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1 Irmandades Negras e as traduções das práticas congadeiras em tempos de vivificação da ideia de cultura 1 Renata Nogueira da Silva (UnB/Brasil) Resumo Esse artigo aborda certos processos de tradução das práticas congadeiras de ItuiutabaMG, tal como manifestos em 2010 e 2011, tendo em vista o caráter político religioso assumido historicamente pelas Irmandades Negras (instituições gestoras destas práticas). O objetivo do trabalho é compreender os modos pelos quais as práticas congadeiras têm sido transpostas e traduzidas para tempos e espaços distintos do ritual à luz das experiências de dois projetos culturais: Petizada na Congada e Congo Filhos da Luz. As transposições e traduções das práticas congadeiras estão associadas, entre outras coisas, à sua secularização em alguns espaços e sua conexão com outras cosmologias religiosas. Palavras-chave: práticas congadeiras, cultura e tradução As Irmandades Negras e redes de solidariedade Nesse artigo, discuto os modos pelos quais a Irmandade de São Benedito de Ituiutaba, instituição que reúne e organiza os ternos 5 e suas práticas, tem recuperado e atualizado o papel de provedora de direitos sociais, semelhante ao que ocorria no período colonial. Sustento que ao retomar e atualizar essas atribuições, outras funções são construídas de acordo com o contexto no qual a Irmandade se edifica na cidade. Entre essas novas funções, ganham destaque: realização de oficinas e seminários relacionados à profissionalização, educação e à valorização das práticas congadeiras. 1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN. Esse texto é baseado na dissertação “O poder da memória e a negociação da memória do patrimônio: Tradução das práticas congadeiras em tempos de vivificação da ideia de cultura” defendida em 2012 na UnB/DAN. 5 Terno (ou guarda) é uma categoria nativa utilizada para identificar os diferentes grupos que compõem a congada: Moçambique, Congos, Catopés, Marinheiros, Caboclinho, Marujo, etc. Geralmente, o terno é composto por pessoas que se concebem como parentes e que possuem laços de amizades e compadrios. A vestimenta do grupo, chamada de farda (uniforme), possui uma combinação de cores específicas, que diferencia os ternos entre si. Em alguns casos, são essas cores que dão o nome ao terno: Camisa Rosa, Camisa Verde, Azul e Branco etc.

Irmandades Negras e as traduções das práticas congadeiras ... · sim, pois se, do ponto de vista da institucionalização, estamos lidando com uma ... que no caso de Ituiutaba,

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Irmandades Negras e as traduções das práticas congadeiras em

tempos de vivificação da ideia de cultura1

Renata Nogueira da Silva

(UnB/Brasil)

Resumo

Esse artigo aborda certos processos de tradução das práticas congadeiras de Ituiutaba–

MG, tal como manifestos em 2010 e 2011, tendo em vista o caráter político

religioso assumido historicamente pelas Irmandades Negras (instituições gestoras

destas práticas). O objetivo do trabalho é compreender os modos pelos quais as práticas

congadeiras têm sido transpostas e traduzidas para tempos e espaços distintos do ritual

à luz das experiências de dois projetos culturais: Petizada na Congada e Congo Filhos

da Luz. As transposições e traduções das práticas congadeiras estão associadas, entre

outras coisas, à sua secularização em alguns espaços e sua conexão com outras

cosmologias religiosas.

Palavras-chave: práticas congadeiras, cultura e tradução

As Irmandades Negras e redes de solidariedade

Nesse artigo, discuto os modos pelos quais a Irmandade de São Benedito de

Ituiutaba, instituição que reúne e organiza os ternos5 e suas práticas, tem recuperado e

atualizado o papel de provedora de direitos sociais, semelhante ao que ocorria no

período colonial. Sustento que ao retomar e atualizar essas atribuições, outras funções

são construídas de acordo com o contexto no qual a Irmandade se edifica na cidade.

Entre essas novas funções, ganham destaque: realização de oficinas e seminários

relacionados à profissionalização, educação e à valorização das práticas congadeiras.

1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de

agosto de 2014, Natal/RN. Esse texto é baseado na dissertação “O poder da memória e a negociação da

memória do patrimônio: Tradução das práticas congadeiras em tempos de vivificação da ideia de cultura”

defendida em 2012 na UnB/DAN. 5 Terno (ou guarda) é uma categoria nativa utilizada para identificar os diferentes grupos que compõem a

congada: Moçambique, Congos, Catopés, Marinheiros, Caboclinho, Marujo, etc. Geralmente, o terno é

composto por pessoas que se concebem como parentes e que possuem laços de amizades e compadrios.

A vestimenta do grupo, chamada de farda (uniforme), possui uma combinação de cores específicas, que

diferencia os ternos entre si. Em alguns casos, são essas cores que dão o nome ao terno: Camisa Rosa,

Camisa Verde, Azul e Branco etc.

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As Irmandades Negras foram espaços de socialização nos quais pessoas

escravizadas e seus descendentes organizavam e expressavam com relativa autonomia

suas religiosidades: as procissões dos santos de devoção e as cerimônias de coroação

dos reis e rainhas, por exemplo. Essa instituição e suas práticas foram modeladas de

acordo com os contextos que definiam tanto o conteúdo quanto a formas dos eventos

das irmandades.

Na virada do século XIX para o XX, a historiografia aponta a perda de força

destas instituições, graças às mudanças internas ocorridas na Igreja Católica e as

transformações da sociedade envolvente (Boschi 1986; Reis, 1996; Quintão, 2002).

As demandas atendidas pelas irmandades (enterro e auxilio doença) gradativamente

tornam-se questões do Estado e o clero passa a interferir de forma mais assídua na

gestão do sagrado, especialmente nas atividades até então geridas pelas Irmandades

Negras.

