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Vertentes & Interfaces I: Estudos Literários e Comparados Fólio – Revista de Letras Vitória da Conquista v. 2, n. 1 p. 10-19 jan./jun. 2010 Alana de Oliveira Freitas El Fahl INUTILIA TRUNCAT: UMA LEITURA DO CONTO “CIVILIZAÇÃO” DE EÇA DE QUEIRÓS Alana de Oliveira Freitas El Fahl * RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo empreender uma leitura do conto Civilização (1892) de Eça de Queirós. Através da análise das mudanças ocorridas na biblioteca de seu protagonista Jacinto durante a narrativa, é possível perceber que o autor utiliza os títulos dos livros como estratégia textual que vai delineando a mudança ideológica de seu personagem. Como em outras obras do autor, a literatura passa a funcionar como uma personagem no conto eciano. PALAVRAS-CHAVE: Biblioteca. Civilização. Conto. Eça de Queirós. 1 Jacinto na civilização: a flor do pessimismo Situada como uma das linhas de frente do Realismo português, a importante produção literária de Eça de Queirós (1845-1900) oferece ainda orientação à cultura e à literatura em língua portuguesa. Tal condição representa um ponto pacífico entre os críticos, já que é notória a efetiva contribuição de Eça na construção das bases ideológicas e estéticas da segunda metade do século XIX. Os seus romances sempre são citados, quando é necessário exemplificar as linhas mestras defendidas pelo período, tais como o desmascaramento dos vícios burgueses, o materialismo, o adultério, o anticlericalismo, ou a hipocrisia da sociedade, enfim, as falhas morais do homem português no final do século XIX. Romances como O crime do Padre Amaro (1875), O primo Basílio (1878) e Os Maias (1888) se mostram como espelhos da burguesia lusitana, vista também como metonímia da humanidade; são narrativas nas quais o autor tece críticas ácidas contra a sociedade através das fragilidades de suas instituições basilares como a igreja, o casamento e a família. Todavia, ao longo do seu desenvolvimento, a profícua obra do autor vai adquirindo novos contornos, que, por vezes, se distanciam dos objetivos centrais dessas primeiras narrativas, ainda que sem os abandonar totalmente. A trajetória de suas obras posteriores vai- se multifacetando e ganhando feições diferenciadas que apontam para uma transformação, sobretudo da matéria-prima utilizada como fonte pelo escritor. Se, em seus primeiros romances o autor focalizava primordialmente o Portugal * Doutora em Letras (Teorias e Críticas da Literatura e da Cultura) pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professora de Literatura Portuguesa da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS).

Inutilia truncat: para uma leitura do conto «Civilização» de Eça de Queirós

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Trata-se de uma proposta de leitura do conto de Eça de Queirós

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  • Vertentes & Interfaces I: Estudos Literrios e Comparados

    Flio Revista de Letras Vitria da Conquista v. 2, n. 1 p. 10-19 jan./jun. 2010

    Alana de Oliveira Freitas El Fahl

    INUTILIA TRUNCAT: UMA LEITURA DO CONTO CIVILIZAO DE EA DE QUEIRS

    Alana de Oliveira Freitas El Fahl*

    RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo empreender uma leitura do conto Civilizao (1892) de Ea de Queirs. Atravs da anlise das mudanas ocorridas na biblioteca de seu protagonista Jacinto durante a narrativa, possvel perceber que o autor utiliza os ttulos dos livros como estratgia textual que vai delineando a mudana ideolgica de seu personagem. Como em outras obras do autor, a literatura passa a funcionar como uma personagem no conto eciano. PALAVRAS-CHAVE: Biblioteca. Civilizao. Conto. Ea de Queirs. 1 Jacinto na civilizao: a flor do pessimismo

    Situada como uma das linhas de frente do Realismo portugus, a importante produo literria

    de Ea de Queirs (1845-1900) oferece ainda orientao cultura e literatura em lngua portuguesa.

