105
Wolfgang Iser O ATO DA LEITURA Uma Teoria do Efeito Estético vol. 2 Tradução Johannes Kretschmer

ISER, Wolfgang. a Interação Entre Texto e Leitor. in O Ato Da Leitura

Embed Size (px)

Citation preview

  • Wolfgang Iser

    O ATO DA LEITURA Uma Teoria do Efeito Esttico

    vol. 2 Traduo

    Johannes Kretschmer

  • I V A Intera~o

    entre Texto e Leitor

  • A. A ASSIMETRIA DE TEXTO E LEITOR

    1. AS CONDIES DA INTERAAO

    Nossa discusso se concentrou sobretudo nos dois plos na situao de comunicao, o texto e o leitor. Agora se trata de ana- lisar as condies que originam tal comunicao. Sendo uma ativi- dade guiada pelo texto, a leitura acopla o processamento do tex- to com o leitor; este, por sua vez, afetado por tal processo. Gosta- ramos de chamar tal relao recproca de interao. Descreve-la enfrenta dificuldades num primeiro momento pois a teoria da li- teratura carece nesse ponto de premissas, e tambm seria mais ficil captar os agentes dessa relao do que aquilo que acontece entre eles. No obstante, possvel identificar as condies que gover- nam a interao, e algumas delas importam para a relao entre texto e leitor, embora esse tipo de interao seja um caso esye- cial. As diferenas e as semelhanas que existem entre essas con- dies se deixam esclarecer atravs de modelos de interao, tais como desenvolvidos pela psicologia social e pela pesquisa psica- naltica da comunicao. Num primeiro passo, traaremos iim esboo geral desses modelos.

    A teoria da interao proposta pela psicologia social, apre- sentada no livro Foundations of Social Psychology, de Edward E. Jones e Harold B. Gerard, parte do pressuposto de que preciso estabelecer categorias de tipos de contingncia que so encontr- veis ou emergem em cada interao humana. No ser necessrio analisar mais detalhadamente os quatro tipos - a pseudocontin- gncia, a contingncia assimtrica, a contingncia reativa e a con- tingncia mtua. O que importa nesse contexto o fato de que a

    O Ato da Leitura - Vol. 2 97

  • imprevisibilidade dominante em toda interao representa a con- dio constitutiva e diferencial para a relao interativa dos par- ceiros envolvidos.

    1. A pseudocontingncia prevalece quando ambos os par- ceiros conhecem to bem o "plano de conduta" (behavioral plan) do outro que possvel prever com preciso as rplicas e suas conseqncias; desse modo, a conduta dos parceiros se assemelha- ria cena bem ensaiada de uma pea de teatro. Tal interao ritualizada elimina a contingncia.

    2. Temos contingncia assimtrica quando o parceiro A desis- te de atualizar o seu prprio "plano de conduta* e segue sem resis- tncia o do parceiro B. Ele se adapta estratgia de conduta de B e por esta absorvido.

    3. Ocorre contingncia reativa caso os respectivos "planos de conduta" dos parceiros sejam constantemente encobertos por reaes momentneas quilo que se acaba de dizer ou experimen- tar. A contingncia se torna dominante neste es4uema de reao momentnea, inviabilizando todas as tentativas dos parceiros de fazer valer os seus prprios "planos de conduta".

    4. Na contingncia mtua, por fim, domina o esforo de orientar a reao de acordo tanto com o prprio "plano de condu- ta", quanto com as reaes momentneas do parceiro. Da duas conseqncias:

    The interaction might be a triumph of social cre- ativity in which each is enriched by the other, or it might be a spiraling debacle of increasingly mutual hostility from which neither benefits. Whatever the content of the interaction's course, there is implied a mixture of dual resistance and mutual change that distinguishes mutual contingency fram other classes of interacti0n.l

    Edward E. Jones e Harold B. Gerard, Foundations of Social Psycho- logy, Nova York, 1967, pp. 505-12 (citao p. 512).

    98 Wolfgang Iser

  • Se os tipos acima mencionados de fato abrangem todo o fenmeno da interao social uma questo que no precisamos discutir aqui. O que importa a concluso metdica que pode- mos deduzir do esquema descrito. A tipologia desenvolvida das relaes interativas leva em considerao em que medida a con- tingncia reduzida. Em outras palavras, a contingncia fun- damento constitutivo da interao; trata-se de um fundamento, contudo, que de modo algum antecede interao e portanto no pode ser captado como causa anteriormente dada para efeitos sub- seqentes. Ao contrrio, a contingncia nasce da interao em si, uma vez que no incio os respectivos "planos de conduta" no so afinados um com o outro; desse modo, os elementos contingen- tes da resultantes provocam ajustes tiiticos e estratgicos, exigindo at esforos de interpretao. A interao submete os "planos de conduta" dos parceiros a vrias provas, assinalando-se em segui- da uma srie de deficincias; estas so contingentes por evidenciar em que medida os "planos de conduta" podem ser controlados. Mas essas deficincias tendem em princpio a ser produtivas. Elas so capazes de re-orientar estratgias de conduta ou imprimir modificaes nos "planos de conduta".

    Sempre que isso sucede, transforma-se a contingncia e cons- tituem-se diferentes tipos de interao, conforme a capacidade de transformao. A contingncia revela assim a sua ambivalncia produtiva: ela se forma a partir da interao e ao mesmo tempo a impulsiona. Quanto mais ela reduzida, tanto mais a interaqo entre os parceiros se ritualiza; quanto mais ela aumenta, tanto menosconsistente se torna a seqncia das reaes, culminando no caso extremo na destruio de toda a estrutura interativa.

    Conseqncias bastante semelhantes se deixam inferir dos estudos psicanalticos da comunicao apresentados por R. D. Laing, H. Phillipson e A. R. Lee; seus resultados podem ser apro- veitados para nossa anlise da interao entre texto e leitor. Laing descreve a problemtica da Znterpersonal Perception, no livro que leva o mesmo ttulo, da seguinte maneira:

    O Ato da Leitura - Vol. 2 .

  • My field of experience is, however, filled not on- ly. by my direct view of myself (ego) and of the other (alter), but of what we shall cal1 metaperspectives - my uiew of the other's [...I uiew of me. I may not act- ually be able to see myself as others see me, but I am constantly supposing them to be seeing me in particular ways, and I am constantly acting in the light of the actual or supposed attitudes, opinions, needs, and so on the other has in respect of me.2,

    Laing parte da observao de que no ato da percepo in- terpessoal as reaes recprocas no s so determinadas pelo que cada parceiro quer do outro, seno mais uma vez pela imagem que um fizera do outro para si e que portanto dirige de maneira sig- nificativa as reaes de ambos os parceiros. Tais imagens, contu- do, no mais podem ser qualificadas de percepes "puras", pois resultam de interpretaes. A necessidade de interpretao advm da estrutura peculiar experincia interpessoal. Temos experin- cias dos outros medida que conhecemos nosso comportamento e o dos outros. Mas no temos experincias de como os outros nos experimentam, ou seja, de que tipo a experincia que os ou- tros adquirem em relao a ns. Da conclui Laing num outro li- vro, chamado Tbe Politics of Experience: "[ ...] your experience of me is invisible to me and my experience of you is invisible to you. I cannot experience your experience. You cannot experience my experience. We are both invisible men. AI1 men are invisible to one another. Experience is man's invisibility to mar^".^ O que para ningum de ns dado constitui no entanto o fundamento constitutivo em que se baseiam as relaes interpessoais; base essa

    R. D . Laing, H. Phillipson, A. R. Lee, Interpersonal Perception: A Theory anda Method of Research, Nova York, 1966, p. 4.

    R. D. Laing, The Politics of Experience, Penguin Books, Harmonds- worth, 1968, p. 16.

    100 Wolfgang Iser

  • que Laing chama "No thing".4 "That which is really betweeri cannot be named by any things that come between. The between is itself no-thing. " 5

    Todas as nossas relaes interpessoais se fundam nesse no- thing, pois reagimos como se conhecssemos as experincias dos nossos parceiros; criamos sem cessar imagens de como os parcei- ros nos experienciam e agimos em seguida como se as nossas ima- gens fossem reais. A relao interpessoal portanto um constan- te balano que fazemos a respeito dessa lacuna inerente a nossa experincia. Laing, Phillipson e Lee desenvolveram a partir dessa observao um mtodo de diagnose, analisando no s o que pro- duzimos ao preencher tal lacuna, mas o coeficiente da percepo pura, da pulso das fantasias projetadas e da interpretao.6 Os detalhes desse estudo no so to importantes para nosso argu- mento, mas talvez seja interessante analisar uma observao dos autores baseada em experimentos, segundo a qual a relao in- terpessoal assume traos patolgicos medida que os parcei.ros ocupam a lacuna da experincia com fantasias projetadas. Mas vale lembrar que a diversidade das relaes interpessoais no exis- tiria se o fundamento das relaes fosse fixado. A interao di- dica ganha vida apenas pelo fato de sermos incapazes de experi- mentar a experincia do outro, incapacidade essa que nos impul- siona a agir. Ao mesmo tempo se evidencia o alto grau de interpre- tao que domina e regula a interao. Como no h percepqo que no se funde em pressupostos, toda percepo s tem senti- do se for processada, sendo impossvel qualquer percepo pura. Em conseqncia, a interao didica no um evento natural,

    Idem, p. 34. Idem; neste contexto deve ser vista uma observao de Umberto Iko,

    Einfuhrung in die Semiotik (UTB 105), trad. alem de Ju~gen Trabant, Mu- nique, 1972, p. 410. Eco diz que "na raz de toda comunicao possvel no h cdigo, mas somente a ausncia de todos os cdigosn.

    Cf. Laing, Phillipson, Lee, pp. 18 ss.

    O Ato da Leitura - Vol. 2

  • mas fruto de interpretao, graas qual formamos uma imagem do outro, imagem na qual ns mesmos estamos representados.

    Agora, a impossibilidade de ter experincias de como os ou- tros nos experimentam no possui o carter de um limite onto-

    cll. . d / lgico da experincia. Pois na interao didica que se faz no- tar a falta de experimentabilidade e ela s pode ser considerada valor-limite se as limitaes estabelecidas pela interao nosesti- mulam a transcend-las constantemente. Desse modo, a interao didica produz a negatividade da experincia - se podemos cha- mar assim a impossibilidade de experimentar as experincias dos outros. E isso nos estimula a fechar a lacuna na experincia atra- vs da interpretao, ao mesmo tempo dando a possibilidade de desmentir as nossas prprias interpretaes; dessa maneira, con- tinuamos abertos para novas experincias.

