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Irmandades Negras e as traduções das práticas congadeiras em
tempos de vivificação da ideia de cultura1
Renata Nogueira da Silva
(UnB/Brasil)
Resumo
Esse artigo aborda certos processos de tradução das práticas congadeiras de Ituiutaba–
MG, tal como manifestos em 2010 e 2011, tendo em vista o caráter político
religioso assumido historicamente pelas Irmandades Negras (instituições gestoras
destas práticas). O objetivo do trabalho é compreender os modos pelos quais as práticas
congadeiras têm sido transpostas e traduzidas para tempos e espaços distintos do ritual
à luz das experiências de dois projetos culturais: Petizada na Congada e Congo Filhos
da Luz. As transposições e traduções das práticas congadeiras estão associadas, entre
outras coisas, à sua secularização em alguns espaços e sua conexão com outras
cosmologias religiosas.
Palavras-chave: práticas congadeiras, cultura e tradução
As Irmandades Negras e redes de solidariedade
Nesse artigo, discuto os modos pelos quais a Irmandade de São Benedito de
Ituiutaba, instituição que reúne e organiza os ternos5 e suas práticas, tem recuperado e
atualizado o papel de provedora de direitos sociais, semelhante ao que ocorria no
período colonial. Sustento que ao retomar e atualizar essas atribuições, outras funções
são construídas de acordo com o contexto no qual a Irmandade se edifica na cidade.
Entre essas novas funções, ganham destaque: realização de oficinas e seminários
relacionados à profissionalização, educação e à valorização das práticas congadeiras.
1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de
agosto de 2014, Natal/RN. Esse texto é baseado na dissertação “O poder da memória e a negociação da
memória do patrimônio: Tradução das práticas congadeiras em tempos de vivificação da ideia de cultura”
defendida em 2012 na UnB/DAN. 5 Terno (ou guarda) é uma categoria nativa utilizada para identificar os diferentes grupos que compõem a
congada: Moçambique, Congos, Catopés, Marinheiros, Caboclinho, Marujo, etc. Geralmente, o terno é
composto por pessoas que se concebem como parentes e que possuem laços de amizades e compadrios.
A vestimenta do grupo, chamada de farda (uniforme), possui uma combinação de cores específicas, que
diferencia os ternos entre si. Em alguns casos, são essas cores que dão o nome ao terno: Camisa Rosa,
Camisa Verde, Azul e Branco etc.
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As Irmandades Negras foram espaços de socialização nos quais pessoas
escravizadas e seus descendentes organizavam e expressavam com relativa autonomia
suas religiosidades: as procissões dos santos de devoção e as cerimônias de coroação
dos reis e rainhas, por exemplo. Essa instituição e suas práticas foram modeladas de
acordo com os contextos que definiam tanto o conteúdo quanto a formas dos eventos
das irmandades.
Na virada do século XIX para o XX, a historiografia aponta a perda de força
destas instituições, graças às mudanças internas ocorridas na Igreja Católica e as
transformações da sociedade envolvente (Boschi 1986; Reis, 1996; Quintão, 2002).
As demandas atendidas pelas irmandades (enterro e auxilio doença) gradativamente
tornam-se questões do Estado e o clero passa a interferir de forma mais assídua na
gestão do sagrado, especialmente nas atividades até então geridas pelas Irmandades
Negras.
Nos séculos XX e XXI, as irmandades de São Benedito e Nossa Senhora do
Rosário continuam sendo instâncias de articulação importantes, não só religiosa, mas
política e social também, semelhante ao que acontecia no período colonial. A força e a
permanência desta instituição em contextos tão adversos estão assentes em sua
capacidade de remodelar, criar e atender reivindicações de acordo com a situação. No
entanto, destaco que há algo novo acontecendo contemporaneamente. As irmandades
têm resgatado parte de suas atribuições “originais” e adquirido outras, porque possuem
um capital social (nomeado no momento de cultura ou tradição que passou a ser fonte
de políticas públicas e direitos de cidadania).
Em um contexto em que a ideia de direito cultural passa a ser fonte de políticas
públicas, o cultivo de identidades diferenciadas por coletivos ou populações que,
historicamente, tem tido uma inclusão cívica precária (como ocorre entre os praticantes
da congada), permite a formulação de demandas e/ou acesso a recursos para realização
de atividades relacionadas a direitos universais de cidadania. Tendo em vista esse
cenário proponho interpretar a tradução das práticas congadeiras de Ituiutaba tais
como configurados nos projetos Petizada na Congada6 e Terno de Congo Filhos da Luz
(desenvolvidos parcialmente com incentivos de políticas públicas).
A Irmandade de Ituiutaba tem o ano 1957 como marco de fundação. No entanto,
os mais experientes indicam que antes da institucionalização da irmandade, já
6 Petizada significa criançada/meninada.
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ocorriam cerimônias de louvor a Nossa Senhora do Rosário e São Benedito. Assim
sendo, pergunto: uma Irmandade Negra moderna como a de Ituiutaba nos permite traçar
continuidades e rompimentos com as Irmandades Negras do passado? Suponho que
sim, pois se, do ponto de vista da institucionalização, estamos lidando com uma
irmandade nova, do ponto de vista das vivências das práticas, segundo os adeptos,
lidamos com tradições ancestrais organizadas no período da escravidão e transmitidas
de geração para geração.
A irmandade, ou pelo menos o formato de Irmandade que se pretende legitimar,
é uma instituição recente na cidade, mas o modo como os beneditinos organizados em
seus ternos louvam Nossa Senhora do Rosário e São Benedito é descrito como do tempo
do cativeiro. Cabe então perguntar: quais os repertórios que os termos
escravidão/cativeiro engendram se, em Ituiutaba, a Irmandade e os ternos são produtos
do século XX?