Nos séculos XX e XXI, as irmandades de São Benedito e Nossa Senhora do

Rosário continuam sendo instâncias de articulação importantes, não só religiosa, mas

política e social também, semelhante ao que acontecia no período colonial. A força e a

permanência desta instituição em contextos tão adversos estão assentes em sua

capacidade de remodelar, criar e atender reivindicações de acordo com a situação. No

entanto, destaco que há algo novo acontecendo contemporaneamente. As irmandades

têm resgatado parte de suas atribuições “originais” e adquirido outras, porque possuem

um capital social (nomeado no momento de cultura ou tradição que passou a ser fonte

de políticas públicas e direitos de cidadania).

Em um contexto em que a ideia de direito cultural passa a ser fonte de políticas

públicas, o cultivo de identidades diferenciadas por coletivos ou populações que,

historicamente, tem tido uma inclusão cívica precária (como ocorre entre os praticantes

da congada), permite a formulação de demandas e/ou acesso a recursos para realização

de atividades relacionadas a direitos universais de cidadania. Tendo em vista esse

cenário proponho interpretar a tradução das práticas congadeiras de Ituiutaba tais

como configurados nos projetos Petizada na Congada6 e Terno de Congo Filhos da Luz

(desenvolvidos parcialmente com incentivos de políticas públicas).

A Irmandade de Ituiutaba tem o ano 1957 como marco de fundação. No entanto,

os mais experientes indicam que antes da institucionalização da irmandade, já

6 Petizada significa criançada/meninada.

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ocorriam cerimônias de louvor a Nossa Senhora do Rosário e São Benedito. Assim

sendo, pergunto: uma Irmandade Negra moderna como a de Ituiutaba nos permite traçar

continuidades e rompimentos com as Irmandades Negras do passado? Suponho que

sim, pois se, do ponto de vista da institucionalização, estamos lidando com uma

irmandade nova, do ponto de vista das vivências das práticas, segundo os adeptos,

lidamos com tradições ancestrais organizadas no período da escravidão e transmitidas

de geração para geração.

A irmandade, ou pelo menos o formato de Irmandade que se pretende legitimar,

é uma instituição recente na cidade, mas o modo como os beneditinos organizados em

seus ternos louvam Nossa Senhora do Rosário e São Benedito é descrito como do tempo

do cativeiro. Cabe então perguntar: quais os repertórios que os termos

escravidão/cativeiro engendram se, em Ituiutaba, a Irmandade e os ternos são produtos

do século XX?

A Irmandade de São Benedito de Ituiutaba e as traduções do tempo do cativeiro

A escravidão e o cativeiro estão relacionados, entre outras coisas, às

experiências africanas vivenciadas em terras brasileiras, aos sofrimentos advindos de

um sistema opressor (colonial ou pós-colonial), às travessias perigosas e a um modo

bem específico de se relacionar com o sagrado. O cativeiro e a escravidão, muitas vezes

expressos nas cantigas e danças dos congadeiros, não dizem respeito apenas à condição

de vítima dos negros, mas também, evocam os negros escravizados como agentes

de transformação social. Assim, eventos críticos, nos termos de Veena Das (1995) são

constantemente ressignificados.

Experiências traumáticas como o cativeiro são ativadas de diferentes formas

na produção e reprodução dos referenciais de identificação. O cativeiro é, nesse

sentido, uma metáfora para falar de desigualdade, dor e tristeza; é também uma

forma de ratificar o sofrimento dos negros. Essa ideia genérica do tempo do

cativeiro acrescida da fé em Nossa Senhora Rosário possibilita que os congadeiros

atualizem a saga de seus santos devocionais e de seus ancestrais, a saber, aqueles que

lutaram pela festa e são considerados ícones para os mais novos (Silva, 2007).

Atualizar periodicamente as histórias da aparição de Nossa Senhora do Rosário e

sua predileção pelos negros, transformando-os em filhos do rosário, instaura um

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sentimento de igualdade entre os congadeiros e a sociedade a que pertencem. Conduzir

os louvores a Nossa Senhora do Rosário e São Benedito é uma forma de produzir

distinção e uma demonstração do manejo às coisas sagradas. Lembrar e celebrar

ritualmente esse evento é cultivar uma memória do cativeiro transformadora e

restauradora da autoestima dos descendentes dos escravizados (Costa, 2006).

Se as narrativas do tempo do cativeiro e da escravidão - construídas e

reconstruídas na/pela festa - são acionadas na produção e reprodução da congada é

plausível dizer, que no caso de Ituiutaba, a criação oficial da Irmandade de São

Benedito legitima e, posteriormente, organiza práticas ancestrais que já existiam na

cidade:

Quando eu nasci em 1950, meu pai, meu avô, o tio Geraldo, que é dono do

terno Camisa Verde, e mais alguns irmãos do meu pai e os colegas dele,

fizeram uma brincadeira, que iam criar um terno. Eu nasci em 1950, 14 de

outubro, aí eles começaram aquela brincadeira que iam fazer um terno em

louvor a São Benedito, por que ele era um santo negro, nós devemos louvor a

ele por que nós somos negros, vamos fazer uma capela de São Benedito, se

Deus quiser. Então, eles começaram na época do meu nascimento e

quando foi em maio foi já a primeira festa, dia 13 de maio, foi a

primeira do ano da frente. (Eles iam, tiravam licença na delegacia para

poder fazer passeata e a alvorada naquele dia, pois naquela época era muito

perigoso, não era bem organizado ainda festa), sempre em 13 de maio ou no

domingo mais próximo desta data. Sessenta anos de Camisa Rosa e sessenta

anos de idade.

(Mário Afonso, Primeiro Capitão do Camisa Rosa, 2011)

Os louvores a São Benedito e Nossa Senhora do Rosário, materializados na

forma de um terno em Ituiutaba, são anteriores à criação da irmandade, que é a

institucionalização posterior dessas práticas. É importante ressaltar que Seu Demétrio

(conhecido como Cizico, idealizador do Camisa Rosa), seu pai e seus irmãos decidiram

criar um terno para São Benedito, um santo negro como eles. Se por um lado, Nossa

Senhora do Rosário os elegera como filhos, por outro, havia uma conexão estreita entre

o santo negro e os congadeiros, também negros.

