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7 1 INTRODUÇÃO É notório o poder e a versatilidade do cinema como contador de estórias. Mediante dispositivos narrativos que lhe são próprios e exclusivos (posto que não são disponíveis a outras formas artísticas, como a pintura ou o teatro, por exemplo), o cinema é capaz de levar uma dada fábula a adquirir um escopo imensamente maior do que se poderia pressupor da mesma à primeira vista. Desvelando aspectos e ocultando outros, podese desenvolver uma narrativa concorrente à contada explicitamente, onde os traços particulares podem pertencer às entrelinhas, ao simbólico, ao implícito, à sugestão. Ademais, é possível postular que qualquer arte da representação (o cinema é uma arte da representação) gera produções simbólicas que exprimem mais ou menos diretamente, mais ou menos explicitamente, mais ou menos conscientemente, um (ou vários) ponto(s) de vista sobre o mundo real (...) (VANOYE, GOLIOTLÉTÉ, 1994: 61). Arte relativamente recente (data de pouco mais de um século) em comparação às demais – estas, mais tradicionais, como a dança, a escultura e a pintura –, o cinema é dotado de caracteres identitários vinculados, aliás, como em qualquer forma artística, à sua materialidade operacional – muito particulares a si (como os princípios lingüísticos os quais o regem, como as concepções de montagem e miseenscene o permitem aferir). Entretanto, como as demais formas artísticas, a cinematográfica é capaz de construir uma realidade própria a si, destituída – ao menos a primeira vista – da usual praticidade cotidiana de uma realidade empírica, mas notavelmente capaz de suscitar as mais diferentes aproximações valorativas da parte de um leitor ideal (como quaisquer outras manifestações artísticas, digase de passagem) em condições também ideais de apreensão intelectual:

INTRODUÇÃO · Arte relativamente recente (data de pouco mais de um século) em comparação às demais – estas, mais tradicionais, como a dança, a escultura e a pintura –,

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1 INTRODUÇÃO

É notório o poder e a versatilidade do cinema como contador de estórias. Mediante

dispositivos narrativos que lhe são próprios e exclusivos (posto que não são disponíveis a outras

formas artísticas, como a pintura ou o teatro, por exemplo), o cinema é capaz de levar uma dada

fábula a adquirir um escopo imensamente maior do que se poderia pressupor da mesma à

primeira vista. Desvelando aspectos e ocultando outros, pode­se desenvolver uma narrativa

concorrente à contada explicitamente, onde os traços particulares podem pertencer às entrelinhas,

ao simbólico, ao implícito, à sugestão.

Ademais, é possível postular que qualquer arte da representação (o cinema é uma arte da representação) gera produções simbólicas que exprimem mais ou menos diretamente, mais ou menos explicitamente, mais ou menos conscientemente, um (ou vários) ponto(s) de vista sobre o mundo real (...) (VANOYE, GOLIOT­LÉTÉ, 1994: 61).

Arte relativamente recente (data de pouco mais de um século) em comparação às demais –

estas, mais tradicionais, como a dança, a escultura e a pintura –, o cinema é dotado de caracteres

identitários – vinculados, aliás, como em qualquer forma artística, à sua materialidade

operacional – muito particulares a si (como os princípios lingüísticos os quais o regem, como as

concepções de montagem e mise­en­scene o permitem aferir). Entretanto, como as demais formas

artísticas, a cinematográfica é capaz de construir uma realidade própria a si, destituída – ao

menos a primeira vista – da usual praticidade cotidiana de uma realidade empírica, mas

notavelmente capaz de suscitar as mais diferentes aproximações valorativas da parte de um leitor

ideal (como quaisquer outras manifestações artísticas, diga­se de passagem) em condições

também ideais de apreensão intelectual:

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(...) F ilmo o rosto de uma mulher, a mão de outra, o pé de uma terceira, assim por diante e monto: o espectador vê uma mulher perfeitamente convincente só que ela não existe, é uma invenção do cinema criada pela montagem. Essa é uma experiência que Kulechov teria feito nos anos 10. Em 19 faz um pequeno filme em seis planos: prato de comida – rosto de um homem – criança brincando – rosto de um homem – um caixão – rosto de um homem. Quem viu o filme concordou que o célebre ator Mosjukin interpretava maravilhosamente o desejo, a ternura e a tristeza. Só que... os três planos de Mosjukin eram exatamente o mesmo. Os sentimentos lidos na cara do ator foram interpretações dos espectadores, as quais nascem de seus valores (a fome diante da comida, a ternura diante da criança), mas valores provocados naquele momento pela aproximação das imagens. Ternura ou tristeza não são expressas pelo filme; elas resultam da reação do espectador diante da justaposição de imagens. É como se não se pudesse ver duas imagens seguidas sem estabelecer entre elas uma relação significativa (...) (BERNADET, 2001; 49).

O principio fundamental à realidade constituída cinematograficamente é, pois, o mesmo

às demais (como as coreográficas e as pictóricas): o cinema, como toda arte, é um fim em si. Ou

seja, o cinema, como toda forma e manifestação artísticas, encontra o seu fim não em outro lugar

senão em si próprio. Às suas regras se encontra, pois, sujeito e aos seus desígnios próprios

obedece de modo fidedigno, sob o risco de que sua produção não resulte cinematográfica – e,

portanto, artística –, em caso de esta condição não se fizer satisfeita.

E fruto desta produção artística que é o cinema é o próprio filme, que deve ser

entendido como a manifestação física destes desígnios (estilísticos e lingüísticos) que regem o

cinema, uma vez que se constituiu enquanto produto de um labor artístico, segundo estes mesmos

e particulares desígnios. Afinal, para além de um mero registro em película, filme diz respeito à

própria matéria e produto final do cinema (e, mais diretamente, a obras particulares, como a que é

proposta, aqui, de ser tomada em análise, a saber, A Mexicana, de Gore Verbinski).

Obviamente, o conceito aqui apresentado não remete (somente) aos elementos que

poderíamos chamar de técnicos (o registro de um dado evento – predeterminado ou não –; e a

edição do material obtido mediante este registro prévio). Certamente, a eles faz referência, mas

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enquanto processos do artifício cinematográfico: edição do material coletado, com vistas ao

estabelecimento de uma adequação ao que se tem pretendido de antemão; fotografia e

sonoplastia, onde se busca igualmente a supressão de todo elemento que se considere alheio ao

caráter pretendido de uma dada seqüência; inserção da trilha sonora, mediante adequação

recíproca da mesma à seqüência (fílmica) a que se destina. A este processo se chama montagem e

seu produto e remetente direto é o próprio filme que, como toda arte, remete ao labor de um ou

mais artífices, o(s) qual(is) a obtêm não tão somente mediante elementos considerados

meramente técnicos, mas mediante, antes, processos artísticos (de constituição de uma realidade

distinta da usual praticidade cotidiana, posto que artística; de se prestar as mais indistintas

apreensões e fruições intelectuais de um dado leitor colocado idealmente em condições plenas de

aproximação desta mesma obra).

Inicialmente vinculado ao interesse mera e puramente científico, a saber, o de estudar o

movimento dos corpos que lhe são objetos e os pesquisar em suas especificidades, o cinema, em

seu início, não era mais que uma diversão de feiras de variedades, o qual não reteria por muito

tempo o interesse do grande e leigo público, senão o interesse acadêmico, segundo os seus

próprios criadores, os irmãos Lumiére. Em uma passagem conhecida (e anedótica) dos

primórdios da história da chamada sétima arte, eles tentam dissuadir Georges Mélies, homem de

mágica e espetáculo, crente no poder ilusório e lúdico do cinematógrafo criado por seus

interlocutores, a desistir de o pretender fantasioso, senão científico. Mélies, futuro descobridor

dos primeiros “truques” da montagem, só consegue comprar na Inglaterra o instrumento que

tentara, sem sucesso, conseguir de Lumiére.

E, com base numa própria reprodução da realidade que se crê fidedigna (ainda que se

seja passível de discussão quanto a sua fidedignidade a realidade, o cinema, também quanto ao

senso comum, é mais passível de uma reprodução da realidade mais apurada que a pintura ou a

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escultura, por exemplo), é que o cinema, a partir das próprias trucagens de Mélies, vem a operar

sobre a própria realidade, constituindo­se, afinal, não apenas como algo distinto da usual

praticidade cotidiana da mesma, mas também como algo que a toma por objeto, constituindo uma

realidade mais própria a si, uma realidade propriamente cinematográfica, berço de seu

fundamento artístico o qual lhe é mais caro e pessoal, posto que inerente a sua natureza. O

cinema, como linguagem artística baseada na própria reprodução da realidade, a reconstitui,

afinal, de modo inteiramente original (melhor, específico, como o são específicos os respectivos

modos de lidar com a realidade pela pintura e pela escultura – para se ater ao exemplo

anteriormente empregado), servindo­se do próprio mundo e o transformando em discurso

(artístico, diga­se de passagem).

O cinema, contudo, possui uma faculdade lhe é única (posto que jamais é não apenas

reconhecida, como vinculada a qualquer outra forma artística): a faculdade original de

transformar o mundo em discurso servindo­se do próprio mundo. Do próprio mundo, reitera­se, e

não de sinais arbitrários (como faz a literatura, por exemplo) ou semelhantes (como faz, a sua

vez, a pintura, mas ainda assim arbitrários, diga­se de passagem) empregados na substituição

deste próprio mundo. Quer­se dizer que o cinema possui uma atitude escritural (posto que

estilística, como a noção de “autor” vem a inferir), que se vem a somar ao seu caráter foto­

reprodutor originário (que se pretendia científico, quando do seu primórdio, com Lumiére).

O fílmico é, no filme, o que não pode ser descrito, é a representação que não pode ser representada. O fílmico começa somente onde terminam a linguagem e a metalinguagem articulada (Roland Barthes, citado em AUMONT, 1994: 215).

Com realizadores, embora distintos, temporal e ideologicamente, como David Wark

Griffith, Sergei Eisenstein, Dziga Vertov, Alfred Hitchcock, Glauber Rocha, Ingmar Bergman,

Akira Kurosawa, Nelson Pereira dos Santos, Francis Ford Coppola, Martin Scorcese, Steven

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Spielberg e Quentin Tarantino (para referir a alguns poucos), o cinema adquiriu uma sintaxe que

lhe é peculiar, ademais própria. São notórias as influências que os considerados grandes

realizadores – os ditos realizadores autorais – exercem sobre os demais. Paralelo ao trabalho

autoral que os chamados grandes cineastas realizam – e através do qual se inscrevem nos anais da

história do cinema –, o cinema acompanhou uma particular tematização de seus materiais, bem

como sua posterior classificação sob gêneros, como comédia, drama, suspense e western (embora

estas próprias categorias sejam imprecisas, quanto ao seu julgamento, posto que também são

imprecisáveis, quanto à sua natureza).

Deste modo, Hitchcock, por exemplo, influencia realizações ainda hoje, notadamente no

campo do thriller, gênero para o qual contribuiu de maneira única, inscrevendo­se entre os

maiores nomes do cinema. Tem­se que, dentre as realizações na esteira da imortal e extensa obra

de Hitchcock, estão produções como Dublê de Corpo (Body Double, EUA, 1984), Olhos de

Serpente (Snake Eyes, EUA, 1998) e Femme Fatale (Idem, EUA, 2002), todas de Brian de Palma

(sobre as quais muito já se discorreu em estudos anteriormente realizados com o nítido propósito

– dentre outros – de referi­la a influencia exercida pelo chamado “Mestre do Suspense” sobre a

construção e composição das próprias por de Palma, seu maior discípulo), esta também

característica do thriller, posto que lida de modo totalmente particular com uma serie de materiais

temáticos próprios ao gênero (como constituição das personagens e do conflito que a narrativa

encerra, a título de exemplo).

A Mexicana (The Mexican, EUA, 2001), filme de Gore Verbinski é, hoje, uma das

poucas produções no campo do chamado – e tripudiado! – “cinema comercial” (geralmente

entendido como a produção hollywoodiana, de alto orçamento e baixo comprometimento com o

desenvolvimento do cinema enquanto forma artística, com a busca de uma estética e forma que

sejam suas) que se presta a uma representação simbólica, concomitantemente a uma leitura

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meramente “literal” que dele se possa fazer. O aspecto “literal” não é, portanto, privilegiado em

detrimento do aspecto o qual se pode considerar “ulterior” ou “simbólico”. Antes, ambos os

vieses narrativos se prestam à apreensão de um leitor ideal em condições de perfeita equidade.

Isto explica, ao menos em parte, tanto o êxito e o renome obtidos enquanto realizador, como

igualmente, a celebridade entre parte da crítica (aquela não afeita ao cometimento de

preconceitos por A Mexicana se tratar, afinal, de uma produção hollywoodiana), público e outros

cineastas, a despeito da sua tão pouco extensa e relativamente recente obra.

Em uma época em que os chamados “filmes comerciais” não mais exigem algo mais

que uma apreensão “literal” (carecendo, portanto, de uma significação ulterior, melhor,

simbólica) por parte do leitor, A Mexicana, de Verbinski, é um das poucas obras a não descuidar

de uma apreensão simbólica (não a desprivilegiando frente a uma interpretação “mais simples”,

mas se trabalhando tanto uma quanto a outra em questão de paridade). O presente Trabalho de

Conclusão de Curso pretende, deste modo, analisar a referida obra de Verbinski, com vistas à

demonstração acadêmica do modo como a mesma se constitui poeticamente (já que, como as

demais formas narrativas, o cinema também dispõe de uma poética própria, que lhe é bastante

cara, visto se tratar, acima de tudo, de uma forma artística).

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1.1 FICHA TÉCNICA

A Mexicana (The Mexican), EUA, 2000.

Direção: Gore Verbinski.

Roteiro: J. H. Wyman.

Música: Alan Silvestri.

Fotografia: Darius Wolski.

Figurino: Colleen Atwood.

Edição: Craig Wood.

Desenho de Produção: Cecilia Montiel.

Produção Executiva: William Tyrer, Chris J. Ball, Aaron Ryder e J. H. Wyman.

Produção: Lawrence Bender e John Baldecchi.

Co­Produção: William S. Beasley.

Elenco: Brad Pitt (Jerry), Julia Roberts (Samantha), James Gandolfini (Leroy), Bob Balaban

(Nayman), J. K. Simmons (Ted), David Krumholtz (Beck), Richard Coca (o ladrão do carro),

Michael Cerveris (Frank), Sherman Augustus (o verdadeiro Leroy), Castuto Guerra (o

proprietário da loja de penhores) e Gene Hackman (Margolese).

Duração: 123 minutos.

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2 METODOLOGIA

A análise fílmica da referida obra (A Mexicana) se dará mediante sua redução aos seus

particulares elementos constitutivos.

Analisar um filme ou fragmento é, antes de mais nada, (...) decompô­lo em seus elementos constitutivos. (...) Parte­se, portanto, do texto fílmico para “desconstruí­lo” e obter um conjunto de elementos distintos do próprio filme. Através dessa etapa, o analista adquire um certo distanciamento do filme. Essa desconstrução pode naturalmente ser mais ou menos aprofundada, mais ou menos seletiva segundo os desígnios da análise (VANOYE, GOLIOT­LÉTÉ, 1994: 15).

E os desígnios aos quais, aqui, faz­se alusão são, evidentemente a identificação de

matrizes próprias aos diferentes gêneros na obra de Verbinski, bem como a apreensão da referida

obra em toda a sua completude (literal e simbólica).

Uma segunda fase consiste, em seguida, em estabelecer elos entre esses elementos isolados, em compreender como eles se associam e se tornam cúmplices para fazer surgir um todo significante: reconstruir o filme ou o fragmento. (...) O analista traz algo ao filme; por sua atividade, à sua maneira, faz com que o filme exista (VANOYE, GOLIOT­LÉTÉ, 1994: 15).

Estar, afinal, ciente do modo como se dá a construção narrativo­simbólica da obra, ao

modo como a mesma se constitui intrinsecamente (como estas mesmas matizes temáticas se

correlacionam internamente na constituição de um dado filme), é metade do trabalho e esforço a

ser despendido. Entretanto, isto não é tudo e, tantas quantas são as reentrâncias cognitivas

componentes de obras desta envergadura, tantos são os riscos de se incorrer em erros e

“derrapagens” quando da própria análise destes elementos, embora esta esmerada reconstrução a

que se destina a análise fílmica (em termos acadêmicos, haja vista a possibilidade de se

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reconstruir cognitivamente em variados níveis – quanto a sua profundidade – um mesmo filme)

seja própria da fruição de uma obra cinematográfica. Esta reconstrução implica, pois, um

constante risco de se incorrer em erro.