    O que distingue a relao entre texto e leitor dos modelos esboados acima o fato de no haver a face to face situation que origina todas as formas da interao social.' A diferena do que sucede com os parceiros numa relao didica, o texto no se adapta aos leitores que o escolhem para a leitura. Os parceiros de uma interao didica tm a possibilidade de verificar atravs de perguntas em que medida a contingncia est sendo controla- da, ou seja, se a imagem formada em razo da impossibilidade da experincia mtua se adequa situao. O mesmo no vale para a relao entre texto e leitor. A este o texto jamais dar a garan- tia de que sua apreenso seja a certa. Alm disso, a interao didica segue determinadas finalidades. Portanto, ela faz parte de um contexto que a regula enquanto horizonte, funcionando muitas vezes at como tertium cornparationis. Mas a relao entre texto e leitor carece de um padro de referncias. Ao contrrio, os di- ferentes cdigos fragmentados pelo texto no mais so capazes de regular a interao; na melhor das hipteses, o leitor ter que

    Cf. tambm E. Goffman, Interaction Ritual: Essays on Face-to-Face Bebavior, Anchor Books, Nova York, 1967.

    Wolfgang Iser

  • construir um cdigo para ajustar a relao com o texto. A meta e os pressupostos diferenciam ento a interao de texto e leitor da interao didica de parceiros sociais.

    Mas justamente essa carncia que impulsiona uma relao; nesse ponto, a relao de texto e leitor e a interao didica tm algo em comum. Os modelos descritos de interao no mundo social surgem da contingncia - planos de conduta no coinci- dem ou impossvel experienciar as experincias dos outros -, mas no de uma situao em comum ou de convenes que va- lem para os parceiros da interao. A situao em comum e as convenes se limitam a regular o preenchimento das lacunas, lacunas estas que se formam em face da falta de controle oii de experimentabilidade, sendo condies bsicas para qualquer in- terao. A essas lacunas corresponde a assimetria bsica de texto e leitor, caracterizada pela falta de uma situao e de um padro de referncias comuns. Aqui como ali, a carncia estimuladora, ou seja, os graus de indeterminao implicados na assimetria de texto e leitor compartilham uma funo com a contingncia e o no-tbing da interao interpessoal, a saber, a funo de constituir comunicao. Em conseqncia, os graus de indeterminao da assimetria, da contingncia e do no-thing so apenas diferentes formas de um vazio constitutivo subjacente toda inter-relao. Entretanto, tal vazio no um dado ontolgico em que se funda- mentariam as relaes mencionadas; ele criado e modificado pela falta de equilbrio inerente tanto interao didica, quanto assimetria de texto e leitor. O equilbrio s se deixa reconstituir se a carncia for superada, razo pela qual o vazio constitutivo est sendo constantemente ocupado por projees. A interao fracassa no momento em que as projees recprocas dos parcei- ros sociais no so passveis de modificao ou no momento em que as projees do leitor se sobrepem ao texto sem enfrentar resistncias por parte deste. Fracassar significa ento no ocupar o vazio seno com as prprias projees. Mas como a carncia mobiliza representaes e projees, a relao entre texto e leitor bem-sucedida apenas se as representaes so modificadas. Desse

    O Ato da Leitura - Vol. 2 , L03

  • modo, o texto provoca uma multiplicidade de representaes do leitor, pelas quais a assimetria dominante comea a ser dissolvi- da, dando lugar a uma situao comum a ambos os plos da co- municao. A complexa estrutura do texto, porm, dificulta a ocupao definitiva dessa situao por parte do leitor. As dificul- dades mostram que o leitor precisa abandonar ou reajustar suas representaes. Sendo corrigidas as representaes mobilizadas, surge um horizonte de referncias para a situao. Esta ganha perfil medida que o leitor capaz de corrigir as suas prprias repre- sentaes. Pois s assim ele poder experimentar algo que ainda no se encontra dentro de seu horizonte. Tal experincia abarca tanto a objetivao e o distanciamento daquilo em que ele est envolvido, quanto a evidncia da experincia de si mesmo que no permitia ao leitor envolver-se na vida pragmtica. Neste proces- sq se suspende a assimetria de texto e leitor. A interao didica, ao contrrio, apenas superada se produz aes pragmticas. Por isso, os pressupostos em que ela se baseia possuem grau maior de determinao, o que confirmado pela dependncia da situao e pelo padro comum de referncias dos parceiros interagentes. Por outro lado, a assimetria de texto e leitor possui em princpio menor grau de determinao, e essa falta de determinao que amplia as possibilidades de comunicao.

    Para que essas possibilidades se realizem e a comunicao entre texto e leitor seja bem-sucedida, preciso que a atividade do leitor seja de alguma maneira controlada pelo texto. Os con- troles desse tipo, no entanto, no podem ser to determinados quanto o a face to face situation e o cdigo em comum que re- gulam a interao didica. Cabe-lhes ento pr em movimento a interao entre texto e leitor e iniciar um processo comunicativo, cujo sucesso indicado pela constituio de um sentido; tal sen- tido dificilmente poder ser equiparado com referncias j exis- tentes, sendo no entanto capaz de questionar o significado de es- truturas existentes de sentido e modificar experincias anterior- mente feitas. Os guias controladores, contudo, no podem ser captados como grandeza positiva que independe do processo de

    104 Wolfgang Iser

  • comunicao. Uma observao de-Virginia Woolf sobre os roman-7 ces de Jane Austen esclarece do que se trata aqui. Uma autora de romances descreve o processo comunicativo desenvolvido no ro- mance de uma outra escritora da seguinte maneira:

    Jane Austen is thus a mistress of much deeper e- motion than appears upon the surface. She stimulates us to supply what is not there. What she offers is, ap- parently, a trifle, yet is composed of something that expands in the reader's mind and endows with the most enduring form of life scenes which are outwardly tri- vial. Always the stress is laid upon character [...I The turns and twists of the dialogue keep us on the tenter- hooks of suspense. Our attention is half upon the pre- sent moment, half upon the future [...I Here, indeed, in this unfinished and in the main inferior story, are a11 the elements of Jane Austen's greatness.g

    8 Virginia Woolf, The Common Reader, First Series (9= ed.), Londres, 1957, p. 174. Em nosso contexto so instrutivas tambm as obsemaes de Virginia Woolf sobre a composio dos protagonistas em seus prprios ro- mances. Ela anota em seu dirio: "I'm thinking furiously about Reading.and Writing. I have no time to describe my plans. I should say a good deal about The Hours and my discovery: how I dig out beautiful caves behind my charac- ters: I think that gives exactly what I want; humanity, hurnour, depth. The idea is that the caves shall connect and each comes to daylight at the present moment". A Writer's Diary: Being Extracts bom the Diary of Virginia Wc~olf, Leonard Woolf (org.), Londres, 1953, p. 60. Os efeitos sugestivos de "bcau- tiful caves" continuam em sua obra pelo que ela deixa de lado. A respeito, T. S. Eliot escreveu uma vez: "Her obsemation, which operates in a continuous way, implies a vast and sustained work of organisation. She does not illuniine with sudden bright flashes but diffuses a soft and placid light. Instead of looking for the primitive, she looks rather for the civilized, the highly civilized, where nevertheless something is found to be left out. And this something is deliberately left out, by what could be called a moral effort of the will. And, being left out, this something is, in a sense, in a melancholy sense, present". "T. S. Eliot, 'places' Virginia Woolf for French Readers", in Virginia Woolfi

    O Ato da Leitura - Vol. 2 . 105

  • O no-dito de cenas aparentemente triviais e os lugares va- zios do dilogo incentivam o leitor a ocupar as lacunas com suas projees. Ele levado para dentro dos acontecimentos e estimu- lado a imaginar o no dito como o que significado. Da resulta um processo dinmico, pois o dito parece ganhar sua significncia s no momento em que remete ao que oculta. Mas, sendo uma implicao do dito, o ocultado ganha prprio contorno. Quan- do o que ocultado ganha vida na representao do leitor,-o dita emerge diante um pano de fundo que o faz aparecer - como acredita Virginia Woolf - mais importante do que se supunha. Assim, cenas triviais podem expressar uma surpreendente e pro- funda capacidade de viver (enduring form of life). E isto no se manifesta verbalmente no texto seno provm do enlace de texto e leitor, Portanto, o processo de comunicao se pe em movimen- to e se regula no por causa de um cdigo mas mediante a dial- tica de mostrar e de ocultar, O no dito o estimula os atos de cons- 'tituio, mas ao mesmo tempo essa produtividade controlada pelo dito e este por sua vez deve se modificar quando por fim vem luz aquilo a que se referia.

    A observao de Virginia Woolf se fundamenta no carter especfico da linguagem que Merleau-Ponty descrevera assim:

    A ausncia de signo pode ser ela mesma um sig- no, e a expresso no consiste em que a cada elemento de sentido seja amoldado um elemento da linguagem, mas em que a linguagem exera influncia sobre a lin- guagem, influncia que de sbito se desloca em direo a seu sentido. Dizer no significa substituir cada pen- samento por uma palavra: se o fizssemos, nada seria dito e no teramos a sensao de viver na linguagem, ficaramos no silncio, j que o signo desapareceria re- pentinamente diante de um sentido [...I A linguagem diz

    The Critical Heritage, Robin Majumdar e Allen McLaurin (org.), Londres, 1975, p. 192. .

    Wolfgang Iser

  • irrefutavelmente quando renuncia a dizer a coisa em si [...I A linguagem significa quando, em vez de copiar o pensamento, se deixa por ele dissolver e r e f a ~ e r . ~

    Como o texto forma um sistema desse tipo de combinaes, seu sistema abriga tambm um lugar para aquele que deve reali- zar a combinao. O lugar sistmico dado pelos lugares vazios, os quais so lacunas que marcam enclaves no texto e demandam serem preenchidos pelo leitor. Com efeito, os lugares vazios de um sistema se caracterizam pelo fato de que no podem ser ocupa- dos pelo prprio sis~ema, mas apenas por um outro. Quando isso acontece, inicia-se a atividade de constituio do leitor, razo pela qual esses enclaves representam um rel importante onde se arti- cula a interao entre texto e leitor. Os lugares vazios regulam a formao de representaes do leitor, atividade agora emprega- da sob as condies estabelecidas pelo texto. Mas existe um ou- tro lugar sistmico onde texto e leitor convergem; tal lugar mar- cado por diversos tipos de negao, que surgem no decorrer da leitura. Os lugares vazios e as potncias de negao dirigem de maneiras diferentes o processo de comunicao; mas precisamente por isso eles agem juntos como instncias controladoras. C>s lu- gares vazios omitem as relaes entre as perspectivas de apresen- tao do texto, assim incorporando o leitor ao texto para que ele mesmo coordene as perspectivas. Em outras palavras, eles fazem com que o leitor aja dentro do texto, sendo que sua atividade ao mesmo tempo controlada pelo texto. As potncias de negao evocam dados familiares ou em si determinados a fim de cancel- 10s; todavia, o leitor no perde de vista o que cancelado, e isso modifica sua posio em relao ao que familiar ou deterrnina- do. Em outras palavras, eles fazem com que o leitor se situe a si mesmo em relao ao texto. A assimetria de texto e leitor estimula uma atividade de constituio e esta atividade ganha uma deter-

    M. Merleau-Ponty, Das Auge und der Geist: Philosophische Eksays, trad. alem de Hans Werner Arndt, Reinbek, 1967, pp. 73 ss.

    O Ato da Leitura - Vol. 2

  • minada estrutura graas aos lugares vazios e s negaes do tex- to, ajustando o processo interativo.

