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CADERNO CRH, Salvador, v. 24, n. 62, p. 245-248, Maio/Ago. 2011 245 Ricardo Terra, Luiz Repa DOSSIÊ INTRODUÇÃO Ricardo Terra * Luiz Repa ** TEORIA CRÍTICA Não é exagero dizer que a pesquisa sobre a tradição de pensamento conhecida pelo nome de “Teoria Crítica” passa por um momento de forte renovação no cenário acadêmico brasileiro e internacional. Entre os fatores principais que propiciaram essa renovação, do qual o presente dossiê pretende ser um exemplo, consta certa- mente o fato de ter ocorrido uma desmistificação do termo “Escola de Frankfurt”. Tal termo, cuja origem tardia e utilização político-acadêmica fo- ram analisadas por uma série de investigações históricas desde os meados dos anos setenta, aca- bou se tornando um obstáculo para a compre- ensão da complexidade e da fecundidade da Te- oria Crítica. De maneira indevida, ele conferia uma homogeneidade doutrinária (a ideia de “es- cola”) a autores tão distintos, ao mesmo tempo em que restringia seu alcance a uns poucos pen- sadores, fazendo perder de vista tanto o ambi- ente interdisciplinar diversificado como a conti- nuidade dessa tradição nos tempos atuais. Perdia-se de vista igualmente o que susten- tava a verdadeira unidade dessa tradição no inte- rior de sua evidente multiplicidade teórica e dis- ciplinar: a constante busca de atualizar o diag- nóstico de época segundo as exigências de apre- ender os potenciais emancipatórios inscritos na realidade das sociedades capitalistas contempo- râneas e, simultaneamente, identificar os obstá- culos ao desenvolvimento desses potenciais. Es- sas exigências foram postas por Horkheimer, em seu texto “Teoria Tradicional e Teoria Crítica”, como os dois princípios que as distinguem. Como mostra o artigo de Rúrion Melo, apoiando-se nos estudos recentes de Marcos Nobre, esses princí- pios são articulados por Horkheimer ao se referir à obra de Marx como matriz da Teoria Crítica, e, ao mesmo tempo, orientar-se para um diagnósti- co do capitalismo moderno bastante distinto do de Marx. O conceito de Teoria Crítica só surge, portanto, no momento em que componentes teó- ricos centrais do marxismo pareciam invalidados. Dadas essas exigências da Teoria Crítica, entende-se a diversidade dos diagnósticos seja * Doutor em Filosofia. Professor titular da Universidade de São Paulo. Av. Luciano Gualberto 325. São Paulo – SP. [email protected] ** Doutor em Filosofia. Professor do Departamento de Filoso- fia da Universidade Federal do Paraná. [email protected]

Introduçao a Teoria Crítica Repa-terra

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TRata-se de uma breve introdução à teoria crítica.

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    INTRODUO

    Ricardo Terra*

    Luiz Repa**

    TEORIA CRTICA

    No exagero dizer que a pesquisa sobrea tradio de pensamento conhecida pelo nomede Teoria Crtica passa por um momento deforte renovao no cenrio acadmico brasileiroe internacional. Entre os fatores principais quepropiciaram essa renovao, do qual o presentedossi pretende ser um exemplo, consta certa-mente o fato de ter ocorrido uma desmistificaodo termo Escola de Frankfurt. Tal termo, cujaorigem tardia e utilizao poltico-acadmica fo-ram analisadas por uma srie de investigaeshistricas desde os meados dos anos setenta, aca-bou se tornando um obstculo para a compre-enso da complexidade e da fecundidade da Te-oria Crtica. De maneira indevida, ele conferiauma homogeneidade doutrinria (a ideia de es-cola) a autores to distintos, ao mesmo tempoem que restringia seu alcance a uns poucos pen-sadores, fazendo perder de vista tanto o ambi-ente interdisciplinar diversificado como a conti-

    nuidade dessa tradio nos tempos atuais.Perdia-se de vista igualmente o que susten-