    Tal condio representa um ponto pacfico entre os crticos, j que notria a efetiva contribuio de

    Ea na construo das bases ideolgicas e estticas da segunda metade do sculo XIX. Os seus

    romances sempre so citados, quando necessrio exemplificar as linhas mestras defendidas pelo

    perodo, tais como o desmascaramento dos vcios burgueses, o materialismo, o adultrio, o

    anticlericalismo, ou a hipocrisia da sociedade, enfim, as falhas morais do homem portugus no final do

    sculo XIX.

    Romances como O crime do Padre Amaro (1875), O primo Baslio (1878) e Os Maias (1888) se

    mostram como espelhos da burguesia lusitana, vista tambm como metonmia da humanidade; so

    narrativas nas quais o autor tece crticas cidas contra a sociedade atravs das fragilidades de suas

    instituies basilares como a igreja, o casamento e a famlia.

    Todavia, ao longo do seu desenvolvimento, a profcua obra do autor vai adquirindo novos

    contornos, que, por vezes, se distanciam dos objetivos centrais dessas primeiras narrativas, ainda que

    sem os abandonar totalmente. A trajetria de suas obras posteriores vai- se multifacetando e ganhando

    feies diferenciadas que apontam para uma transformao, sobretudo da matria-prima utilizada como

    fonte pelo escritor. Se, em seus primeiros romances o autor focalizava primordialmente o Portugal * Doutora em Letras (Teorias e Crticas da Literatura e da Cultura) pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professora de Literatura Portuguesa da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS).

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    contemporneo, num constante propsito do espelhamento realista propagado nas Conferncias do

    Cassino, nas obras seguintes h um alargamento desse olhar; O monculo amplia-se, a fim de buscar

    outras matrias, ainda que apontem, em ltima instncia, para a anlise mais profunda do seu tempo,

    anlise que, atenta ao diagnstico da dinmica social, foge ao documentrio, exibio imediata prpria

    representao estritamente realista. justamente dentro desse perodo de ampliao dos materiais,

    que surgem os contos que tomamos como objeto de estudo.

    O livro Contos veio a pblico em 1902, em uma publicao pstuma organizada por Luiz de

    Magalhes, que reuniu 12 narrativas publicadas em peridicos entre os anos de 1874 e 1898, a saber:

    Singularidades de Uma Rapariga Loura (1874), Um Poeta Lrico (1880), No Moinho (1880),

    Civilizao (1892), A Aia (1893), O Tesouro (1894), Frei Genebro (1894), O Defunto

    (1894), Ado e Eva no Paraso (1896), A Perfeio (1897), Jos Matias (1897) e O Suave

    Milagre (1898).

    Por reunir textos escritos ao longo de duas dcadas, o conjunto de contos expe mudanas de

    procedimentos narrativos que se vo apresentando na obra do autor, bem como a permanncia de seus

    ditames iniciais. Esse binmio de permanncias e mudanas tambm perceptvel nos romances,

    conforme observa Reis (2000, p. 30-31):

    As ltimas obras de Ea, ou seja, A ilustre casa de Ramires (1900), A cidade e as serras (1901) (que tal como a publicao em volumes d A correspondncia de Fradique Mendes, em 1900, ho de considerar-se semi-pstumas, por no terem sido inteiramente concludas pelo escritor) revelam ainda traos da ateno que o escritor nunca deixou de consagrar a realidade envolvente; e de novo, ultrapassada a rigidez programtica dos anos naturalistas, a escrita queirosiana contempla elementos de natureza histrica, simblica e mtica. De qualquer forma, no podemos ignorar que as escritas dessas obras finais- e tambm dos contos, das crnicas de imprensa e at das cartas que escreveu nos ltimos dez anos de sua vida- ocorre num tempo de mudana ideolgica: assim devemos consider-lo, se confrontarmos esse ltimo Ea com aquele que defendeu as posies do tempo (e mesmo depois) das Conferencias do Casino.