    2. A CONCEPO DOS LUGARES INDETERMINADOS SEGUNDO INGARDEN

    Antes de principiarmos uma anlise mais detalhada dos lu- gares vazios, gostaramos de considerar um pouco uma concep- o semelhante que Ingarden desenvolvera sob o conceito de lu- gares indeterminados (Unbestimmtheitsstellen) do texto. No in- tuito de descrever a maneira especfica como uma obra de arte dada para ns, Ingarden recorre ao padro fenomenolgico de referncia para a definio de objetos. De acordo com essa con- cepo, h objetos reais, universalmente determinados, e objetos ideais, que possuem existncia aui6nonia. Os objetos reais so apreendidos, enquanto os objetos ideais precisam ser constitu- dos. Em ambos os casos se trata de atos que possuem uma poss- vel finalidade: o objeto real pode ser totalmente apreendido e o objeto ideal pode ser totalmente constitudo. A obra de arte se distingue desses dois tipos pelo fato de ser por natureza um obje- to intencional. Tal objeto no possui nem a determinao universal do objeto real, nem a existncia autnoma do objeto ideal, pois um objeto que espera sua realizao. Os objetos intencionais ca- recem de determinao completa na medida em que esta visada pelas elocues do texto; da resulta uma construo esquemtica que Ingarden chama de objetividade apresentada da obra de arte.

    O objeto apresentado que "real" de acordo com seu contedo no , no sentido rigoroso, um indivduo inequivocamente universal e determinado que consti- tui uma unidade original; sim uma construo esque- mtica, contendo lugares indeterminados de diferentes .tipos e um nmero finito de determinaes positiva- mente atribudas a ele, embora seja mais formalmente

    Wolfgang Iser

  • delineado como indivduo completamente determina- do e destinado a simular ser esse indivduo. Tal estru- tura esquemtica dos objetos apresentados no pode ser eliminada em nenhuma obra literria finita, ainda que, na contiuao da obra, novos lugares indetermi- nados possam ser preenchidos e assim eliminados atra- vs da complementao de novas qualidades positiva- mente projetadas.10

    Os lugares indeterminados de Ingarden servem a princpio para distinguir o objeto intencional, peculiar obra de arte, de outras definies de objeto. Mas essa. funo torna ambguo o conceito de lugares indeterminados; uma ambigidade que trans- parece na passagem citada quando Ingarden fala que o objeto intencional, no passvel de determinao plena, deveria ser pen- sado como se fosse plenamente determinado. Mas Ingarden atri- bui aos lugares indeterminados, alm da funo mencionada, o papel de participar da concretizao da obra. E essa ambivaln- cia do conceito pode ser ilustrada de diferentes maneiras.

    . Se se admitir que o objeto intencional tem de simular uma determinao comparvel dos objetos reais, alcanando-a, en- tretanto, s no ato complementar da concretizao, ento os lu- gares indeterminados, bem como as concretizaes, devem ser submetidos a limitaes especficas; isso necessrio para que a simulao tenha xito. Pois os lugares indeterminados fazem com que o objeto intencional da obra de arte seja aberto, para no dizer interminvel; desse modo, segundo Ingarden, o seu preenchimento, a ser realizado no ato de concretizao, permite em princpio todo um leque de concretizaes. Agora, Ingarden distingue entre con- cretizaes adequadas e concretizaes inadequadas da obra.ll

    l0 Roman Ingarden, Das literarische Kunstwerk (2" ed.), Tubingen, 1960, p. 266.

    l1 Cf. a respeito, entre outros, Roman Ingarden, Vom Erkenne-n des literarischen Kunstwerks, Tubingen, 1968, pp. 142, 156, 169 ss., 178.

    O Ato da Leitura - Vol. 2

  • Tal postulado advm da necessidade de asseguar ao objeto inten- cional da obra de arte - se no como texto, em ltima instncia como sua concretizao - uma finalidade que caracteriza tanto os atos de apreenso que se debruam sobre objetos reais, quan- to os atos que constituem objetos ideais. No h dvida de que a obra ganha determinao ao se tornar concreta em razo do sen- tido constitudo. Cabe perguntar, no entanto, se essa determinao no na verdade do leitor individual, quer dizer, se ela realmen- te pode ser submetida a critrios de adequao e inadequao. Pois Ingarden no pode ter acreditado que a determinao da obra s seria instaurada por meio da simulao de tais critrios. Para ele, a harmonia polifnica, onde consoam as camadas da obra de arte, representa uma realidade irrefutvel, que j no pode ser enten- dida como simulada porque dela se origina tanto o valor esttico da obra, quanto a concretizao adequada deste valor. Por isso, a obra de arte se constri como forma esquemtica numa srie de atos determinantes que se referem parte no preenchida de cada aspecto esquematizado. "Mas em cada aspecto de uma coisa exis- tem qualidades realizadas e no-realizadas e em princpio im- possvel eliminar todas as qualidades no-realizadas."12 Da se pode concluir que a multiplicidade de aspectos provoca a necessi- dade de determinao; porm, quanto maior a determinao, tanto maior ser tambm o nmero de qualidades no-realizadas. Para isso, a literatura moderna propicia os exemplos clssicos. Quanto mais um texto aprimora seu padro de apresentao, diversifican- do os aspectos esquemticos responsveis pelo esboo do objeto textual, tanto mais cresce a indeterminao. Mas se insistirmos no carter polifnico da obra de arte, ento deve haver limites para a toler'2ncia da indeterminao, pois se os limites forem ultrapas- sados, o carter polifnico da obra explodir - ou nem sequer vai constituir-se. Por essa razo, Ingarden se vale de um argumento de certo modo lgico quando diz que a iiideterminao, no ato de concretizao, pode ter efeitos negativos para a "constituio

    l2 Ingarden, Kunstwerk, p. 277.

    Wolfgang Iser

  • de certas qualidades esteticamente relevantesn;13 isso ocorre na medida em que a eliminao das lacunas "ou impede a constitui- o dessas qualidades ou resulta na constituio de uma qualida-

    3, 14 de que discorda das outras qualidades esteticamente vlidas .

    A "discrdia" reina na literatura moderna como a condio bsica da comunicao, algo que o argumento de Ingarden no leva em conta; evidencia-se assim a funo que a seus olhos cabe aos lugares indeterminados. Por um lado, eles diferenciam o ob- jeto intencional de outras definies de objeto, mas, por outro lado, precisam ser limitados em seus efeitos por um postulado - o do carter polifnico da obra de arte -, porque s nesse caso o objeto intencional pode ser fechado e assim identificado como objeto. Parece que a obrigao de manter a premissa fez Ingarden recorrer idia da concretizao da obra, uma vez que s atra- vs desta que o objeto da obra literria, aberto por natureza, pode ganhar sua identidade. Essa suspeita parece se confirmar com o postulado de Ingarden da concretizao "adequada". Esta implica uma norma, a qual cumprida ou no no ato de concretizao. O que orienta tal norma para Ingarden o valor esttico e as qualidades metafsicas da obra. Quanto ao valor, Ingarden diz que descrev-lo difcil, lanando um desafio para futuras pesquisas;1s em relao s qualidades metafsicas, ele acredita que o leitor deve capt-las por empatia,16 pois no se revelam na linguagem. Em outras palavras, tanto o valor esttico quanto as qualidade meta- fsicas so lugares vazios que o leitor preenche com as suas repre- sentaes a fim de constituir o sentido da obra. Todavia, essa concluso dificilmente segue a linha de argumentao desenhada

    '3 Ingarden, Vorn Erkennen, p. 300. l4 Idem, ibidem. l5 Cf. a respeito Roman Ingarden, Erlebnis, Kunstwerk und Wert. Tu-

    bingen, 1969, pp. 21-7 passim. l6 Cf. a respeito Ingarden, Vorn Erkennen, pp. 275 ss.

    O Ato da Leitura - Vol. 2

  • por Ingarden. Ela se impe sobretudo porque o valor esttico e as qualidades metafsicas, como condio e meta daquela norma que controla a adequada concretizao, permanecem to pouco determinados. A falta de determinao apenas se justificaria se eles tivessem seu fundamento na concretizao em si, pela qual vm luz; isso, no entanto, significa entregar o valor esttico e as qua- lidades estticas a um mero processo de atualizao, ao passo que para Ingarden eles possuem um fundamento na realidade que no depende da concretizao. Alm disso, o postulado da adequada concretizao precisaria ser abandonado, pois apenas se mantm enquanto o valor esttico e as qualidades metafsicas ocupem uma posio transcendental quanto ao ato de concretizao.

    Desse modo vem baila a ambivalncia do conceito de con- cretizao; este conceito - para formul-lo em forma de tese - empregado como se fosse um conceito peculiar ao ato da comuni- cao. Pois ele no designa a interao de texto e leitor, mas o fato de os aspectos apresentados pelo texto serem atualizados durante a leitura. Ou seja, ele no aponta para uma relao recproca, mas para uma diferena de nvel de texto e leitor. Desse ponto de vista apenas conseqente postular um valor esttico e as qualidades metafsicas, uma vez que eles incorporam a instncia referencial necessria, atravs da qual se conecta num processo regulado a construo esquemtica do texto concretizao pelo leitor. O valor esttico e as qualidades metafsicas ocupam em Ingarden o lugar da assimetria de texto e leitor, funcionando maneira de um cdigo e permitindo as concretizaes adequadas. Mas justa- mente nesse ponto que o conceito de concretizao - para diz- 10 com um termo do prprio Ingarden - opalesce. Pois as duas instncias transcendentais de controle e orientao permanecem to indeterminadas em sua funo que surge a pergunta se Ingar- den no simplesmente tira da interseo de texto e leitor a indeter- minao necessria para toda comunicao, deslocando-a para o postulado esquema referencial de um tertium comparationis, o qual regula a relao entre duas posies diferentes. Pois s nesse sentido que o carter hbrido do conceito de concretizao no

    Wolfgang Iser

  • perde sua plausibilidade, conceito introduzido com o fito de des- crever uma relao comunicativa sem todavia estar preparado para tal tarefa. Este fato se torna mais evidente ainda se em vez de con- tinuarmos discutindo a origem dos lugares indeterminados foca- lizamos agora a sua funo. Em vrias passagens de seus dois li- vros, Ingarden sublinha o papel que eles desempenham na concre- tizao. Eles lhe servem em primeiro lugar para diferenciar o texto da concretizao.

    Ora, o princpio de diferenciar a obra literria de suas concretizaes est na afirmao de que a prpria obra contm lugares indeterminados, assim como v- rios elementos potenciais (como por exemplo os aspec- tos, as qualidades esteticamente relevantes), ao passo que, devido concretizao, so em parte extintos, isto , atualizados. l7

    A paralela esboada por Ingarden entre lugares indetermi- nados e elementos potenciais instrutiva porque ambos, tendo a mesma funo de distinguir a obra de sua concretizao, na verda- de cumprem papis diferentes no processo da concretizao. Os lugares indeterminados devem ser eliminados e os elementos po- tenciais devem ser atualizados. Ambas as operaes quase no so. sincronizadas. Se ento os lugares indeterminados so preenchidos ou complementados, isso no significa para Ingarden que eles se transformariam em estmulos para a atualizao dos elementos potenciais. Pois quem atualiza esses elementos a emoo origi- nal; "no fundo, ela o incio do processo especfico da experin- cia esttica".18 Ela provoca aquela turbulncia no leitor que d partida atividade constitutiva e s se tranqiliza quando pro- duz o objeto esttico.

    l7 Idem, p. 250. l8 Idem, p. 195.