Segundo Divina Teles (líder do Congo Camisa Verde, um dos ternos mais

antigos da cidade), os ternos de congos tiveram permissão para entrar na igreja, adorar

o Sacrário e venerar São Benedito e Nossa Senhora do Rosário após 1957. A presidente

do Camisa Verde destaca que congadeiros, tocando seus tambores com suas cantorias,

chegavam até a porta da igreja onde deixavam seus instrumentos7. Como só era

7 Ver: http://www.alami.xpg.com.br/geraldo.html

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permitida a participação de adultos nas cerimônias religiosas, as crianças zelavam dos

instrumentos e das bandeiras.

Escutei ao longo dessa pesquisa muitos comentários, principalmente dos mais

jovens, relacionados às performances dos grupos: “Nossa! que negão lindo”; “aquele

moço dança muito”; “o terno X sempre arrasa nas danças; “a fé daquele capitão me

emociona”, “o cabelo daquela nega tá demais”. Comentários como esses indicam que,

contemporaneamente, os mais novos não atuam apenas como zeladores das bandeiras

e dos instrumentos, tal como na década de 1950. Eles também adicionam adereços e

elaboram novos sentidos às práticas congadeiras. A esse respeito, William afirma: “Na

Congada, é muito difícil você achar um congadeiro que simplesmente fez um corte [de

cabelo social, o corte dele sempre é irreverente, sempre diferente, alguns gostam de

fazer uns desenhos, outros gostam de colocar tranças grandes, (...) ele trança o cabelo,

ele coloca um piercing, um brinco.

As práticas congadeiras têm sido experimentadas de diversas formas: as pessoas

rezam, louvam seus santos, dançam, comem, enfeitam-se, namoram, fazem amizades,

brigam e, nesse ínterim, vínculos são reforçados/rompidos ou criados. As narrativas do

passado e os múltiplos valores expressos (culturais, sociais, morais e estéticos) na

congada são atualizados e/ou modificados, entre outras situações nas cantigas. Os

relatos dos fenômenos cantados e lembrados publicamente ganham força e status de

verdade.

A congada pode ter vários significados (simultâneos, inclusive) para seus

praticantes, assim como o público é mobilizado por diversos motivos, e por isso,

atribuir este ou aquele predicativo à Congada é reduzir demais a complexidade e os

significados do fenômeno. A esse respeito, é preciso mencionar, ainda, que as práticas

congadeiras têm sido vivenciadas contemporaneamente, fora do tempo e espaço da festa

propriamente dita, tal como vem ocorrendo nas atividades dos projetos Petizada na

Congada e Congo Filhos da Luz.

Nesses projetos, as práticas congadeiras são ao mesmo tempo ensinadas,

difundidas e tomadas como fonte de direito de cidadania. Dar dignidade analítica ao que

ocorre em função da festa (ou ainda em nome dela), fora do seu tempo ritual, pode

contribuir no sentido de ampliar as interpretações antropológicas sobre a congada. A

combinação entre o desempenho ritual que envolve entre outras coisas gestualidade, –

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música e demonstração de fé – e o conjunto estético – roupas, adereços, combinação de

cores e penteados, por exemplo – atuam diretamente nas apreciações que os ternos

recebem dos congadeiros e dos não congadeiros. Esse prestígio ritual, adicionado à

memória dos fundadores e ao lugar ocupado pelas chamadas culturas afro-brasileiras no

cenário nacional são mobilizadores usados pelas lideranças dos ternos e da Irmandade

para reivindicar direitos, apresentar projetos e solicitar espaço no calendário cultural da

cidade.

Concebo esses projetos são âncoras para pensar questões como: tradução das

tradições congadeiras, conflitos intergeracional e revivificação da tradição. Em nome

da tradição, entram em disputa diferentes projetos de congada; projetos esses,

amarrados por recortes distintos da memória coletiva do grupo. Assim, a Irmandade e

seus ternos tornam-se ferramenta para demanda de direitos de cidadania, retomando um

papel similar ao que tinha na época colonial. A ideia de projeto era frequentemente

acionada para falar de várias coisas: visibilidade da festa, reconhecimento, posições

sociais, tradição e cultura.

Reivindicar direitos em nome da cultura tradicional, não é algo exclusivo da

congada ou das práticas afro-brasileiras. Segundo Sahlins (1997) a cultura ou seu

equivalente local está na boca do povo, principalmente em contextos que ameaçam os

modos tradicionais de existência. E conforme afirmou Manuela Carneiro da Cunha

(2009) “vários povos estão mais do que nunca celebrando sua “cultura”, utilizando-a

com sucesso para obter reparações por danos políticos (p.313)

As práticas congadeiras na escola: O Projeto Congo Filhos da Luz

Durante aproximadamente trinta anos, Ituiutaba teve apenas dois ternos: Camisa

Rosa e Camisa Verde. Nas décadas de 80 e 90, foram criados três ternos (Congo Real,

Moçambique Lua Branca e Moçambique Águia Branca) e em 2004, nasceu o terno

Congo Libertação. É o Congo Libertação (representado pelo capitão William

Cândido) que elabora e coordena o projeto Congo Filhos da Luz desenvolvido na

Escola Municipal CAIC (Centro de Atenção Integral à Criança) .

O Congo Libertação se apresenta para Irmandade e para outras instituições relacionadas

à cultura afro-brasileira na cidade como um terno umbandista, algo novo para dinâmica

da festa na cidade. Inicialmente, essa postura gerou certo desconforto em função do

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vínculo simbiótico e histórico entre a Irmandade de São Benedito (principalmente seus

representantes do Camisa Rosa e Camisa Verde) e a igreja católica local. A Irmandade

de São Benedito só pôde existir legalmente falando, após a conversão de seus

participantes ao catolicismo. Muitos representantes dos dois ternos pioneiros que são

lideranças na igreja valorizam (e zelam por) esse vínculo estreito com a Igreja, como

também constroem as imagens de seus respectivos ternos em função dessa relação. A

criação do Libertação desestabiliza muitas narrativas que foram apresentadas como

verdades e permite compreender várias dinâmicas inter/intra terno. O processo de

criação do Terno Libertação é parte fundamental daquilo que o capitão William concebe

como congada. Tal concepção e herança são acionadas na proposição e execução do

Projeto Congo Filhos da Luz na Escola CAIC.