    O presente trabalho se limita a analisar em especial o conto Civilizao. Tambm situado

    nesse horizonte descrito por Reis (2000) como o ltimo de Ea. Civilizao, conto publicado no

    jornal Gazeta de Notcias do Rio de Janeiro em 1892, apresenta uma espcie de projeto condensado do

    romance A cidade e as serras, publicado em 1901, escrito por Ea de Queirs em 1900, ano de sua morte.

    Dividido em cinco partes, o conto tem por protagonista Jacinto, um jovem burgus que vive

    num palcio em Lisboa, o Jasmineiro, cercado de todas as comodidades que a sua posio econmica

    pode-lhe oferecer.

    O nome Jacinto de origem mitolgica (GUIMARES, 1993). Segundo a lenda, Jacinto era

    um jovem de beleza esplendorosa, amante de Apolo e tambm desejado por Zfiro. Um dia, quando

    ele brincava de jogar discos com Apolo, Zfiro, enciumado, fez o disco desviar e acidentalmente ferir

    Jacinto no rosto de forma letal. Do sangue de Jacinto nasceu uma flor semelhante ao lrio e mais

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    brilhante que a prpura, nas suas ptalas havia traadas interjeies de dor. Portanto, alm de portar

    uma afinidade essencial com a natureza, o nome do protagonista j traz em sua origem o smbolo do

    lamento, trao psicolgico da personagem em questo, que se intensifica na sua vida citadina.

    Todo o conto narrado por seu amigo, quase annimo, Jos (no romance Z Fernandes,

    compreendido como a mesma personagem). atravs da descrio desse narrador-personagem que,

    logo nas linhas iniciais da primeira parte do texto, o leitor apresentado a Jacinto e sua existncia

    opulenta1:

    Eu possuo preciosamente um amigo (o seu nome Jacinto) que nasceu num palcio, com quarenta contos de renda em pingues de terra de po, azeite e gado. Desde o bero, onde sua me, senhora gorda e crdula de Trs-os-Montes, espalhava para reter as Fadas Benficas, funcho e mbar, Jacinto fora sempre mais resistente e so que um pinheiro das dunas... No teve sarampo e no teve lombrigas. Nunca padeceu, mesmo na idade em que se l Balzac e Musset, os tormentos da sensibilidade. Nas suas amizades foi sempre to feliz como o clssico Orestes. Do Amor s experimentara o mel esse mel que o amor invariavelmente concede a quem o pratica, como as abelhas com ligeireza e mobilidade. Ambio, sentira somente a de compreender bem as ideias gerais, e a ponta do seu intelecto (como diz o velho cronista medieval) no estava ainda romba nem ferrugenta...

    Porm, essa sorte de um ser cercado de fartura, assegurado pelas posses da famlia e pelos

    rituais conferidos a prncipes desde o seu nascimento, no garante a Jacinto a felicidade buscada por

    todos os homens, j que, ainda no mesmo pargrafo, o narrador nos introduz nas angstias do

    protagonista, elemento motor do conflito:

    [...] E, todavia, desde os vinte e oito anos, Jacinto j se vinha repastando de Schopenhauer, do Eclesiastes, de outros pessimistas menores, e trs, quatro vezes por dia, bocejava com um bocejo cavo lento, passando os dedos finos sobre as faces, como se nelas s palpasse palidez e runa. Por qu?

    Marcado pela apatia, o comportamento de Jacinto parece carrear consigo o estado de esprito

    melanclico do fin du sicle, j anunciado na lenda que justifica o seu nome. Essa apatia geral tem sua

    origem na crise da religio do progresso. Tal estado de esprito indicado no texto pelas preferncias

    das leituras do protagonista, tanto Salomo, personagem bblico, quanto Shopenhauer, filsofo alemo,

    so portadores do pessimismo experimentado pelo Prncipe da Gr-ventura. Dessa forma, tanto

    Civilizao quanto As cidades e as serras pem em cena a crise dos ideais positivistas de ordem e

    progresso que, tendo vicejado ao longo do sculo XIX, j demonstravam, em seu final, sinais de

    fragilidade e indcios da prpria falncia.