    O Ato da Leitura - Vol. 2

  • A saber, a emoo original possui dinmica inte- rior, uma espcie de fome no satisfeita; essa fome apa- rece ali e s ali onde j fomos excitados por uma qua- lidade, sem todavia conseguir contempl-la de forma imediata e intuitiva para poder extasiar-nos com ela. Neste estado de insatisfao (da "fome") pode-se ver - se se quiser ver - um momento de mal-estar, de des- gosto; porm, a caracterstica da emoo original en- quanto primeira fase da experincia esttica no con- siste num desgosto, mas sim na falta de tranqilidade interior, na insatisfao. Ela emoo original porque, a partir dos momentos de um desejo especfico que nela esto presentes, desenvolve-se tanto o processo poste- rior da experincia esttica como a formao de seu cor- relato intencional, o objeto esttico.19

    Para Ingarden, as categorias da esttica da empatia, i. e., da emotive theory, motivam portanto a conexo de texto e leitor. O desenvolvimento dessa conexo coincide com a produo do ob- jeto esttico enquanto construo harmoniosa. Neste caso, os lugares indeterminados no desempenham papel relevante. Pois no so eles, mas a emoo original que pe em movimento a concretizao. Os lugares indeterminados precisam ser apenas preenchidos ou completados. No entanto, mesmo essa modesta atividade a que eles induzem o leitor possui limites bem defini- dos. "A considerao da possibilidade de constituir uma quali- dade esteticamente vlida torna necessrio limitar ainda mais a variao dos meios artisticamente permitidos, pelos quais cada lugar indeterminado pode ser preenchido."20 Ingarden acredita pois no ser indispensvel preencher todos os lugares indeter- minados; para ele existem ocasies em que o leitor no deveria

    l9 Idem, p. 198. 20 Idem, p. 301.

    Wolfgang Iser

  • eliminar os lugares preenchidos se no quer ser considerado uma pessoa incompetente.

    O leitor menos culto, o diletante artstico, de quem fala Moritz Geiger, interessa-se unicamente pelo des- tino das pessoas apresentadas, no respeitando o fato de ser proibido extinguir tais lugares indeterminados; ademais, esse tipo de leitor completa com loquacida- de o que no deve ser completado, transformando obras de arte bem-feitas em literatura barata, tagarela e irri- tante do ponto de vista esttico.*l

    Ao menos Ingarden admite que a eliminao de lugares in- determinados to importante para a constituio do objeto que pode transformar, no ato de concretizao, arte de grande valor esttico em kitsch. Da se segue que lugares indeterminados cola- boram, pelo menos potencialmente, na constituio de um obje- to. Ao mesmo tempo, porm, sua participao constitutiva no pode ser total, uma vez que Ingarden insiste na emoo original, considerando-a o tertium comparations de texto e leitor que d partida ao processo de concretizao. Por isso, no obstante sua sugestividade e sua influncia sobre a concretizao, os lugares indeterminados no deixam de ser problemticos para Ingarden porque podem interromper a harmonizao das camadas e alte- rar, em ltima instncia, o valor esttico da obra de arte.

    Mas se os lugares indeterminados so s vezes preenchidos, s vezes no eliminados ou no percebidos, surge a pergunta sobre quais seriam os critrios que regulam esse processo. Ingarden no d uma resposta explcita a essa pergunta, mas ela pode ser inferida de sua teoria. A concordncia polifnica das camadas da obra de arte se completa na harmonia, e esta, caso no seja suspensa, resul- ta numa experincia esttica. Com esses termos Ingarden quer dizer que os lugares indeterminados devem ser eliminados, preenchidos

    21 Idem, p. 304.

    O Ato da Leitura - Vol. 2

  • ou completados para que as camadas se inter-relacionem e, em consequncia, venham ii luz as qualidades esteticamente vlidas. A essa meta serve a desconstruo, ou seja, a complementao dos lugares indeterminados que existem no texto. Se quisermos ver algo mais nesse processo do que apenas a tentativa de assegurar ao objeto intencional da obra de arte a finalidade necessria - ou seja, se quisermos surpreender condies de comunicao nos lugares indeterminados, apesar de estes serem subordinados emoo original, o verdadeiro impulso da concretizao -, en- to essas condies de comunicao so as da arte de iluso.

    Tal concluso se comporta com a descrio do objeto inten- cional dada por Ingarden. Pois ele dizia que o objeto intencional, embora no completo a princpio, deve simular a determinao individual da obra de arte. O propsito de simulao se cumpre tanto pela eliminao quanto pela complementao dos lugares indeterminados, pois so estes que indicam a falta de determinao do objeto intencional e portanto devem ser eliminados para que possa constituir-se a determinao do objeto esttico. Se esse for o caso, ento os lugares indeterminados, a condio comunicativa para o processo de concretizao, possuem limitada significncia histrica: eliminar lugares indeterminados significa provocar a iluso de totalidade; mas esta representa o princpio bsico da ilu- so na arte.

    Numa srie de acrscimos posteriores a seu livro Von Erken- nen des literarischen Kunstwerks, Ingarden observa como proble- mtica a literatura moderna, na qual "muitas vezes surgem incom- preensibilidades por assim dizer programticas",22 as quais ele no mais entende. Agora, essas "incompreensibilidades program- ticas" aparecem na literatura moderna sobretudo por causa da omisso de informaes; em consequncia, os lugares indeter- minados aumentam de tal modo que se toma impossvel elimin- 10s ou complet-los com segurana. Aqui se perde a funo que Ingarden atribura a eles. Sendo assim, o conceito dos lugares in-

    22 Idem, p. 278, nota de p de pgina (acrescentada em 1967).

    Wolfgang Iser

  • determinados comea a assumir um carter hbrido que j era prprio do conceito de concretizao. Enquanto os lugares inde- terminados funcionam como trao caracterstico do objeto inten- cional, sua funo sistemtica; no entanto, como o objeto lite- rrio incompleto, eles podem ser entendidos tambm como con- ceito da recepo, e isso reduz sua validade a uma forma histo- ricamente definida de literatura, a da iluso na arte. Ao caracte- rizarem o objeto intencional, os lugares indeterminados tm a mesma funo tanto na literatura moderna quanto na literatura em geral. Todavia, sendo conceito de recepo, eles so apenas capazes de evidenciar o arruinado valor esttico, se no de des- tru-10. Em todo caso, os lugares indeterminados possuem, tanto em relao ao objeto quanto recepo da obra, parmetros bas- tante diferentes que definem o seu alcance e o seu significado.

    A relevncia limitada dos lugares indeterminados para a re- cepo se revela com clareza quando perguntamos de que maneira Ingarden pensa o seu preenchimento.

    Se por exemplo a narrao fala do destino de um homem bastante idoso, sem entretanto explicitar a cor de seus cabelos, pode-se, na concretizao, atribuir a ele em princpio qualquer cor, mas o mais provvel que ele seja grisalho. Pois se os seus cabelos fossem de cor preta intensa - apesar de sua idade avanada -, isso seria fixado pelo texto como algo digno de nota, algo importante para este homem que seguramente en- velhecera um pouco. Assim, seria mais provvel e tam- bm recomendvel, por motivos artsticos, dar concre- tude a tal homem atribuindo-lhe cabelos grisalhos e no cabelos pretos. E tal modo de concretizar esse detalhe aproxima essa concretizao mais da obra do que con- cretizaes que oferecem outras cores de cabelo.23

    23 Idem, p. 409.

    O Ato da Leitura - Vol. 2

  • O prprio Ingarden chamara esse exemplo de banal; porm, procurando ilustrar como ho de ser preenchidos os lugares in- determinados, os seus dois livros apenas do exemplos banais. Embora esse fato seja em si significante, o que nos interessa aqui a complementao dos lugares indeterminados, concepo essa que pensada de maneira bastante mecnica. Pois vale perguntar se a cor no mencionada dos cabelos do senhor idoso -em outro exemplo so os no mencionados olhos azuis do cnsul Budden- b r ~ o k ~ ~ - aparece de fato na concretizao, de modo que a ima- gem do ancio possa alcanar um grau de determinao, normal- mente reservada percepo visual. Mas isso significaria: a concre- tizao deve produzir o objeto de tal modo que este provoque a iluso de uma percepo. Esse tipo de iluso, contudo, uma instncia paradigmtica na formao das representaes e de mo- do algum idntica a este processo. A imagem do velho senhor pode ser to concreta na representao que seria desnecessrio acres- centar-lhe os cabelos grisalhos. Pois em regra a apresentao de fatos por textos ficcionais apenas de interesse em vista de sua funo, ou seja, a idade avanada do protagonista ganha relevn- cia apenas se houver uma relao com fatos ou situaes diferen- tes. Em face da falta de funo, bastante difcil imaginar-se a idade enquanto idade. Por outro lado, se idade avanada cabe uma determinada funo, a nossa representao aviva essa rela- o no ato da leitura, mas certamente no imaginar a cor dos cabelos. Nesse caso, ou se torna problemtica a pouca qualidade dos exemplos que Ingarden selecionara para ilustrar seu argumen- to, ou ele pensa realmente que preencher os lugares indetermina- dos significa sempre produzir apenas uma iluso de percepo na conscincia do leitor. Mesmo que este fosse o caso, o processo em questo se realiza sob condies outras do que as indicadas por Ingarden, que visam somente complementao ilusria do ob- jeto intencional. questionvel se tal "necessidade de complemen- tar" teria a fora necessria para pr em cena a imaginao do

    24 Cf. idem, p. 49.

    Wolfgang Iser

  • leitor. A respeito desse argumento h uma observao instrutiva de Arnheim:

    Instead of presenting a static world with a cons- tant inventory, the artist shows life as a process of ap- pearing and disappearing. The whole is only partly pre- sent, and so are most objects. One part of a figure may be visible while the rest is hidden in darkness. In the film The Third Man the mysterious protagonist stands unseen in a doorway. Only the tips of his shoes reflect a street light, and a cat discovers the invisible stranger and sniffs at what the audience cannot see. The frigh- tening existence of things that are beyond the reach of our senses and that yet exercise their power upon us is represented by means of darkness. It is often asserted that when objects are partly hidden, "imagination com- pletes" them. Such a statement seems easily acceptable until we try to understand concretely yha t is meant by it and we compare it with what happens in experien- ce. No one is likely to assert that imagination makes him actually see the whole thing. This is not true; if it were, it would destroy the effect the artist tried to a c h i e ~ e . ~ ~

    Se portanto os lugares indeterminados omitem algo, na nie- Ihor das hipteses eles nos estimulam, mas certamente no exi- gem que preparemos as complementaes necessrias em nosso repertrio de conhecimentos. Tais como descritos por Ingardcn, os lugares indeterminados funcionam apenas na publicidade, so- bretudo ali onde o texto e o som interagem; nesse caso, o nome do produto omitido pelo texto, embora seja marcado com pon- tinhos para que o pblico possa complet-lo com facilidade ao

    *' Rudolf Arnheim, Art and Visual Perception, Berkeley e Los Angeles, 1966, p. 318.