A Irmandade de São Benedito de Ituiutaba e as traduções do tempo do cativeiro
A escravidão e o cativeiro estão relacionados, entre outras coisas, às
experiências africanas vivenciadas em terras brasileiras, aos sofrimentos advindos de
um sistema opressor (colonial ou pós-colonial), às travessias perigosas e a um modo
bem específico de se relacionar com o sagrado. O cativeiro e a escravidão, muitas vezes
expressos nas cantigas e danças dos congadeiros, não dizem respeito apenas à condição
de vítima dos negros, mas também, evocam os negros escravizados como agentes
de transformação social. Assim, eventos críticos, nos termos de Veena Das (1995) são
constantemente ressignificados.
Experiências traumáticas como o cativeiro são ativadas de diferentes formas
na produção e reprodução dos referenciais de identificação. O cativeiro é, nesse
sentido, uma metáfora para falar de desigualdade, dor e tristeza; é também uma
forma de ratificar o sofrimento dos negros. Essa ideia genérica do tempo do
cativeiro acrescida da fé em Nossa Senhora Rosário possibilita que os congadeiros
atualizem a saga de seus santos devocionais e de seus ancestrais, a saber, aqueles que
lutaram pela festa e são considerados ícones para os mais novos (Silva, 2007).
Atualizar periodicamente as histórias da aparição de Nossa Senhora do Rosário e
sua predileção pelos negros, transformando-os em filhos do rosário, instaura um
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sentimento de igualdade entre os congadeiros e a sociedade a que pertencem. Conduzir
os louvores a Nossa Senhora do Rosário e São Benedito é uma forma de produzir
distinção e uma demonstração do manejo às coisas sagradas. Lembrar e celebrar
ritualmente esse evento é cultivar uma memória do cativeiro transformadora e
restauradora da autoestima dos descendentes dos escravizados (Costa, 2006).
Se as narrativas do tempo do cativeiro e da escravidão - construídas e
reconstruídas na/pela festa - são acionadas na produção e reprodução da congada é
plausível dizer, que no caso de Ituiutaba, a criação oficial da Irmandade de São
Benedito legitima e, posteriormente, organiza práticas ancestrais que já existiam na
cidade:
Quando eu nasci em 1950, meu pai, meu avô, o tio Geraldo, que é dono do
terno Camisa Verde, e mais alguns irmãos do meu pai e os colegas dele,
fizeram uma brincadeira, que iam criar um terno. Eu nasci em 1950, 14 de
outubro, aí eles começaram aquela brincadeira que iam fazer um terno em
louvor a São Benedito, por que ele era um santo negro, nós devemos louvor a
ele por que nós somos negros, vamos fazer uma capela de São Benedito, se
Deus quiser. Então, eles começaram na época do meu nascimento e
quando foi em maio foi já a primeira festa, dia 13 de maio, foi a
primeira do ano da frente. (Eles iam, tiravam licença na delegacia para
poder fazer passeata e a alvorada naquele dia, pois naquela época era muito
perigoso, não era bem organizado ainda festa), sempre em 13 de maio ou no
domingo mais próximo desta data. Sessenta anos de Camisa Rosa e sessenta
anos de idade.
(Mário Afonso, Primeiro Capitão do Camisa Rosa, 2011)
Os louvores a São Benedito e Nossa Senhora do Rosário, materializados na
forma de um terno em Ituiutaba, são anteriores à criação da irmandade, que é a
institucionalização posterior dessas práticas. É importante ressaltar que Seu Demétrio
(conhecido como Cizico, idealizador do Camisa Rosa), seu pai e seus irmãos decidiram
criar um terno para São Benedito, um santo negro como eles. Se por um lado, Nossa
Senhora do Rosário os elegera como filhos, por outro, havia uma conexão estreita entre
o santo negro e os congadeiros, também negros.
Segundo Divina Teles (líder do Congo Camisa Verde, um dos ternos mais
antigos da cidade), os ternos de congos tiveram permissão para entrar na igreja, adorar
o Sacrário e venerar São Benedito e Nossa Senhora do Rosário após 1957. A presidente
do Camisa Verde destaca que congadeiros, tocando seus tambores com suas cantorias,
chegavam até a porta da igreja onde deixavam seus instrumentos7. Como só era
7 Ver: http://www.alami.xpg.com.br/geraldo.html
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permitida a participação de adultos nas cerimônias religiosas, as crianças zelavam dos
instrumentos e das bandeiras.
Escutei ao longo dessa pesquisa muitos comentários, principalmente dos mais
jovens, relacionados às performances dos grupos: “Nossa! que negão lindo”; “aquele
moço dança muito”; “o terno X sempre arrasa nas danças; “a fé daquele capitão me
emociona”, “o cabelo daquela nega tá demais”. Comentários como esses indicam que,
contemporaneamente, os mais novos não atuam apenas como zeladores das bandeiras
e dos instrumentos, tal como na década de 1950. Eles também adicionam adereços e
elaboram novos sentidos às práticas congadeiras. A esse respeito, William afirma: “Na
Congada, é muito difícil você achar um congadeiro que simplesmente fez um corte [de
cabelo social, o corte dele sempre é irreverente, sempre diferente, alguns gostam de
fazer uns desenhos, outros gostam de colocar tranças grandes, (...) ele trança o cabelo,
ele coloca um piercing, um brinco.
As práticas congadeiras têm sido experimentadas de diversas formas: as pessoas
rezam, louvam seus santos, dançam, comem, enfeitam-se, namoram, fazem amizades,
brigam e, nesse ínterim, vínculos são reforçados/rompidos ou criados. As narrativas do
passado e os múltiplos valores expressos (culturais, sociais, morais e estéticos) na
congada são atualizados e/ou modificados, entre outras situações nas cantigas. Os
relatos dos fenômenos cantados e lembrados publicamente ganham força e status de
verdade.