(...) É evidente que esta reconstrução não apresenta qualquer ponto em comum com a realização concreta de um filme. É uma “criação” totalmente assumida pelo analista, é uma espécie de ficção, enquanto a realização continua sendo uma realidade. O analista traz algo ao filme; por sua atividade, a sua maneira, faz com que o filme exista.

Os limites dessa invenção, dessa “criação” são, contudo, muito estritos. O analista deve de fato respeitar um principio fundamental de legitimação: partindo dos elementos da descrição lançados para fora do filme, devemos voltar ao filme quando da reconstrução, a fim de evitar reconstruir um outro filme. Em outras palavras, não se deveria sucumbir à tentação de superar o filme. (...) O filme é, portanto, o ponto de partida e o ponto de chegada da análise (VANOYE. GOLIOT­LÉTÉ, 1994: 15).

Decompor­se­á, pois, a obra em elementos fundamentais à linguagem cinematográfica

(a saber, planos, movimentos de câmera, seqüências, dentre outros), com vistas ao

estabelecimento de um estudo mais acurado e mais voltado aos objetivos que, idealmente, a

análise fílmica se propõe. Recorrendo­se as análises de planos, seqüências e planos­seqüências

selecionados da supracitada obra, chegar­se­á mais pacificamente a um denominador, semântico

e simbólico, comum a todos eles e, pois, à obra em particular.

Não basta ter visto o filme, é preciso revê­lo; e também manipula­lo, para selecionar seus fragmentos, operar comparações entre seqüências de imagens não imediatamente consecutivas, confrontar o último plano com o primeiro etc (...) (AUMONT, 1994: 214).

Atendo­se aos aspectos cognitivos que o próprio realizador cuidou de enfatizar em

determinados planos e seqüências mediante recursos lingüísticos próprios ao cinema (como

movimentos de câmera, por exemplo), corre­se menos risco em “derrapar” quando da análise

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global de A Mexicana. Este é, enfim, o modo que o proponente do presente Trabalho de

Conclusão de Curso julga ser mais adequado à observância destes mesmos desígnios.

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3 CONCEITOS FUNDAMENTAIS

Com vistas a um melhor entendimento do que se será, a partir do momento em que a

análise da obra A Mexicana começar a ser empreendida, exposto, faz­se necessário, antes, que se

detenha um pouco em alguns conceitos fundamentais ao prosseguimento da exposição

subseqüente. Deste modo, tratar­se­á deles futuramente com muito mais desenvoltura, não

havendo necessidade de se abrir parênteses em demasia quando da mesma exposição e,

conseqüentemente, não quebrando o seu ritmo.

É igualmente fundamental reiterar que o presente Trabalho de Conclusão de Curso não

se destina a as discutir em sua propriedade, assim como as diferentes aproximações e

apropriações que os diferentes autores que delas tratam fazem. Objetiva­se, antes, oferecer, de

modo enxuto e concordante aos desígnios da presente análise, uma compilação sucinta, mas

eficaz, de conceitos os quais devem ser manuseados de modo hábil a partir de agora.

Outros conceitos, como, por exemplo, os de “quadro”, “plano” e “seqüência”, de uso

largo e consagrado no cinema, não serão aqui, apresentados. A razão de tal preferência se

constitui tanto pela economia de tempo que uma sua não­abordagem acarreta, quanto o de já

haverem se constituído em objeto fundamental a toda uma extensa produção literária a respeito

do cinema (para uma objetiva distinção dos mesmos, ver Jacques Aumont), não se constituindo,

caso se decidisse por sua abordagem, o presente Trabalho de Conclusão de Curso em uma

inovação essencial a discussão dos mesmos. Por outro lado, se aqui outros conceitos são

expostos, o são devidamente, por não se constituírem, apesar de sua reconhecida importância e

salvo raras exceções que optam por os discutir em sua propriedade, objetos caros as discussões

literárias a respeito da especificidade fílmica.

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3.1 A RESPEITO DE FÁBULA E DISCURSO 1

Fábula faz referencia a um dos pólos componentes do discurso fílmico. Por questões

metodológicas, costuma­se falar da produção fílmica enquanto fundamentada em um bipolarismo

essencial 2 , identificado muito menos a uma manifestação concreta, real, do que a uma eficiente

ferramenta metodológica de análise fílmica (mote do seu uso aqui, no presente Trabalho de

Conclusão de Curso). Fábula faz, enfim, referencia a estória contada em um filme, ao argumento,

ao mote primeiro e objeto das sinopses, à função que o cinema atribuiu para si desde o seu

princípio e a qual se encontra irremediavelmente ligado:

(...) Não se pode deixar de reconhecer que a chamada sétima arte, por grande máquina fabuladora, é chamada a desempenhar na atualidade a mesma função mitopoética das canções de gesta da Idade Média e do romance realista do século XIX. O cinema se propõe a satisfazer, à semelhança desses dois gêneros citados, aquela fome de narrativas tão antiga como o homem e que constitui a manifestação mais elementar da sua insuprimível necessidade de imaginário (SETARO, 1998).

1 É preferida, aqui, a utilização de “Discurso” a “Narrativa”, ao que é comumente referido quando posto em jogo o

bipolarismo essencial à produção fílmica, do qual Fábula se constitui como um dos pólos componentes. A razão da

preferência faz referencia à cotidiana e não­rara confusão feita entre “Fábula” e “Narrativa”, como se se tratassem de

termos permutáveis. “Discurso”, ao contrário, não alimenta tal ambigüidade semântica, aludindo a uma virtual

pluralidade do mesmo frente a mesma Fábula (diz­se “polissemia”), afinal, uma Fábula cotidiana como uma anedota

pode ser contada tão diferentemente quanto são diferentes aqueles que se dispõem a cantá­la. Esta variedade

discursiva é o mote fundamental a Rashomon (Idem, Japão, 1950), de Akira Kurosawa, por exemplo, que sobre uma aparente confissão de perpetramento de um assassinato e estupro, emergem quatro diferentes versões (melhor,

“discursos”): o criminoso, a esposa violentada, o samurai assassinado e o açougueiro. 2 Essencial, posto que não­real, antes, como já dito, metodológico, uma vez que não há uma real distinção entre

aqueles a que se alude ao se falar de pólos constituintes do discurso fílmico – a saber, Fábula e Discurso (ou

Narrativa) – dentro do mesmo discurso quando de sua manifestação concreta, ou seja, quando se tem, diante de si,

um filme. Antes, ambos, se se manifestam de modo relativamente concreto, o fazem inextricavelmente ligados, de

modo que uma pretensão à sua dissociação se pretenderia absurda, dada a natureza do próprio filme em seu Discurso.

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Discurso, por sua vez, é fundamentalmente identificada aos próprios desígnios do

cinema enquanto forma e manifestação artísticas, ao próprio discurso fílmico, – à semelhança das

crônicas morais contadas por Esopo, à transcendência da literalidade fabulística. Nesta acepção,

Fábula e Discurso corresponderiam ao objeto e ao como do filme, respectivamente, onde este, o

Discurso, ainda que de natureza mais recôndita do que aquela, a Fábula (essencialmente, mais

literal; melhor, explícita), prevaleceria sobre a estória, uma vez que, de modo mais contundente,

corresponde aos desígnios mesmos do cinema enquanto manifestação artística (digno a fruição e

deleite intelectuais). Com efeito, Ismail Xavier alude a questão muito propriamente ao afirmar,

remetendo a François Truffaut e Hitchcock, que, “o cinema puro se dá quando a lógica das

imagens e sons diz mais sobre a verdade dos comportamentos (não excluído o da própria platéia)

do que a superfície do enredo” (TRUFFAUT, 1998: 17).

Deste modo, o Discurso se serviria da Fábula para se impor em toda a sua riqueza a

apreciação de qualquer leitor em condições ideais de fruição, onde o que se deve ser buscado não

são os meandros e tramas da estória (mote da Fábula), mas, antes, as reentrâncias sígnicas e

cognitivas do discurso empreendido (mote do Discurso) 3 . Não há, pois, verdade mais cara ao

cinema enquanto manifestação artística em seus desígnios que a expressa pelo crítico André

Olivieri Setaro:

Assim, é evidente que o plano onde se torna necessário procurar a sua eventual poeticidade não é o plano da fábula ­ story, mas, sim, o plano da narrativa ­ discourse, porque em qualquer filme nascido com intenções artísticas o conteúdo serve sempre de pretexto à forma, entendendo­se por forma, esclareça­se, não a que

3 Em O Informante (The Insider, EUA, 1999), a título de exemplo, Michael Mann, preferiu a utilização de planos

longos, em sua duração, e aproximados, fechados nas personagens, e detalhistas, e a ausência de tripés para as

câmeras (que tremem pela ausência do artifício que lhes confere sustentabilidade) de forma a continuamente reiterar

a atmosfera claustrofóbica e a impotência essencial das protagonistas, notadamente Jeffrey Wigand (Russel Crowe),

postas em conflito contra uma grande e poderosíssima corporação de cigarros.

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em tempos idos foi definida como expressão da beleza, porém o modo como a obra se encontra organicamente estruturada do ponto de vista semântico (SETARO, 1998).

3.2 A RESPEITO DO MACGUFFIN E DA SUA COMPREENSÃO

Correlato conceitual ao leitmotiv (literalmente, “motivo condutor”) francês, o macguffin

hitchcockiano diz respeito a um recurso eminentemente fabulístico, em torno do qual gravita a

ação, mas que nada mais é senão um gatilho da mesma, um desencadeador do movimento sobre o

qual o filme se constitui, tanto fabulística, quanto discursivamente. De fato, o seu caráter é

evidentemente irrisório frente ao que se dispõe, frente ao que desencadeia. O macguffin “é um

expediente, um truque, um recurso para uma situação problemática 4 (...)” (TRUFFAUT,

2004:137), e como tal Alfred Hitchcock o considera e sobre ele não se detém ao afirmar que:

Um fenômeno curioso acontece invariavelmente quando trabalho pela primeira vez com um roteirista; ele tende a concentrar toda a sua atenção no MacGuffin e tenho de lhe explicar que isso não tem a menor importância. (...) O MacGuffin não é nada (TRUFFAUT, 2004: 138­9).

O MacGuffin, portanto, ainda que indissoluvelmente ligado a Fábula, se faz reverberar

também no campo do Discurso, posto que, ainda que se trate de uma trivialidade meramente

acidental se se pensar na obra em seu caráter mais geral e externo, internamente é o próprio

dispositivo de “atração” da mesma. Fora necessário que o assassino Bruno Anthony encontrasse

o isqueiro de estimação do inocente tenista Guy Haines e fosse manifesta a sua intenção de, com

4 Hitchcock o bem soube explicar a François Truffaut em uma de suas entrevistas e, embora se tratem de termos

equivalentes (e sobre os quais não vale a pena discutir as propriedades e limitações de suas nomenclaturas), aqui, no

presente trabalho, prefere­se a utilização do macguffin hitchcockiano ao leitmotiv francês, por justamente se almejar a propriedade da compreensão do realizador inglês a respeito de tão claro “motivo” da ação.

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ele, incrimina­lo, que Pacto Sinistro (Strangers on a Train, EUA, 1951), do supracitado

Hitchcock, adquire novíssimos e originais contornos.

Ora, é certo que o próprio isqueiro é o macguffin ao qual, aqui, alude­se, mas é igualmente

certo que o mesmo não tenha de ser necessariamente um isqueiro. Pode ser uma abotoadura

exclusiva, ou mesmo um documento de identidade ou de habilitação. O macguffin só cumpre o

seu papel se, o objeto perdido pelo ingênuo lhe seja pessoal e ao seu proprietário remeta

diretamente (no que se pode servir como evidencia incriminatória pelo malicioso) e seja um

objeto relativamente fácil de ser perdido. Ora, um isqueiro é esquecido mais distraída e

facilmente do que uma bengala, ou um robusto volume de enciclopédia, fisicamente descomunais

em comparação aquele.

Decerto, o macguffin serve de “gatilho” ao que dele se pretende desencadear se a sua

delimitação não o for tão displicente quanto o pode aparecer da primeira vista ao leitor

desavisado da declaração do realizador inglês. Está­se em presença, ainda que aparentemente seja

simples o que dele se pretenda, de um complexo jogo semiótico de associações e identidades ao

qual não se deve furtar, sob o risco de, ao não se considerar com propriedade o próprio caráter do

macguffin, perder o sentido que se deseja imprimir a obra antes mesmo de o esboçar. Isto é o que

confere, pois, ao macguffin inconteste importância fundamental.

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4 UM PRIMEIRO OLHAR SOBRE A MEXICANA

O argumento de A Mexicana gravita em torno do casal Jerry e Sam, bem como de um

artefato que se julga amaldiçoado, uma pistola, a própria “mexicana” do título. Jerry (Brad Pitt),

uma das personagens protagonistas, recebe a incumbência de viajar ao México para recuperar a

supracitada arma e a entregar ao seu empregador, o mafioso Arnold Margolese (Gene Hackman),

como forma de saldar uma sua dívida moral para com este. Em um evento ao qual se alude

quando dos créditos iniciais e, posteriormente, explicados, sabemos que o desafortunado Jerry foi

responsável pela prisão de Margolese ao colidir com o seu carro cinco anos antes (carro onde se

encontrava alguém amarrado ao porta­malas e que, em virtude do nada extraordinário acidente,

acaba sendo descoberto por policiais).

Como conseqüência, Jerry é levado a trabalhar para Margolese por exatos cinco anos, o

tempo em que este cumpriria sua pena. Ser o portador da arma se constituiria, portanto, na última

incumbência de Jerry, já que Margolese está às vésperas de ser solto. Entretanto, Sam (Julia

Roberts), a namorada de Jerry, não aceita esta última intromissão de Margolese em sua vida

conjugal e se separa de Jerry, partindo para Las Vegas, onde tenciona ser garçonete e crupiê.

Deste modo, ambos empreendem suas respectivas viagens: ele, ao México, e ela, a

Vegas. Fundamentada em uma progressão paralela (posto que se constitui sobre os eixos “Jerry”

e “Sam”) da ação fabulística, o argumento se constitui sobre uma binariedade em sua essência,

posto que se fundamenta sobre dois fios condutores (a saber, os supracitados Jerry e Sam), cujos

atos e escolhas virão a influenciar um ao outro continuamente, bem como seus próximos atos e

suas escolhas futuras. Neste sentido, a estória (o argumento é habilmente assinado por J. H.

Wyman) é construída de modo a favorecer a alernacia e o simultaneísmo perspectivos de modo a

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constituir, de forma mais contundente, um crescendo dramático marcado por uma tensão

fortemente sugerida.

Jerry deve recuperar a arma do próprio neto de Margolese, Beck (David Krumholtz),

que, em um incidente obscuro e ao qual não há explicação aparente, tem “a mexicana” roubada e

é morto, recaindo sobre Jerry fortes suspeitas a respeito de sua lealdade. Como forma de o

pressionar a devolver a arma, Bernie Nayman, braço­direito de Margolese, envia o assassino

Leroy (James Gandolfini) para seqüestrar Sam, que a tudo até então desconhecia.

A Mexicana se desenvolve como uma crônica das transformações afetivas e morais

pelas quais passam suas personagens, principalmente Jerry e Sam, mas também o próprio Leroy,

Ted e Margolese. A viagem ao México e seus pormenores acarretam em Jerry uma maturidade

jamais por ele experienciada.

(...) O percurso começa com um fator desencadeador, a partir do qual o personagem terá que provar algo, enfrentando com isso a franca oposição dos poderes instituídos (polícia, política, cidadãos " idôneos" , etc.). É esse percurso que na maioria das vezes constitui o suspense (...) (GARDNIER).

A viagem é (...) o [lugar­narrativo] mais congenial ao cinema, que sempre mostrou uma predileção particular por histórias tendo por tema a descrição de um itinerário físico durante o qual, entre mil dificuldades e imprevistos, o protagonista passa de um estado de ignorância a um estado de conhecimento. Ou, como se pode também dizer, do pecado à salvação. A viagem é pontuada por etapas que se constituem em estações de um percurso interior que conduz do Erro inicial à Verdade final (SETARO, 1998).