    O Ato da Leitura - Vol. 2 . 119

  • ouvir a melodia.26 A observao feita por Arnheim revela que os aspectos escondidos de um objeto percebido no so simplesmen- te completados por nosso conhecimento - no sentido dos cabe- los grisalhos acrescentados na representao do senhor de idade avanada -, mas permanecem um pano de fundo indetermina- do, transformando o que percebido em tenso ou at em signo. Tal jogo de interao no tem lugar no processo esttico da com- plementao, o qual regula para Ingarden o preenchimento dos lugares indeterminados. Em sua viso, eles produzem uma certa sugestividade, mas a funo que desempenham limitada, pois quem responsvel pela atualizao dos elementos potenciais da obra no so eles, mas sim a emoo original. Em vista dessa fun- o limitada, conseqente a argumentao de Ingarden de que no ser necessrio preencher todos os lugares indeterminados; ademais, quando aumentam em demasia, eles comeam a impor limitaes ao valor esttico, se no a destru-10. A idia de que os lugares indeterminados podem instaurar a interao entre os as- pectos esquematizados no aceita por Ingarden porque isso sig- nifica que os aspectos interagentes podem abrir uma multiplici- dade de concretizaes, multiplicidade no mais controlvel pela norma da concordncia polifnica das camadas e em consequn- cia pelas normas da esttica clssica.

    Ingarden considera inaceitvel a idia de a obra se concreti- zar de maneiras diferentes; ele tambm no percebe que a recep- o da obra seria bloqueada caso sua concretizao seguisse ex-

    Tpico para essa estratgia um comercial que fazia propaganda de uma marca de cerveja, sendo nos anos 60 amplamente divulgado em boa parte da costa leste dos Estados Unidos. Uma moa em vestes caractersticas do perodo Tudor apresentava a cerveja com o seguinte dstico:

    Come along with me Have a Genessee.

    Estes versos foram cantados na televiso; mas os inmeros cartazes mostravam apenas a moa junto com as notas da msica. E o texto dizia:

    Come along with me

    Wolfgang Iser

  • clusivamente as normas da esttica clssica de harmonia. O grande mrito de Ingarden ter desenvolvido o conceito da concretiza- o e assim liberado a obra de arte de ser meramente determiiia- da como apresentao. Muito embora no pensasse o conceito como conceito de comunicao, ele chamou a ateno para a es- trutura que condiciona a recepo da obra. Por esse motivo, a con- cretizao a atualizao dos elementos potenciais da obra, mas no a interao de texto e leitor; da que os lugares indeterminatlos s estimulam uma complementao que em ltima instncia no dinmica, processo oposto quele em que o leitor seleciona as perspectivas de apresentao do texto e interliga os aspectos es- quematizados. Ingarden no pensa os lugares indeterminados e a concretizao em termos de comunicao; isso se mostra no fato de que o valor esttico a ser atualizado na concretizao indica uma importante lacuna no sistema proposto por Ingarden. Ele por certo acreditava ser indispensvel aprofundar as pesquisas sobre o valor esttic02~ mas no ficou claro que direo tais pesquisas deviam tomar. improvvel que ele tivesse considerado o valor esttico um princpio vazio que organiza as realidades extratex- tuais de tal maneira que o leitor teria a possibilidade de consti- tuir um mundo no mais determinvel pelos dados do mundo j conhecido.28 Pois essa tarefa comunicativa do valor esttico te- ria obrigado Ingarden a abandonar as normas clssicas da estti- ca de harmonia como critrios para a concretizao adequada.

    27 Cf. a respeito Ingarden, Erlebnis, Kunstwerk und Wert, pp. 27 e 151 passim, assim como, do mesmo autor, Erkennen, p. 423.

    28 Cf. por exemplo Jan Mukarovsky, Kapitel aus der Asthetik, Suhr- kamp, Frankfurt, 1970, pp. 108 ss. e 89 ss.; ademais, p. 81 (o valor esttico enquanto processo); p. 103 (a obra de arte enquanto coleo de valores ex- tra-estticos); cf. tambm Robert Kalivoda, Der Marxismus und die modeme geistige Wirklichkeit, Suhrkamp, Frankfurt, 1970, p. 29.

    O Ato da Leitura - Vol. 2

  • B. EST~MULOS DA ATIVIDADE DE C O N S T I ~ A O

    1. OBSERVAES PRELIMINARES

    Ingarden descreve a obra literria como construo esque- mtica que prefigura o seu objeto. Tal objeto intencional se ciis- tingue tanto de objetos reais, quanto de objetos ideais por sua in- determinao. A definio submete o texto a uma referncia que o classifica de acordo com a presena ou a falta de traos carac- tersticos. Isso significa que o texto literrio deve ser apreendidoa ou at definido por um conjunto de posies dadas e familiares. Porm, como entender um texto que s ganha sentido ao romper- se a sua referenciabilidade?

    Quando Arnold Bennett diz: "You can't put the whole of a character into a bookm,l ele pensa na discrepncia que existe en- tre a vida de algum e a forma necessariamente limitada em que essa vida apresentada. Da possvel chegar a duas concluses bastante diferentes. Poderamos dizer com Ingarden que h uma srie de aspectos esquematizados, cuja tarefa desenvlver o per- sonagem, e que cada qualidade imperfeita de um aspecto su- plementada pela qualidade do aspecto seguinte, de modo que e- merge a iluso de uma apresentao completa. Mas poder-se-ia realar tambm as decises seletivas que devem ser tomadas para que o personagem se apresente de tal maneira que o leitor possa identific-lo. Nesse caso, focalizamos no tanto sua realidade si- mulada, mas o campo de referncias de onde foram selecionados

    Citado segundo Miriam Allott, Novelists on tbe Novel, Columbia Paperback, Nova York, 1966, p. 290.

    O Ato da Leitura - Vol. 2 , L23

  • os elementos do personagem. Para o leitor, contudo, tais decises seletivas no possuem a determinao revelada nos aspectos for- mulados do personagem, ainda que estes recebam sua significncia devido A sua origem no-formulada. A origem, de onde feita a seleo dos aspectos formulados, dificilmente pode ser relacionada a alguma referncia. Em cada caso, a realidade - o que quer que seja - no serve como referncia. Mesmo que o personagem seja concebido com o fito de simular sua realidade, esta no finali- dade em si, mas signo. O emprego da realidade simulada enquanto signo no pode consumir-se na denotao de uma realidade j conhecida. Stanley Cavell observara uma vez, tendo em vista o ci- nema, sem dvida o meio de comunicao mais permeado pelo real: "[ ...I if a person were shown a film of an ordinary whole day in his life, he would go mad".2 Efeitos desse tipo so produzidos por filmes como os de Antonioni e Godard, visto que justamente a equivalncia crescente entre a vida cotidiana e sua apresenta- o que revela os limites de tolerncia do espectador. O fato de que o cinema, interessado em provocar determinados efeitos, lance mo da semelhana com o cotidiano, transformando-a em repe- tio obsessiva, indica que nem sequer aqui a realidade cotidiana funciona como referncia para a apresentao.

    O mesmo argumento se aplica s decises que organizam o texto ficcional. Aqui vlida a observao de Adorno: "A arte de fato o mundo mais uma vez, to igual a este quanto n ~ - i ~ u a l " . ~ O texto ficcional parecido com o mundo na medida em que pro- jeta um mundo que concorre com aquele. Este mundo se distingue das representaes existentes do mundo pelo fato de no poder ser derivado de conceitos dominantes do real. Se medimos a fico e a realidade, tendo por critrio a qualidade do que dado, consta- tamos apenas que a fico no dispe de traos objetivos. A fic-

    Stanley Cavell, Must we Mean what we Say?, Nova York, 1969, p. 119, atribui essa afirmao a Ren Clair.

    Theodor W. Adorno, Asthetische Theorie, Gesammelte Schriften 7, Frankfurt, 1970, p. 499.

    Wolfgang Iser

  • o se revela um modo deficiente e at tida como mentira por rio possuir os critrios do real, embora simule t-los. Se a fico for classificada s mediante critrios que definem o que real, ento seria impossvel tornar a realidade representvel por meio da fic- o. Ela no ganha sua funo pelo cotejo nocivo com a realida- de, mas pela transmisso de uma-realidade que ela mesma organi- za. Essa a razo por que a fico mente e mentira desde que seja definida a partir do ponto de vista da realidade dada; no entanto, ela ilumina a realidade por ela fingida quando definida a partir de sua funo comunicativa. Sendo estrutura de comunicao, ela iio pode ser idntica realidade a que se refere, nem ao repertrio de disposies relativas a seus possveis receptores. Ela virtualiza as diferentes interpretaes da realidade, da qual empresta o reper- trio, bem como o repertrio de normas e valores dos leitores. E justamente por no ser idntica ao mundo, nem ao receptor, a fic- o possui capacidade comunicativa. Essa falta de identidade se manifesta em lugares indeterminados que inicialmente se referem menos ao texto do que relao que emerge na leitura entre texto e leitor. Os graus de indeterminao desse tipo estimulam a comu- nicao, condicionando a "formulao" do texto pelo leitor. Pois a formulao constitui o componente essencial de um sistema, do qual temos apenas conhecimentos parciais. O repertrio do texto tem a sua validade recodificada, ao passo que o fundamento da re- codificao permanece oculto. O que no foi dito constitutivo para o que o texto diz; e o no-dito, ao ser formulado pelo leitor, suscita uma reao s posies manifestas do texto, posies que normalmente apresentam realidades fingidas. Quando a "formu- lao" do no-dito se torna reao do leitor ao mundo apresentado, isso significa que a fico transcende sempre o mundo a que se refere. "A tarefa da arte, mais do que reconhecer o mundo, produzir complementos do mundo, formas autnomas que se acrescentam s existentes, exibindo leis prprias e vida pessoal."4 A idia das

    r

    Umberto Eco, Das offene Kunstwerk, trad. alem de G. Memmert, Frankfurt, 1973, p. 46.

    O Ato da Leitura - Vol. 2

  • formas autnomas significa que aqui surgem posies que no po- dem ser deduzidas do que comunicam. "Neste sentido, a literatu- ra seria ento (mas isso vlido para cada mensagem artstica) a denotao determinada de um objeto indeterminad~."~

    A indeterminao se origina da determinao dos textos fic- cionais de ser comunicao e essa indeterminao - desde que seja "localizvel" no texto -ter certamente uma estrutura, uma vez que ganha sua funo ao se relacionar dialeticamente com as determinaes formuladas no texto. As estruturas bsicas da in- determinao no texto so duas: os lugares vazios e as negaes. Eles so essenciais para a comunicao porque pem em movi- mento e at certo ponto regulam a interao entre texto e leitor.