A unidade do CAIC em Ituiutaba está localizada no Bairro Novo Tempo II,

região periférica da cidade e sem assistência social adequada. A escolha do local era

bem apropriada para um programa que visava garantir direitos fundamentais e o

desenvolvimento integral de crianças e adolescentes. As obras se iniciaram em 1994 e a

inauguração aconteceu em fevereiro de 1996. De acordo com alguns alunos e

professores, o bairro ainda tem vários problemas, mas é preciso reconhecer as recentes

melhorias, principalmente no que diz respeito a infraestrutura.

A escola é um lugar privilegiado de sociabilidade do bairro. Os eventos

organizados pela escola enchem as arquibancadas da quadra esportiva. No CAIC,

muitos sonhos nasceram, inclusive os do William Cândido, ex-aluno do CAIC, capitão

de congada, coordenador do projeto Filhos da Luz e morador do bairro.

As experiências vividas na escola e as dificuldades de uma infância

financeiramente precária estimularam o jovem congadeiro a cooperar na formação de

crianças e adolescentes através das principais regras do congo, assim definidas por ele:

humildade, sabedoria, integridade e respeito ao próximo.

Desde criança William participou da congada (acompanhando seus familiares)

no Terno Camisa Verde. Na adolescência começou a ficar com vergonha de dançar, o

que ocorre com outros também, e parou de participar por um tempo. Alguns saem e

não retornam, outros mudam de terno. Dos relatos que escutei, notei que os retornados

se engajam no terno e assumem suas atividades com mais responsabilidade. Essa saída

momentânea da congada na adolescência pode ocorrer por vários motivos: piadas dos

colegas, namoros, rebeldia, envolvimento com outras atividades religiosas, etc. Para

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evitar essa saída, os ternos tem criado uma série de estratégias para estimular a

participação dos mais novos.

Posteriormente William volta para congada, mas dessa vez entra no Congo

Real, terno em que permaneceu até 2004, quando o Libertação começou a ser idealizado

por sua avó. Em 2005, o Libertação estava formado e foi a partir daí que William

começou a se interessar de forma mais profunda pela história da Congada. Se, nas

outras experiências, sua preocupação era bater caixa, no Libertação ele assume um

bastão e passa a viver a congada de uma forma bem intensa, tal como pode ser

observado em sua fala:

A Congada cobre todo o espaço do ser humano. Cobre com harmonia, porque

você trabalha com muita gente. Alegria, porque quando você está fazendo

uma coisa que você gosta e muita gente faz (...) todo mundo quer curtir. Tem

a questão física também, de saúde, você faz muita caminhada, você faz

exercícios, mexe com a saúde, mexe com o humor da pessoa, mexe com o

interesse cultural, aquela coisa de fazer um enfeite, de desenhar, de costurar,

de bordar, de pintar. É marcenaria, é percussão, é música, é melodia.

(William Cândido, maio de 2011)

Ao fim e ao cabo, essa definição de congada (algo que envolve todo o espaço do

ser humano) apresentada por William retroalimenta seus projetos: viver de congada

(financeiramente falando, inclusive) e ensinar Congo no CAIC. Não se pode perder do

horizonte que as concepções de William estão relacionadas às suas experiências como

jovem, negro, umbandista, aluno de escola pública, morador de um bairro periférico e

congadeiro.

As ideias embrionárias de William ganharam força, pois havia uma disposição

da Secretaria Municipal de Educação de Ituiutaba em implementar a lei 10.639/2003,

inserindo nas propostas pedagógicas das escolas questões relacionadas à cultura afro-

brasileira, o que, se diga de passagem, está relacionado a outras medidas adotadas pelo

Brasil no sentido de combater a discriminação racial e aos compromissos firmados em

fóruns internacionais.

A lei 10639/2003 é parte dos programas de ações afirmativas que estão

relacionados ao Programa Nacional de Direitos Humanos, bem como aos compromissos

internacionais assumidos pelo Brasil, com o objetivo de combater o racismo e as

discriminações. Destaque-se, nesse aspecto, a Convenção da UNESCO de 1960,

direcionada ao combate ao racismo em todas as formas de ensino e Conferência

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Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Discriminações

Correlatas de 2001.

Nas últimas décadas, o Brasil implantou de forma mais sistemática uma série de

medidas que visam a combater o racismo no Brasil. Dentre elas, vale sublinhar o

recente programa Brasil-África: Histórias Cruzadas (UNESCO) que trabalha na

produção de materiais pedagógicos sobre a história e cultura africana e afro-brasileira

para todos os níveis da Educação Básica. Segundo a UNESCO, apoiar a implementação

da lei da Educação das Relações Etnicorraciais é uma maneira de valorizar a identidade,

a memória e a cultura africana no Brasil, – o país que conta com a maior população

originária da diáspora africana.

A implementação de uma lei em toda federação exige engajamento coletivo não

apenas entre os municípios, estados e União, em termos de convergência de políticas

públicas, mas também entre diversos setores da sociedade. Ao longo das últimas

décadas, o Brasil firmou uma série de compromissos internacionais que contribui

decisivamente na elaboração de políticas de reparações e de reconhecimento, visando a

corrigir situações desvantajosas a que determinados grupos estão submetidos.

Há uma normativa que inclui conhecimentos relativos à História da África e dos

afro-brasileiros no currículo da Educação Básica, mas a seleção e a forma de inserir

esses saberes ganham vida na esfera local. A história da África e dos afro-brasileiros foi

inserida nas escolas públicas de Ituiutaba, e aqui me refiro às escolas municipais,

através das danças e músicas da congada, capoeira, samba. A discussão chega às

escolas pela via da arte e da ludicidade, com o risco da exotização das práticas culturais

ancestrais, dependendo do contexto e da forma como ocorre a apropriação das mesmas

pela/na escola.