    1 Todas as passagens do conto aqui citadas foram extradas das Obras completas do autor, organizadas por Beatriz Berrini, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997, p. 1507-1525. v. 2.

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    Todavia, o pessimismo da personagem ser superado ao longo do conto, numa indicao de

    que o posicionamento ideolgico de Ea contrrio ao niilismo e, no plano esttico, ao decadentismo

    finissecular adotado por muitos autores.

    O Decadentismo representava uma atmosfera artstica marcada pelo pessimismo, atmosfera

    batizada por Ea de nevoeiro mstico, que trazia como principais mentores filosficos Arthur

    Schopenhauer (1788-1860) e Friedrich Nietzsche (1844-1900). Faceta do Simbolismo, seus principais

    representantes na poesia portuguesa foram Eugnio de Castro (1869-1944), Antonio Nobre (1867-

    1900), Camilo Pessanha (1868-1926) e Raul Brando na prosa (1867-1930).

    Para Haquira Osakabe, o decadentismo finissecular foi o resultado de um processo de

    decadncia da civilizao europeia que teria assumido feies definidas a partir da formao do

    cristianismo e evolura, modulando-se, at os tempos modernos. Tal percurso perceptvel nas opes

    de leitura de Jacinto a respeito de Salomo a Schopenhauer. Segundo Osakabe (2002, p. 31):

    [...] a depresso resultava no tanto do declnio de um tipo particular de sociedade, mas da dissoluo da tradio tica que o mundo ocidental teria erigido para si. Nesse sentido, o decadentismo foi muito mais que uma deposio de armas: foi a manifestao de um estado de esprito em que o homem sente-se mortalmente atingido no seu prprio cerne.

    A personalidade de Jacinto no incio do conto alude ao Decadentismo. Atravs da trajetria

    desse personagem, Ea responde a um conjunto de aspectos relevantes e que davam o tom

    predominante na cultura da poca, a saber: Niilismo, na filosofia, Decadentismo e Simbolismo, na

    esttica, e Cientificismo, na epistemologia. Ao longo do enredo, o autor apontar uma sada para a crise

    gerada por essa atmosfera cultural.

    A pergunta feita pelo narrador: E, todavia, desde os vinte e oito anos, Jacinto j se vinha

    repastando de Schopenhauer, do Eclesiastes, de outros pessimistas menores, e trs, quatro vezes por dia,

    bocejava, com um bocejo cavo e lento, passando os dedos finos sobre as faces, com se nelas s

    palpasse palidez e runa. Por qu? mostra sua dificuldade em compreender o desconforto de Jacinto e

    a sua inclinao para o pessimismo. O conto prossegue na busca dessa compreenso.

    Todavia, o pessimismo da personagem ser superado ao longo do conto, numa indicao de

    que o posicionamento ideolgico de Ea vai contra o niilismo e o decadentismo finissecular adotado

    por muitos autores, no plano esttico.

    Aps a descrio minuciosa da casa, palcio que guardava tudo quanto a modernidade

    vigente permitisse, adentramos em um dos espaos primordiais para o desenvolvimento do conto: a

    biblioteca de Jacinto. Atravs de sua apresentao, o autor faz uma espcie de levantamento do

    enciclopdico conhecimento humano acumulado nas estantes do Jasmineiro: Vinte e cinco mil

    volumes, instalados em bano, magnificamente revestidos de marroquim escarlate. Na descrio da

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    biblioteca, o narrador lana mo de recursos que fazem vislumbrar o ponto nevrlgico do texto de Ea:

    a sua ironia contra a ideia de que o estado avanado da civilizao, apenas pelo seu acmulo de

    conhecimento e de avano tecnolgico, seja capaz de garantir felicidade. Uma vez desmentida, essa

    crena gerou o pessimismo decadente contra o qual Ea se insurge: Assim se achava abastecido o meu

    amigo Jacinto de todas as obras essenciais da inteligncia-e mesmo da estupidez.