    tava a verdadeira unidade dessa tradio no inte-rior de sua evidente multiplicidade terica e dis-ciplinar: a constante busca de atualizar o diag-nstico de poca segundo as exigncias de apre-ender os potenciais emancipatrios inscritos narealidade das sociedades capitalistas contempo-rneas e, simultaneamente, identificar os obst-culos ao desenvolvimento desses potenciais. Es-sas exigncias foram postas por Horkheimer, emseu texto Teoria Tradicional e Teoria Crtica,como os dois princpios que as distinguem. Comomostra o artigo de Rrion Melo, apoiando-se nosestudos recentes de Marcos Nobre, esses princ-pios so articulados por Horkheimer ao se referir obra de Marx como matriz da Teoria Crtica, e,ao mesmo tempo, orientar-se para um diagnsti-co do capitalismo moderno bastante distinto dode Marx. O conceito de Teoria Crtica s surge,portanto, no momento em que componentes te-ricos centrais do marxismo pareciam invalidados.

    Dadas essas exigncias da Teoria Crtica,entende-se a diversidade dos diagnsticos seja

    * Doutor em Filosofia. Professor titular da Universidade deSo Paulo.Av. Luciano Gualberto 325. So Paulo SP. [email protected]

    ** Doutor em Filosofia. Professor do Departamento de Filoso-fia da Universidade Federal do Paran. [email protected]

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    em relao aos potenciais e aos obstculos paraa emancipao, seja para a prpria concepo deemancipao, sem que, com isso, a prpria uni-dade dessa tradio se enfraquea. Ao contrrio,sua atualizao constante, que frequentementese realiza por meio de crticas severas entre osseus representantes, a condio mesma da suaunidade e da sua continuidade. O presente dossiilustra esse nimo prprio da Teoria Crtica deuma dupla forma: primeiro, por apresentar, emseu conjunto, aquela diversidade de diagnsti-cos; segundo, pelo fato de os colaboradores bus-carem tambm renovar os potenciais tericos dosautores analisados para os problemas da socie-dade contempornea.

    Cabe mencionar ainda um terceiro aspectoem que as colaboraes se deixam animar pelasexigncias determinantes da Teoria Crtica. Seusautores participam diretamente ou so colabora-dores frequentes do Ncleo Direito e Democraciado Centro Brasileiro de Anlise e Planejamento(NDD/CEBRAP), o qual, h uma dcada, tem rea-lizado pesquisas tericas e empricas sobre as ten-dncias jurdicas, polticas e sociais contempor-neas, em um ambiente interdisciplinar que re-ne pesquisadores de filosofia, direito, cinciapoltica e sociologia. Tendo como referncia ini-cial a obra de Habermas sobre direito e demo-cracia, mas contando com uma grandeheterogeneidade de perspectivas metodolgicase tericas, o NDD se tornou um centro de for-mao, pesquisa e reflexo voltado para a teoriasocial em seu sentido amplo. Naturalmente, osdiversos modelos de Teoria Crtica desenvolvi-dos desde a poca de Horkheimer se tornaramobjeto de investigao e discusso nesse ncleo.Com isso, acreditamos que o dossi aqui apre-sentado permite, no interior de seus limites, ofe-recer uma contribuio importante e qualifica-da para a compreenso da Teoria Crtica, princi-palmente no que se refere sua complexidade efecundidade.

    O artigo de Rrion Melo, que abre o dossi,toma por objeto os princpios da Teoria Crtica,propondo uma reconstruo de sua histria a par-

    tir da questo sobre o significado da ideia de eman-cipao. Tambm aqui, sobretudo aqui, apresen-ta-se o momento em que a conceitualizao dessaforma de teoria por parte de Horkheimer passapor um distanciamento em relao a Marx. Poisem Marx e no marxismo em geral, a emancipa-o significou, na maioria das vezes, a configu-rao de uma sociedade do trabalho, que toma-va como central a crtica ao trabalho abstrato,prprio da lgica de reproduo do capital. JHorkheimer e, com ele, Adorno principiam umaforte crtica ao potencial emancipatrio da cate-goria de trabalho, cuja lgica , ento, aproxi-mada daquela da razo instrumental, concei-to-chave com que ambos os pensadores buscamentender a realidade das sociedades capitalistasdos anos quarenta. Porm, segundo o autor, so-mente a partir de Habermas se conseguiu abrirnovos sentidos para o conceito de emancipao,livrando-se do modelo produtivista. Com isso,tambm a oposio entre reforma e revoluodeixa de ser, em princpio, um dilema para opensamento de esquerda, uma vez que ambosos polos refletiam a mesma equao de identifi-car emancipao e sociedade do trabalho.