A congada pode ter vários significados (simultâneos, inclusive) para seus
praticantes, assim como o público é mobilizado por diversos motivos, e por isso,
atribuir este ou aquele predicativo à Congada é reduzir demais a complexidade e os
significados do fenômeno. A esse respeito, é preciso mencionar, ainda, que as práticas
congadeiras têm sido vivenciadas contemporaneamente, fora do tempo e espaço da festa
propriamente dita, tal como vem ocorrendo nas atividades dos projetos Petizada na
Congada e Congo Filhos da Luz.
Nesses projetos, as práticas congadeiras são ao mesmo tempo ensinadas,
difundidas e tomadas como fonte de direito de cidadania. Dar dignidade analítica ao que
ocorre em função da festa (ou ainda em nome dela), fora do seu tempo ritual, pode
contribuir no sentido de ampliar as interpretações antropológicas sobre a congada. A
combinação entre o desempenho ritual que envolve entre outras coisas gestualidade, –
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música e demonstração de fé – e o conjunto estético – roupas, adereços, combinação de
cores e penteados, por exemplo – atuam diretamente nas apreciações que os ternos
recebem dos congadeiros e dos não congadeiros. Esse prestígio ritual, adicionado à
memória dos fundadores e ao lugar ocupado pelas chamadas culturas afro-brasileiras no
cenário nacional são mobilizadores usados pelas lideranças dos ternos e da Irmandade
para reivindicar direitos, apresentar projetos e solicitar espaço no calendário cultural da
cidade.
Concebo esses projetos são âncoras para pensar questões como: tradução das
tradições congadeiras, conflitos intergeracional e revivificação da tradição. Em nome
da tradição, entram em disputa diferentes projetos de congada; projetos esses,
amarrados por recortes distintos da memória coletiva do grupo. Assim, a Irmandade e
seus ternos tornam-se ferramenta para demanda de direitos de cidadania, retomando um
papel similar ao que tinha na época colonial. A ideia de projeto era frequentemente
acionada para falar de várias coisas: visibilidade da festa, reconhecimento, posições
sociais, tradição e cultura.
Reivindicar direitos em nome da cultura tradicional, não é algo exclusivo da
congada ou das práticas afro-brasileiras. Segundo Sahlins (1997) a cultura ou seu
equivalente local está na boca do povo, principalmente em contextos que ameaçam os
modos tradicionais de existência. E conforme afirmou Manuela Carneiro da Cunha
(2009) “vários povos estão mais do que nunca celebrando sua “cultura”, utilizando-a
com sucesso para obter reparações por danos políticos (p.313)
As práticas congadeiras na escola: O Projeto Congo Filhos da Luz
Durante aproximadamente trinta anos, Ituiutaba teve apenas dois ternos: Camisa
Rosa e Camisa Verde. Nas décadas de 80 e 90, foram criados três ternos (Congo Real,
Moçambique Lua Branca e Moçambique Águia Branca) e em 2004, nasceu o terno
Congo Libertação. É o Congo Libertação (representado pelo capitão William
Cândido) que elabora e coordena o projeto Congo Filhos da Luz desenvolvido na
Escola Municipal CAIC (Centro de Atenção Integral à Criança) .
O Congo Libertação se apresenta para Irmandade e para outras instituições relacionadas
à cultura afro-brasileira na cidade como um terno umbandista, algo novo para dinâmica
da festa na cidade. Inicialmente, essa postura gerou certo desconforto em função do
7
vínculo simbiótico e histórico entre a Irmandade de São Benedito (principalmente seus
representantes do Camisa Rosa e Camisa Verde) e a igreja católica local. A Irmandade
de São Benedito só pôde existir legalmente falando, após a conversão de seus
participantes ao catolicismo. Muitos representantes dos dois ternos pioneiros que são
lideranças na igreja valorizam (e zelam por) esse vínculo estreito com a Igreja, como
também constroem as imagens de seus respectivos ternos em função dessa relação. A
criação do Libertação desestabiliza muitas narrativas que foram apresentadas como
verdades e permite compreender várias dinâmicas inter/intra terno. O processo de
criação do Terno Libertação é parte fundamental daquilo que o capitão William concebe
como congada. Tal concepção e herança são acionadas na proposição e execução do
Projeto Congo Filhos da Luz na Escola CAIC.
A unidade do CAIC em Ituiutaba está localizada no Bairro Novo Tempo II,
região periférica da cidade e sem assistência social adequada. A escolha do local era
bem apropriada para um programa que visava garantir direitos fundamentais e o
desenvolvimento integral de crianças e adolescentes. As obras se iniciaram em 1994 e a
inauguração aconteceu em fevereiro de 1996. De acordo com alguns alunos e
professores, o bairro ainda tem vários problemas, mas é preciso reconhecer as recentes
melhorias, principalmente no que diz respeito a infraestrutura.
A escola é um lugar privilegiado de sociabilidade do bairro. Os eventos
organizados pela escola enchem as arquibancadas da quadra esportiva. No CAIC,
muitos sonhos nasceram, inclusive os do William Cândido, ex-aluno do CAIC, capitão
de congada, coordenador do projeto Filhos da Luz e morador do bairro.
As experiências vividas na escola e as dificuldades de uma infância
financeiramente precária estimularam o jovem congadeiro a cooperar na formação de
crianças e adolescentes através das principais regras do congo, assim definidas por ele:
humildade, sabedoria, integridade e respeito ao próximo.