    Em determinado ponto da narrativa, Jacinto e Z Fernandes empreendem uma viagem

    Torges, viagem que marcar a transformao do protagonista. Esse passa a questionar sua frmula de

    felicidade baseada na civilizao e encaixa-se numa nova vida construda num espao de interseco

    entre a cidade e campo pautada pelo equilbrio entre os elementos essenciais desses dois espaos

    portugueses.

    A partir dessa estada no campo, que acabar sendo a morada definitiva de Jacinto, Ea expe

    simbolicamente seu projeto para uma nova sociedade portuguesa. Tomemos aqui como exemplo

    metonmico a biblioteca de Jacinto.

    2 A biblioteca de Jacinto: inutilia truncat

    interessante comparar a descrio final com a parte inicial do conto, na qual o narrador

    gasta algumas pginas para descrever os cmodos no Jasmineiro: a sala, o quarto, a biblioteca, o

    gabinete, todos empanturrados pelos objetos da civilizao. Tal cotejo evidencia a distncia entre os

    dois espaos. O primeiro marcado pelo exagero do suprfluo, o segundo, pela exatido do essencial,

    aproximando-se da aurea mediocritas pregada tambm pelos mestres latinos. Um outro aspecto notvel

    nesse ambiente aclimatado por Jacinto em Torges a sua nova biblioteca, composta por critrios

    qualitativos.

    A sua colossal biblioteca de mais de trinta mil volumes resumira-se, naquele novo espao, a

    quatro obras. Dois clssicos da literatura ocidental, Dom Quixote e Virglio, e dois livros histricos,

    Histria de Roma e Crnicas de Froissart. Referncia literria para o incio da modernidade, e, portanto, para

    as angstias do homem moderno, D. Quixote era, assim como Jacinto, um homem dividido entre dois

    mundos. Jacinto seria ento um Dom Quixote s avessas, j que a personagem de Cervantes partia da

    fantasia medieval para a queda na realidade moderna e o Dom Jacinto fazia o percurso inverso: das

    fantasias modernas para a estabilidade e solidez de uma tradio campesina evocativa de padres

    medievais. Alm disso, outros pontos ainda possibilitam a comparao entre a personagem de

    Cervantes e Jacinto.

    H o fato de ambos se constiturem ideologicamente atravs de suas leituras e terem seus

    perfis psicolgicos traados sobre tais influncias. O comportamento de Dom Quixote e de Dom

    Jacinto so frutos de suas bibliotecas. O primeiro foi formado pelas novelas de cavalaria e o segundo, a

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    princpio deformado pelos filsofos do pessimismo, termina por substitu-los por uma literatura que

    exalta a natureza, a exemplo de Virglio, e por historiadores; natureza e histria sero, portanto, os

    alicerces de sua transformao. Outro ponto de contato diz respeito ao fato de os protagonistas serem

    duas duplas, Quixote e Sancho e Jacinto e Z Fernandes so pares que interagem durante todas as

    partes da narrativa de forma semelhante, j que os dois ltimos elementos das duplas so sempre fiis

    escudeiros dos primeiros, e os acompanham em suas jornadas.

    Virglio, obviamente escolhido pela suas Buclicas, obra na qual pastores dialogam sobre vrios

    aspectos da vida e vo evoluindo espiritualmente num cenrio rstico marcado pelas belezas naturais,

    orienta o esquema narrativo desenvolvido por Ea em Civilizao. As Buclicas so compostas de dez

    partes, as clogas, e ser, sobretudo, a quarta, a que melhor se adequar ao projeto eciano,

    desenvolvido atravs de Jacinto. Nessa parte da obra, a mais comentada pela crtica, Virglio prev a

    Idade de Ouro Latina, um perodo idlico para o Imprio Romano.