    Se o artigo de Rrion Melo oferece umaampla viso da Teoria Crtica a partir de umaquesto nuclear como essa sobre os sentidos daemancipao, o texto de Luciano Gatti, que ana-lisa os comentrios de Walter Benjamin sobreBertolt Brecht, apresenta, de maneira quase mi-croscpica, como o interesse pela emancipaosocial se aloja na reflexo esttica daquele pen-sador. Contrariando uma forte tendncia da lite-ratura de comentrio, a de ver, em Benjamin, ofilsofo da perda da experincia e, com isso, nos-tlgico das tradies pr-modernas, Luciano Gattiintenta descobrir, nas suas crticas literrias, nocaso especialmente de um artista revolucionriocomo Brecht, as condies atuais da experinciaurbana, explorando seus potenciais de negaoda realidade capitalista.

    Por sua vez, a contribuio de Luiz Repafoca um problema de natureza mais histrico-filosfica e metodolgica, tematizando o uso dos

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    conceitos de negao determinada e de totalida-de em Theodor W. Adorno, segundo sua pro-posta de fornecer um modelo eminentementenegativo de dialtica. Reconstituindo a crtica deAdorno ao elo indissocivel entre totalidade enegatividade na dialtica hegeliana, o autor pre-tende mostrar, contudo, que tambm Adornorecorre a um conceito de totalidade social, comuma funo explicativa e crtica. Esse recurso sedaria em um nvel macrolgico, enquanto, emum nvel microlgico, Adorno insiste na crtica categoria de totalidade. A combinao dessesnveis poderia ser entendida, segundo a hipteseinterpretativa de Luiz Repa, a partir dos concei-tos de crtica imanente e de iluso socialmentenecessria. Ao contrrio de Hegel, Adorno pensaa negao determinada como uma crtica imanentevoltada contra a falsa identidade e, portanto, afalsa totalidade em que se encontram os indiv-duos socializados no capitalismo tardio.

    A questo sobre o potencial emancipatrioe seus bloqueios inscritos na realidade social re-aparece nas contribuies de John Abromeit ede Felipe Gonalves Silva, porm em contextostericos diversos. No artigo de John Abromeit,ela se apresenta como pano de fundo da anliseespecfica sobre a crtica marcuseana datecnologia. Contrapondo-se leitura de queMarcuse influenciado por Heidegger nessa cr-tica, o que suscita elogios ou reprovaes,Abromeit parte da tese de que Marcuse assimilaabordagens fenomenolgicas sem comprometero quadro terico maior, dado pela compreensomarxiana da tcnica como fora produtiva. Des-sa maneira, o autor procura analisar todas as prin-cipais etapas da crtica de Marcuse ao desenvol-vimento tecnolgico no capitalismo tardio, re-cuperando, para cada uma delas, o contexto his-trico especfico, a fim de mostrar que o filsofonunca deixou de sublinhar o potencialemancipatrio da tcnica, mesmo nos momen-tos em que ela se converte em meio privilegiadode dominao social. Segundo Abromeit, a in-fluncia de Heidegger bastante localizada, etampouco deve servir de premissa para explicar

    o dficit democrtico de Marcuse. Tambm nes-se caso, tal dficit deve ser atribudo dvidaterica para com Marx.