Desde criança William participou da congada (acompanhando seus familiares)
no Terno Camisa Verde. Na adolescência começou a ficar com vergonha de dançar, o
que ocorre com outros também, e parou de participar por um tempo. Alguns saem e
não retornam, outros mudam de terno. Dos relatos que escutei, notei que os retornados
se engajam no terno e assumem suas atividades com mais responsabilidade. Essa saída
momentânea da congada na adolescência pode ocorrer por vários motivos: piadas dos
colegas, namoros, rebeldia, envolvimento com outras atividades religiosas, etc. Para
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evitar essa saída, os ternos tem criado uma série de estratégias para estimular a
participação dos mais novos.
Posteriormente William volta para congada, mas dessa vez entra no Congo
Real, terno em que permaneceu até 2004, quando o Libertação começou a ser idealizado
por sua avó. Em 2005, o Libertação estava formado e foi a partir daí que William
começou a se interessar de forma mais profunda pela história da Congada. Se, nas
outras experiências, sua preocupação era bater caixa, no Libertação ele assume um
bastão e passa a viver a congada de uma forma bem intensa, tal como pode ser
observado em sua fala:
A Congada cobre todo o espaço do ser humano. Cobre com harmonia, porque
você trabalha com muita gente. Alegria, porque quando você está fazendo
uma coisa que você gosta e muita gente faz (...) todo mundo quer curtir. Tem
a questão física também, de saúde, você faz muita caminhada, você faz
exercícios, mexe com a saúde, mexe com o humor da pessoa, mexe com o
interesse cultural, aquela coisa de fazer um enfeite, de desenhar, de costurar,
de bordar, de pintar. É marcenaria, é percussão, é música, é melodia.
(William Cândido, maio de 2011)
Ao fim e ao cabo, essa definição de congada (algo que envolve todo o espaço do
ser humano) apresentada por William retroalimenta seus projetos: viver de congada
(financeiramente falando, inclusive) e ensinar Congo no CAIC. Não se pode perder do
horizonte que as concepções de William estão relacionadas às suas experiências como
jovem, negro, umbandista, aluno de escola pública, morador de um bairro periférico e
congadeiro.
As ideias embrionárias de William ganharam força, pois havia uma disposição
da Secretaria Municipal de Educação de Ituiutaba em implementar a lei 10.639/2003,
inserindo nas propostas pedagógicas das escolas questões relacionadas à cultura afro-
brasileira, o que, se diga de passagem, está relacionado a outras medidas adotadas pelo
Brasil no sentido de combater a discriminação racial e aos compromissos firmados em
fóruns internacionais.
A lei 10639/2003 é parte dos programas de ações afirmativas que estão
relacionados ao Programa Nacional de Direitos Humanos, bem como aos compromissos
internacionais assumidos pelo Brasil, com o objetivo de combater o racismo e as
discriminações. Destaque-se, nesse aspecto, a Convenção da UNESCO de 1960,
direcionada ao combate ao racismo em todas as formas de ensino e Conferência
9
Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Discriminações
Correlatas de 2001.
Nas últimas décadas, o Brasil implantou de forma mais sistemática uma série de
medidas que visam a combater o racismo no Brasil. Dentre elas, vale sublinhar o
recente programa Brasil-África: Histórias Cruzadas (UNESCO) que trabalha na
produção de materiais pedagógicos sobre a história e cultura africana e afro-brasileira
para todos os níveis da Educação Básica. Segundo a UNESCO, apoiar a implementação
da lei da Educação das Relações Etnicorraciais é uma maneira de valorizar a identidade,
a memória e a cultura africana no Brasil, – o país que conta com a maior população
originária da diáspora africana.
A implementação de uma lei em toda federação exige engajamento coletivo não
apenas entre os municípios, estados e União, em termos de convergência de políticas
públicas, mas também entre diversos setores da sociedade. Ao longo das últimas
décadas, o Brasil firmou uma série de compromissos internacionais que contribui
decisivamente na elaboração de políticas de reparações e de reconhecimento, visando a
corrigir situações desvantajosas a que determinados grupos estão submetidos.
Há uma normativa que inclui conhecimentos relativos à História da África e dos
afro-brasileiros no currículo da Educação Básica, mas a seleção e a forma de inserir
esses saberes ganham vida na esfera local. A história da África e dos afro-brasileiros foi
inserida nas escolas públicas de Ituiutaba, e aqui me refiro às escolas municipais,
através das danças e músicas da congada, capoeira, samba. A discussão chega às
escolas pela via da arte e da ludicidade, com o risco da exotização das práticas culturais
ancestrais, dependendo do contexto e da forma como ocorre a apropriação das mesmas
pela/na escola.
Várias pessoas e instituições atuaram nesse processo e a participação de Luciane
Dias, professora, pesquisadora e militante deve ser destacado. Luciane atuou na
Secretaria Municipal de Educação durante mais de dez anos e entre os anos de 2005 e
2008 coordenava uma série de projetos relacionados à gestão democrática, participação
juvenil e formação de professores. Daí o convite para colaborar na implementação da
Lei 10.639. Esse convite/compromisso fez com que Luciane criasse, dentro da
Secretaria de Educação, projetos de ações socioeducativas que posteriormente,
culminou com o Congo Filhos da Luz.
Os praticantes da congada consideram Luciane uma parceira. Nos termos de
Merry (2006), ela é uma intermediária que faz mediações e traduções ente mundos
10
culturais diferentes. Isso fica bem evidente nos comentários de Ana Lúcia sobre a
participação de Luciane na elaboração do Projeto Petizada: “As ideias foram surgindo e
ela (Luciane) formatou o projeto dentro daquilo que é pedido”.