Várias pessoas e instituições atuaram nesse processo e a participação de Luciane

Dias, professora, pesquisadora e militante deve ser destacado. Luciane atuou na

Secretaria Municipal de Educação durante mais de dez anos e entre os anos de 2005 e

2008 coordenava uma série de projetos relacionados à gestão democrática, participação

juvenil e formação de professores. Daí o convite para colaborar na implementação da

Lei 10.639. Esse convite/compromisso fez com que Luciane criasse, dentro da

Secretaria de Educação, projetos de ações socioeducativas que posteriormente,

culminou com o Congo Filhos da Luz.

Os praticantes da congada consideram Luciane uma parceira. Nos termos de

Merry (2006), ela é uma intermediária que faz mediações e traduções ente mundos

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culturais diferentes. Isso fica bem evidente nos comentários de Ana Lúcia sobre a

participação de Luciane na elaboração do Projeto Petizada: “As ideias foram surgindo e

ela (Luciane) formatou o projeto dentro daquilo que é pedido”.

Formatar o projeto implica entre outras coisas filtrar, traduzir e transplantar

códigos de um mundo para o outro. Algo bem próximo das discussões de Merry sobre

as ideias de direitos humanos em relação à violência contra as mulheres: elas são

infiltradas nas comunidades locais de forma fragmentada e limitada, “basicamente pela

mediação de ativistas que traduzem a linguagem local em termos locais relevantes”

(Merry, 2006, p. 218)

A criação dos projetos de inclusão etnicorracial de Ituiutaba é produto de

domesticações e apropriações locais (municipais) de leis elaboradas pelo Estado

brasileiro, tendo em vista convenções e orientações de organismos transnacionais dos

quais é membro. Nesse processo, outros contextos são criados e novos sentidos podem

ser atribuídos à própria lei. Somada a uma intenção dos poderes públicos locais de

aumentar o tempo de permanência dos alunos na escola, uma série de atividades

culturais foi proposta e muitas delas em parceria com os coletivos que as promoviam:

congada, capoeira, dança afro.

Havia uma convergência entre os propósitos do capitão William e da Secretaria

de Educação e assim as oficinas começaram. William e outros jovens negros

selecionados como monitores ministraram oficinas em várias escolas e, de certa forma,

rompiam as barreiras entre educação formal e informal. Em alguns casos, os

conhecimentos ensinados pelos monitores dialogavam com o as disciplinas obrigatórias;

em outros, as oficinas ficavam desconectadas da vida escolar. De forma lúdica e

dinâmica a cultura conga, expressão usada na proposta do projeto, é levada às escolas

primeiramente para cumprir a lei 10639/03, embora, secundariamente, no caminho,

outras experiências acontecessem: líderes são formados, amizades construídas, talentos

descobertos, entre tantas outras coisas.

Após essa experiência inicial, Luciane Dias propõe à direção do CAIC a criação

de terno de Congo fixo na escola, culminando com o desejo do capitão William de

trabalhar de forma mais assídua com crianças da sua comunidade. Inicialmente, não

havia um terno propriamente dito com nome ou cores. Era apenas uma tentativa de

levar saberes e técnicas da congada para escola. Gradativamente, porém, a ideia

genérica de congada na escola foi ganhando forma e se transformando em algo mais

especifico: a criação de um congo. O processo de criação do grupo é bem peculiar, pois

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abarcou não só os alunos envolvidos no projeto, mas também a comunidade escolar.

Além disso, não se pode desconsiderar que o Filhos da Luz foi criado por ação direta e

indireta de agentes e projetos estatais. Os trânsitos de Luciane Dias pela Prefeitura

(como professora formadora e idealizadora de projetos até 2010), movimento negro

(como militante), Irmandade (no papel de parceira) e universidade (como docente

desde 2010) tem possibilitado a efetivação de vários projetos na cidade. Essa

participação/parceria é manifesta em diversos comentários das lideranças dos ternos e

da irmandade.

Com uma dinâmica bem diferente de um terno convencional, o Congo Filhos da

Luz, de acordo com seu idealizador, é uma escola de congo que tem como função

primordial multiplicar o número de praticantes da congada: “Se daqui a cinco anos eles

não estiverem mais no Filhos da Luz, esse mesmo amor eles vão levar para o outro

terno, ou seja, é mais 20, 30 anos para aquele Congo, é a oportunidade daquele Congo,

seja ele qual for.”

O cenário que venho descrevendo demonstra a transformação da cultura em

um objeto de política de Estado, uma categoria de governo. No exercício do poder

estatal sobre ela, fomenta-se iniciativas nacionais e suscita-se inúmeras reuniões de

organismos internacionais. Nesse processo é importante destacar, várias transposições e

traduções são necessárias e a experiência do Congo Filhos da Luz é emblemática, nesse

sentido. Em função de ter se tornado uma categoria de Estado, é possível ensinar uma

cultura conga (enquanto manifestação cultural afro-brasileira) descolada da irmandade.

A cultura conga ganha vida e passa a ser ensinada como parte da implementação da lei

10639/2003 nas escolas de Ituiutaba, em particular no CAIC.

Assim, as práticas congadeiras produzidas e reproduzidas desde os encontros

coloniais são enquadradas em políticas de inclusão etnicorracial. Nesse cenário, é

preciso selecionar certos aspectos das inúmeras experiências vividas e nomeadas de

Congo que possam ser ensinadas para crianças e adolescentes que, diferentemente de

boa parte dos congadeiros da irmandade, não foram nascidos e criados dentro de terno.