Jerry tem de aprender a lidar com as adversidades que se (im)põem ao seu caminho. De

recuperar a arma roubada a lidar com a possibilidade de ser assassinado por seu próprio amigo e

colega de profissão, Ted, também mandado por Nayman, Jerry deve voltar a si de modo a superar

sua própria imaturidade essencial, condição sine qua non de uma virtual vitória em face as

adversidades que se (im)põem à sua frente. O deslocamento físico (deslocamento, portanto,

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horizontal) – mote da Fábula – serve ao deslocamento existencial (deslocamento, a sua vez,

vertical), ou melhor, desenvolvimento essencial (posto que se trata de um desenvolvimento em

essência, em natureza) – mote do Discurso empreendido ao longo da obra –: a viagem chega ao

fim, mas Jerry não é mais o mesmo o qual começara a a empreender, senão outro, agora mais

maduro.

De forma semelhante, é o mesmo que ocorre a Sam em sua viagem a Las Vegas e,

depois, também ao México, acompanhada de Leroy, para recuperar o artefato em poder de Jerry.

Entretanto, de modo diferente ao de Jerry, em seu alçamento ao estado de consciência, Sam é

tutelada por Leroy, que, de algoz, torna­se professor e confidente de sua vítima. Da revelação de

sua homossexualidade a Sam, deflagrada por seu fortuito encontro com um estranho em um café

de estrada, e, conseqüente e inapelavelmente, das confidencias feitas à mesma, Leroy a prepara

afetivamente para reassumir o seu relacionamento com Jerry. E, ao final da projeção, está­se,

também, em presença de uma outra Sam, também mais experiente e madura. Ambas as viagens

servem de pano de fundo ao desenvolvimento em essência de ambas as personagens

protagonistas, o percurso essencial se serve do percurso físico e o leitor se encontra, então, em

presença de duas pessoas diferentes daquelas com as quais começara a empreender a viagem. A

argúcia da obra reside precisamente nesta ambivalência fundamental.

De modo semelhante, também Leroy, a sua vez, experiencia, a seu modo, sua própria

transformação. O seu encontro na estrada com Frank (Michael Cerveris), pelo qual vem a se

apaixonar, abre­lhe não somente um cabedal inteiramente novo de possibilidades de realização

sentimental, mas também lhe possibilita estabelecer e experienciar um relacionamento

amplamente profícuo e promissor com – ironia! – Sam, sua cativa, agora íntima companhia. A

partir de Frank, Leroy exercita não só a sua própria sensibilidade, mas ajuda Sam a exercitar a

dela mesma. Com a morte do seu amante, assassinado pelo verdadeiro Leroy (Sherman

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Augustus), Leroy compreende, pela primeira vez, de forma global, tudo aquilo que antes só

percebera mediante fragmentos e experiências esparsas. Sua participação chega ao fim, não sem

antes retomar todo o seu ensinamento a Sam ao lhe propor uma pergunta cuja resposta se

mostrará reveladora à companheira e lhe preparará, afinal, para o relacionamento dela com Jerry:

(...) Quando duas pessoas se amam de verdade, mas não se dão bem, quando é o momento de acabar?

(...)

Ouça (...). Não sei nada da vida após a morte. Morrer é assustador. As pessoas vão sozinhas. As pessoas que eu eliminei que experimentaram o amor tiveram menos medo. Elas sentiram medo, mas havia uma certa calma. É porque elas sabiam que alguém, em algum lugar, as amava e sentiria sua falta. Às vezes vejo isso e fico impressionado... Não lhe diria isso se Frank não tivesse morrido... Mas é uma pergunta capciosa. Quando duas pessoas se amam, totalmente, de verdade, se amam mesmo, a resposta é simples, principalmente no seu caso... Quando é o momento de acabar? Nunca. Nunca. 5

O elemento último de deflagração de todas estas transformações não é, afinal, outro

senão “a mexicana”, o próprio artefato que dá nome à obra. “A Mexicana” não é outra, afinal,

senão o macguffin, “o motivo da ação”, ao qual se aludiu antes. A partir da sua detenção e posse é

que o filme se constituirá internamente, tanto fabulística quanto discursivamente. Como se supõe,

todo o argumento desenvolvido ao longo da obra, bem como de seus desencadeamentos, diz

respeito à obtenção da arma que, como um macguffin por excelência, poderia ser, de fato,

5 Opta­se, aqui, pela representação dos diálogos em sua tradução ao português, tendo como fonte de referencia o seu

emprego nas legendas da edição da obra em DVD. Ainda que, mesmo em sua acepção mais original, se reconheça o

caráter faccioso da tradução, posto que, originalmente, seu sentido tenha sido não apenas reconhecido, como

associado a “traição”, a opção se fundamenta tanto semanticamente (uma vez que esta mesma “traição” que a

tradução implica não descaracterize fundamentalmente a tonica de cada diálogo ao qual faz referencia), quanto

metodologicamente (posto que não se perde tempo discutindo a propriedade da utilização de uma dada palavra em

detrimento de outra que corresponderia – como se pode vir a julgar – mais acertadamente ao que se pretendeu dizer

no idioma original).

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qualquer outro objeto, desde que fabulisticamente “verossímil” 6 e, portanto, ancorado num

plausível argumento que justificasse (ou mesmo mascarasse) as razoes pelas quais põe tantos e

diametralmente opostos interesses em conflito. Entretanto, se está novamente em presença do

mesmo jogo semiótico ao que se fez alusão anteriormente. Decerto, uma pistola cuidadosamente

forjada há quase um século parece o macguffin ideal para a obra em questão, mas o é na medida

em que, enquanto artefato bélico, evoca a fatalidade e o risco inerentes a esta qualidade de

manufaturas (como algumas seqüências do filme, em especial a final, o farão notar). E é uma

pistola porque, visto que sua perda e busca, motiva o tecido fílmico, sua mobilidade e facilidade

de a perder ou extraviar é maior do que o seria em relação a uma espingarda, por exemplo. De

fato, a velha pistola parece, já de antemão, tão determinada aos destinos das personagens quanto

elas o são ao seu próprio.

De variados e diferentes modos, a arma desencadeia os conflitos que exigirão das

personagens do filme difíceis escolhas que acarretarão, ao final, transformações essenciais nestas

com a ascensão das mesmas personagens a um estado de compreensão e consciência jamais

alcançado (ou sequer pretendido ou esboçado) antes. Para recuperar a arma, primeiro de Beck,

depois dos marginais mexicanos que a haviam roubado, tendo de lidar, inclusive, com a iminente

traição do seu próprio amigo, Ted, é que Jerry vai atingindo a maturidade tardia, condição

fundamental ao cumprimento de seu dever para com Margolese e a restituição da sua honra. Para

recuperar a arma, que julga estar em posse de um ambicioso Jerry, é que Leroy tem de seqüestrar

Sam. A arma se torna mote do convívio, primeiro turbulento, depois confidente, de duas

realidades tão distintas, a saber Leroy e Sam, e do surgimento de um frutífero relacionamento

6 Note­se que a expressão “verossímil” foi incluída propositalmente entre aspas, como forma de se aludir ao seu

caráter relativo e tão pouco precisável, em se tratando de cinema, visto que cada obra individualmente se constitui,

também, a partir do que é real ou não – melhor, verossímil – em seu próprio universo diegético.

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afetivo entre elas. “A mexicana” é, afinal mote instaurador e instancia última das transformações

não apenas de Jerry e Sam, mas igualmente de Leroy, Ted e Margolese.

Sua função é tamanha que é nela, precisamente em sua lenda, que reside a resolução do

conflito final. Ao descobrir a traição de Nayman, que tencionava vender a arma e atribuir a falta

de lealdade para com Margolese a Jerry, este e Sam tem de, afinal, confronta­lo definitivamente.

Esta é tomada enquanto refém e presa ao porta malas de um carro, quando Jerry os surpreende. E

se instaura um notável impasse, posto que, à sua maneira, reproduz a lenda pela qual a pistola se

tornara tão tragicamente conhecida. Discursivamente, reitera a função deflagradora da arma,

atestando de forma inconteste a veracidade do seu caráter mítico e lhe conferindo um escopo

ainda maior. Tal qual um século antes, quando usada pela filha do armeiro que a confeccionou

para ameaçar de morte o cruel filho do fidalgo, seu noivo, que mantinha a sua mercê o assistente

do mesmo armeiro, aquele a quem ela amara, a arma é usada mais uma vez para ameaçar de

morte o desleal Nayman, que, por sua vez, ameaça a Jerry que, de forma semelhante ao jovem

assistente da lenda, roga a sua amante que deponha o amaldiçoado artefato ao chão.

A argúcia de tal seqüência reside na indisfarçada tensão de que o mesmo desfecho

trágico da lenda se repita mais uma e decisiva vez. Como o próprio Jerry, o leitor da obra

compreende a iminente ameaça de tragédia que reside, mais uma vez, na utilização da arma. O

risco maior, entretanto, representa a premente repetição do desfecho da trágica lenda, quando,

após convencer a sua amada a depor a arma, o assistente do armeiro é covardemente alvejado

pelo filho do fidalgo, seguido pelo suicídio da noiva deste, no que fez uso da mesma arma da qual

se fala, mote primeiro e último da discórdia.

As relações entre as versões da lenda e seus correlatos fílmicos não se esgotam,

contudo, aí. A elas se referendará futuramente, quando da análise seqüencial de A Mexicana,

observando­se a sua contribuição na composição final da obra, bem como a de outros elementos

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que lhe são bem próprios, como signos recorrentes ao desenvolvimento do discurso fílmico –

como os semáforos e o velho cão –, além da trilha sonora composta por Alan Silvestri e a

fotografia de Darius Wolski, contribuintes fundamentais à composição de uma obra

extremamente rica em seu discurso constituinte, no qual um manejo sintático competente se serve

habilmente de um argumento hábil e muito bem tecido.

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5 ANÁLISE DA OBRA EM SUAS SEQUÊNCIAS TEMÁTICAS

A compreensão poética de A Mexicana perpassa a compreensão da natureza de suas

unidades constituidoras, isto é, suas seqüências mais representativas 7 , e do modo como as

mesmas se relacionam na composição final da referida obra, chave de uma sua interpretação mais

polivalente e rica. O que se busca é justamente lançar luz sobre o filme, questiona­lo em suas

reentrâncias mais recônditas e simbólicas, avesso, pois, a uma apreensão literal que se poderia

fazer do que se é contado nele. O que se busca não é uma sua apreensão fabulística, mas também,

e principalmente, uma sua apreensão discursiva 8 .

Neste sentido, uma compreensão mais detida e detalhada de suas seqüências mais

paradigmáticas é condição primeira e fundamental a uma compreensão mais plena da obra, dos

seus signos e do discurso empreendido por esta. E, ainda que recortadas de seu contexto original

a fim de as analisar em essência, a este mesmo contexto o presente Trabalho de Conclusão de

Curso fará referencia quando da apreensão fabulístico­discursiva que aqui se pretende destas.

Deste modo, não se incorrerá no erro de analisar estas seqüências em profundidade sem as referir

ao conjunto da obra, a qual fazem referencia direta, a partir da qual constituem suas respectivas

especificidades e à qual, em conjunto, contribuem na constituição de um discurso que lhe seja

particular e próprio.

7 Não se deterá, aqui, para julgar os critérios de seleção das referidas seqüências ditas “representativas” da obra. A

análise, aqui, pretendida denotará a propriedade de cada uma em relação a obra em conjunto. Se não se detém, aqui,

em sua discussão o é por questão de economia de tempo e por se considerar que, a seu devido tempo, suas

respectivas funções (discursivas, diga­se de passagem) e importância se farão ver. 8 “Também” posto que Fábula e Discurso são indissociáveis quando manifestos concretamente, mas, principalmente,

por que não se pode referir a Discurso sem se aludir a Fábula, uma vez que aquele se serve diretamente desta.

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Deve­se, contudo, ater ao que o filme diz (melhor, ao modo como o filme diz), bem

como as fundamentais recomendações de Francis Vanoye e Anne Goliot­Lété de resistir “a

tentação de superar o filme” 9 , posto que, ainda que não tenha relação direta a produção fílmica

propriamente dita (aqui, identificada a uma sua artisticidade), o trabalho do analista ainda se

constitui enquanto uma produção diretamente referente a um dado texto fílmico (neste caso, A

Mexicana) e a cujos desígnios deve obediência. O que se quer, aqui, dizer é que o fundamento­

mor da análise a partir de aqui empreendida é a compreensão exata do filme; não buscar enxergar

mais ou menos que o próprio filme, mas enxergar propriamente o filme em sua valência

cognitiva.

(...) Muitas vezes, tem­se o hábito de considerar a interpretação como extrapolação com relação ao filme. Ora, caso seja concebida, ao contrário, como um movimento centrípeto em direção ao filme, qualquer perigo de cair na interpretação selvagem é afastado (VANOYE, GOLIOT­LÉTÉ, 1994: 16).

Para tanto, a análise seqüencial a partir de agora empreendida será constituída sobre um

tripé que, a despeito de seu consagrado uso na literatura existente a respeito de análise fílmica

(ver Vanoye e Goliot­Lété), representa justamente a mais profícua – e melhor! – escolha, posto

que lida, à sua maneira, com Fábula e Discurso, argumento e sintaxe, de modo a compor uma

decupagem mais apurada e justa do próprio material fílmico, então posto em termos descritivos

(o trabalho do analista é, antes, um trabalho de descrição, ou sem se considerar o caráter faccioso

do termo, um trabalho de “tradução”: traduz­se o que fora posto em termos próprios ao discurso

fílmico – estilísticos e sintáticos – na representação convencional dos arbitrários signos da

escrita). Os componentes do referido tripé (o qual, assim como a distinção estabelecida entre

Fábula e Discurso, constitui um eficiente instrumento metodológico, ainda que de veracidade

9 VANOYE. GOLIOT­LÉTÉ, 1994: 15.

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concreta nula, posto a indissociabilidade concreta destes mesmos elementos que,

metodologicamente, pretendam­se dissociados) se constituem, afinal, no próprio manejo sintático

da seqüência posta em questão, na apreensão do seu caráter fabulístico e, enfim, na apreensão do

seu caráter cognitivo.

O caráter sintático (aqui, mais identificado ao Discurso) de uma dada seqüência diz

respeito ao próprio exercício técnico­estético dentro da mesma. Referente direto ao discurso

fílmico, ele é constituído pelos planos componentes desta, por seus enquadramentos, cortes,

movimentos de câmera, disposição dos elementos visuais postos em cena 10 , técnica(s) de

iluminação 11 e fotografia (a qual assume função muito própria e cara a A Mexicana), bem como

pela própria intervenção sonora (diálogos, ruídos, música, ou a supressão dos mesmos).

O seu componente fabulístico (identificado a própria Fábula), a seu turno, diz respeito

aos próprios meandros do que é contado no filme, a sua estória. Faz referencia, portanto, a

componente meramente literal do filme, enquanto o seu caráter sintático constitui referencia ao

estilo do mesmo, a sua marca autoral (afinal, um mesmo argumento pode ser realizado

filmicamente de tantas formas diferentes quanto o são os realizadores chamados a realizar tal

10 Que se pode variar desde a ênfase pretendida e dada a um dado objeto, como o isqueiro incriminador de Pacto Sinistro (Strangers on a Train, EUA, 1951), de Alfred Hitchcock, ao próprio figurino de uma dada personagem, como o que veste Andrea Caracortada (Victoria Abril), de Kika (Idem, Espanha / França, 1993), de Pedro Almodóvar, uma representação material do vulgaresco kitsch do seu bizarro programa policialesco, “O Pior do Dia”. 11 Exemplo de uma composição de luz e sombras brilhantemente constituída é a seqüência durante a qual o recluso

coronel Kurtz (Marlon Brando) conhece e interroga o homem que fora enviado para o assassinar, interpretado por

Martin Sheen, em Apocalypse Now (Idem, EUA, 1979), de Francis Ford Coppola, a qual confere ao referido coronel

um tom solene em seus detalhes (mãos, cabeça e silhueta) e que, em seu conjunto, compõe um quadro ainda mais

intimidatório, posto o seu poder denotado em gestos mínimos e cotidianos, como os que compõem o ritual de

assepsia diária da personagem de Brando.

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exercício 12 ). É constituída, enfim, pelos acontecimentos e diálogos do filme em sua acepção mais

literal e a eles faz referencia.

O seu traço cognitivo, enfim, faz referencia, assim como sua marca sintática, ao

Discurso empreendido pelo filme, a sua polivalência semântica, a sua abertura simbólica. Na

verdade, enquanto na apreensão de uma dada seqüência em suas componentes sintáticas e

fabulísticas se procede à “desconstrução” da mesma, a apreensão de sua componente cognitiva a

“reconstrói” em sua especificidade. Ou seja, da seqüência se parte para a ela novamente retornar.

