos; e se
consuma num estranho nada. Nada saber, nada poder, nada ser. Daí a exclamação da
interrogação: estudar filosofia, um nada!?”19
Hoje, temos excesso de informação, de conhecimento e de saber. É preciso,
nesse sentido, haver um pouco de burrice, de uma sábia burrice. É preciso uma
pedagogia da pobreza. A pobreza do saber, contudo, é o nada saber. Neste sentido, é
preciso recordar o princípio socrático da pedagogia do pensar: “oida oudèn eidos” – sei
nada sabendo. Nada saber é, aqui, porém, saber o nada. A palavra para nada é, aqui,
“oudén”. Literalmente quer dizer: “nem um”. O nada não é nenhuma coisa, não é
nenhum ente. Neste sentido, nada nomeia de modo apropriado o ser como diferença
do ente. O ser não como fundamento da entificação do ente. Mas o ser como não
fundamento. O ser como fundo-abismo.
Começamos, pois, em busca do princípio da filosofia. E este começar tem o
sentido de um dispor-se à experiência de uma iniciação no caminho do filosofar, que é
aprender a pensar, o que implica o não-saber. Surge uma pergunta: o que há com o
princípio na filosofia? É o que tentaremos interrogar em seguida.
19 Harada, Hermógenes. De estudo, anotações obsoletas. Petrópolis/Bragança Paulista: Vozes/Edusf, 2009, p. 212.