William ressalta que seu trabalho na escola com o Filhos da Luz não tem

pretensões religiosas, pois o que lhe interessa é a formação ética e moral das crianças e

nisso, a cultura conga pode ajudar, tal como ele afirma:

Não trabalho religião com os meninos, eu tento trabalhar, fora a Congada, a

cidadania e prepará-los para o futuro. Eu quero que eles cresçam querendo

ajudar o próximo, tentando fazer o melhor, eu quero que eles cresçam

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explorando a profissão de cada um deles. Eu não me importo com qual

religião eles seguirão, tanto é que a minha família é uma mistura de religiões,

minha mãe é mãe de terreiro, a minha irmã é evangélica, tem católico, tem

essa mistura toda. (William Cândido)

E como ensinar congo sem ensinar religião, uma vez que a escola, teoricamente,

não pode professar fé? Como justificar a criação de um terno de Congo na escola? O

Filhos da Luz é um lugar de vivência cultural e não religiosa. Ao definir o congo para

comunidade como cultura e não como religião o enquadramento é feito e a

domesticação processada. No decorrer do ano são realizadas uma série de oficinas

internas: dança ritmo, canto, e outras que visam a interação e a circulação de

conhecimentos entre as crianças do Filho da Luz e os demais alunos da escola, como

por exemplo, oficina de congada para as crianças da Educação Infantil.

O terno provoca reações diversas no bairro: parte do bairro fica admirada com a

destreza das crianças batendo as caixas, cantando e dançando pelas ruas, pois para essa

pessoas as crianças que estão no terno “deram certo” e não estão envolvidos com

drogas e violência. Outra parte do bairro associa o terno Filhos da Luz a coisas do mal

(demônio). Nessa ambiguidade, o terno se firma no bairro, ora como grupo cultural, ora

como devotos de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário.

Na escola, o terno é parte importante da implementação de uma lei, mas ao

ultrapassar os muros da escola com as atividades típicas da congada, assume funções

religiosas e, de certa forma, atua na propagação e manutenção do que é chamado

localmente por muitos de cultura conga.

Babadzan (2000), ao tratar em seu texto Antropologia, nacionalismo e

invenção da tradição das rupturas e continuidades entre as produções pré-modernas e as

tradições inventadas, demonstra que a constituição de práticas sociais como "cultura"

não é encontrada nos sincretismos das sociedades colonizadas, que nunca consideram

"cultura", um objeto de adoração. O novo conceito de cultura (o empírico e não o

antropológico) é implantada no contexto de uma sociedade baseada na individualização

das relações sociais, econômicas e políticas. A ideia moderna de cultura só é sentida

quando as tradições deixam de ser vista como algo natural. Pode-se dizer que ocorre

uma objetificação e externalização da cultura pelos sujeitos, o que pode gerar maior

reflexividade a respeito da mesma.

As práticas congadeiras saem de seus mundos naturalizados e ganham outros

cenários impulsinadas por uma lei que trata da inclusão da história da África e dos

13

afro-brasileiros no currículo da Educação Básica. A entrada desses conhecimentos nas

grades curriculares é emblemático, pois confere dignidade a saberes que ficavam à

margem da chamada história oficial; conhecimentos esses que não chegam inicalmente

nas escolas pelo livro didático, mas sim por meio de oficinas ministradas por nativos

das práticas, militantes, lideranças negras ou pesquisadores.

Se por um lado, a lei 10.639 expressa realidades pré-existentes, por outro lado

também cria realidades (a congada na escola, por exemplo) e modos de perceber e

conceber o mundo. Assim, um dispositivo legal simultaneamente encarna e é encarnado

pelos coletivos e contextos para os quais foram criados.

A Petizada na Congada: o movimento das práticas congadeiras

O reconhecimento da irmandade e seus ternos como patrimônio imaterial em

2009 não era objeto de muitas reflexões entre meus interlocutores. Mas os projetos

aprovados e desenvolvidos sim. É de um desses projetos que abordarei a seguir.

O projeto A petizada na congada: construindo saberes e fazeres, da Irmandade

de São Benedito12

, foi contemplado com o prêmio Ludicidade - Pontinhos de Cultura,

2009. O projeto oferece diversas atividades abertas à comunidade: atividades de canto,

dança, contação de história, aula de cidadania e brincadeiras. Geralmente, são

oferecidos três tipos de oficinas por encontro, dependendo da disponibilidade dos

voluntários. O maior número de participantes são crianças e adolescentes dos ternos de

congada da cidade.

Acompanhei, em 2011, algumas dessas oficinas e a dinâmica é bem interessante.

As crianças são divididas por faixa etária. São formados dois ou três grupos e esses

grupos circulam pelas atividades propostas para o dia. Assisti à aula de cidadania com

as crianças menores (entre 5 e 8 anos). A monitora Adirce, professora da rede pública e

presidente do grupo de estudos afro-brasileiros, começou sua oficina com a leitura de

uma lenda:

12

Entre 2007 e 2009 a Irmandade de Ituiutaba teve três projetos premiados pelo Governo Federal:

Reencontro com a congada: congadeiros contando sua história (Prêmio Mestre Duda, 2007); o Projeto

Preservando a Memória Ativa da Congada (Concurso Pontos de Leitura 2008) e o projeto Petizada na

Congada Construindo Saberes e Fazeres (Prêmio Ludicidade - Pontinhos de Cultura, 2009

14

O Sapo e a Cobra (Lenda Africana)

Era uma vez um sapinho que encontrou um bicho comprido, fino, brilhante e colorido

deitado no caminho.

- Olá o que você está fazendo estirada na estrada?

- Estou me esquentando aqui no Sol. Sou uma cobrinha e você?

- Um sapo. Vamos brincar?

E eles brincaram a manhã toda no mato.

- Vou ensinar a você subir na árvore se enroscado e deslizando sobre o tronco – disse a

cobra.

E eles subiram.

Ficaram com fome e foram embora, cada um para a sua casa, prometendo se encontrar

no dia seguinte.

- Obrigada por me ensinar a pular.

- Obrigado por me ensinar a subir na árvore.

Em casa o sapinho mostrou para a sua mãe que sabia rastejar.

- Quem ensinou isso a você?

- A cobra a minha amiga.

- Você não sabe que a família da cobra não é gente boa? Eles têm veneno. Você está

proibido de brincar com cobras. E também de rastejar por aí. Não fica bem.