Neste sentido, a sua desconstrução fabulístico­sintática serve a sua posterior reconstrução

semântica, o que é, aliás, mote caro e fundamental ao presente Trabalho de Conclusão de Curso.

Mediante a compreensão de como o filme se constrói minimamente, compreende­se o

modo como se estabelece a sua especificidade, bem como se compõe sua própria simbologia e o

seu discurso. Uma vez estabelecida esta útil distinção (a saber, entre as componentes sintáticas,

fabulísticas e cognitivas de uma dada seqüência, bem como do modo como esta se constitui com

as demais), é que se pode seguir em frente, agora aptos a interrogar a obra em seus próprios e

particulares desígnios e à mesma dar voz.

12 Um exemplo notável desta asserção é o Psicose (Psycho, EUA, 1960) de Alfred Hitchcock e a sua refilmagem por Gus Van Sant, em 1998, no qual o esmero em reconstituir o estilo do consagrado “Mestre do Suspense” foi levado as

raias da obsessão. Van Sant procurou reconstituir de forma exata os planos empregados por Hitchcock. Entretanto,

ainda que bem sucedido em seu zelo técnico, o filme de Van Sant é bem diferente aquele tomado enquanto

referencia. A ausência de cores, por exemplo, que cumpre uma função estilística fundamental ao filme de Hitchcock

(o de potencializador da brutalidade implícita, ainda que inerente, ao filme, especialmente quando do assassinato de

Marion Crane ao chuveiro), não é adotada por Van Sant, a título de exemplo.

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5.1 DO PRÓLOGO (CRÉDITOS DE ABERTURA)

Esta seqüência, durante a qual se são apresentados os créditos de abertura, passa­se, na

verdade, cinco anos antes dos acontecimentos relatados na obra. Ela alude (posto que apenas

posteriormente este acontecimento seja explicado, quando da conversa de Sam e Leroy no

sanitário de um restaurante de beira de estrada) ao evento o qual é responsável pelo

comprometimento moral de Jerry para com Margolese pelos cinco anos que este tem de cumprir

na penitenciária. Por conta de um lapso de atenção, bem como por um mau funcionamento de um

semáforo de transito, o carro de Jerry colide com o de Margolese. O que deveria se constituir em

um mero acidente cotidiano adquire contornos mais peculiares com a descoberta, pelos policiais

que estavam fazendo a nada­extraordinária ocorrência, de um terceiro indivíduo amarrado ao

porta­malas de Margolese, mote de sua custódia.

Trata­se de um plano­sequência de 1’16’’ constituído por um travelling para a frente,

objetivando um semáforo o qual se constitui enquanto foco único (nenhum outro elemento visual

é mostrado) deste mesmo plano. A trilha sonora é constituída pelo mote musical das versões da

lenda de “a mexicana” e por ruídos comuns ao tráfego. A música diminui progressivamente até

que o ruído de uma colisão se sobressai aos demais elementos sonoros, subvertendo a ordem

constituída desde o início da referida seqüência e, desse modo, atraindo (e prendendo), de forma

instantânea, a atenção do leitor.

Não há diálogo algum em toda a seqüência, somente o ruído comum ao tráfego de

veículos e a colisão entre dois deles. Toda a ênfase é dada ao semáforo que, parcimônia e

tediosamente cumpre sua função diária. No entanto, quando dele se espera o cumprimento

adequado ao que ele fora designado, ele surpreende a todos: do amarelo, de “atenção”, ele segue

ao verde, de “siga”, signo­mor de seu mau funcionamento, e. no instante seguinte, ao vermelho,

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de “pare”, ao qual deveria chegar logo depois de passar pelo amarelo. O ruído da colisão coroa o

funcionamento incorreto de um aparato que se julgava infalível.

O semáforo é uma figura corrente ao desenvolvimento da obra. O seu funcionamento

incorreto já quebra, a princípio, a tediosa expectativa do leitor (a de que o semáforo continuaria

peremptoriamente a cumprir de forma satisfatória a sua tradicional e cotidiana função). O

semáforo é, ademais, referente direto ao cumprimento das leis de transito, constituindo­se, em

igual medida, em uma própria personificação do Estado investido da autoridade, para sancionar

estas leis, e do poder, para as fazer cumprir. Entretanto, aqui o Estado não se faz apto e, por sua

inépcia, Jerry, de modo semelhante a Margolese, tem de cumprir sua “pena”, trabalhando por

cinco anos para este 13 . O mesmo Estado, aqui identificado a República dos Estados Unidos da

América, que, em sua ineficácia, “condenou” Jerry será o mesmo que se mostrará ainda mais

ausente no decorrer de toda a obra, especialmente em território estrangeiro, no México, e que se

constituirá, afinal, em mote fundamental à superação por Jerry de sua própria debilidade

constituinte e do seu alçamento ao estado de compreensão e consciência 14 .

5.2 DA ATRIBUIÇÃO DE DEVERES A JERRY 15

13 Mote, aliás, caro ao argumento tanto de O Homem Que Sabia Demais (The Man Who Knew Too Much, EUA, 1956), quanto de Frenesi (Frenzy, Inglaterra, 1972), ambos de Alfred Hitchcock. 14 Mote também caro a outra obra de Hitchcock, talvez a mais paradigmática de sua extensa e profícua filmografia, Intriga Internacional (North by Northwest, EUA, 1955). 15 Ao contrário do parágrafo anterior, este parágrafo, assim como outros que se seguirão no curso da presente análise,

não se disporá a analisar detida e minuciosamente as seqüências as quais fazem referencia, submetendo­as ao crivo

tripartidário de suas apreensões sintática, fabulística e cognitiva. A razão é muito simples: não se há tempo para se

deter detalhadamente sobre absolutamente todas as seqüências componentes da referida obra. Tanto pelo próprio fato

de suas respectivas naturezas serem essencialmente complexas quanto pelo fato de se prestarem a variados – quanto

a sua profundidade – níveis de apreensão, opta­se por aquelas que se disponham mais “profundas” e em cujas reside

a chave da compreensão de conjunto da obra. Neste sentido, privilegia­se umas dadas seqüências – inclusive algumas

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No plano seguinte, a narrativa dá um salto de cinco anos a partir do acidente a fim de

contemplar um consternado Jerry (onde as lembranças do acidente que selou o seu destino há

cinco anos ainda estão vivas 16 ) que, chamado à presença de Bernie Nayman, braço direito de

Margolese, não sabe como contar a sua namorada, Sam, que sua dívida para com este ainda não

foi considerada paga.

De seu encontro com Nayman se sabe da inépcia de Jerry 17 para lidar com adversidades

comuns ao “trabalho” que realiza (como um dos criminosos a serviço de Margolese), mote de

uma nova atribuição de deveres a este. O trabalho de Jerry é, desta vez, ao menos aparentemente,

mais fácil e simples que os anteriores: ir ao México recuperar para Margolese uma particular

pistola, “a mexicana”, a qual se encontra em mãos do neto deste, Beck (embora tal informação só

seja levada ao conhecimento da audiência posteriormente, quando da morte deste).

5.3 DA SEPARAÇÃO DO JOVEM CASAL

Sam, a namorada de Jerry, contudo, não aceita o que considera se constituir em mais

uma intromissão de Margolese em sua vida conjugal e rompe o seu relacionamento com Jerry.

excluídas da versão original do filme e que contribuem de forma mais contundente ao conjunto da obra – em

detrimento de outras que, tendo como parâmetro a própria obra, disponham­se mais “rasas” quanto ao Discurso

empreendido pela mesma obra (e não com vistas ao estabelecimento de uma hierarquia que assim se proponha).

Antes, prefere­se as seqüências mais “simbólicas” as mais “literais”, assumindo que o caráter que se pretende do

cinema ao se discuti­lo é o seu caráter simbólico, componente cara e essencial ao “cinematográfico”. 16 O ruído do acidente ainda perdura a seqüência anterior, como se ressoasse ao íntimo da personagem de Pitt, cujo

plano é, deste modo, invadido por este mesmo elemento sonoro de ligação. 17 Sua descrição é tanto feita por Nayman, ao se queixar dele, quanto pelo próprio Jerry, em sua falta de tato em lidar

com o patrão, seu falar gaguejante e seu gestuário inseguro, marcado pelo excesso e exagero.

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Em uma seqüência extremamente bem composta, vê­se Sam, histérica, atirar as coisas de Jerry à

rua. A câmera adota, subjetivamente, o olhar deste (da rua, olhando para a janela do seu

apartamento) e, em sua lenta reprodução da trajetória descrita por seus objetos pessoais em

queda, fazendo uso de uma inserção sonora a semelhança de um coral religioso, confere­lhe toda

uma ordem e pompa que não lhe seriam naturais (posto que o acontecimento em si é caótico e

patético), mas destoantes, para as quebrar, no plano seguinte, onde os referidos objetos

finalmente atingem o solo, já não mais lentamente, mas na velocidade que ao espectador seria

natural, de forma ruidosa junto à buzina de um automóvel próximo, na constituição de um quadro

já não mais ordeiro e pomposo, mas desordenado e caótico.

Sam é, então, apresentada (ainda que já tenha aparecido na seqüência anterior). Sua

descrição se dá mediante sua interpelação por Jerry que a tenta convencer a não continuar

atirando suas coisas à rua. Sam vocifera contra este, constituindo em torno de si todo um discurso

formado a respeito de promessas e expectativas rompidas. Ela chega a evocar uma hipotética

queixa prestada ao conselho matrimonial por eles freqüentado: “O que o nosso grupo diria sobre

isso, Jerry?”. Sam é, na verdade, uma sátira aquela pessoa que fundamenta todas as suas

experiências, inclusive as afetivas, em livros de auto­ajuda e pretensos manuais da felicidade e

que, em vez de desenvolver uma apreensão própria do que vivencia, prefere uma que lhe é dita

por outrem que sequer a conhece e a considera “a melhor” (como um autor desta sorte de livros,

por exemplo) e a qual adota sem reservas.

5.4 DA CHEGADA AO MÉXICO

A Jerry não resta alternativa senão seguir, sozinho, ao México para cumprir esta última

demanda e, deste modo, saldar a sua dívida moral para com Margolese. Um bem composto e

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humorado diálogo com um funcionário do aeroporto de Toluca, México, introduz a audiência as

dificuldades que ele certamente confrontará ao longo de sua estadia no país. Desde as

dificuldades inerentes à não compreensão do idioma espanhol, falado no México, ao

compartilhamento de concepções simplistas a respeito de sua cultura (a única ocasião em que

Jerry e o referido funcionário parecem se entender é quando este lhe conta da personagem infantil

“Ligeirinho”, um roedor mexicano dos desenhos animados transmitidos nos Estados Unidos,

onde aliás fora criado), o diálogo se compõe de modo a reiterar o desamparo e a alienação de

Jerry em e para com a terra alienígena.

Em seu caminho para encontrar Beck, Jerry, em um carro alugado, encontra outro

semáforo que, ao menos aparentemente, não funciona perfeitamente. Este semáforo lhe obsta

interminavelmente o prosseguimento da sua viagem, enquanto permite o mesmo prosseguimento

aos veículos que, em via perpendicular, cortariam­lhe o caminho. Nenhum veículo, contudo,

parece trafegar nesta estrada, de modo que Jerry é tentado a ignorar o semáforo e dar partida ao

seu carro. Assim o faz e é quase vítima de outro acidente, quando estes mesmos veículos que se

fizeram até então inexistentes, surgem subitamente, quase colidindo violentamente com ele. De

modo semelhante ao semáforo do início da obra, este, junto ao diálogo com o funcionário do

aeroporto, servem de acentuação do desamparo de Jerry, tanto em seu desamparo por seu Estado,

do qual é cidadão, quanto em suas aptidões e convicções.

5.5 DA PRIMEIRA VERSÃO DA LENDA E DA MORTE DE BECK

Esta seqüência temática à qual se faz referencia aqui tem, por instrumento de unidade, a

primeira versão da lenda a respeito de “a mexicana” e o seu correlato acontecimento no que se

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pode considerar como o “real” no universo do filme 18 . Como as demais versões da mesma lenda,

o que se é contado adquire nítidos contornos do que se vai acontecer logo em seguida (Marc

Vernet fala, de forma semelhante, em Aumont, da constituição de uma “intriga de

predestinação” 19 ). Ao entregar a referida arma a Jerry, Beck lhe conta da sua história, de como

fora confeccionada para ser a mais bela arma já feita e de como matara aquele mesmo que a usou

pela primeira vez. Logo depois, à saída do bar onde se encontrara com Jerry, o próprio Beck é

morto, aparentemente alvejado por uma das bala perdidas que são disparadas ao alto por cidadãos

mexicanos que comemoravam, então, descontraidamente a sua Independência.

[Beck mostra a arma a Jerry] Isto é o que chamam de “A Mexicana”.

É bonita!

Está brincando? Sim, é bonita!

Posso?

[Beck entrega a arma a Jerry, que se detém a a examinar melhor] Foi feita para um rico proprietário, um nobre, por um pobre armeiro mexicano. Fez esta arma como um presente para quando o filho do nobre pedisse a mão de sua única filha em casamento. [Inicia­se, ao ruído de um antigo projetor de cinema, a dramatização dos acontecimentos que dizem respeito a primeira versão da lenda tal qual eles são contados por Beck (a câmera, então, já assumiu a gramatura deficiente das antigas câmeras mecânicas, conferindo também ao filme um tom metalinguistico)] O povo esperou três meses para ver a pistola. Finalmente, chegou o dia. Nunca ninguém tinha visto arma mais bela. Era tudo o que imaginaram que seria. Alguns até acharam que era bonita demais para olhar... Era uma honra e dava boa sorte ser o

18 E esta própria distinção é, diga­se de passagem, de difícil manejo, posto que o “real” pode assumir diferentes

conotações, quer aludindo ao filme enquanto Fábula, quer aludindo ao filme enquanto Discurso (de fato, o que se poderia considerar irreal uma vez que o real constituído por uma obra desta mesma irrealidade se serve, como em O Anjo Exterminador, de Luis Buñuel?). Neste sentido, o “real” aqui pretendido faz referencia direta ao real fabulístico. Em A Mexicana, a representação do real é semelhante a representação do real que a sociedade à qual está veiculada em sua produção – a sociedade ocidental – faz do mesmo, constituindo quaisquer elementos que escapem à

sua classificação de “irreais”. 19 AUMONT, 1994: 122­126.

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primeiro a disparar uma arma recém­criada. Principalmente uma tão linda, feita para a mão de um nobre... [O armeiro que a confeccionou escolhe aquele a quem será dada a honra de experimentá­la e, em seguida, entrega­lhe a arma] O homem da cidade ficou em transe com a perfeição da arma... [O aldeão puxa o gatilho e é atingido por seu próprio projétil] O tiro saiu pela culatra, matando­o instantaneamente... [Ao som de sinos fúnebres, a reprodução dos acontecimentos descritos por Beck chega ao fim, onde, em uma elipse precisa, são mostrados três do mexicanos sentados a mesa de Beck e Jerry se benzendo, consternados] Diz a lenda que, desde então, ela se tornou amaldiçoada. Mas ela não me feriu. Eu adoro olhar para ela. Vou lhe mostrar uma coisa. Tem uma bala aí dentro. [Beck maneja o tambor da arma de modo a mostrar o referido projétil a Jerry] Foi feita a mão. Toda feita a mão. Você nem imagina quanto vale esta arma.

À semelhança desta seqüência, às segunda e terceira versões da lenda de “a mexicana”

correspondem acontecimentos posteriormente correlatos. Beck não se constituiu apenas no

primeiro a estar de posse da referida arma (se se considerar a estória da qual ele e Jerry são

personagens), mas, de forma semelhante ao rapaz da lenda (se se considerar a estória que é

contada dentro da estória da qual Beck e Jerry são personagens), ironicamente, em sua primeira

vítima. Ambos os óbitos vem a reiterar o caráter amaldiçoado que é atribuído ao artefato, a

despeito da sua perfeita confecção, capaz de maravilhar a todos que, sobre ele, depõem olhos. A

respeito do velho cão do início da dramatização da lenda (aquele mesmo que atravessa a rua de

uma velha aldeia mexicana), por sua vez, será falado mais tarde e oportunamente, quando, uma

vez mais surgido, sua presença se fizer mais notável.