    Tal obra ainda introduzida textualmente, no conto, atravs dos versos que encerram a

    passagem supracitada: Fortunate Jacinthe! tu inter arva nota/ Et fontes sacros frigus captabis opacum, fazem

    parte dos versos 53 e 54 da cloga I das Buclicas e foram adaptados por Ea, que substituiu o vocativo

    Fortunate Senex, pelo nome do seu protagonista. O velho feliz de Virglio, que no meio de rios e

    fontes sagradas gozara sombra e frescor, no conto passa a ser Jacinto.

    A Histria de Roma possua uma dimenso dramtica, pois colocava a cidade sob a ameaa de

    um fim catastrfico previsto desde a sua fundao mtica por Rmulo, que profetizara um final datado

    (aproximadamente dez sculos) para essa civilizao (ELIADE, 2000). Assim Virglio, na sua misteriosa

    4a cloga, vislumbra uma reconstruo de Roma conduzida pela figura simblica de um menino, do

    puer. A partir dele, uma fase urea substituiria a fase de ferro. Por essa razo, a obra de Virglio foi vista

    como messinica, pois a Igreja Catlica nos seus primeiros sculos associou essa criana a Jesus Cristo:

    Casta Lucina, ampara, que j reina o teu Apolo, /o menino que est nascendo: a gerao de ferro/com

    ele findar, ao mundo vindo a raa de ouro (VIRGLIO, 1984). Se o propsito de Ea no conto se

    pauta na reconstruo de um novo Portugal, ele grifado pela lembrana de Virglio.

    No que tange s obras histricas preservadas na nova biblioteca de Torges, clara a presena

    da Histria de Roma, j que a intelectualidade portuguesa da poca a tomava como modelo de nao,

    conforme afirmou Oliveira Martins.

    Quanto s Crnicas de Froissart, mais uma vez a destreza sutil de Ea que o leva a escolher

    essa obra para compor a nova estante de Jacinto. As Crnicas compem um clssico da histria medieval

    francesa escritas por Jean Froissart (1337-1400) e tm como principal temtica as guerras

    contemporneas ao autor; so escritas segundo o modelo das novelas de cavalaria nas quais so

    destacados os feitos heroios dos cavaleiros envolvidos nas batalhas camponesas. H um destaque

    especial nessa obra para a Jacquerie (MOURRE, 1996, p. 2482), uma revolta camponesa ocorrida na

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    Frana entre maio e junho de 1358, provocada pela impopularidade da nobreza e pela misria gerada

    durante a Guerra dos Cem Anos. Essa sublevao foi de uma incrvel brutalidade, gerando grande

    represso e um grande massacre. Aps esse acontecimento, todas as revoltas camponesas receberam

    genericamente o nome de Jacquerie.

    Compreende-se que a sagaz escolha de Ea pelo cronista francs relaciona-se, portanto,

    tambm ao projeto de uma nova Repblica para seu pas. O histrico negativo da Jacquerie trazia

    exemplo do que podia ser evitado na nova constituio da nao portuguesa, a partir da incluso da

    classe camponesa no projeto republicano. Um novo Portugal, que reunisse os nobres, como os

    Jacintos, aos jacques, como Z Brs, seu caseiro, termina por constituir mais uma referncia ao

    Socialismo Utpico de Proudhon. Assim, a seleo bibliogrfica de Jacinto liga-se ao projeto

    republicano de Ea, pautado na preservao dos elementos essenciais da tradio e da modernidade.

    O conto se encerra com uma visita do narrador ao Jasmineiro para buscar livros

    encomendados por Jacinto (Vida de Buda, Histria da Grcia e obras de S. Francisco de Sales) e sua

    reflexo sobre o estado de abandono do palacete no qual a poeira se estendia pela biblioteca e as teias

    de aranha se espalhavam sobre os fios das mquinas ali em repouso. Mais uma vez, os livros

    demandados por Jacinto, para ampliar a sua biblioteca de Torges, so escolhidos criteriosamente e por

    razes qualitativas.

    A primeira escolha, Vida de Buda, nos apresenta uma biografia semelhante a do protagonista.