Em casa a cobrinha mostrou para a mãe que sabia pular.

- Quem ensinou isso a você?

- O sapo meu amigo.

- Que besteira! Você não sabe que a gente nunca se deu bem com a família do sapo e é

bom apetite! E pare de pular. Nós cobra não fazemos isso.

No dia seguinte cada um ficou no seu canto.

- Acho que não posso rastejar com você hoje – pensou o sapo.

A cobrinha olhou e pensou no conselho da mãe e pensou: Se chegar perto eu pulo e o

devoro.

Mas lembrou-se da alegria da véspera e dos pulos que aprendeu com o sapinho.

Suspirou e deslizou para o mato.

Daquele dia em diante o sapinho e a cobrinha não brincaram mais juntos. Mas ficaram

sempre ao Sol, pensando no único dia que foram amigos.

A professora explicou rapidamente que lenda era um história que geralmente

tinha algo a nos ensinar. Então, perguntou para o grupo: escutamos uma lenda africana,

certo? E o quer dizer africana? Uma garotinha, mais que depressa olhou para

professora e disse: “são pessoas, professora!” A professora meio surpresa com a

resposta disse: “sim, são pessoas, mas vamos falar mais dessas pessoas”. E começou a

introduzir questões de respeito, cidadania e diferenças.

A professora ressaltou que na sala havia vários tipos de crianças: congadeiras e

não congadeiras, pele mais clara e pele mais escuras, meninas de cabelo curto e longo,

entre outras variáveis. Ressaltou que cada uma merecia ter o seu jeito de ser respeitado,

porque todos eram criação divina. Além disso, a professora sublinhou que essas

diferenças não eram motivo para não fazer amizade.

A partir dessa explanação as crianças começaram a contar diversas casos

presenciados e/ou vividos em que não foram respeitadas. Nas falas atropeladas

15

daqueles pequenos, situações de preconceito e discriminação no ambiente da escola

eram reveladas. Uma menina narrou que na época da congada ela é chamada de

“macumbeira” por seus colegas. Diante do relato da menina a professora explicou

alguns dos significados da palavra macumba (instrumento musical de percussão, árvore

em que as pessoas se encontram) e disse ainda, “muitas pessoas não sabem o que

falam e vocês tem o dever de ensinar para os colegas de vocês o que vocês aprendem

aqui”.

O desconforto com a associação entre congadeiro e macumbeiro não é só das

crianças. Os adultos também se incomodam, pois o termo macumba aparece no

imaginário social local como coisa ruim e/ou práticas demoníacas. Uma série de

gestualidades, ritmos e vocabulários são compartilhados entre os congadeiros e as

religiosidades afro-brasileiras.

A dança do moçambiqueiro, por exemplo, assemelha-se à expressão corporal

dos pretos velhos. Os pretos velhos, geralmente são apresentados como homens ou

mulheres pretos, velhos, sentados num toco de madeira, vestindo roupas brancas e

segurando um cachimbo. Os nomes dessas entidades fazem referência a alguma

localidade africana: Moçambique, Angola, Congo (por exemplo, Pai Joaquim de

Angola, Vovô Rei do Congo, Maria Conga). Os pretos velhos são entidades bastante

cultuadas na umbanda e estão associadas a noções de benevolência e sabedoria.

Em alguns ternos de congada, relaciona-se a imagem do preto velho à de São

Benedito. Dançar como um preto velho não implica necessariamente um pertencimento

religioso. O preto velho está relacionado aos anciãos negros que, dotados de sabedoria

e conhecimentos ancestrais, ajudavam seus pares nas adversidades. A dança do

moçambiqueiro é encurvada e cadenciada, combina movimentos nos quadris e nos

ombros, além de usarem bastões como adereço das danças (Silva, 2007).

No Moçambique Camisa Rosa, o capitão Francis Luce é um observador

perspicaz e, graças a suas leituras e “olhadelas” em outros moçambiques, tem investido

bastante na difusão das danças. As crianças gostam das danças, observam, imitam e a

incrementam, o que por sua vez encoraja os mais velhos. As lideranças mais jovens,

com muita ousadia e curiosidade, afirmam que estão reintroduzindo as raízes, os

fundamentos originais da congada, os modos de dançar e cantar que foram esquecidos

ou que sucumbiram nos acordos implícitos estabelecidos entre os mais velhos e a Igreja

no retorno das práticas na cidade.

16

Empreendimentos como a Petizada, entre outros, dá uma vida social maior para

festa durante o ano, mobilizando não só as crianças, os pais e as lideranças, mas toda

uma rede de voluntários que é acionada no rodízio das oficinas. Com muita emoção,

Divina Teles chega a dizer: “Sábado para mim é sagrado: a Petizada. (...) se sábado

tem a Petizada e eu tenho alguma coisa, a semana toda eu já vou preparando tudo na

minha vida”. No sábado é dia de encontrar os colegas, aprender coisas de congo como

muitos dizem. Há, também, o lanche e a volta coletiva para casa.

Às vezes, são exibidos alguns vídeos nas oficinas de congada ou de outras

práticas afro-brasileiras. Ao estabelecerem esse contato visual e/ou auditivo, abre-se

possibilidades para circulação de outras formas de dançar e cantar, que podem,

posteriormente, ser adaptadas aos contextos da congada. De forma reflexiva e

intergeracional, uma série de conhecimentos são traduzidos e transpostos. De acordo

com Ana Lúcia Costa, o projeto Petizada tem os seguintes objetivos:

Promover, preservar e divulgar a manifestações dos grupos de congadas de

Ituiutaba que é saber cultural encontrado em várias cidades brasileiras,

principalmente em Minas Gerais. Essa tradição que têm suas origens nos

interiores das senzalas, e era formada em sua maioria por adultos e idosos,

hoje o que se constata é um número cada vez mais crescente de crianças,

jovens e adolescentes envolvidas nestas manifestações. (...) Nesse sentido o

projeto propõe não apenas as crianças, jovens e adolescentes congadeiros,

mas toda a comunidade de modo geral conhecer a diversidade do

patrimônio étnico-cultural brasileiro, com suas normas, regulamentos e

leis, tendo atitude de respeito para com pessoas e grupos que compõem,

reconhecendo a diversidade cultural como um direito dos povos e dos

indivíduos e interagir com materiais, instrumentos e procedimentos variados

de seu cotidiano, experimentando-os e reconhecendo-os de modo a utilizá-los

nos trabalhos pessoais, usando-os como instrumentos de transformação

social, voltados para a construção da cidadania plena e para o bem comum e

a multiplicação do conhecimento de forma sistematizada e prazerosa.