5.6 DO SEQÜESTRO DE SAM

Jerry conta, por telefone, a Ted do recente óbito de Beck, o qual conta a Nayman. O

realizador surpreende a este, então, ao mostrar a audiência, o mesmo negociando outra arma

antiga (a câmera segue, em travelling lateral, a Ted e a outro criminoso em sua chegada ao

escritório de Nayman e, no mesmo plano, agora fazendo uso de um travelling para frente, até

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surpreender também a este em presença de um negociador de relíquias). Se se é fornecida pistas a

respeito de suas reais motivações a audiência (ver Aumont uma vez mais a respeito da chamada

“intriga de predestinação” 20 ), se é também a Ted que a ele também surpreende para contar da

aparente traição de Jerry. E, mesmo quando se julga ciente de uma possibilidade de traição por

parte do seu amigo Jerry, Ted é cego às claras intenções de Nayman, aqui surpreendido em sua

irredutível condição de negociante ávido e desleal.

Enquanto isso, Sam segue para Vegas, alheia aos problemas de Jerry e ao modo como,

afinal, eles se farão refletir. No caminho, vê­se, entretanto, surpreendida por um criminoso negro

que a aborda em um sanitário. Outro criminoso, seu rival em motivação, aparentemente o mata e

toma Sam enquanto sua refém, forçando­a a sair às pressas do lugar. Este conta a Sam de sua

condição de refém e do modo de reverte­la: forçando Jerry, mediante a ameaça à vida de Sam que

o seu seqüestro constantemente representa, a devolver uma valiosa arma, cuja posse este

aparentemente detém.

5.7 DO RESGATE DO ARTEFATO

Jerry, no entanto, não detém a posse da arma, como Nayman e Leroy pensam. Ela

acabara sendo roubada junto com o seu carro, onde também se encontrava o cadáver de Beck.

Frente a esta adversidade, Jerry adquire um novo carro para partir em busca do antigo. Com o

carro, trocado por um seu relógio de estimação, Jerry ganha a companhia de um velho cão

(fisicamente idêntico ao de séculos atrás, quando da confecção da arma). O mesmo, diga­se de

passagem, que se vê atravessar a rua quando da dramatização da primeira versão da lenda. O cão

20 AUMONT, 1994: 122­126.

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se constitui em signo­mor da atemporalidade da arma e dos valores a qual está tragicamente

vinculada, valores nos quais reside a resolução do conflito posto em jogo na obra. Somente

mediante seu alçamento ao estado de consciência e compreensão, à sua maturidade e ao senso de

preservação de sua própria honra (a qual só irá ser restituída ao fim da sua dívida moral para com

Margolese), é que Jerry superará as adversidades que se (im)põem ao seu caminho.

O velho cão, vinculado aos próprios valores do artefato, serve, afinal, de gatilho da

incorporação destes mesmos valores e da conseqüente profunda transformação pela qual deverá

passar Jerry. A partir de um seu primeiro contato com o cão, é que Jerry, totalmente ao sabor do

acaso, reencontra o rastro dos misteriosos ladrões do seu carro, o segue e, ao encontra­los,

fazendo uso de uma perspicácia jamais experienciada, consegue recuperar a ambos – a arma e o

automóvel (bem como o cadáver de Beck) –, e fazendo um dos criminosos de refém e salvo­

conduto em sua fuga. Mais tarde, já fora do encalço dos demais marginais, Jerry dá um enterro

digno ao cadáver já putrefato de Beck, restituindo­lhe a honra maculada 21 . Deste modo, condição

fundamental a restituição de sua própria honra é a restituição à honra e à dignidade de um

morto 22 , bem como a sua compreensão, em última instancia, dos próprios desígnios da honra e da

própria morte, bem como da necessidade de a elas se prestar reverencia, posto que se

compreende, então, o seu caráter inevitável e forte, ainda que natural e cotidiano.

5.8 DE COMO JERRY COMEÇOU A TRABALHAR PARA MARGOLESE

21 Os caminhos das personagens de A Mexicana passam – como se vê – pela honra, sua perda e restituição. Tanto Jerry, como igualmente Beck, Ted e mesmo Margolese a ela devem reverencia primeira e última, constituindo­se

esta enquanto fundamental ao Discurso empreendido pela obra. Um dos objetivos fundamentais ao presente Trabalho

de Conclusão de Curso é, portanto, observar os distintos e diversos aportes que esta condição sofre por este mesmo

Discurso fílmico. 22 E, aliás, a um morto que, em vida, não demonstrava possuir honra alguma. Beck, mesmo entregando a arma a

Jerry, tentou convence­lo a a vender a outrem, à revelia de Margolese, o homem a quem ambos deviam lealdade.

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Nesta seqüência, Sam conta a Leroy de como Jerry começou a trabalhar para

Margolese, no que o realizador se vale para se fazer lembrar à audiência a seqüência de abertura

da obra, uma vez que a ela faz referencia explícita. E, semelhante a esta, constitui­se em uma

fundamental economia de planos (apenas dois). No primeiro, acompanha­se, com uma câmera

sem tripé, uma cliente do bar onde seqüestrador e seqüestrada estão se dirigir ao sanitário

feminino, onde eles conversam, cuja porta se encontra trancada por dentro. No seguinte, já dentro

do referido cômodo, vê­se Leroy a se olhar ao espelho de um modo desconcertantemente

descontraído em se tratando de um assassino de aluguel e Sam, ao fundo, ocupando um dos

boxes. Ela tenta dissuadi­lo a deixar o sanitário, posto que se sente constrangida em urinar em

presença deste. Ele lhe pergunta a respeito da dívida de Jerry para com Margolese, no que lhe é

revelado – assim como à audiência – em sua real natureza (moral). Ela o tenta dissuadir

novamente a deixar o recinto. Ele se dirige ao box vago ao lado dela e começa a urinar, no que é

prontamente – e sem mais algum resquício de constrangimento – seguido por ela.

O plano, único em sua composição, se desenvolve sobre o uso acurado de travellings

laterais – ora motivando Leroy, ora Sam (jamais a ambos, senão quando do reflexo de Leroy em

um espelho, e exceto quando Leroy decide por ocupar o box ao lado de Sam para, com ela,

compartilhar de um momento tão íntimo). Tem­se, então, duas realidades distintas (a saber, a do

assassino e a da refém), sobre a qual se compõe o Discurso empreendido nesta seqüência: o

assassino, descontraído e à vontade em um ambiente que lhe deveria causar desconforto (haja

vista se tratar de um homem em um sanitário feminino), a refém, constrangida no mesmo

ambiente, que, ao contrário, devia­lhe ser ordinário e íntimo (uma mulher em um sanitário

feminino; no entanto, a presença de um homem ameaçador a desconforta e a constrange). Do

ministério desta dicotomia emerge a essência deste Discurso. Leroy inaugura, com o seu gesto (a

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saber, o de compartilhar um mesmo momento íntimo com uma mulher que lhe é cativa), um novo

relacionamento (antes inconcebível, posto se tratarem de captor e cativa) que se aprofundará já na

seqüência seguinte, quando do encontro deste com um rapaz ao balcão do mesmo restaurante

cujo banheiro ocupam, bem como das conseqüências do referido encontro.

5.9 DAS CONFIDENCIAS

Leroy e Sam tentam, sem sucesso, contatar Jerry para estabelecer os termos da

barganha. Durante uma parada em um restaurante de beira de estrada para fazer uma refeição (em

cujo banheiro compartilham de um mesmo e íntimo momento), ela o surpreende olhando insistiva

e fascinadamente a um homem sentado ao balcão e o questiona a respeito de sua orientação

sexual. Leroy não consegue esconder a sua homossexualidade a sua cativa. Já se é

completamente quebrado, então, o rígido código de conduta ao qual devem cega obediência

captores e cativos. A obra quebra, igualmente, expectativas a respeito da inexistência de diálogo

entre Leroy, captor, e Sam, cativa. Pressupõe, antes, a emergência de um novo nível de

relacionamento entre eles, cujas moral e conduta não apenas não serviriam ao anterior, como lhe

seriam não somente contrárias, como contraditórias.

5.10 DE LEROY E FRANK* 23

23 Esta seqüência terminou por ser excluída da versão original de A Mexicana. Sua exclusão não implica sua desconsideração no curso da presente análise. Para efeito de identificação, contudo, seqüências como esta, excluídas

da versão original da obra, serão acompanhadas de asteriscos.

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Leroy e Sam dão carona a Frank, o rapaz, que também vai a Vegas. Chegando ao

destino, combinam os três de se encontrar em um restaurante, à noite. Já no referido lugar, Sam

inquire de Leroy (os planos, marcadamente americanos, suscedem­se motivando ora ele, ora ela)

da natureza do seu fascínio por Frank, no que lhe parece um tanto intromissivo e no que é

rispidamente atendida.

(...) As pessoas que eu mato merecem isso... A maioria.

Bom, eu acho que você deveria explicar isso para ele [para Frank].

Sobre esta situação difícil?

Sim, isso mesmo. O seu passado.

[Leroy agarra o pulso de Sam, ameaçador] Você quer vê­lo morto? É isso que você quer? Porque você o está matando agora... Se você lhe contar qualquer coisa, eu corto o pescoço dele e o deixo aqui, porque é isso que ele significa para mim... Você entende? [Leroy larga o pulso dela, agora sarcástico] Nós nos encontramos na estrada, pelo amor de Deus. Você acha que é a primeira vez que eu faço isso?... [A um garçom próximo, gritando] Desculpe! Desculpe! A conta, por favor.

[A música do restaurante muda e Sam agora olha distraidamente para o palco, até que algo chama a sua atenção] É Frank.

Um travelling para frente, no palco motiva Frank, agora em trajes femininos, cantando.

O súbito e atordoante encanto do qual é tomado Leroy – apesar do seu discurso constituído agora

há pouco, de modo a mostrar seu desprendimento afetivo de quem quer que seja – é traduzido em

outro travelling para a frente, este até a mesa que ele e Sam ocupam. A iluminação trabalha de

modo a motivar apenas a Leroy e Frank e a seqüência se constitui em uma notável metáfora do

fascínio humano. Leroy, que na verdade é outra pessoa (chama­se Winston; portanto, um

farsante, como se verá mais à frente), reconhece­se em Frank, que aqui também finge ser outra

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pessoa, uma mulher (outro farsante) 24 . Aquele, que, em sua condição de farsante, não conseguia

se ver envolvido em um relacionamento afetivo (que, em tese, deve lidar com a verdade, em

ambas as partes), conhece este e cujas convicções (entenda­se farsas) compartilha, vendo­se,

então, considerar um envolvimento mais profundo em um novo relacionamento (agora, em cujas

partes reside relativa equidade em direitos e deveres), cujas regras é de domínio e compreensão

não apenas de um, senão de ambos.

5.11 DA MANIFESTAÇÃO ÚLTIMA DA INTIMIDADE

Já ao dia seguinte, Sam e Frank dormem em seus respectivos quartos. Leroy, com quem

eles desfrutaram a última noite está sentado à poltrona do quarto ocupado por Frank.

Melancolicamente (ao qual vem a o acompanhar a música composta por Alan Silvestri, esta

também marcadamente melancólica), contempla tanto a um quanto ao outro. A seqüência joga

com a transferência da perspectiva subjetiva de Leroy, fazendo tanto de Frank, quanto de Sam,

motes iguais ao seu afeto. Neste sentido, a posição assumida por seus respectivos corpos é

fundamental. Tanto Frank, nu à sua cama, quanto Sam, algemada à sua para que Leroy passasse a

noite com aquele, dispõem­se fisicamente de forma extremamente semelhante. Um travelling

lateral, que se pretende o olhar afetivo de Leroy, vai de Frank a Sam, no outro quarto, vista por

uma porta aberta.

Leroy se ergue de seu assento e caminha até Sam a fim de lhe libertar o braço para que

esta se acomode melhor a cama enquanto dorme. Cuidadosamente a termina de vestir ternamente

24 Um dos motivos de sua exclusão da versão final do filme se deu pelo estabelecimento de espécie de licença para o

amor de Leroy e Frank, por poder parecer mais natural, à audiência, que dois homens pudessem se apaixonar quando

um testemunhasse ao outro trajado de mulher e, deste modo, a sua maneira, se concebesse, afinal, uma perspectiva

homofóbica.

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em sua camisola (cujo braço algemado permanecera de fora toda a noite, dada a impossibilidade

de o manejar de modo a terminar de se vestir), antes de seguir ao banheiro e lhe tomar uma

escova de dentes emprestada.

Sam, ao acordar e se descobrir liberta, não foge do quarto, conforme prometera a Leroy

antes de a algemar, na noite anterior, quando Frank o esperava em seu quarto. Em vez disso,

segue também ao banheiro, o cumprimenta e, sem cerimônia alguma, desfaz­se de sua roupa

íntima de modo a urinar já confortavelmente, em presença de Leroy, com quem compartilha o

banheiro. Sua entrega a Leroy é, agora, total, da mesma forma que a entrega deste para com ela e

ambos já em nada lembram ao seqüestrador e a seqüestrada quando do início da obra.

5.12 DA ÚLTIMA VEZ EM QUE LEROY CHOROU*

Leroy e Sam deixam o quarto de hotel, onde Frank ainda dorme. Dirigem­se a uma

lanchonete próxima para fazer uma refeição, sem suspeitar que o mesmo assassino negro que

acreditaram estar morto, o verdadeiro Leroy, está à sua espreita. Este, em vez de os seguir, vai ao

quarto, onde assassinará Frank. Neste ínterim, Leroy e Sam conversam (os planos, marcadamente

americanos, suscedem­se, de forma semelhante a quando do encontro com Frank no restaurante,

motivando ora ele, ora ela 25 ) a respeito deste e de como Leroy passou a se apaixonar por ele, no

que é levado às lagrimas. Sam o inquire a respeito da última vez que este chorou.

25 O manejo sintático extremamente objetivo visa a não dispersão da audiência, posto que a maior força desta

seqüência reside no que a personagem de Gandolfini contará a de Roberts, no que se pretende motivando tão

somente a um ou a outro, mas jamais, senão um tanto displicentemente, ao ambiente em que estão presentes, a

cafeteria. Aqui, a economia de recursos é, também, marca do Discurso de Verbinski.

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Meu pai estava morrendo [e isso foi há 12 anos]. Ele estava muito doente, já estava assim há muito tempo. Eu não tinha ido visitá­lo. E eu tinha recebido a carta, sabe. “É isso. Ele está quase. É melhor você vir”. Eu peguei o metro e fiquei parado no túnel quarenta e cinco minutos. Eu peguei um ônibus. Não havia táxis. Eu tive de correr até lá. Quando cheguei... já era tarde demais. E eu estava tão bravo que comecei a chorar.

Lidar com um assunto pendente é difícil. Especialmente se seu pai está morrendo. Há tanto para dizer...

[Interrompendo Sam, reflexivo] Eu não quero dizer nada para ele [referindo­se, agora, a Frank]. Quero vê­lo morrer (...).

Frank, enquanto objeto do desejo de Leroy, a ele deve prestar uma última reverencia.

Leroy só se reconhecerá completo, entretanto, em seu relacionamento com Frank se esta última

condição se fizer satisfeita. Esta seqüência contribui de forma única na constituição e

aprofundamento do perfil psicológico de Leroy, bem como da constituição, da sua parte, de Frank

enquanto um fetiche seu 26 . E o seu diálogo se estabelece com a seqüência a seguir submetida ao

crivo da análise, aqui, empreendida: a da morte de Frank, pelo verdadeiro Leroy, a qual, por não

haver sido testemunhada por seu amante, terminará por frustra­lo desmedidamente a, deste modo,

o descontruir enquanto um fetiche que o falso Leroy fez para si.

5.13 DA MORTE DE FRANK*

No quarto de hotel, Frank, já desperto, prepara­se para tomar banho. A câmera está

situada no quarto de Sam, onde deveria ser a cabeceira de sua cama e contempla a ele, da porta

aberta. Desta, de um travelling lateral, vai­se a porta do recinto, onde se ouve algumas batidas a

26 Mote, aliás, caríssimo a Um Corpo Que Cai (Vertigo, EUA, 1958) de Alfred Hicthcock.

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mesma. Frank não as ouve o que permite ao verdadeiro Leroy adentrar sorrateiramente o lugar 27 .

Aquele, então, já está ao banheiro e não faz idéia de que há mais alguém naquele quarto, com ele.

Leroy fuma um cigarro enquanto espera Frank deixar inadvertidamente o cômodo para

surpreende­lo. A seqüência, até então, é dominada por uma crescente tensão, no que se faz valer

de nenhum diálogo e nenhuma inserção sonora senão as do próprio ambiente (o rádio que

ironicamente toca Why Can’t We Be Friends?, a ducha no banheiro).