Formatar o projeto implica entre outras coisas filtrar, traduzir e transplantar
códigos de um mundo para o outro. Algo bem próximo das discussões de Merry sobre
as ideias de direitos humanos em relação à violência contra as mulheres: elas são
infiltradas nas comunidades locais de forma fragmentada e limitada, “basicamente pela
mediação de ativistas que traduzem a linguagem local em termos locais relevantes”
(Merry, 2006, p. 218)
A criação dos projetos de inclusão etnicorracial de Ituiutaba é produto de
domesticações e apropriações locais (municipais) de leis elaboradas pelo Estado
brasileiro, tendo em vista convenções e orientações de organismos transnacionais dos
quais é membro. Nesse processo, outros contextos são criados e novos sentidos podem
ser atribuídos à própria lei. Somada a uma intenção dos poderes públicos locais de
aumentar o tempo de permanência dos alunos na escola, uma série de atividades
culturais foi proposta e muitas delas em parceria com os coletivos que as promoviam:
congada, capoeira, dança afro.
Havia uma convergência entre os propósitos do capitão William e da Secretaria
de Educação e assim as oficinas começaram. William e outros jovens negros
selecionados como monitores ministraram oficinas em várias escolas e, de certa forma,
rompiam as barreiras entre educação formal e informal. Em alguns casos, os
conhecimentos ensinados pelos monitores dialogavam com o as disciplinas obrigatórias;
em outros, as oficinas ficavam desconectadas da vida escolar. De forma lúdica e
dinâmica a cultura conga, expressão usada na proposta do projeto, é levada às escolas
primeiramente para cumprir a lei 10639/03, embora, secundariamente, no caminho,
outras experiências acontecessem: líderes são formados, amizades construídas, talentos
descobertos, entre tantas outras coisas.
Após essa experiência inicial, Luciane Dias propõe à direção do CAIC a criação
de terno de Congo fixo na escola, culminando com o desejo do capitão William de
trabalhar de forma mais assídua com crianças da sua comunidade. Inicialmente, não
havia um terno propriamente dito com nome ou cores. Era apenas uma tentativa de
levar saberes e técnicas da congada para escola. Gradativamente, porém, a ideia
genérica de congada na escola foi ganhando forma e se transformando em algo mais
especifico: a criação de um congo. O processo de criação do grupo é bem peculiar, pois
11
abarcou não só os alunos envolvidos no projeto, mas também a comunidade escolar.
Além disso, não se pode desconsiderar que o Filhos da Luz foi criado por ação direta e
indireta de agentes e projetos estatais. Os trânsitos de Luciane Dias pela Prefeitura
(como professora formadora e idealizadora de projetos até 2010), movimento negro
(como militante), Irmandade (no papel de parceira) e universidade (como docente
desde 2010) tem possibilitado a efetivação de vários projetos na cidade. Essa
participação/parceria é manifesta em diversos comentários das lideranças dos ternos e
da irmandade.
Com uma dinâmica bem diferente de um terno convencional, o Congo Filhos da
Luz, de acordo com seu idealizador, é uma escola de congo que tem como função
primordial multiplicar o número de praticantes da congada: “Se daqui a cinco anos eles
não estiverem mais no Filhos da Luz, esse mesmo amor eles vão levar para o outro
terno, ou seja, é mais 20, 30 anos para aquele Congo, é a oportunidade daquele Congo,
seja ele qual for.”
O cenário que venho descrevendo demonstra a transformação da cultura em
um objeto de política de Estado, uma categoria de governo. No exercício do poder
estatal sobre ela, fomenta-se iniciativas nacionais e suscita-se inúmeras reuniões de
organismos internacionais. Nesse processo é importante destacar, várias transposições e
traduções são necessárias e a experiência do Congo Filhos da Luz é emblemática, nesse
sentido. Em função de ter se tornado uma categoria de Estado, é possível ensinar uma
cultura conga (enquanto manifestação cultural afro-brasileira) descolada da irmandade.
A cultura conga ganha vida e passa a ser ensinada como parte da implementação da lei
10639/2003 nas escolas de Ituiutaba, em particular no CAIC.
Assim, as práticas congadeiras produzidas e reproduzidas desde os encontros
coloniais são enquadradas em políticas de inclusão etnicorracial. Nesse cenário, é
preciso selecionar certos aspectos das inúmeras experiências vividas e nomeadas de
Congo que possam ser ensinadas para crianças e adolescentes que, diferentemente de
boa parte dos congadeiros da irmandade, não foram nascidos e criados dentro de terno.
William ressalta que seu trabalho na escola com o Filhos da Luz não tem
pretensões religiosas, pois o que lhe interessa é a formação ética e moral das crianças e
nisso, a cultura conga pode ajudar, tal como ele afirma:
Não trabalho religião com os meninos, eu tento trabalhar, fora a Congada, a
cidadania e prepará-los para o futuro. Eu quero que eles cresçam querendo
ajudar o próximo, tentando fazer o melhor, eu quero que eles cresçam
12
explorando a profissão de cada um deles. Eu não me importo com qual
religião eles seguirão, tanto é que a minha família é uma mistura de religiões,
minha mãe é mãe de terreiro, a minha irmã é evangélica, tem católico, tem
essa mistura toda. (William Cândido)
E como ensinar congo sem ensinar religião, uma vez que a escola, teoricamente,
não pode professar fé? Como justificar a criação de um terno de Congo na escola? O
Filhos da Luz é um lugar de vivência cultural e não religiosa. Ao definir o congo para
comunidade como cultura e não como religião o enquadramento é feito e a
domesticação processada. No decorrer do ano são realizadas uma série de oficinas
internas: dança ritmo, canto, e outras que visam a interação e a circulação de
conhecimentos entre as crianças do Filho da Luz e os demais alunos da escola, como
por exemplo, oficina de congada para as crianças da Educação Infantil.