    Sidarta Gautama, o Buda, nasceu prncipe em Lumbini em 624 a.C (na poca norte da ndia, hoje parte

    do Nepal) e viveu no seu palcio at os 29 anos. Depois deixou uma vida de luxo que o entediava e

    decidiu percorrer a ndia durante seis anos atrs da sabedoria. Ao fim desse perodo, sentado em

    posio de ltus, atingiu a iluminao, tornando-se assim o Buda, que saiu pelo mundo ensinando o que

    havia descoberto, difundindo pelo Oriente a sua religio (SMITH, 2004). O Budismo no cultua um

    deus, acredita que o apego aos valores mundanos o grande mal da humanidade e venc-lo seria o

    primeiro passo para a iluminao. Excetuando, obviamente, a face iluminada e mstica de Buda, a sua

    biografia assemelha-se de Jacinto, que tambm vivera como Prncipe da Gr-Ventura, como o conto

    o chama largamente, e que abandonou seu palcio e as riquezas que o deprimiam para cultuar uma vida

    mais simples.

    Quanto Histria da Grcia, certamente vem somar-se Histria de Roma, j presente na nova

    biblioteca, j que essas duas civilizaes constroem o lastro cultural do Ocidente. A sua presena

    fundamental para as novas leituras do protagonista. Se antes Virglio e a histria romana foram citados,

    seria necessria a complementao com a Histria da Grcia.

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    Restam apenas as obras de So Francisco de Sales (1567-1622)2. Como So Francisco de Assis,

    So Francisco de Sales abandonou sua vida de fartura para dedicar-se vida religiosa. Sua existncia

    fora marcada pelo anti-calvinismo e pelo trabalho religioso de carter social. Fundou escolas, ensinou

    catecismo s crianas e adultos, evangelizou inmeras almas. Em vida ficou conhecido como Bispo-

    Prncipe de Genebra, cargo que desempenhava com dedicao. Tornou-se famoso pelas suas belas

    pregaes e j era considerado como um santo pelos seus contemporneos. So Francisco de Sales

    faleceu em 28 de dezembro de 1622, tendo sido canonizado em 19 de abril de 1665. Foi declarado

    Doutor da Igreja em 1877, pelo Papa Pio XI, que tambm o proclamou padroeiro dos jornalistas e

    escritores catlicos. Tratado do amor de Deus e Introduo vida devota so suas principais obras.

    A escolha de Jacinto pelas obras salesianas, nico ttulo ligado religio da sua nova seleo

    bibliogrfica, deve estar fundamentada na trajetria de trabalho social desempenhada pelo santo

    durante sua vida. Ea propunha, portanto, para a sua nova Repblica portuguesa, uma religiosidade

    verdadeiramente crist, centrada numa caridade e amor ao prximo que efetivamente se traduzisse em

    trabalho social. So Francisco de Sales levara sua f para alm dos muros da igreja, libertando-se de

    amarras dogmticas, contra as quais o escritor sempre lanara farpas ao longo de toda a sua obra.

    Ao entrar no Jasmineiro para apanhar os livros encomendados, o narrador depara-se com o

    estado deplorvel do palcio. Todo o seu luxo se decompunha, se destrua sob o bolor do tempo,

    denotando mais uma crtica cida ao projeto civilizatrio. A imagem da falncia sugere a seguinte

    constatao:

    A chuva de abril secara: os telhados remotos da cidade negrejavam sobre um poente de carmesim e ouro. E, atravs das ruas mais frescas, eu ia pensando que este nosso magnfico sculo XIX se assemelharia um dia quele Jasmineiro abandonado, e que os outros homens, com uma certeza mais pura do que a Vida e a Felicidade, dariam como eu com o p no lixo da supercivilizao, e, como eu, ririam alegremente da grande iluso que findara, intil e coberta de ferrugem. quela hora, decerto, Jacinto, na varanda em Torges, sem fongrafo e sem telefone, reentrado na simplicidade, via, sob a paz lenta da tarde, ao tremeluzir da primeira estrela, a boiada recolher entre o canto dos boiadeiros.