Quando Frank deixa o banheiro, é surpreendido pelo criminoso que lhe interroga a

respeito dos demais ocupantes do apartamento, bem como da arma. O diálogo muito bem

construído joga com as convicções morais de ambas as personagens, tornando­as figurativas,

afinal, de duas correntes de preconceito, a saber, o racial (cujo sujeito é Frank) e o sexual (em

Leroy), como se estas, em seu diálogo fortemente marcado pela incompreensão, fossem postas à

discussão. O sadismo de Leroy para com sua vítima torna ainda mais clara e manifesta a sua

intenção de levar a cabo sua execução. A câmera, até então cúmplice da tensão entre ambos (e no

que constituiu a audiência também em cúmplice) deixa o recinto, com um corte, e nada

mostrando do assassinato em si.

27 O realizador joga, uma vez mais, com o seu público e sua tendência a rotular enquanto “heróis” e “vilões” as

personagens que pouco conhecem, mas que, ao contrário, julgam conhecer em suas mais íntimas e recônditas

motivações. Esta audiência assume um papel maniqueistamente negativo ao verdadeiro Leroy. O próprio fato de o

mesmo pouco falar ao longo do filme (de pouco se dar a conhecer, portanto), além de seu semblante sisudo e

carregado levam, inevitavelmente, o leitor a acalentar tal ilusão. Esta personagem é, aliás, uma das únicas em toda a

obra a jamais estar em falta para com suas honra e dignidade. Ao contrário, é fiel para com Margolese, o homem a

quem também deve lealdade, enquanto Nayman – e, por extensão, o falso Leroy (ou Winston) – não o é. Afinal,

como qualificar enquanto antagonista uma personagem de tal envergadura moral?

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5.14 DA SEGUNDA VERSÃO DA LENDA E DA MORTE DE FRANK

Neste ínterim, Jerry contata Ted, para que este o ajude a expor sua lealdade – bem como

a sua inocência no episódio da morte de Beck – a Margolese. Um policial mexicano o aborda a

respeito de uma mancha de sangue (de Beck) no banco do automóvel dele, bem como de uma sua

explicação a respeito da mesma. Um corte exato, um som de cadeado que acompanha o plano

seguinte, onde se vê Jerry ao fundo de uma cela em uma cadeia mexicana. Um travelling para

trás mostra ao policial examinando cuidadosamente a arma, ao tempo em que revela a Jerry o que

sabe da mesma.

Não é bem assim [a respeito da versão da lenda que Jerry ouvira de Beck e que, provavelmente contara ao policial]. O armeiro fez esta pistola para um noivo e ele era filho de um nobre. Verdade [O policial se volta a Jerry]. Mas o enredo foi mais obscuro, meu amigo. Essa arma é amaldiçoada [Inicia­se, novamente ao ruído do antigo projetor de cinema, mais uma dramatização dos acontecimentos que dizem respeito à primeira versão da lenda tal qual eles são contados pelo policial (a câmera novamente assume a gramatura deficiente das antigas câmeras mecânicas, conferindo uma vez mais ao filme um tom metalinguistico)]. A chave dessa história envolve o assistente do armeiro. Um jovem pobre, mas honrado, cego de amor pela filha do armeiro. Durante meses, o assistente trabalhou nas minas para obter o precioso metal com o qual seria feita a mais bela arma que já existiu. Mas descobriu que ela não seria o seu presente de casamento e sim de outro [o armeiro e seu assistente discutem ante os olhos desolados de sua filha]. O armeiro insistiu que sua filha se casasse com o filho do nobre, proibindo o amor deles. Irado em sua dor, o assistente amaldiçoou a arma, jurando que a criação jamais funcionaria. Mas o armeiro estava correndo contra o tempo. Ele havia prometido uma pistola perfeita e era o único dote que podia oferecer. Ele trabalhou dia e noite para consertar os problemas da pistola [Um outro aldeão, escolhido a contragosto para testa­la, a dispara. Seu projétil ricocheteia em algumas paredes, não atingindo o alvo a que estava destinado, um jarro, mas a um outro aldeão que estava dentro de um bar e não compunha a multidão que se destinou a olhar o novo teste da arma. Novamente ao som de sinos fúnebres, a reprodução dos acontecimentos descritos, agora pelo policial, chega ao fim]. Esta arma nunca funcionou direito. Alguns dizem que ela acabou com a vida do seu criador [O policial recolhe as chaves da cela de modo a libertar Jerry]... Meu amigo, você pode ir. Mas sem a arma. Ela não pertence a você nem a seu chefe [Guardando a arma consigo]. Agora ela me pertence [novo ruído de cadeados, estes denunciando a soltura de Jerry].

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A semelhança da primeira versão da lenda, contada por Beck, esta corresponde a um

dado acontecimento posteriormente correlato, a saber, a morte de Frank. À semelhança do aldeão

alvejado por um projétil perdido quando estava dentro de um bar (o qual, por não testemunhar, à

semelhança de seus conterrâneos à rua, o novo teste da arma, deste pouco – ou mesmo nada –

sabia), Frank se encontra subitamente pego em um evento maior do que ele mesmo (posto que

virá a ser responsável por sua morte) e cuja compreensão lhe escapa totalmente. Tanto Frank

quanto o aldeão são, afinal, as vítimas mais inocentes (posto que alienadas do mote de suas

respectivas mortes) em ambas as estórias. Uma vez mais, estes dois óbitos (a saber, o de um novo

aldeão e o de Frank) vem, também, a reiterar (particularmente na audiência) o caráter

amaldiçoado que é atribuído à arma, a despeito da sua perfeita confecção, capaz de maravilhar a

todos que, sobre ela, depõem olhos.

5.15 DE UM NOVO RESGATE DO ARTEFATO

Ted chega ao México para ajudar o seu amigo Jerry a resgatar, uma vez mais, o

malfadado artefato, desta vez das mãos de um ambicioso policial mexicano e de um seu amigo, o

proprietário de uma loja de penhores na região a quem o policial concedera a custódia da arma.

No dia seguinte à chegada de Ted, Jerry, contudo, o surpreende ao telefone com Nayman,

conversando a respeito de uma sua incumbência, até então desconhecida a Jerry: de o matar tão

logo recuperassem a arma. A câmera acompanha, em um travelling para a frente, o fio do

telefone do banheiro, onde Ted está a contar para Nayman de seus planos para com Jerry, sentado

ao vaso sanitário (a sordidez de uma sua potencial traição encontra correlato na própria atividade

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em que Ted está, também, empenhado – a qual o fez, afinal, vir ao banheiro), aos pés do próprio

Jerry, incrédulo.

E quando, já na loja de penhores, consegue resgatar a arma, fazendo o seu proprietário de

refém, Jerry, experienciando uma astúcia que lhe é nova (apesar de já haver feito uso da mesma

quando do primeiro resgate da arma, este dos ladrões mexicanos), faz a Ted, também, de refém,

desmascarando­o e o deixando algemado junto ao amigo do policial mexicano. Jerry os tranca na

loja e, ao se voltar, vê a sua frente quatro crianças a brincar com ele, Jerry retribui aos gracejos e

as crianças correm. Sua transformação é, agora, completa, assim como sua passagem tardia da

infância a idade adulta. Jerry já é outro, mais maduro e hábil a lidar com as adversidades que se

fazem surgir ao seu caminho, conditio sine qua non do próprio resgate de sua honra.

5.16 DE TED E DA FILHA DO PROPRIETÁRIO DA LOJA DE PENHORES*

Pelo tempo em que passam presos um ao outro, Ted e Joe, o proprietário da loja de

penhores, discutem a respeito de um acordo, onde Ted, ao se casar com a filha dele, conseguiria a

vida prática e confortável a que tanto almeja e Joe, ao casar sua filha com Ted, acreditaria lhe dar

uma melhor oportunidade, já nos Estados Unidos. Ted, contudo, mostra­se um pouco reticente à

idéia e, enquanto conversa com Joe, constrói tediosamente um castelo de cartas, signo­mor de

suas céticas convicções a respeito do amor e do seu próprio mundo: frágil, ainda que se julgue

sólido.

Seu castelo rui quando, ao fim de horas de cativeiro, a porta do mesmo é aberta pela

filha de Joe, que chega ao entardecer. Em uma brilhante composição de iluminação, ela aparece

ao espectador assim como a Ted: coroada pelos últimos raios de sol, que lhe compõem uma

espécie de aura, à semelhança das próprias santas católicas, redentoras em sua essência. E Ted,

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outrora cético e prático, que se julgava situar em um patamar superior às mulheres, encontra

naquela tudo o que até então houvera ignorado. Em seu desamparo e desassistência, naquela

mulher encontra redenção e salvação. Não apenas em se tratando de estar preso em uma loja de

penhores, mas, acima de tudo, em sua própria vida.

5.17 DA TROCA DOS PASSAPORTES

Neste ínterim, Leroy e Sam, em Las Vegas, retornam ao quarto de hotel, descobrindo a

respeito da morte de Frank, atirado pela janela. Sam chora ao banheiro, enquanto o verdadeiro

Leroy retorna ao apartamento, fazendo­a sua refém. O falso Leroy a salva, assassinando o

verdadeiro, arrastando­a consigo ao aeroporto para que seja feita a sua troca pela arma.

Jerry, por sua vez, descobre­se impedido de viajar de volta aos Estados Unidos e, por

conseqüência, de entregar a Leroy a valiosa arma (para que este a entregue a Margolese) no

tempo previsto por descobrir que o seu passaporte e o de Ted foram acidentalmente trocados.

Retornando a loja de penhores, já não encontra mais ao seu amigo para que seja desfeito o

engano e, em conseqüência, perde o vôo que deveria tomar para encontrar a Leroy e Sam em Las

Vegas. Jerry retorna ao hotel, onde conversa com o recepcionista a respeito da extrema

dificuldade em se conseguir um novo passaporte estado unidense em território mexicano – uma

vez mais, o Estado que se deveria fazer atencioso para com um seu cidadão, faz­se ausente. Uma

vez mais, Leroy e Sam, já no México, contatam Jerry para que seja finalmente efetuada a troca.

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5.18 DA CHEGADA DE SAM E LEROY AO MÉXICO

Ted vai ao encontro de Sam e Leroy. Enquanto isso, Leroy confidencia a Sam do que

experienciara com Frank, transmitindo­lhe um último ensinamento, preparando­a não apenas para

o seu reencontro com Jerry, mas também para a sua iminente perda. Ao final, Sam, à semelhança

de Jerry, Leroy e Ted, já não é a mesma pessoa, senão outra, mais hábil a compreender o seu

próprio relacionamento com Jerry, bem como suas implicações – o que não lhe ensinara até então

os livros de auto­ajuda que tanto se fartara de ler. Como já dito, anteriormente, com a morte de

Frank, Leroy compreende, pela primeira vez, de forma unívoca, tudo aquilo que antes só

percebera mediante fragmentos de experiências esparsas. A sua pergunta, afinal, surpreendente

não só a si, mas se mostrará igualmente surpreendente a Sam.

(...) Quando duas pessoas se amam de verdade, mas não se dão bem, quando é o momento de acabar?

(...)

Ouça (...). Não sei nada da vida após a morte. Morrer é assustador. As pessoas vão sozinhas. As pessoas que eu eliminei que experimentaram o amor tiveram menos medo. Elas sentiram medo, mas havia uma certa calma. É porque elas sabiam que alguém, em algum lugar, as amava e sentiria sua falta. Às vezes vejo isso e fico impressionado... Não lhe diria isso se Frank não tivesse morrido... Mas é uma pergunta capciosa. Quando duas pessoas se amam, totalmente, de verdade, se amam mesmo, a resposta é simples, principalmente no seu caso... Quando é o momento de acabar? Nunca. Nunca (...).

Jerry, afinal, chega ao encontro, mas, ao não reconhecer Leroy, senão um farsante,

esconde “a mexicana” no porta luvas enquanto pensa no que fazer a respeito. Um acidente no

deserto os obriga a parar o carro para que se substitua um pneu. Leroy ao acaso encontra a arma

que houvera sido escondida e, enquanto Jerry troca o pneu, o ameaça de morte. Ao ver Sam

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caminhar ao deserto, afastando­se do automóvel, guarda a arma e se oferece para ajudar. Jerry,

ciente de que Leroy descobriu a respeito do seu artifício, desta vez o ameaça (acurada ironia que

reside na inversão dos papéis de ‘ameaçador’ e ‘ameaçado’), no que enxerga pronta reação deste.

Um estampido faz Sam voltar em desabalada carreira ao carro, para descobrir Jerry arrastando o

cadáver inerte de Leroy. Desolada, Sam manifesta seu desejo de voltar a sua casa, deixando Jerry

sozinho no México.

5.19 DA RECONCILIAÇÃO DO JOVEM CASAL

No aeroporto, para onde haviam retornado, aguardando o vôo de Sam, são patentes o

desconforto e o estranhamento de um para com o outro. Ao final de uma seqüência onde a

música, marcadamente melancólica, cumpre papel fundamental, vemos Sam fazer uma última

pergunta a Jerry, a qual decidirá, a partir de então, a sorte de ambos.

[À porta do embarque, já havendo voltado do avião] Eu quero lhe fazer uma pergunta. É importante, pense bem [Jerry se aproxima de Sam e esta depõe a bagagem aos seus pés]. Se duas pessoas se amam, mas não conseguem se dar bem, quando é o momento de acabar?

[Sem titubear] Nunca.

Sam se surpreende mais uma vez com uma resposta que a Jerry é tão natural. Eles se

abraçam e decidem retornar juntos ao hotel de Jerry, até que este consiga pensar em um meio de

devolver a arma a Margolese e expor a traição de Nayman. No caminho, o mesmo semáforo do

México, agora sendo consertado, indício de que a resolução do conflito é próxima. Já no hotel,

Sam demonstra finalmente compreender das implicações de seu relacionamento para com Jerry.

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(...) Não vamos mais ficar fugindo. Não! Chega de fugir, de juntar as coisas e fugir e... Mais cedo ou mais tarde, esse telefone vai tocar [por ocasião do improvável contato feito pela embaixada americana no México, responsável por providenciar a Jerry um novo passaporte para que ele volte aos Estados Unidos]. Vamos pegar o seu passaporte e vai por essa arma na mão de Margolese (...). Se fugirmos agora, fugiremos o resto de nossas vidas [olhando para Jerry]. Queremos a nossa vida de volta.

Sim, amor, queremos.

5.20 DA TERCEIRA VERSÃO DA LENDA E DA RESOLUÇÃO DO CONFLITO

De volta ao quarto do hotel mexicano, Jerry é surpreendido pelos mesmos bandidos

mexicanos que o houveram roubado antes, quando da morte de Beck, sendo raptado por estes.

Sam se esconde, assim como à arma, escapando ao rapto. Jerry, entretanto, é levado à presença

do patrão dos mesmos, Tropillo, bem como, surpreendentemente, à do seu próprio, Margolese,

que lhe conta da razão não apenas do seu interesse pela arma, bem como de porque o enviar para

a resgatar.

[Se levantando da poltrona onde estava, até então, sentado] Você é fatalista, Jerry?

Nunca pensei sobre isso.

[Pedindo a Tropillo uma foto que este retém em suas mãos e se voltando a Jerry] Já pensou que, na tarde em que veio de encontro a minha vida, ao meu carro, não foi por acaso?

Honestamente, nunca pensei nisso.