    2. 0 LUGAR VAZIO COMO CONEXO POTENCIAL

    Embora se paream com os lugares indeterminados cunha- dos por Ingarden, os lugares vazios que resultam da indetermi- nao do texto tm outra funo. Eles designam menos a lacuna na determinao do objeto intencional, ou seja, dos aspectos es- quematizados, do que a possibilidade de a representao do lei- tor ocupar um determinado vazio no sistema do texto. Os luga- res vazios indicam que no h a necessidade de complemento, mas sim a necessidade de combinao. Pois s quando os esquemas do texto so relacionados entre si, o objeto imaginrio comea a se formar; esta operao deve ser realizada pelo leitor e possui nos lugares vazios um importante esfmulo. Mediante eles, assinala- se a possibilidade de ligao de seus segmentos, possibilidade no explicitada pelo texto. Em conseqncia, os lugares vazios incor- poram os "rels do texto", porque articulam as perspectivas de apresentao, sendo a condio para que os segmentos textuais possam ser conectados.. Ao indicarem uma relao no formula- da, os lugares vazios liberam os esquemas e perspectivas para

    5 Idem, p. 31.

    Wolfgang Iser

  • serem interligados pelos atos de representao do leitor; eles "de- saparecem" no momento em que tal relao representada.

    A possibilidade de conexo constitui uma categoria funda- mental da formao do texto em geral; preciso sempre estar atento a ela quando um texto desenvolve um argumento ou quan- do textos no-ficcionais pretendem transmitir uma determinada informao acerca de um objeto dado. Da a necessidade de em- pregar determinados termos que S. J. Schmidt assim descreve:

    O processo da constituio de sentido se deixa descrever como seleo progressiva, dirigida pela inten- o da fala, seleo essa que escolhe entre as possibi- lidades de efeito e de funo de elementos dados, cuja relevncia reconhecida pelos falantes; tal processo a individualizao de funes normativamente ou fa- cultativamente dadas no sistema da langue, classifica- das de acordo com a categoria a que pertencem e for- malmente determinadas por sua posio; a individua- lizao aponta para a adequao relevante para a co- municao, ou seja, para a adequao de transaes lin- gsticas que se amoldam inten0.e situao.6

    A individualizao da inteno da fala em boa medida garantida pelos graus da conectabilidade observada. Os lugares vazios, ao contrrio, interrompem essa conectabilidade, sinalizan- do duas coisas: a ausncia de uma relao e as expectativas quanto ao uso habitual da fala cotidiana, em que as possibilidades de conexo so pragmaticamente reguladas. Da resultam diferentes funes a serem preenchidas pelos lugares vazios em textos fic- rionais. Suspendendo a conectabilidade, eles se tornam critrios, mediante os quais o uso ficcional da fala pode ser distinguido do uso cotidiano: o que desde j dado no uso cotidiano da fala,

    S. J. Schmidt, Bedeutung und Begriff: Zur Fundierung einer spntch- philosophischen Semantik, Braunschweig, 1969, p. 139.

    O Ato da Leitura - Vol. 2 , L27

  • precisa ser primeiro produzido no uso ficcional. Enquanto a ob- servao da conectabilidade um pressuposto bsico da coern- cia de textos, essa coerncia regulada no uso pragmtico da fala por uma srie de condies adicionais que inexistem no uso fic- cional da fala. Entre elas se encontra "o padro de ao no-ver- bal [...I que a matriz das enunciaes"; a relao entre os par- ceiros envolvidos na comunicao e "o sistema de referncias que o falante supe ser comum a todos"; alm disso, a referncia "ao espao comum da percepo", isto , situao comunicativa e ao "espao de jogo das associaes do falante".7 Todos esses pres- supostos necessitam ser primeiro produzidos pelo uso ficcional da fala, conforme vimos na discusso sobre o modelo comunicativo do texto. A ausncia das condies reguladoras se manifesta no em ltima instncia no crescente nmero de lugares vazios em tex- tos ficcionais. Mas estes no indicam uma deficincia, mas apon- tam para a necessidade de combinar os esquemas do texto, pois s assim pode ser construdo um contexto que d coerncia ao texto e sentido coerncia.

    No sentido proposto por Schmidt, o uso da linguagem na comunicao pragmtica almeja a individualizao crescente do ato da fala, restringindo cada vez mais o leque de possveis signi- ficados at por fim elimin-lo por completo; direo oposta to- mam as conexes em textos ficcionais, que so interrompidas pelos lugares vazios. Estes abrem uma multiglicidade de possibilidades, de modo que a combina* d o s esquemas textuais se torna uma deciso seletiva por parte do leitor. Compreenderemos melhor esse processo se enfocarmos o repertrio textual. As normas desprag- matizadas e as aluses literrias perdem seu contexto familiar; sua despragmatizao marcada no texto como lugar vazio que, quan- do muito, sugere possibilidades de conexo. Ao mesmo tempo,

    ' Estes so os fatores que W. Kurnrner arrola numa concepo 1ingi.stico- pragmtica com o intuito de explicar a coerncia do texto. S. J. Schmidt, em Texttheorie, UTB 202, Munique, 1973, p. 158, oferece um breve resumo desses fatores.

    Wolfgang Iser

  • tais interrupes, indicadas pelos lugares vazios, liberam nos ele mentos selecionados do repertrio algo que necessariamente per- manecia oculto, enquanto as normas e aluses se encontravam integrados nos contextos familiares. Tal liberao de aspectos encobertos comea ento a orientar as possibilidades combina- trias do leitor. Mas os lugares vazios no s fazem parte do re- pertrio, mas tambm das estratgias. Sendo construo perspec- tivstica, o texto demanda a inter-relao incessante de suas pers- pectivas. Visto que essas perspectivas formam camadas na cons- truo textual, a leitura deve produzir constantemente a relao entre os diversos segmentos de uma mesma perspectiva e entre os segmentos de diversas perspectivas. Com freqncia, os segmen-

    , . tos se justapem. E e s s a no s usada por Joyce ou pela -

    literatura moderna, cuia narraco segmentada aumenta o nms- ro de lugares vazios a tal ponto que a .falta de conexes comea a -

    - --e---- --.

    desnortear a formao de r e v r f w _.__---- ---

    &da pelo leit?. Basta kmbrar o exemplo de Fielding, em que o confronto imediato de Allworthy e Captain Blifil ope de imediato os segmentos das duas perspectivas dos personagens, induzindo o leitor a imaginar a conectabilidade omitida.* J o fato de as perspectivas textuais se apresentarem ao ponto de vista do leitor enquanto segmentos mostra que a coerncia do texto somente pode ser estabelecida pelas representaes do leitor.

    Os lugares vazios dos textos ficcionais estruturam esse pro- cesso contra o pano de fundo do uso pragmtico da fala; omitin- do suas referncias, eles foram o leitor a se desfazer de parte de suas expectativas habituais. Pois o leitor precisa reformular o texto formulado para poder incorpor-lo. Tal exigncia no aparece no uso pragmtico da fala que domina a interao didica porque os falantes, caso uma conexo no seja explicitada, tm a possi- bilidade de estabelec-la mediante perguntas, no precisando so-

    Cf. a explicao mais detalhada desse exemplo em Ii, A, 3, pp. 122 ss. (no primeiro volume de O ato da leihrra) e IV, B, 3, pp. 150 ss. (neste volume).

    O Ato da Leitura - Vol. 2 129

  • correr-se da imaginao. O texto no-ficcional tampouco reivin- dica essa exigncia por regular grande parte das conexes com o fito de convencer o receptor a aceitar uma determinada inteno a respeito de um fato previamente dado. A desabituao condu- zida pelos lugares vazios de textos ficcionais toma outro caminho. Ao no cumprir uma expectativa bsica do uso pragmtico da fala, ela constitui um pressuposto importante para que a conectabi- lidade dos segmentos textuais interrompida pelos lugares vazios possa ganhar uma equivalncia; esta permite ao leitor descobrir o "arquisema"9 em que se fundam os segmentos no ligados e que, to logo "encontradon, rene os segmentos numa nova unidade de sentido.

    A categoria da conectabilidade no se limita construo de um texto, ela possui tambm relevncia psicolgica e pode ser apreendida pelo conceito da good continuation, tal como formu- lado pela psicologia da percepo.10 Esse conceito indica a liga- o consistente de dados da percepo que resultam numa Gestalt perceptiva e na juno de Gestalten perceptivas. Na psicologia fenomenolgica, o conceito ganhou significao universal. Uma vez que os lugares vazios interrompem as possibilidades de cone- xo de segmentos textuais, esse processo s se completa na ima- ginao do leitor. A discusso da formao de representaes mostrara que os esquemas do texto no s evocam determindos conhecimentos no leitor, como pem disposio determinadas informaes, mediante as quais o objeto intencionado - mas no dado - h de ser representado.

    Os textos ficcionais se caracterizam pelo fato de que seus procedimentos geralmente no organizam uma seqncia previ-

    Cf. acerca desse termo e sua importncia para a semntica de textos Iiterros, Ju. M. Lotman, Die Struktur literarischer Texte, UTB 103, trad. alem de R.-D. Keil, Munique, 1972, pp. 216 ss.

    'O Cf., para uma caracterizao mais detalhada desse conceito, Aron Gurwitsch, 'The Field of Consciousness (2' ed.), Pittsburgh, 1964, pp. 150 ss.

    130 Wolfgang Iser

  • svel de normas do repertrio e de segmentos de perspectivas. At poderamos dizer que os esquemas textuais a servio da forma- o de representaes obedecem bem menos ao princpio da good continuation do que indispensvel para os atos da percepo cotidiana. O princpio de economia vlido para toda percepo - princpio a partir do qual se constri o objeto perceptivo - antes abandonado do que adotado pelos textos ficcionais. Isso se deve ao grau relativamente alto de estruturao do texto que se refere s disposies dadas de possveis receptores na medida em que amide se posiciona contra elas.ll Ao suspenderem as com- binaes dos esquemas, ou seja, ao fazerem com que se choquem as normas selecionadas do repertrio e os segmentos das perspec- tivas, os lugares vazios superam a expectativa a respeito da good continuation. Por essa razo se intensifica a atividade das repre- sentaes, pois agora se trata de superar as conexes aparente- mente no ordenadas dos esquemas, criando na representao uma ligao com uma Gestalt integrada. Assim, a good continuation, normalmente interrompida pelos lugares vazios, faz o leitor in- tensificar sua atividade combinatria; mesmo no cumprindo s vezes a expectativa da "boa continuao", o leitor deve combi- nar normas e segmentos numa sequncia contrafactual, opositria, contrastiva, telescpica ou fragmentada. Quanto maior o niime- ro dos lugares vazios, tanto maior a afluncia das representa~es. A razo disso que, de acordo com Sartre, as representaes no podem'ser sintetizadas numa sequncia; precisamos abandonar as representaes formadas ou sair delas quando as circunstncias nos obrigam a produzir uma nova representao.12 Com efeito, reagimos a uma representao construindo uma nova.