O terno provoca reações diversas no bairro: parte do bairro fica admirada com a
destreza das crianças batendo as caixas, cantando e dançando pelas ruas, pois para essa
pessoas as crianças que estão no terno “deram certo” e não estão envolvidos com
drogas e violência. Outra parte do bairro associa o terno Filhos da Luz a coisas do mal
(demônio). Nessa ambiguidade, o terno se firma no bairro, ora como grupo cultural, ora
como devotos de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário.
Na escola, o terno é parte importante da implementação de uma lei, mas ao
ultrapassar os muros da escola com as atividades típicas da congada, assume funções
religiosas e, de certa forma, atua na propagação e manutenção do que é chamado
localmente por muitos de cultura conga.
Babadzan (2000), ao tratar em seu texto Antropologia, nacionalismo e
invenção da tradição das rupturas e continuidades entre as produções pré-modernas e as
tradições inventadas, demonstra que a constituição de práticas sociais como "cultura"
não é encontrada nos sincretismos das sociedades colonizadas, que nunca consideram
"cultura", um objeto de adoração. O novo conceito de cultura (o empírico e não o
antropológico) é implantada no contexto de uma sociedade baseada na individualização
das relações sociais, econômicas e políticas. A ideia moderna de cultura só é sentida
quando as tradições deixam de ser vista como algo natural. Pode-se dizer que ocorre
uma objetificação e externalização da cultura pelos sujeitos, o que pode gerar maior
reflexividade a respeito da mesma.
As práticas congadeiras saem de seus mundos naturalizados e ganham outros
cenários impulsinadas por uma lei que trata da inclusão da história da África e dos
13
afro-brasileiros no currículo da Educação Básica. A entrada desses conhecimentos nas
grades curriculares é emblemático, pois confere dignidade a saberes que ficavam à
margem da chamada história oficial; conhecimentos esses que não chegam inicalmente
nas escolas pelo livro didático, mas sim por meio de oficinas ministradas por nativos
das práticas, militantes, lideranças negras ou pesquisadores.
Se por um lado, a lei 10.639 expressa realidades pré-existentes, por outro lado
também cria realidades (a congada na escola, por exemplo) e modos de perceber e
conceber o mundo. Assim, um dispositivo legal simultaneamente encarna e é encarnado
pelos coletivos e contextos para os quais foram criados.
A Petizada na Congada: o movimento das práticas congadeiras
O reconhecimento da irmandade e seus ternos como patrimônio imaterial em
2009 não era objeto de muitas reflexões entre meus interlocutores. Mas os projetos
aprovados e desenvolvidos sim. É de um desses projetos que abordarei a seguir.
O projeto A petizada na congada: construindo saberes e fazeres, da Irmandade
de São Benedito12
, foi contemplado com o prêmio Ludicidade - Pontinhos de Cultura,
2009. O projeto oferece diversas atividades abertas à comunidade: atividades de canto,
dança, contação de história, aula de cidadania e brincadeiras. Geralmente, são
oferecidos três tipos de oficinas por encontro, dependendo da disponibilidade dos
voluntários. O maior número de participantes são crianças e adolescentes dos ternos de
congada da cidade.
Acompanhei, em 2011, algumas dessas oficinas e a dinâmica é bem interessante.
As crianças são divididas por faixa etária. São formados dois ou três grupos e esses
grupos circulam pelas atividades propostas para o dia. Assisti à aula de cidadania com
as crianças menores (entre 5 e 8 anos). A monitora Adirce, professora da rede pública e
presidente do grupo de estudos afro-brasileiros, começou sua oficina com a leitura de
uma lenda:
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Entre 2007 e 2009 a Irmandade de Ituiutaba teve três projetos premiados pelo Governo Federal:
Reencontro com a congada: congadeiros contando sua história (Prêmio Mestre Duda, 2007); o Projeto
Preservando a Memória Ativa da Congada (Concurso Pontos de Leitura 2008) e o projeto Petizada na
Congada Construindo Saberes e Fazeres (Prêmio Ludicidade - Pontinhos de Cultura, 2009
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O Sapo e a Cobra (Lenda Africana)
Era uma vez um sapinho que encontrou um bicho comprido, fino, brilhante e colorido
deitado no caminho.
- Olá o que você está fazendo estirada na estrada?
- Estou me esquentando aqui no Sol. Sou uma cobrinha e você?
- Um sapo. Vamos brincar?
E eles brincaram a manhã toda no mato.
- Vou ensinar a você subir na árvore se enroscado e deslizando sobre o tronco – disse a
cobra.
E eles subiram.
Ficaram com fome e foram embora, cada um para a sua casa, prometendo se encontrar
no dia seguinte.
- Obrigada por me ensinar a pular.
- Obrigado por me ensinar a subir na árvore.
Em casa o sapinho mostrou para a sua mãe que sabia rastejar.
- Quem ensinou isso a você?
- A cobra a minha amiga.
- Você não sabe que a família da cobra não é gente boa? Eles têm veneno. Você está
proibido de brincar com cobras. E também de rastejar por aí. Não fica bem.
Em casa a cobrinha mostrou para a mãe que sabia pular.
- Quem ensinou isso a você?
- O sapo meu amigo.
- Que besteira! Você não sabe que a gente nunca se deu bem com a família do sapo e é
bom apetite! E pare de pular. Nós cobra não fazemos isso.
No dia seguinte cada um ficou no seu canto.
- Acho que não posso rastejar com você hoje – pensou o sapo.
A cobrinha olhou e pensou no conselho da mãe e pensou: Se chegar perto eu pulo e o
devoro.
Mas lembrou-se da alegria da véspera e dos pulos que aprendeu com o sapinho.