Por causa daquela tarde, fui condenado a me lembrar de um colega de cela maluco com um recorte de jornal. Quando está preso naquela caixa, você aprende muito com o colega ao seu lado [Mostrando a Jerry uma foto tirada na penitenciária, onde Margolese está abraçado a um jovem mexicano, foto esta presa, aliás, por um clipe de papel a um velho recorte de jornal]. Acabei amando aquele garoto como se fosse meu filho [Indicando Tropillo]. Mas era filho dele... Um dia o garoto me mostrou o recorte. “Este é meu destino. Meu patrimônio hereditário”. Era a

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história sobre a pistola. Como a acharam na mina, escondida. Perguntei por que significava tanto para ele. A história que ele contou, mudou a minha vida [o garoto empresta a sua voz a Margolese que conta a Jerry da lenda. Esta terceira versão assume o tom estilístico das primeira e segunda dramatizações da estória da arma]. Uma noite antes do nobre chegar, o assistente não conseguia dormir. O seu coração doía [o cortejo do nobre chega à aldeia com estardalhaço]. O armeiro daria seu presente ao nobre e ao seu filho, conhecido como um soldado corrupto, mundano e mau [o armeiro entrega a arma ao nobre que, sob aplausos da multidão, expõe triunfalmente a perfeição da sua manufatura, enquanto o seu filho caminha em direção à sua desolada noiva]. Para ele, seu pai pediu a coisa mais bonita e mais perfeita que já tivesse visto. Mas não havia palavras nem relatos que lhe fizessem justiça e os preparassem para a perfeição daquela arma. Quando o filho do nobre viu sua futura noiva, foi amor à primeira vista [o filho do nobre a beija, ante a inércia da sua própria noiva e o repúdio do assistente do armeiro]. O filho do nobre pegou a poderosa arma nas mãos. Combinação perfeita [o noivo puxa o gatilho e, ante a surpresa de todos, nada acontece]. Ela não funcionou. O nobre achou que era um mau agouro. A maldição a tornava inútil em mãos indignas. O armeiro pediu que ele tentasse pela última vez, e ele o fez [Nova tentativa, novo erro, sob risos da multidão]. O nobre foi insultado pela inaptidão. Com raiva do pobre armeiro, eles discutiram [O filho do nobre joga a arma aos pés da noiva, desprezando, deste modo, a ambas. A filha do armeiro, então, já não esconde sua alegria, retribuindo aos olhares do assistente de seu pai]. Quando o filho do nobre percebeu que o coração dela pertencia ao assistente, um homem bem inferior a ele, ficou furioso de raiva. Não iria tolerar aquilo [O filho do nobre saca uma arma e a aponta ao assistente. A filha do armeiro pega a arma desprezada ao chão e a aponta ao seu ex­noivo, no que é ameaçada pelos demais componentes da comitiva aristocrática]. O assistente percebeu que, se a arma [“A mexicana”, mais uma vez] estivesse funcionando, ela teria morrido e implorou­lhe que aceitasse o destino deles [O assistente tenta convencer a sua amada a, conformada, depor a arma ao chão, no que é, afinal, atendido. O filho do nobre se aproveita, então, do momento para alvejar covardemente ao assistente do armeiro à queima­roupa, matando­o]. Dizem que se pode ouvir o coração dela partir. E ela entregou seu espírito amargurado ao purgatório [A filha do armeiro agarra, novamente, a arma, apontando­a, desta vez, a sua cabeça, suicidando­se]. A pistola guarda sua alma condenada [Ao som dos mesmos sinos fúnebres, esta dramatização chega ao fim e a voz de Margolese se faz, mais uma vez, ouvir]. Dia após dia, eu ouvia aquela história. E ele sempre dizia. “Quando eu sair, devolverei aquela pistola ao meu pai, pois foi o pai de seu pai que fez a arma”. Dezoito meses depois, ele levou um tiro em meu lugar... Ele morreu... Jurei encontrar a pistola e devolve­la a seu pai [Margolese continua, caminhando em direção a janela]. Meu neto Beck, cabeça dura. Ele ficou confuso. Não viu a honra por trás daquilo tudo [Voltando­se a Jerry]. Foi quando percebi que devia mandar você. Porque você foi a causa dessa situação, Jerry. [Voltando­se a Tropillo] O filho dele morreu [Voltando­se, uma vez mais, a Jerry]. Meu neto morreu. Tudo por causa daquela tarde, naquele cruzamento.

[Jerry, refletindo afinal] É uma razão muito boa.

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E Jerry afinal compreende, como jamais lhe ocorrera antes, os desígnios por trás daquele dever que lhe foi dado. O conhecimento das coisas lhe é concedido ao final de uma profunda transformação a qual se operou em si mesmo. Uma pergunta mais, entretanto, lhe ocorre fazer a Margolese:

[A respeito de sua dívida moral para com Margolese] Estamos quites?

Fico lhe devendo.

Neste ínterim, Sam é pega desprevenida e capturada pelo próprio Nayman que veio ao

México pela arma. A ele nada revela da sua exata localização, no que é presa ao porta­malas do

seu carro, enquanto aguarda a chegada de Jerry, que, acredita, detém a posse da mesma. De volta

da propriedade de Tropillo, onde se encontrara com Margolese, Jerry, junto aos homens de

Tropillo, surpreende a Nayman com mais um artifício. Como forma de libertar Sam do porta­

malas do automóvel (e evitar um seu eventual sufocamento), Jerry sugere ao próprio Nayman ser

ela a única a conhecer o destino que foi, afinal, dado à arma. Do cubículo, Sam emerge de arma

em punho, ameaçando Nayman (assim como o estão fazendo os criminosos mexicanos) que, por

sua vez, ameaça a Jerry, apontando­lhe uma arma, o qual roga a Sam que deponha o artefato ao

chão. Deste modo, se é reproduzido o mesmo embate de dois séculos atrás, quando o assistente

do armeiro e a filha deste se viram ameaçados tanto pelo filho do nobre, quanto pela sua

comitiva, respectivamente (e o mote musical, ao final, é o mesmo).

A argúcia desta seqüência reside na angustiante e indisfarçada tensão de que o mesmo

desfecho trágico da lenda se repita mais uma e decisiva vez. Como o próprio Jerry, a audiência da

obra compreende a iminente ameaça de tragédia que reside, mais uma vez, na utilização da arma.

O risco maior, entretanto, representa a premente repetição do desfecho da trágica lenda, posto que

a ela presta direta referencia. E, se os eventos “reais” posteriores aos eventos descritos nas

primeira e segunda versões da lenda (a saber, as mortes de Beck e Frank) vieram a reafirmar a

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sua veracidade, se é de aguardar, angustiadamente, que este novo evento venha repetir a última e

decisiva tragédia contada a Jerry por Margolese 28 . A tensão só se resolve quando, ao acaso,

Nayman evoca Leroy em seu derradeiro ensinamento:

[A Sam] Não sabe o momento de parar?

(...)

[A Nayman, ressentida, repetindo a pergunta que este fizera ao seu namorado, Jerry, quando da sua atribuição do dever de resgatar a arma a este] Você gosta de sexo e viagem?

Na verdade, gosto.

Resposta errada.

Sam puxa o gatilho e a arma curiosamente cospe uma aliança, cuja lenta trajetória é

acompanhada pela câmera até que ela atinge o chão, motivando, a este modo, uma nova

intervenção dos mesmos sinos (a qual desperta a incredulidade de todos, de Nayman aos

bandidos mexicanos), não mais enlutados como outrora, mas regozijantes agora, posto que,

distintamente às intervenções anteriores, anunciam, desta vez, um casamento a se realizar.

Nayman se descobre, então, ferido mortalmente pelo projétil de Sam, caindo inerte ao chão. Esta

larga a arma ao chão, saindo do porta­malas onde até então estivera e se sentando a uma porta

próxima. Jerry toma a aliança em suas mãos e a leva a Sam, colocando­lhe ao dedo. Abraçam­se

e reconhecem, afinal, os estranhos desígnios manifestados desde que a ele lhe foi dado o dever de

resgatar a arma ao homem para com quem estivera, até então, em dívida. Resgate que lhe

motivara, afinal, a própria manifestação, ainda que tardia, de uma maturidade que ele jamais

28 A isto Hitchcock alude muito sucinta e com muita propriedade ao afirmar que “na forma originária do suspense, é

indispensável que o público esteja perfeitamente informado dos elementos presentes. Do contrário, não há suspense”

(TRUFFAUT, 2004: 75).

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concebera experienciar. Resgate que motivara a Sam, por sua vez, a compreensão última das

implicações de um relacionamento, preparando­a, por sua vez, a Jerry.

Um dos bandidos mexicanos pega a arma ao chão e, com os demais e compartilhando,

agora, também da companhia do velho cão, partem para efetivar sua devolução a Tropillo, seu

verdadeiro herdeiro e dono. Um travelling para a frente permite à audiência adentrar os seus

aposentos, onde este, ao lado do mesmo velho cão, contempla a arma, cuidadosamente posta no

lugar a que a ela fora destinado. O cão, manifestação material dos desígnios da mesma,

manifestação última de sua materialidade, reconhece cumprido o seu destino. Regressada às mãos

de seu herdeiro legítimo, é cumprida a manifestação dos mesmos: de sua virtude e honra, bem

como da redenção à qual estas se compõem enquanto fundamentais.

5.21 DO EPÍLOGO (CRÉDITOS DE ENCERRAMENTO)

Jerry e Sam retornam, de carro, ao aeroporto de Toluca. Ela lhe pede que ele lhe conte

uma vez mais da lenda da arma, no que é atendida. Contudo, um lapso gramatical cometido por

Jerry, obriga­a a intervir, corrigindo­o. Nova discussão entre o casal é iniciada. A câmera,

fazendo uso de um travelling vertical, ascende da estrada ao mesmo semáforo das demais

seqüências, juntando­o, em um mesmo plano, ao carro que parte em direção ao horizonte. A

progressão do funcionamento do semáforo (agora consertado) é paradigmática da progressão da

tensão entre o casal. À medida que esta cresce (como o próprio tom das vozes de Jerry e Sam), o

semáforo passa do verde de “siga” ao amarelo de “atenção”. Manifestação sensível e singular do

Discurso cinematográfico, o plano final da seqüência mostra o referido semáforo em amarelo, à

iminência do vermelho (que assumiria, aqui, a conotação de uma nova ruptura no relacionamento

dos dois), quando se é cortado. O vermelho de transito, bem como um seu significado dentro da

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referida seqüência, é mantido em suspensão e os créditos de encerramento da obra são iniciados.

Ao final dos mesmos, contudo, se está em presença de uma singular interseção sonora, provável

indício de uma nova reconciliação do jovem casal: “Eu te amo, Jerry”.

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6 A MEXICANA E A POÉTICA DO THRILLER

A Mexicana, de Gore Verbinski, é, enfim, uma obra absorvente. Na compreensão da

riqueza seus signos constituintes é que reside a sua argúcia discursiva, bem como uma sua

inesgotável decomponibilidade simbólica. A sua estrutura, ainda que fundada sobre as matizes

próprias e caras ao thriller – cujas bases Alfred Hitchcock bem o soube estabelecer em sua

extensa e profícua filmografia –, lida com elementos outros, tantos e tão diversos a este gênero

particular. Deste modo, A Mexicana, de Verbinski recebe aportes não somente do thriller

hitchcockiano 29 , sobre o qual se constitui fundamentalmente, mas também da comédia, por

exemplo, compondo, ao final, uma obra tão diversa e rica nas apreensões que exige do seu

espectador (cômica, quando da mesma comédia 30 , por exemplo) quanto o são estes mesmos

aportes.

Neste sentido, a trilha sonora original 31 , composta por Alan Silvestri é fundamental às

diferentes apropriações que um mesmo leitor pode fazer da referida obra em momentos diversos

e diferentes entre si (posto que as seqüências, a seu modo, constituem­se sobre estes mesmos e

29 Posto a obra de Verbinski se tratar, afinal, de um thriller cujo mote fundamental, a saber, a viagem, é emprestado

dos filmes mais representativos da obra do próprio Hitchcock, como Intriga Internacional (North by Northwest, EUA, 1955), por exemplo. 30 A exemplo da seqüência durante a qual se testemunha a primeira – e emblemática! – briga do casal Sam e Jerry,

caricatura bem humorada, segundo a crítica Ludmila Carvalho, do “o excesso de psicologia nos relacionamentos

modernos” (CARVALHO, 2000). 31 Cada viés componente da obra (a saber, edição, música, fotografia e figurino) demanda, por si só, uma apreensão

mais aprofundada à realizada aqui. Se não se detém nesta mesma apreensão mais particular a cada, é pelo lógico

motivo de que os mesmos, em seu caráter fértil e profícuo, constituem­se em material suficiente a outros Trabalhos

de Conclusão de Curso, ademais de, à sua maneira, contribuir ao afastamento do presente Trabalho aos fins que ele

mesmo se atribuiu. Portanto, discorrer mais longamente a respeito da composição da música por Alan Silvestri não

apenas acarreta um estudo mais aprofundado da teoria da música e de suas disciplinas correlatas, assim como um

desvio do próprio esforço em se analisar filmicamente (grifo) a referida obra.

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diferentes aportes temáticos). Quase onírica muitas vezes (notadamente, quando das versões da

mesma lenda), dramática, intimista (quando do dia seguinte ao encontro de Leroy, Sam e Frank,

em Las Vegas) ou melancólica (quando da morte do mesmo Frank), a música cabe papel

fundamental à composição do caráter único da obra.

A fotografia, de Darius Wolski, por sua vez, é, a seu modo, também fundamental ao

caráter imprimido, afinal, à obra em seu conjunto. Em A Mexicana, está­se em presença de três

principais aportes fotográficos também distintos entre si: o México de Jerry, em seus tons fortes e

marcadamente amarelos; os Estados Unidos de Sam, ao contrário, em tons azuis quase que

apagados, um tanto apáticos; e a aldeia da lenda, em sua fotografia granulada e deficiente,

concepção estética emprestada dos filmes mudos de primórdios do século XX, compondo, afinal,

um interessante inventário metalinguistico.

E o figurino, de Coleen Atwood, empresta às personagens seus respectivos discursos

conceituais, especialmente a Nayman. Ao contrário dos demais criminosos a serviço de

Margolese, seu vestuário sofisticado e nada funcional o aproximam semanticamente (como o fora

pretendido pelos realizadores da obra, a saber, o próprio Verbinski, Atwood e ainda J. H.

Wyman, o qual assina o seu roteiro) a figura do executivo contemporâneo, para o qual o mote

fundamental a obra, a saber, a honra e suas implicações, não é mais que uma mera palavra cuja

presença mais concreta não reside em outro lugar senão nas ordinárias páginas de dicionários

embolorados.

E A Mexicana é, afinal, uma crônica das profundas transformações experienciadas por

suas personagens. Não apenas Jerry e Sam, mas igualmente Leroy, Ted e o próprio Margolese.

Somente experienciando uma maturidade jamais manifesta, é que Jerry consegue lidar não apenas

com toda a sorte de adversidades que se põem ao seu caminho, bem como restituir o seu nome

enquanto signo de lealdade ao seu empregador, saldando, a seu turno, a dívida moral que para

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com este tem e resgatando, ao final, a sua própria honra. Sam, de vítima de um seqüestro cujo

mote lhe escapa, inicialmente, à sua própria compreensão, descobre­se pupila de alguém mais

experiente (melhor, maduro) e que lhe consubstancia todo um cabedal de compreensões a

respeito do próprio amor e de como as experienciar, preparando­a igualmente ao

compartilhamento de maiores cumplicidade e intimidade para com Jerry.

Leroy compreende, através de Frank e de sua morte, tudo o que antes lhe escapara em

matéria da própria vida por lhe parecer fugidio e incompleto. E, em sua completude, finalmente

experienciada, é que ele vai ajudar Sam a empreender a experienciação da sua própria. Às

convicções passadas de Ted é que a sua própria transformação vai se tornar manifestas em seus

desígnios mais destrutivos. Ted se reconhece tardiamente em sua ignorância (embora sempre se

acreditasse sábio), bem como às possibilidades de realização afetiva que lhe parecem agora claras

(ademais, fundamentais à sua vida). E Margolese, por sua vez, manifesta a Jerry a compreensão

dos valores compartilhados com o garoto mexicano na penitenciária. E, embora sua

experienciação tenha se manifestado anteriormente às demais (a saber, de Jerry, Sam, Leroy e

Ted), a elas também faz referencia a respeito do seu mote primeiro: “a mexicana”.

A arma não é somente estopim destes mesmos acontecimentos (o macguffin

hitchcockiano), senão a chave para compreender a natureza dos mesmos. Suas versões da lenda 32

se perpetuam “(...) na realidade, num recurso de metalinguagem interessante (...)” (CARVALHO,

2000) e conferindo ao referido artefato tanto quanto um seu indisfarçado caráter mítico, um

original estatuto de verossimilhança levado às raias da realidade cartesiana (se é levado, afinal, a

32 De modo semelhante às diferentes estórias contadas pelas diferentes personagens de Rashomon (Idem, Japão, 1950), de Akira Kurosawa. Ao contrário da obra de Kurosawa, na qual as versões eram tão contrastantes quanto era a

intenção do realizador em dizer que não havia verdade, senão apropriações da mesma, as versões da lenda da arma

em A Mexicana se constroem em uma única direção, a constituir um quadro onde uma vem a reiterar o estatuto de verossimilhança da anterior.