    Neste processo vem luz a relevncia esttica do lugar va- zio. Ao interromper a good continuation, ela desempenha um

    l1 Cf. os procedimentos da formao de coerncia que descrevemos em 111, A, 3, pp. 28 ss. e 46 ss.

    l2 Cf. J. P. Sartre, Das Zmaginare: Phanomenologische Psycholog~e der Einbildungskraft, trad. alem de H. Schoneberg, Reinbek, 1971, pp. 230 ss.

    O Ato da Leitura - Vol. 2

  • papel decisivo para a formao das representaes. Esta ganha sua intensidade pelo fato de que representaes precisam ser forma- das e depois abandonadas. Em conseqncia, o lugar vazio esti- mula a constituio de representaes de primeiro e de segundo grau. As representaes de segundo grau so aquelas mediante as quais reagimos representaes formadas. O processo se torna- r mais claro se considerarmos mais uma vez o exemplo do Tom Jones de Fielding. Quando Allworthy enganado por Captain Blifil, chocam-se os segmentos de duas perspectivas de persona- gens e da surge a idia de que, supostamente, o homem perfeito, por confiar na aparncia, carece de capacidade de juzo. Uma vez que esta representao se constitui, ela precisa ser abandonada quando o heri vende o cavalo que Allworthy lhe tinha dado de presente. Os dois pedagogos se espantam com a bvia vileza de tal ao. Mas Allworthy perdoa ao heri, porque, contrariando a aparncia, descobre o motivo nobre que norteara essa ao. Sendo assim, a representao segundo a qual faltaria pessoa perfeita a capacidade de juzo deve ser abandonada; o que All- worthy no possui uma capacidade indispensvel a qualquer ava- liao, quer dizer, a capacidade de abstrair do prprio compor- tamento. A pessoa boa descobre o que o outro tem de bom, no obstante a falsa aparncia; essa pessoa, no entanto, acredita nas falsas aparncias quando estas simulam bondade. Assim surge uma nova representao que ilumina ao mesmo tempo o tema do ro- mance: o leitor deve adquirir um sense of discemment;13 isso exige a abstrao das prprias atitudes e padres de modo que o leitor possa ganhar a distncia indispensvel compreenso. As repre- sentaes de segundo grau emergem sempre que a expectativa es- timulada pela representao de primeiro grau no se cumpre. Sus-

    l 3 Cf. a respeito John Preston, The Created Self: The Reader's Role in Eighteenth-Century Fiction, Londres, 1970, p. 114; alm disso, a apresenta- o desse argumento em meu livro Der implizite Leser: Kommunikations- fomzen des Romans von Bunyan bis Beckett, UTB 163, Munique, 1972, pp. 81-93.

    Wolfgang Iser

  • pendendo a good continaation, os lugares vazios condicionam s choque das representaes durante a leitura. Assim, os lugares vazios so em princpio capazes de fazer colidirem as representa- es, ao mesmo tempo dificultando a formao em si-das repre- sentaes. Esta a razo por que eles so esteticaqente relevantes. Esse fato se deixa esclarecer de duas maneiras: primeiro, pela anlise crtica de um critrio proeminente dos formalistas russos, o de que a arte protela a percepo, e, segundo, pela anlise das conseqncias que resultam da dificultao do ato perceptivo.

    Os formalistas russos, como se sabe, consideravam a arte um processo que protelaria a percepo. Eles acreditavam que a arte dificultasse a percepo de um objeto e que, por isso, a ocupao com este fosse mais longa. Chklovski escreve:

    A meta da arte transmitir uma sensao quan- to ao objeto, como viso e no como reconhecimento; o procedimento da arte o do "estranhamento" das coisas e o da forma dificultada, um procedimento que aumenta a complexidade e a durao da percepo, uma vez que o processo perceptivo fim em si mesmo para a arte e deve ser prolongado.14

    Mas como toda durao chega a um fim, a percepo pro- telada, tal como produzida pela arte, coincidiria, num ponto pre- visvel, com o seu consumo. J que discutimos anteriormente o conceito de percepo, no se faz necessrio analis-lo mais deta- lhadamente. No o levamos em conta porque ao texto ficcional no so previamente dados objetos a serem transferidos do texto para a percepo do leitor. Mesmo que o conceito de percepo no fosse to rigidamente empregado por Chklovski, ele implica determinadas concepes de objeto que se diferenciam claramente daqueles objetos que a representao constitui. Estes tambm se

    l4 Viktor Chklovski, "Kunst als Verfahrenn, in Texte der russischen Formalsten I , J . Striedter (org.), Munique, 1969, p. 15.

    O Ato da Leitura - Vol. 2

  • individualizam no ato da constituio; mas o momento temporal em que se forma o sentido permite que se repita a individualiza- o inovativa do mesmo objeto imaginrio; assim, o elemento tem- poral assegura a extenso da ocupao que no pode ser alcan- ada pela protelao perceptiva, proposta por Chklovski. Por essa razo, no se poderia dizer que a arte complica a percepo do objeto, mas sim que ela dificulta por seus diferentes graus de com- plexidade a constituio de sentido, tal como realizada na re- presentao do leitor. Assim, ganha significncia a extenso tem- poral da ocupao que caracteriza a arte, tanto mais porque o impedimento da formao de representaes no afeta somente o processo de constituio de sentido, mas tambm o espectro das Gestalten inovativas de sentido, espectro passvel de repetio.

    Ao contrrio do embarao criado percepo, a dificultao da representao por dois motivos um critrio mais til para avaliar o potencial esttico de textos ficcionais. 1. O adiamento da percepo chega em algum momento a seu fim. A dificultao da representao, ao contrrio, permite uma variedade de Ges- talten definitivas de sentido produzidas pelo mesmo texto. 2. A dificultao da percepo nos libera de nossos hbitos perceptivos, no impedindo, entretanto, que tais procedimentos de desabi- tuao se automatizem por sua vez. A dificultao de representa- es faz com que abandonemos representaes formadas, ocupan- do uma posio contrria a nossos prprios produtos; criamos ento representaes que no teramos produzido se os nossos hbitos familiares ainda fossem determinantes. Da segue: a di- ficultao da percepo por assim dizer rompe apenas uma vez com as nossas disposies habituais; a dificultao das represen- taes, ao contrrio, se serve continuamente de nossos hbitos, porque experimentamos graas coliso das representaes um constante distanciamento de nossas prprias produes.

    Aqui se evidencia o principal ponto de vista da dificultao de representaes. Conforme vimos, a representao de primeiro grau cria seu prprio objeto atravs de conhecimentos apresen- tados pelos esquemas do texto ou evocados no leitor. Tais conhe-

    134 Wolfgang Iser

  • cimentos so em si mesmos determinados e da selecionados; ao mesmo tempo, eles funcionam como analogon para o objeto ima- ginrio a ser representado. Tratamos desse processo quando dis- cutimos a formao de representaes. No obstante sua ligao com dados previamente estabelecidos, a representao eni lar- ga medida livre no que diz respeito ao objeto de representio. Essa liberdade resulta necessariamente na degradao do cclnhe- cimento durante a formao das representaes, para a qual Sartre chamara a ateno.lS O conhecimento passvel de modific;ies que s vezes devem ser profundas para que ele seja adequado ao emergente objeto de representao. Conhecemos esses procedi- mentos de nosso comportamento no dia-a-dia, quando estilizamos o conhecimento que serve nossa representao com o fito de fazer uma "imagem" das pessoas, da situao em que elas se encontram e das relaes que mantemos com elas. O caso contrrio siicede em textos ficcionais, onde a coliso de representaes provocada pela suspenso da good continuation faz com que possamos mo- delar o conhecimento apresentado ou evocado numa forma defi- nitiva. A coliso impede a degradao do conhecimento, nn me- dida em que no a deixa chegar a seu fim; o leitor obrigado a distanciar-se de uma representao formada para que possa criar outras. Mas assim ele comea a reagir s representaes que ele mesmo criara. Ele prprio ativa uma estranha interao de suas representaes que governada pelo texto. "Um objeto irreal no pode ter fora pois no age. Produzir uma representao mais ou menos viva significa reagir com mais ou menos nfase ao ato pro- dutor e, ao mesmo tempo, atribuir ao objeto representado a ca- pacidade de aceitar que essas reaes se realizem. ~ 1 6

    Pode ser captado agora o potencial esttico que se origina da dificultao das representaes. A representao protelada no s se ope nossa inclinao habitual de degradar os conhecimen- tos apresentados ou evocados. Alm de nos obrigar a reagir a

    l5 Cf. Sartre, pp. 86, 118, 135 e 179. l6 Idem, p. 225.

    O Ato da Leitura - Vol. 2

  • nossos produtos, ela nos induz a representar o que pelo conheci- mento era encoberto, ou seja, a descobrir no conhecimento o que no podamos ver enquanto dominava a perspectiva habitual que controlava os nossos conhecimentos. A dificultao da represen- tao acaba por separar o leitor de disposies familiares, dan- do-lhe a possibilidade de imaginar o que talvez parecia inima- ginvel em face da determinao que dominava seus padres at esse momento.

    Embora sejamos cativados pelas representaes que elabo- ramos durante a leitura, a coliso delas forma uma conscincia latente, o que nos permite estabelecer uma relao com elas. A princpio, somos agora capazes de observar o que produzimos. Da a possibilidade de observar a distncia a nossa seqncia de representaes, orientadas sob as condies estabelecidas pelo texto, e, assim, de compreend-la. Com efeito, captamos um tex- to ficcional quando entendemos o que as representaes por ele estimuladas querem dizer. Os lugares vazios suspendem a good continuation e acionam a coliso das representaes, o que sig- nifica que a vivacidade de nossa representao aumenta propor- cionalmente ao nmero dos lugares vazios. No h dvida de que desenvolvemos representaes tambm a, onde as conexes ex- plicitadas dos esquemas textuais e a good continuation assim ga- rantida no nos expulsam constantemente das representaes pro- duzidas; nesse caso, no entanto, no chegamos a ocupar uma po- sio que nos permita observar as nossas atitudes, como ocorre ali, onde seqncias de colises provocam novas representaes. Sendo assim, temos num caso a impresso de empobrecimento e, em outro, de crescente vivacidade.