Suspirou e deslizou para o mato.
Daquele dia em diante o sapinho e a cobrinha não brincaram mais juntos. Mas ficaram
sempre ao Sol, pensando no único dia que foram amigos.
A professora explicou rapidamente que lenda era um história que geralmente
tinha algo a nos ensinar. Então, perguntou para o grupo: escutamos uma lenda africana,
certo? E o quer dizer africana? Uma garotinha, mais que depressa olhou para
professora e disse: “são pessoas, professora!” A professora meio surpresa com a
resposta disse: “sim, são pessoas, mas vamos falar mais dessas pessoas”. E começou a
introduzir questões de respeito, cidadania e diferenças.
A professora ressaltou que na sala havia vários tipos de crianças: congadeiras e
não congadeiras, pele mais clara e pele mais escuras, meninas de cabelo curto e longo,
entre outras variáveis. Ressaltou que cada uma merecia ter o seu jeito de ser respeitado,
porque todos eram criação divina. Além disso, a professora sublinhou que essas
diferenças não eram motivo para não fazer amizade.
A partir dessa explanação as crianças começaram a contar diversas casos
presenciados e/ou vividos em que não foram respeitadas. Nas falas atropeladas
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daqueles pequenos, situações de preconceito e discriminação no ambiente da escola
eram reveladas. Uma menina narrou que na época da congada ela é chamada de
“macumbeira” por seus colegas. Diante do relato da menina a professora explicou
alguns dos significados da palavra macumba (instrumento musical de percussão, árvore
em que as pessoas se encontram) e disse ainda, “muitas pessoas não sabem o que
falam e vocês tem o dever de ensinar para os colegas de vocês o que vocês aprendem
aqui”.
O desconforto com a associação entre congadeiro e macumbeiro não é só das
crianças. Os adultos também se incomodam, pois o termo macumba aparece no
imaginário social local como coisa ruim e/ou práticas demoníacas. Uma série de
gestualidades, ritmos e vocabulários são compartilhados entre os congadeiros e as
religiosidades afro-brasileiras.
A dança do moçambiqueiro, por exemplo, assemelha-se à expressão corporal
dos pretos velhos. Os pretos velhos, geralmente são apresentados como homens ou
mulheres pretos, velhos, sentados num toco de madeira, vestindo roupas brancas e
segurando um cachimbo. Os nomes dessas entidades fazem referência a alguma
localidade africana: Moçambique, Angola, Congo (por exemplo, Pai Joaquim de
Angola, Vovô Rei do Congo, Maria Conga). Os pretos velhos são entidades bastante
cultuadas na umbanda e estão associadas a noções de benevolência e sabedoria.
Em alguns ternos de congada, relaciona-se a imagem do preto velho à de São
Benedito. Dançar como um preto velho não implica necessariamente um pertencimento
religioso. O preto velho está relacionado aos anciãos negros que, dotados de sabedoria
e conhecimentos ancestrais, ajudavam seus pares nas adversidades. A dança do
moçambiqueiro é encurvada e cadenciada, combina movimentos nos quadris e nos
ombros, além de usarem bastões como adereço das danças (Silva, 2007).
No Moçambique Camisa Rosa, o capitão Francis Luce é um observador
perspicaz e, graças a suas leituras e “olhadelas” em outros moçambiques, tem investido
bastante na difusão das danças. As crianças gostam das danças, observam, imitam e a
incrementam, o que por sua vez encoraja os mais velhos. As lideranças mais jovens,
com muita ousadia e curiosidade, afirmam que estão reintroduzindo as raízes, os
fundamentos originais da congada, os modos de dançar e cantar que foram esquecidos
ou que sucumbiram nos acordos implícitos estabelecidos entre os mais velhos e a Igreja
no retorno das práticas na cidade.
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Empreendimentos como a Petizada, entre outros, dá uma vida social maior para
festa durante o ano, mobilizando não só as crianças, os pais e as lideranças, mas toda
uma rede de voluntários que é acionada no rodízio das oficinas. Com muita emoção,
Divina Teles chega a dizer: “Sábado para mim é sagrado: a Petizada. (...) se sábado
tem a Petizada e eu tenho alguma coisa, a semana toda eu já vou preparando tudo na
minha vida”. No sábado é dia de encontrar os colegas, aprender coisas de congo como
muitos dizem. Há, também, o lanche e a volta coletiva para casa.
Às vezes, são exibidos alguns vídeos nas oficinas de congada ou de outras
práticas afro-brasileiras. Ao estabelecerem esse contato visual e/ou auditivo, abre-se
possibilidades para circulação de outras formas de dançar e cantar, que podem,
posteriormente, ser adaptadas aos contextos da congada. De forma reflexiva e
intergeracional, uma série de conhecimentos são traduzidos e transpostos. De acordo
com Ana Lúcia Costa, o projeto Petizada tem os seguintes objetivos:
Promover, preservar e divulgar a manifestações dos grupos de congadas de
Ituiutaba que é saber cultural encontrado em várias cidades brasileiras,
principalmente em Minas Gerais. Essa tradição que têm suas origens nos
interiores das senzalas, e era formada em sua maioria por adultos e idosos,
hoje o que se constata é um número cada vez mais crescente de crianças,
jovens e adolescentes envolvidas nestas manifestações. (...) Nesse sentido o
projeto propõe não apenas as crianças, jovens e adolescentes congadeiros,
mas toda a comunidade de modo geral conhecer a diversidade do
patrimônio étnico-cultural brasileiro, com suas normas, regulamentos e
leis, tendo atitude de respeito para com pessoas e grupos que compõem,
reconhecendo a diversidade cultural como um direito dos povos e dos
indivíduos e interagir com materiais, instrumentos e procedimentos variados
de seu cotidiano, experimentando-os e reconhecendo-os de modo a utilizá-los
nos trabalhos pessoais, usando-os como instrumentos de transformação
social, voltados para a construção da cidadania plena e para o bem comum e
a multiplicação do conhecimento de forma sistematizada e prazerosa.