    J na contribuio de Felipe Gonalves Sil-va, a questo sobre os potenciais emancipatriose seus bloqueios se configura como fio condutorpara uma reconstruo da teoria habermasianado direito e da democracia. A partir do conceitohabermasiano de emancipao, referido aos pres-supostos de uma discusso isenta de domina-o, Felipe Gonalves Silva decifra as estratgiasmais gerais do pensador para escapar tanto deum realismo ctico como de um normativismoutpico a respeito daqueles potenciais. Ao mes-mo tempo, o autor procura mostrar que a pro-posta de Habermas padece de algumas limita-es importantes, tais como a restrio a um con-ceito de direito excessivamente vinculado ideiade coero, dficits sociolgicos importantes acer-ca das patologias sociais contemporneas e, porfim, a centralizao igualmente excessiva do pro-cesso legislativo para a compreenso da polticadeliberativa. Contudo essas crticas devem ser,por fim, inseridas em uma correta compreensoda teoria habermasiana do discurso, ou seja, comoum projeto inacabado a ser explorado conformeo fluxo das demandas dos movimentos sociais.

    Por fim, o artigo de Nathalie Bressiani exa-mina o modelo crtico de Nancy Fraser no con-texto de sua discusso acirrada com AxelHonneth a respeito da melhor compreenso dasdemandas de justia existentes nas sociedadesmodernas contemporneas, ou seja, a discussoacerca da redistribuio ou reconhecimento comoconceitos normativamente orientadores. O inte-resse da autora, no entanto, incide sobre os mo-delos de teoria social que esto na base da dis-cusso entre Fraser e Honneth, os quais elaelucida, reconstruindo as crticas que eles diri-gem a Habermas, especialmente Teoria da aocomunicativa. Segundo Nathalie Bressiani, ain-da que essas crticas apresentem muito seme-lhanas, sobretudo no que diz respeito separa-o estanque entre as esferas da reproduo ma-terial e da reproduo simblica, isto , entre

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    sistema e mundo da vida, elas se dirigem a re-sultados bastante distintos. Enquanto a teoriasocial de Honneth caminha para uma espcie demonismo normativo, centrado no conceito dereconhecimento, Fraser pretende atenuar odualismo habermasiano, insistindo nainterligao entre sistema e mundo da vida comofonte de injustia, mas tambm na especificidadedessas esferas para a produo de diversas ou-tras formas de subordinao social.

    preciso sublinhar, finalmente, que o pre-sente dossi no pretende, de modo algum, esgo-tar nem mesmo fornecer uma viso de conjuntoa mais ampla possvel da Teoria Crtica. Seria pos-

    svel abordar outros tericos importantes dessa tra-dio, como Franz Neumann, Friedrich Pollock, OttoKirchheimer, Iris Young, Seyla Benhabib, KlausGnther, assim como variar os enfoques e os pro-blemas tratados em cada um dos autores aqui anali-sados. Porm, como dissemos de incio, o dossipretende refletir algo essencial para a ideia de Teo-ria Crtica: sua preocupao com o presente, comas potencialidades de uma sociedade emancipada ejusta, com os obstculos para a efetivao dessaspotencialidades, sem querem criar, para isso, umaescola.

    (Recebido para publicao em 30 de junho de 2011)(Aceito em 15 de julho de 2011)

    Ricardo Terra - Doutor em Filosofia. Professor titular da Universidade de So Paulo. Coordenador o NcleoDireito e Democracia do CEBRAP, desenvolvendo pesquisa sobre filosofia poltica e teoria crtica. Co-organi-zou Direito e Democracia. Um guia de leitura de Habermas. So Paulo: Malheiros Editores, 2008; Rechtund Frieden in der Philosophie Kants. Berlin: Walterde Gruyter, 2008. Publicou Kant & o direito. 1. ed. Riode Janeiro: Zahar, 2004.

    Luiz Repa - Doutor em Filosofia. Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Paran.Integra o Ncleo de Pesquisa Direito e Democracia do CEBRAP, desenvolvendo pesquisas na rea de filosofiapoltica e teoria crtica. Suas mais recentes publicaes so: Hegel, Habermas e a modernidade. Dois Pontos:Curitiba, v. 7, p. 151-162, 2010; A transformao da filosofia em Jrgen Habermas: os papis de reconstru-o, interpretao e crtica. So Paulo: Esfera Pblica, 2008; Reconhecimento da diferena na teoria crtica.In: Amarildo Luiz. (Org.). Cultura, diferena e educao. Porto Alegre: Sulina, 2010.