    As conexes suspensas e a ruptura da resultante da good continuation intensificam a formao de representaes; nesse sentido, o lugar vazio no texto se revela condio elementar da comunicao. Essa condio pode ser empregada de diferentes maneiras pelos textos ficcionais, o que se evidencia nos prximos exemplos, que foram deliberadamente escolhidos para mostrar posies extremas. Pensamos no romance de tese, no folhetim e

    136 Wolfgang Iser

  • no tipo de romance representado por Ivy Compton-Burnett. Os trs exemplos consideram, de diversas maneiras, a estrutura co- municativa do lugar vazio por ns descrita e mostram, atravs de tal estrutura, a sua inteno comunicativa. No romance de tese, enquanto paradigma da literatura didtica e propagandstica - por exemplo, Loss and Gain, de Cardeal Newman -, a conec- tabilidade dos esquemas textuais em ampla medida regulada. Desse modo diminui o nmero dos lugares vazios e, em conse- qii'ncia, perde intensidade tambm a formao de representaes do leitor estimulada por essas lacunas. O que esse tipo de romance pretende transmitir em boa parte previamente dado a essa rrans- misso, de modo que praticamente no precisa ser constitudo enquanto objeto imaginrio. No caso do romance de Newman, o objeto imaginrio a necessidade da converso religio cat- lica em face da vida problemtica no mundo moderno. Se no ro- mance de tese o tema algo previamente dado, trata-se apenas de achar o caminho adequado para transmiti-lo. Portanto, nesse tipo de romance, pode-se com freqncia separar inequivocamente a forma do contedo. Dada a existncia previamente decidida do contedo, a forma das estratgias precisa ser sintonizada com as expectativas e hbitos do pblico a que a obra em questo se di- rige; isso significa que a comunicao do contedo deve ser inin- terrupta, sem dar margem a irritaes e surpresas. No tocante formao do texto, isso significa que preciso observar as cone- xes dos esquemas textuais para que a good continuation seja garantida e se estenda at o horizonte de experincias do leitor intencionado. As tcnicas a servio de tal propsito propiciam intuies instrutivas para uma histria da percepo, dos senti- mentos, assim como para a histria do repertrio especfico de um grupo e das disposies do pblico intencionado. De Newman at os romances do realismo socialista, as diferentes fases dessa his- tria podem ser re1ati;amente bem identificadas.

    Em grande parte, o romance de tese separa seu contedo da atividade constitutiva do leitor, sendo que suas estratgias libe- ram pouco espao de jogo para a participao do leitor. Mas o

    O Ato da Leitura - Vol. 2

  • espao concedido no se refere a uma determinada articulao do sentido e sim relao com o leitor. As tcnicas precisam ento apenas dirigir o leitor para a posio certa, de modo que ele pos- sa de fato adotar a atitude intencionada quanto ao tema. Esse grau de participao indispensvel tanto para o romance de tese, quanto para outros gneros literrios parecidos, uma vez que s atravs da participao do leitor o contedo previamente dado pode tornar-se real. A participao, contudo, deve ser sempre con- trolada e o espao de jogo minimizado. O romance de tese ante- cipa boa parte do repertrio de normas e valores peculiares ao pblico visado, adaptando-se a seus leitores para adapt-los a suas intenes; ele controla as representaes resultantes da participa- o reduzindo os lugares vazios mera deciso s idno. No ro- mance de tese, a perspectiva do heri geralmente organizada de tal forma que sua ligao s outras perspectivas, ligao a ser re- presentada pelo leitor, acaba sendo apenas a alternativa entre aceitao e negao. Se os lugares vazios, as conexes omitidas dos segmentos de perspectivas, s admitem essas duas possibili- dades, a participao do leitor se limita a adotar urna relao com o objeto dado. Por isso, as perspectivas de apresentao no ro- mance de tese se estiram e formam grandes blocos; desse modo, o ponto de vista salta bem menos entre as perspectivas do que em outros tipos de romance. Durante a leitura, encontramo-nos ge- ralmente na perspectiva do heri, onde o repertrio antecipa- do do pblico intencionado estabelece as conexes. As demais perspectivas de apresentao funcionam como contraste, provo- cando a aceitao ou negao dos valores representados pela pers- pectiva do heri. Essa deciso reservada ao leitor, apesar de a formao de representaes ser controlada; a inteno de tal tipo de texto s se deixa mesmo cumprir se for produzida como re- presentao pelo leitor. Se a deciso s idno, tal como indicada pelo lugar vazio, fosse eliminada pelo texto, a atividade da for- mao de representaes por parte do leitor no mais visaria a tomar essa deciso; antes, o leitor se confrontaria com o fato de o texto ter pre.viamente realizado todas as decises. Alis, a pu-

    Wolfgang Iser

  • blicidade e a propaganda bem feita trabalham com o tipo de lu- gar vazio que deixa a deciso simlno em aberto, embora exera controle sobre ela, e s nesse caso o receptor poder produzir o resultado desejado.

    Como os lugares vazios suspendem a conectabilidade, esti- .. -- . . -_

    mulando a atividade de formao de representaesdleiior,'no - - -

    -- - - -.. ...

    romance de tese, deverao ser estritamente contr1ados:'mesma estrutura empregada para fins comerciais: caso exemplar o fo- lhetim. ~hblicando-se hoje em dia folhetins em jornais, esse tipo de publicao depende em boa medida do efeito publicitrio: preciso atrair um pblico para o romance e o respectivo jornal. No sculo XIX, tal inteno estava no centro do interesse. Os grandes romancistas do realismo cortejavam os leitores por tal forma de publicao. Charles Dickens at escrevia muitos de seus romances de uma semana para outra e nesse meio tempo procura- va ter o mximo possvel de informaes sobre a opinio de seus leitores a respeito da continuao da trama. O pblico leitor do sculo XIX vivia uma experincia instrutiva para a nossa discus- so: considerava muitas vezes o romance lido em partes bem me- lhor do que o mesmo texto lido em forma de livro.17 ~ a l experin- cia passvel de ser repetida, basta fazer-se o trabalho de ler algum romance publicado nos jornais. Frequentemente, esses romances beiram a trivialidade em seu af de atrair um pblico maior, cujo repertrio de valores e normas, em vista do sucesso comercial, precisa ser respeitado. Se lemos esses romances por captulos, eles at no deixam de ser interessantes; porm, lendo-os como livro, muitas vezes difcil levar a leitura at o final. O que causa tal diferena a tcnica de corte usada pelo folhetim. Ele produz geralmente uma interrupo quando uma tenso foi criada, ten- so que requer solues, ou quando o leitor quer conhecer o de- senlace do que acaba de ler. Cortar ou adiar o suspense condi-

    l7 Para detalhes e referncias relevantes cf. meu livro Die Appellstruktur der Texte: Unbestimmtheit als Wirkungsbedingclng literarkcher Prosa (4' ed.), Konstanz, 1974, pp. 16 ss. e 37 ss.

    O Ato da Leitura - Vol. 2

  • o elementar da interrupo. O efeito causado pela tenso nos faz imaginar a informao por ora no dada sobre a continua- o da trama. Ao levantar perguntas como "o que acontecer?", intensificamos 'nossa participao nos acontecimentos. Dickens era mestre nessa tcnica, e seus leitores se tornavam "co-autores".

    Poderamos arrolar todo um catlogo dessas tcnicas de wr- te, que em grande parte so bem mais refinadas do que o efeito bastante simples, se bem que altamente eficiente, do suspense. Outra forma amide praticada para induzir o leitor a uma ativi- dade mais intensa de formao de representaes consiste em in- troduzir novos personagens mediante sucessivos cortes ou come- ar novas tramas, de modo que o leitor se encontra diante do desafio de formular relaes entre a trama at ento conhecida e as novas e imprevistas situaes. Da resulta todo um complexo tecido de possveis ligaes que incentivam o leitor a que ele mesmo produza as conexes ainda no totalmente formuladas. Uma vez que determinadas informaes so temporariamente retidas, au- menta at a sugestividade de detalhes, mobilizando a imaginao de possveis solues. Tais lugares vazios obrigam o leitor a dar vida prpria histria narrada; ele comea a conviver com os personagens e a participar dos acontecimentos que os afetam. Pois a falta de informaes sobre a continuao da histria relaciona o leitor aos personagens, sendo que o futuro destes lhe aparece ainda incerto, o que fundamenta um horizonte vazio "em comum" e assim a possibilidade da inter-relao. O folhetim impe ao lei- tor uma determinada forma de leitura; as interrupes das cone- xes so melhor calculadas do que aquelas que, durante a leitura de um livro, so produzidas por motivos muitas vezes externos. No folhetim, elas tm uma inteno estratgica. Os intervalos im- postos ao leitor o foram a imaginar algo mais do que seria o caso numa leitura contnua do mesmo texto. Se ento o texto parce- lado causa outra impresso que na forma de livro, sobretudo porque ele introduz um nmero adicional de lugares vazios, ou seja, porque acentua, pela pausa at o prximo captulo, um lu- gar vazio no texto. Mas isso no quer dizer que sua qualidade seja

    140 Wolfgang Iser

  • melhor. Tal tipo de texto simplesmente leva a cabo outra forma de atualizao em que o leitor, em face do maior nmero de lu- gares vazios, alimenta sua formao de representaes.

    S. Krakauer faz observao similar a respeito de uma expe- rincia no cinema. A propaganda feita para anunciar o prximo filme aviva com seus cortes e suas montagens de tal modo a fan- tasia dos espectadores que estes querem ver justamente este fil- me, que, no entanto, raras vezes ser capaz de responder por com- pleto s expectativas despertadas.18 Assim, a propaganda ante- cedente exibio do filme e o folhetim recorrem a uma estrutu- ra de recepo da imaginao que de tal modo acionada pelos lugares vazios enquanto forma de conexes suspensas que os efei- tos assim provocados podem ser empregados para fins comerciais.

    Nosso terceiro exemplo de natureza bastante diferente. Nos romances de Ivy Compton-Burnett, os lugares vazios no so li- mitados como no romance de tese, nem explorados comercialmen-

    ao te- te como o fazia o folhetim; ao contrrio, eles prprios s" matizados. Todos os romances de Ivy Compton-Burnett consis- tem numa situao de dilogo quase ininterrupta entre os perso- nagens.l Todavia, esse dilogo dribla todas as nossas expectati- vas em relao a um dilogo porque aqui, estranhamente, os pres- supostos principais para uma interao didica so cumpridos e, talvez por isso, expostos. Os personagens que dialogam entre si pertencem ao mesmo ambiente, e isso significa que sua coinuni- cao se funda no mesmo cdigo. Alm disso, o dilogo realiza mais uma condio estabelecida em relao ao ato da fala: os personagens se fazem perguntas um ao outro com o fito de ter certeza de que realmente entendem o que o outro quer dizer. As precondies no poderiam ser melhor cumpridas para garantir, no sentido das respectivas teorias de comunicao, o xito c10 ato

    18 Siegfried Krakauer, Theorie des Films, trad. alem de Friedrich Walter e Ruth Zellschan, Frankfurt, 1964, pp. 237 ss.

    l9 Para a discusso detalhada dessa tcnica cf. Iser, Der implizierte Leser, pp. 359-90.

    O Ato da Leitura - Vol. 2

  • da fala. Mesmo assim, a comunicao fracassa constantemente e at produz catstrofes. Os atos da fala do dilogo no ajudam a entender fatos e metas, mas trazem luz incessantemente as im- plicaes motivadas pelas enunciaes. Neste dilogo, o ato prag- mtico da fala substitudo pela imponderabilidade em que se

    -

    originam as aes da fala. Uma vez que cada enunciao inseri- da em precondies complexas, o dilogo visa a revelar a diver- sidade de implicaes. A rplica tenta ocupar o que permaneceu vazio na enunciao do outro, abrindo por sua vez lugares vazios a serem preenchidos pelo parceiro do dilogo, e assim sucessiva- mente. Da a infinitude do dilogo.

    Portanto, o dilogo , como escreveu Hilary Corke, "not a transcript of what he or she would have said in 'real life', but rather of what would have been said plus what would have been implied but not spok