    Nessa passagem final do conto, h similitudes com o incio da narrativa. A ausncia do

    fongrafo e do telefone e a presena do canto dos boiadeiros nos remete cena da voz fantasmagrica

    do progresso e do canto das fontes anteriormente mostrados. No se pode deixar de assinalar que,

    nessa etapa final do conto, Ea hesita no seu projeto de equilibrar tradio e modernidade, beirando

    uma postura regressiva, com privilgio dado a uma cultura alheia e aos avanos tecnolgicos alcanados

    em sua poca.

    2 Disponvel em: e . Acesso em: 7 abr. 2007.

  • Flio Revista de Letras Vitria da Conquista v. 2, n. 1 p. 10-19 jan./jun. 2010

    18 Alana de Oliveira Freitas El Fahl

    possvel que, ao decidir transformar o conto no romance, Ea tenha querido estabelecer um

    maior equilbrio e assim eliminar essa hesitao que o levou a situar Jacinto num cenrio sem

    fongrafo e sem telefone.

    No entanto, certo que Civilizao constitui, de fato, o germe do romance A cidade e as

    serras e, em decorrncia, o primeiro esboo de um projeto que o ltimo Ea desenhou para o seu pas.

    Afinal no seu Jasmineiro da Serra, o afortunado Jacinto de Civilizao j reinava como se estivesse

    em uma utpica Repblica.

    Em Civilizao, salientamos a crtica de Ea ao decadentismo finissecular emblematizado

    pelo tdio de Jacinto. Emaranhado nas teias do progresso, o habitante do Jasmineiro, em Lisboa, evoca

    o homem ocidental atingido por uma modernidade em crise. A personagem s se refar desse

    pessimismo mrbido de vis decadentista, atravs do retorno ao Portugal campesino, espao que, no

    conto, e depois, de forma mais nitidamente definida, no romance, surge como um mundo a ser

    reconfigurado a partir de uma interseco entre os dois portugais, o moderno, das cidades, e o

    tradicional, das serras; vale dizer: espao que agregue traos da modernidade sem prejuzo da tradio.

    INUTILIA TRUNCAT: A READING ON CIVILIZATION BY EA DE QUEIRS ABSTRACT: The present study aims to accomplish a reading of the tale Civilizao (1892) by Ea de Queirs. Through the analysis of the changes occurred in the protagonists library during the narrative, it is possible to observe that the author uses the titles of the books as a textual strategy that shows the ideological change in the main character. As in other works by this author, Literature becomes a character in the Ecian tale. KEYWORDS: Civilization. Ea de Queirs. Library. Tale.

    Referncias

    ELIADE, Mircea. O mito do eterno retorno. Lisboa: Edies Setenta, 2000. GUIMARES, Ruth. Dicionrio de mitologia grega. So Paulo: Cultrix, 1993. MOURRE, Michel. Dictionnaire encyclopdique d'histoire. Paris: Larouse; Bordas, 1996. OSAKABE, Haquira. Fernando Pessoa resposta decadncia. Curitiba: Criar Edies, 2002. QUEIRS, Ea de. Obras completas. Org. Beatriz Berrini. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. v. 2. REIS, Carlos. O essencial sobre Ea de Queirs. Lisboa: Ed. Imprensa Nacional, 2000. SMITH, Huston. Budismo: uma introduo concisa. So Paulo: Cultrix, 2004.

  • Flio Revista de Letras Vitria da Conquista v. 2, n. 1 p. 10-19 jan./jun. 2010

    19 Inutilia truncat: uma leitura do conto Civilizao de Ea de Queirs

    VIRGLIO. Buclicas. Traduo e notas de Pricles Eugenio da Silva Ramos. Braslia: Ed. Universidade de Braslia, 1984.

    Recebido em 08/03/2010

    Aprovado em 21/04/2010