(Ana Lúcia da Costa, Irmandade de São Benedito, Prêmio

Ludicidade/Pontinho de Cultura, 2008)

No projeto apresentado pela irmandade, do qual foi retirado o trecho acima, as

práticas congadeiras aparecem relacionadas ao seguinte repertório: saber cultural,

tradição, diversidade cultural, patrimônio étnico-cultural brasileiro, tradição conga e

cultura conga. Chama a atenção que termos e expressões do jargão das ciências

humanas venham sendo usados com frequência pelos praticantes da congada,

principalmente entre as lideranças.

17

As atividades do projeto são propostas por uma entidade católica e parte da

programação ocorre nas repartições da igreja, embora o projeto foque a dimensão

cultural da festa, e não no seu caráter religioso.

Projetos como o da Petizada e o Filhos da Luz, incentivados por políticas de

Estado, promovem o reconhecimento de coletivos que foram marginalizados na história

do país. Os praticantes da congada, na condição de “desconsiderados” socialmente e

com cidadania precária, apropriam-se da ideia de cultura para justificar e legitimar

práticas existentes como recurso estratégico para inclusão social que pode desembocar

em consideração/reconhecimento e acesso a recursos públicos. Cardoso de Oliveira

(2001), no texto Direitos republicanos, identidades coletivas e esfera pública no Brasil e

no Quebec, concebe o reconhecimento como reverso da desconsideração e demonstra

que há uma conexão importante entre identidades sociais ou coletivas e os direitos de

cidadania.

Do ponto de vista das práticas afro-brasileiras realizadas na congada de

Ituiutaba, é importante ressaltar que o reconhecimento pelo Estado manifesto em

políticas públicas, assim como suas apropriações locais foi o que desencadeou e

financiou uma série de demandas relacionadas ao reconhecimento social mais geral na

sociedade civil. A partir dos dados produzidos nesta pesquisa, sugiro que no caso da

Irmandade de São Benedito de Ituiutaba, há uma dialética entre demandas de

reconhecimento inclusão social.

A luta por reconhecimento não é algo específico das congadas ou do Brasil, mas

sim um fenômeno do nosso tempo. Kelly Silva (2010), por exemplo, ressalta que

“demandas por reconhecimento e denúncias de sua negação, a desconsideração, têm se

feito presentes de forma intensa na dinâmica política timorense recente, sendo

utilizadas politicamente para fortalecer alguns grupos e enfraquecer outros”. (p.68). A

autora ressalta, à luz de Cardoso de Oliveira, que “dimensões importantes dos

confrontos nas sociedades contemporâneas são produzidos por desconsideração, que é

percebida como uma espécie de insulto moral”.

Nas últimas décadas muita tinta tem sido gasta para explicar certas dimensões do

passado recorrentemente rotuladas de patrimônio e “se antes o patrimônio funcionava

como obstáculo do desenvolvimento, agora ele é fundamento deste” (Tamaso, 2006,

p.3). E nesse novo modos operandi que se firma, o antigo, o passado e a tradição são

apropriados e ganham novos lugares nas narrativas da modernidade. “A nostalgia pelas

coisas velhas, em muitos lugares, suplanta o desejo pelo progresso e pelo

18

desenvolvimento. Ou melhor, redireciona o desejo”. (Ibid). Essa nostalgia pelo passado

é produto de seleções que dizem o que é digno, tendo em vista o projeto de nação

hegemônico, de ser lembrado. Não se sente falta do passado como um todo, mas sim de

determinados fragmentos eleitos como representativos de um coletivo ou uma nação.

No caso da congada as identificações dos atores que produzem e reproduzem a

festa são ressignificadas nas negociações das memórias e dos projetos de congada e os

eventos críticos como a escravidão e a constituição da Irmandade na cidade são

constantemente dinamizados nas performances.

Pitombo (2011) ressalta que o protagonismo que a cultura vem assumindo como

instância de legitimação de práticas sociais é um dos traços marcantes da atualidade e

está relacionado a uma série de transformações de longa duração. A autora ressalta que

cultura vira um meio para fortalecer identidades étnicas, reconhecer conquistas de

direitos e compreender os diferentes povos. Nesse contexto, a cultura torna-se um

recurso central da contemporaneidade.

Polissemia do termo cultura: considerações finais

A valorização da cultura, em esferas nacionais e transnacionais estimulam

pessoas e grupos em posições subalternas nas sociedades amparados em documentos

legais elaborados em reuniões internacionais e traduzidos nacional e localmente

demandarem direitos cidadania pautados na ideia de cultura. Esses instrumentos legais

norteiam o manejo de bens e práticas culturais, muitas deles, no caso do Brasil

desconsiderados nas narrativas da nação. Nesse movimento atividades como a congada

e tantas outras não só passam ser classificadas de patrimônio como também expressam a

diversidade da nação, do estado ou da cidade, e por isso devem ser preservado.

A categoria cultura tem sido usada com diferentes sentidos e para atender

finalidades diversas nas esferas transnacional, nacional e local. A plasticidade do

termo cultura por um lado está relacionado ao seu caráter englobante, já que tudo pode

ser cultua. E por outro lado as traduções de políticas públicas processadas por

populações subalternas demandando cidadania e reconhecimento. É do encontro

polissêmico do termo cultura e de suas múltiplas apropriações que tentei analisar os

projetos Congo Filhos da Luz e Petizada na Congada.

19

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