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crer, por mais inverossímil que em uma sociedade como a ocidental possa parecer, no caráter

sobrenatural, posto que amaldiçoado, do artefato). Neste sentido, a argúcia constituinte da

seqüência em que se está em presença da própria resolução do conflito reside na indisfarçada

tensão de que o mesmo desfecho trágico da lenda se repita mais uma e decisiva vez. O leitor da

obra já compreende, então, a iminente ameaça de tragédia que reside, mais uma vez, na utilização

do artefato para ser surpreendido, afinal, pelos rumos que o próprio acontecimento se faz tomar e

não pelos rumos que o mesmo deveria tomar (se se pensar no modo como as duas primeiras

versões da lenda se fizeram imprimir na “realidade”) 33 .

As versões da lenda da maldição do artefato compõem, a seu modo, um panteão mítico

onde a referida arma é fundamental. Mais que um artifício discursivo, signos constituídos ao

longo da obra, como o velho cão e o semáforo são, eles próprios, componentes deste mesmo

panteão. À sua maneira, A Mexicana é um thriller que flerta claramente com a constituição

mítica 34 do que lhe é mote último e fundamental: a arma e tudo o que lhe é tocado ao longo da(s)

estória(s) contada(s) por Verbinski. Fazendo, inicialmente, uso de formas consagradas ao thriller

hitchcockiano no que este tem de mais paradigmático e ulterior (portanto, simbólico), Verbinski

vem a compor uma obra onde nada escapa a sugestão. O cão em seu caráter mítico de

ancestralidade manifesta concretamente (assim como signo da atemporalidade dos valores aos

quais se encontra vinculado), assim como, através de si, são manifestas concretamente a honra e a

virtude às quais não apenas a arma e a sua estória, como o próprio filme em seu Discurso

constituidor, fazem referencia clara e inequívoca.

33 A Mexicana opera, também ao seu modo, a desconstrução do star system hollywoodiano, ao propor a separação fabulístico­discursiva das “estrelas” do filme (a saber, Brad Pitt e Julia Roberts) durante quase toda a duração do

mesmo, surpreendendo, deste modo, à audiência que aguardava os ver juntos ao longo de toda a obra. 34 A exemplo do caráter mítico que Leni Riefenstahl empresta a Adolf Hitler no seu O Triunfo da Vontade ou que Luc Besson confere ao mergulhador Jacques Mayol, este também uma personagem real, em Imensidão Azul.

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O semáforo, ao seu modo, serve a tantas apropriações por parte de Verbinski quanto o

são tantas as suas manifestações ao longo da obra. De índice do estatuto das coisas que se fazem

acontecer a signo maior da inépcia do Estado (aqui identificado aos Estados Unidos), bem como

de um seu abandono e desamparo para com Jerry, é justamente nesta apreensão que o mesmo se

realiza de modo mais cabal e notável, contribuindo, por sua vez, à reiteração do caráter

hitchcockiano da obra, compondo a mesma, ao final, enquanto cíclica e marcada continuamente

por estes dois vieses e vertentes: do thriller à construção mítica e vice versa. A obra de Verbinski

é marcada, pois, por esta notável dialética, marca fundamental ao seu caráter simbólico e

absorvente, fértil e profícuo, hitchcockiano e mítico.

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REFERÊNCIA

Referencia Fílmica

APOCALYPSE Now. Direção: Francis Ford Coppola. Intérpretes: Marlon Brando, Robert Duvall, Martin Sheen, Frederic Forrest, Albert Hall, Sam Bottoms, Laurence Fishburne, Christian Marquand, Aurore Clement, Harrison Ford, Dennis Hopper [e outros]. Producao: Francis Ford Coppola e Kim Aubry. Roteiro: John Milius e Francis Ford Coppola. Música: Carmine Coppola e Francis Ford Coppola.

DUBLE de Corpo. Direção: Brian De Palma. Intérpretes: Guy Boyd, Dennis Franz, Melanie Griffith, Gregg Henry, Deborah Shelton, Craig Wasson [e outros]. Produção: Brian de Palma. Roteiro: Robert J. Avrech e Brian de Palma. Música: Pino Donaggio.

FEMME Fatale. Direção: Brian De Palma. Intérpretes: Antonio Banderas, Rebecca Romijn­ Stamos, Peter Coyote, Gregg Henry [e outros]. Produção: Tarak Bem Amar e Marina Gefter. Roteiro: Brian De Palma. Música: Ryuichi Sakamoto.

FRENESI. Direção: Alfred Hitchcock. Intérpretes: Jean Marsh, Billie Whitelaw, Vivien Merchant, Alec McCowen, Anna Massey, Barbara Leigh­Hunt, Barry Foster, Jon Finch [e outros]. Produção: Alfred Hitchcock. Roteiro: Anthony Shaffer. Música: Ron Goodwin e Henry Mancini.

IMENSIDAO Azul. Direção: Luc Besson. Intérpretes: Rosanna Arquette, Jean­Marc Barr, Jean Reno, Paul Shenar, Sergio Castellitto, Marc Duret, Griffin Dunne [e outros]. Produção: Patrice Ledoux. Roteiro: Luc Besson, Robert Garland, Marilyn Goldin, Jacques Mayol e Marc Perrier. Música: Eric Serra.

INTRIGA Internacional. Direcao: Alfred Hitchcock. Intérpretes: Cary Grant, Eva Marie Saint, James Mason, Jessie Royce Landis, Malcolm Atterbury, Edward Binns, Leo G. Carroll, Philip Coolidge, Robert Ellenstein, Ned Glass, Josephine Hutchinson, Martin Landau, Doreen Lang, Nora Marlowe, Pat McVey, Philip Ober, Adam Williams, Edward Platt, Olon Soule, Les Tremayne [e outros]. Produção: Alfred Hitchcock. Roteiro: Ernest Lehman. Música: Bernard Herrmann.

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KIKA. Direção: Pedro Almodóvar. Intérpretes: Peter Coyote, Verônica Forqué, Victoria Abril, Alex Casanovas, Rossy de Palma, Anabel Alonso, Jesús Bonilla, Karra Elejalde, Bibí Andersen, Santiago Lajusticia, Manuel Bandera, Charo López [e outros]. Produção: Pedro Almodóvar e Esther García. Roteiro: Pedro Almodóvar. Música: Jean Paul Mugel.

O ANJO Exterminador. Direção: Luis Buñuel. Intérpretes: Silvia Pinal, Enrique Rambal, Jacqueline Andeve, Jose Baviera, Augusto Benedico [e outros]. Produção: Gustavo Alatriste. Roteiro: Luis Buñuel e Luis Alcoriza, baseado no romance de Jose Bergamin. Música: Raúl Lavista.

O HOMEM que Sabia Demais. Direção: Alfred Hitchcock. Intérpretes: James Stewart, Doris Day, Christopher Olsen, Alan Mowbrey, Magens Wieth, Daniel Gelin, Patrick Aherne, Betty Bascomb, Yves Brainville, Hillary Brooke, Brenda De Banzie, Leo V. Gordon, Carolyn Jones, Lewis Martin, Louis Mercier, Bernard Miles, Reggie Nalder, Alix Talton, Ralph Truman, Anthony Warde, Richard Wattis, Noel Willman, Richard Wordsworth [e outros]. Producao: Alfred Hitchcock. Roteiro: John Michael Hayes e Angus MacPhail. Musica: Bernard Herrmann.

O INFORMANTE. Direção: Thomas Mann. Intérpretes: Al Pacino, Russel Crowe, Christopher Plummer, Diane Venora, Philip Baker Hall, Lindsay Crouse, Devi Mazar [e outros]. Produção: Pieter Jan Brugge, Michael Mann, Michael Waxman, Gusmano Cesaretti e Kathleen M. Shea. Roteiro: Eric Roth e Michael Mann, baseado em artigo escrito por Marie Brenner. Música: Pieter Bourke, Lisa Gerrard e Graeme Revell.

O TRIUNFO da Vontade. Direção: Leni Riefenstahl. Produção: Leni Riefenstahl. Roteiro: Leni Riefenstahl e Walter Ruttmann. Música: Herbert Windt. OLHOS de Serpente. Direção: Brian De Palma. Intérpretes: Nicolas Cage, Gary Sinise, John Heard, Carla Gugino, Stan Shaw, Kevin Dunn [e outros]. Produção: Brian De Palma. Roteiro: David Koepp. Música: Ryuichi Sakamoto.

PACTO Sinistro. Direção: Alfred Hitchcock. Intérpretes: Farley Granger, Ruth Roman, Robert Walker, Leo G. Carroll, Patricia Hitchcock, Kasey Rogers, Marion Lorne, Jonathan Hale, Howard St. John, John Brown, Norma Varden, Robert Gist [e outros]. Produção: Alfred Hitchcock. Roteiro: Raymond Chandler e Czenzi Ormonde, baseado no romance de Patricia Highsmith. Música: Dmitri Tiomkin.

PSICOSE. Direcao: Alfred Hitchcock. Intérpretes: Anthony Perkins, Janet Leigh, Vera Miles, John Gavin, Martin Balsam, John McIntire, Lurene Tuttle, Simon Oakland, John Anderson, Frank Albertson, Patricia Hitchcock, Vaughn Taylor, John Anderson, Mort Mills, Francis DeSales, George Eldredge, Sam Flint, Helen Wallace, Ted Knight [e outros]. Produção: Alfred Hitchcock. Roteiro: Joseph Stefano, baseado no romance de Robert Bloch. Música: Bernard Herrmann.

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PSICOSE. Direção: Gus Van Sant. Elenco: Vince Vaughn, Anne Heche, Julianne Moore, William H. Macy, Viggo Mortensen, Robert Foster, Philip Baker Hall, Anne Haney, Chad Everett, Rance Howard, Rita Wilson, Flea [e outros]. Produção: Brian Grazer e Gus Van Sant. Roteiro: Joseph Stefano, baseado no romance de Robert Bloch. Música: Rob Zombie.

REFERÊNCIA

AUMONT, Jacques. (e outros). A Estética do filme. Campinas: Papirus Editora, 1994.

BAVAGNOLI, Claudia. “A caverna de Platão e o cinema Clássico”. Disponível em: <http://www.mnemocine.com.br/cinema/crit/caverna_claudia.htm>. Acessado em 15 de Julho de 2004.

BERNARDET, Jean­Claude. O que é Cinema. 13ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2001.

CARVALHO, Ludmila. “Aventura e Ironia são o Melhor de ‘A Mexicana’”. Disponível em: <http://www.cineinsite.com.br/filme/filme­fichatecnica.php?id_filme=1179>. Aessado em 15 de Julho de 2004.

GARDNIER, Ruy. “Hitchcock Liber tário Simbólico”. Disponível em: <http://www.geocities.com/contracampo/hitchcocklibertariosimbolico.html>. Aessado em 15 de Julho de 2004.

LEITE FILHO, Ronaldo Barreto. “Intriga Internacional”:A Quintessencia da Narrativa Cinematográfica – A Contribuição Hitchcockiana a Narrativa Clássica. Salvador: Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, 2004. 144f (Projeto de Conclusão do Curso de Comunicação Social: Produção em Comunicação e Cultura). 2004.

PINTO, Pedro Plaza. FREIRE, Mariana Baltar. MORAIS, Fernando. RAMOS, Lécio Augusto. “Ismail Xavier: O Cinema e Os Filmes ou Doze Temas em Torno da Imagem”, in: ______ Contracampo no. 8. Niterói: Janeiro de 2003. (Entrevista de Ismail Xavier ao Contracampo)

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RUSSO, Francisco. Disponível em: <http://adorocinema.cidadeinternet.com.br/filmes/mexicana/mexicana.htm>. Acessado em 15 de Julho de 2004.

SETARO, André Olivieri. “Da Narrativa e da Fábula”, in: Narrativa e Fábula no Discurso Cinematográfico de ‘A Grande Feira’. Salvador: Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia, 1998. (Dissertação de Mestrado em Teoria e História da Arte)

TRUFFAUT, François. Hitchcock/Truffaut: Entrevistas, Edição Definitiva. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

VANOYE, Francis. GOLIOT­LÉTÉ, Anne. Ensaio Sobre a Análise Fílmica. Campinas: Papirus Editora, 1994.

VERÍSSIMO, Fernando. Disponível em: <http://www.contracampo.com.br/criticas/mexicana.htm>. Acessado em 15 de Julho de 2004.

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ANEXO

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Aventura e ironia são o melhor de A Mexicana 35

O diretor Gore Verbinski soube dosar com muita competência as quantidades certas de

cada estilo para compor uma mistura bastante agradável.

Ludmila Carvalho

O fato de ter Julia Roberts e Brad Pitt contracenando juntos ­ pela primeira vez ­ não é

nenhuma surpresa. Afinal, na indústria cinematográfica de Hollywood filmes são constantemente

feitos para aproveitar o sucesso de uma dupla de atores, um casal ou até mesmo de dois

oponentes. O que realmente surpreende no filme A Mexicana (The Mexican, EUA, 2001) é o

diretor Gore Verbinski. Praticamente novato na direção ­ seu primeiro grande filme foi o infantil

Um Ratinho Encrenqueiro (Mouse Hunt, EUA, 1997) ­ o cineasta consegue elaborar um filme

divertidíssimo e visualmente criativo.

O enredo de A Mexicana aposta em muitas vertentes, sem se apegar definitivamente a

nenhuma delas. Partindo do princípio básico do thriller de aventura, ele contém um certo

sentimentalismo (afinal, trata­se da história romântica de um casal apaixonado) e muitas doses de

humor negro ­ ao melhor estilo inglês, para espanto geral. É sabido que esta mistura de gêneros

tem uma forte tendência a deixar o filme perdido, sem saber que rumo seguir na hora do desfecho

da história. Neste caso, felizmente, o diretor soube dosar com muita competência as quantidades

certas de cada estilo para compor uma mistura bastante agradável.

35 CARVALHO, Ludmila, in: http://www.cineinsite.com.br/filme/filme­fichatecnica.php?id_filme=1179,

acessado em 15 de Julho de 2004.

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O enredo do filme gira em torno da missão especial que o azarado Jerry (Pitt) recebe de

seus chefes mafiosos: ir até um pequeno vilarejo no México para recuperar uma arma antiga e

muito valiosa, conhecida como “a mexicana”. O problema é que sua namorada, a impaciente

Samantha (Roberts), tem planos de ir para Las Vegas tentar a vida como garçonete. Depois de

uma briga recheada de piadas sobre o excesso de psicologia nos relacionamentos modernos, o

casal decide se separar.

É então que começa a melhor característica do filme. Para ­ mais uma vez ­ surpresa do

público, os pombinhos só contracenam de fato nos trinta minutos finais da fita. Até este

momento, Verbinski opta por acompanhar paralelamente suas aventuras individuais. Enquanto

Pitt se mete em diversas confusões com as dezenas de pretendentes a donos da valiosa arma,

Roberts é vítima de um seqüestro bastante incomum. Neste ponto, mais uma surpresa: o ator

James Gandolfini, que interpreta o seqüestrador Leroy, é responsável por alguns dos momentos

mais bem­humorados da película.

A engenhosidade do roteiro consiste em dividir essas e outras histórias mantendo o

ritmo acelerado de comédia. No entanto, as qualidades do filme não param por aí. Julia Roberts,

que acertou em cheio ao mostrar seu talento também no gênero da comédia depois de ser

aclamada pelo drama Erin Brockovich, e Brad Pitt, que se mostra cada vez mais competente na

arte de escolher papéis (basta lembrar que seus últimos trabalhos incluem Clube da Luta, de

David Fincher, e Snatch, de Guy Ritchie), conseguem imprimir o tom certo de humor a seus

personagens.

Gore Verbinski se mostra criativo na hora de “amarrar” as histórias, apelando para

recursos visuais ousados. A odisséia de Jerry no México é mostrada segundo um filtro distorcido,

que empresta um visual quase onírico à sua história. Os personagens são caricaturais, as situações

são inverossímeis e a lenda da maldição da arma se perpetua na realidade, num recurso de

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metalinguagem interessante. As cenas que narram a história da “mexicana”, por sua vez, são

inspiradas no cinema mudo, só que desta vez envolvendo personagens e cenários tipicamente

mexicanos.

Este caráter inverossímil e mágico – marcado, sobretudo, pela maravilhosa ironia do

sinal vermelho na avenida da cidade mexicana onde se encontra Jerry ­ termina dominando o

filme quando Julia e Pitt finalmente se encontram em cena. Numa sequência que faz referência

clara à comédia romântica Por Uma Vida Menos Ordinária (A Life Less Ordinary, 1997), do

britânico Danny Boyle, o desfecho do filme é completamente marcado por essa característica.

Um toque inteligente, irônico e bem humorado de um promissor cineasta.