(Ana Lúcia da Costa, Irmandade de São Benedito, Prêmio
Ludicidade/Pontinho de Cultura, 2008)
No projeto apresentado pela irmandade, do qual foi retirado o trecho acima, as
práticas congadeiras aparecem relacionadas ao seguinte repertório: saber cultural,
tradição, diversidade cultural, patrimônio étnico-cultural brasileiro, tradição conga e
cultura conga. Chama a atenção que termos e expressões do jargão das ciências
humanas venham sendo usados com frequência pelos praticantes da congada,
principalmente entre as lideranças.
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As atividades do projeto são propostas por uma entidade católica e parte da
programação ocorre nas repartições da igreja, embora o projeto foque a dimensão
cultural da festa, e não no seu caráter religioso.
Projetos como o da Petizada e o Filhos da Luz, incentivados por políticas de
Estado, promovem o reconhecimento de coletivos que foram marginalizados na história
do país. Os praticantes da congada, na condição de “desconsiderados” socialmente e
com cidadania precária, apropriam-se da ideia de cultura para justificar e legitimar
práticas existentes como recurso estratégico para inclusão social que pode desembocar
em consideração/reconhecimento e acesso a recursos públicos. Cardoso de Oliveira
(2001), no texto Direitos republicanos, identidades coletivas e esfera pública no Brasil e
no Quebec, concebe o reconhecimento como reverso da desconsideração e demonstra
que há uma conexão importante entre identidades sociais ou coletivas e os direitos de
cidadania.
Do ponto de vista das práticas afro-brasileiras realizadas na congada de
Ituiutaba, é importante ressaltar que o reconhecimento pelo Estado manifesto em
políticas públicas, assim como suas apropriações locais foi o que desencadeou e
financiou uma série de demandas relacionadas ao reconhecimento social mais geral na
sociedade civil. A partir dos dados produzidos nesta pesquisa, sugiro que no caso da
Irmandade de São Benedito de Ituiutaba, há uma dialética entre demandas de
reconhecimento inclusão social.
A luta por reconhecimento não é algo específico das congadas ou do Brasil, mas
sim um fenômeno do nosso tempo. Kelly Silva (2010), por exemplo, ressalta que
“demandas por reconhecimento e denúncias de sua negação, a desconsideração, têm se
feito presentes de forma intensa na dinâmica política timorense recente, sendo
utilizadas politicamente para fortalecer alguns grupos e enfraquecer outros”. (p.68). A
autora ressalta, à luz de Cardoso de Oliveira, que “dimensões importantes dos
confrontos nas sociedades contemporâneas são produzidos por desconsideração, que é
percebida como uma espécie de insulto moral”.
Nas últimas décadas muita tinta tem sido gasta para explicar certas dimensões do
passado recorrentemente rotuladas de patrimônio e “se antes o patrimônio funcionava
como obstáculo do desenvolvimento, agora ele é fundamento deste” (Tamaso, 2006,
p.3). E nesse novo modos operandi que se firma, o antigo, o passado e a tradição são
apropriados e ganham novos lugares nas narrativas da modernidade. “A nostalgia pelas
coisas velhas, em muitos lugares, suplanta o desejo pelo progresso e pelo
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desenvolvimento. Ou melhor, redireciona o desejo”. (Ibid). Essa nostalgia pelo passado
é produto de seleções que dizem o que é digno, tendo em vista o projeto de nação
hegemônico, de ser lembrado. Não se sente falta do passado como um todo, mas sim de
determinados fragmentos eleitos como representativos de um coletivo ou uma nação.
No caso da congada as identificações dos atores que produzem e reproduzem a
festa são ressignificadas nas negociações das memórias e dos projetos de congada e os
eventos críticos como a escravidão e a constituição da Irmandade na cidade são
constantemente dinamizados nas performances.
Pitombo (2011) ressalta que o protagonismo que a cultura vem assumindo como
instância de legitimação de práticas sociais é um dos traços marcantes da atualidade e
está relacionado a uma série de transformações de longa duração. A autora ressalta que
cultura vira um meio para fortalecer identidades étnicas, reconhecer conquistas de
direitos e compreender os diferentes povos. Nesse contexto, a cultura torna-se um
recurso central da contemporaneidade.
Polissemia do termo cultura: considerações finais
A valorização da cultura, em esferas nacionais e transnacionais estimulam
pessoas e grupos em posições subalternas nas sociedades amparados em documentos
legais elaborados em reuniões internacionais e traduzidos nacional e localmente
demandarem direitos cidadania pautados na ideia de cultura. Esses instrumentos legais
norteiam o manejo de bens e práticas culturais, muitas deles, no caso do Brasil
desconsiderados nas narrativas da nação. Nesse movimento atividades como a congada
e tantas outras não só passam ser classificadas de patrimônio como também expressam a
diversidade da nação, do estado ou da cidade, e por isso devem ser preservado.
A categoria cultura tem sido usada com diferentes sentidos e para atender
finalidades diversas nas esferas transnacional, nacional e local. A plasticidade do
termo cultura por um lado está relacionado ao seu caráter englobante, já que tudo pode
ser cultua. E por outro lado as traduções de políticas públicas processadas por
populações subalternas demandando cidadania e reconhecimento. É do encontro
polissêmico do termo cultura e de suas múltiplas apropriações que tentei analisar os
projetos Congo Filhos da Luz e Petizada na Congada.
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