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DanteCultural Agosto 2007 Hélio Mattar O presidente do Instituto Akatu fala sobre consumo consciente Hélio Mattar O presidente do Instituto Akatu fala sobre consumo consciente Cinecittà A “Hollywood italiana”, a 10 km de Roma Cinecittà A “Hollywood italiana”, a 10 km de Roma Queijos Mais de 300 tipos nasceram na Itália Queijos Mais de 300 tipos nasceram na Itália Calábria: Turismo e gastronomia no sul da Itália Calábria: Turismo e gastronomia no sul da Itália Orações e fartura Fé, música e muita comida nas festas italianas do Brás, da Mooca e do Bixiga Fé, música e muita comida nas festas italianas do Brás, da Mooca e do Bixiga Orações e fartura ISSN 1980-637X

ISSN 1980-637X Orações e Fé, música e muita italianas … e Liberdade O Dante recebeu, no dia 26 de abril, o Gruppo Teatro Angrogna, que veio de Piemonte, na Itália, para se apresentar

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DanteCulturalAgosto 2007

Hélio MattarO presidente do Instituto Akatu fala sobre consumo consciente

Hélio MattarO presidente do Instituto Akatu fala sobre consumo consciente

CinecittàA “Hollywood italiana”, a 10 km de Roma

CinecittàA “Hollywood italiana”, a 10 km de Roma

QueijosMais de 300 tipos nasceram na ItáliaQueijosMais de 300 tipos nasceram na Itália

Calábria:Turismo e gastronomia no sul da Itália Calábria:Turismo e gastronomia no sul da Itália

Orações e

farturaFé, música e muita comida nas festas italianas do Brás, da Mooca e do Bixiga

Fé, música e muita comida nas festas italianas do Brás, da Mooca e do Bixiga

Orações e

fartura

ISSN 1980-637X

Bonito por fora. Moderno por dentro. Excelente no ensino.

Colégio Dante Alighieri: em uma só escola, o que há de melhor na educação.

Educação Infantil (Maternal e Jardim)

Ensino Fundamental de 9 anos

Ensino Médio

Períodos: Manhã e Tarde

Imagens:

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Ligue: (11) 3179-4400www.colegiodante.com.br

DanteCultural

,

DanteCulturals

DanteCultural

Caros leitores: Renovar, sem abrir mão de seus princípios e de seus ideais. É assim com o Colégio Dante Alighieri, desde 1911. Assim também é com esta DanteCultural, que, prestes a completar dois anos de idade, ganha não apenas uma nova roupagem - por meio da renovação de seu projeto gráfico, que busca passar com leveza a nossa seriedade na abordagem de temas relacionados à cultura ítalo-brasileira -, mas também uma nova editora, a jornalista e ex-aluna Marcella Chartier.

Esta edição da DanteCultural traz, em sua matéria de capa, um assunto bastante caro tanto aos brasileiros quanto aos italianos: as festas religiosas, em que a forte devoção aos santos vem acompanhada da alegria inata desses dois povos, em comemorações com muita fé, mas também com muita música, dança e comida.

E por falar em comida, não deixe de ler a saborosa matéria sobre os mais diversos tipos de queijo italiano feitos no Brasil, desde o caprino romano, de sabor acentuado, até a levíssima mozarela de búfala.

A amizade entre um compositor italiano e alguns músicos brasileiros, todos famosos, está presente na história de Sergio Endrigo, que você pode conferir na revista. Este cantor e compositor deu a Roberto Carlos a chance de ser o primeiro intérprete estrangeiro a vencer o prestigioso Festival de San Remo. Músicos também são o tema do Ensaio Fotográfico desta edição, com artistas tocando, cantando e dançando em cantinas e em celebrações da comunidade italiana de São Paulo.

Imprescindível ler a entrevista feita com o nosso ex-aluno Hélio Mattar. Empresário com uma carreira de sucessos, Mattar é um sonhador com os pés no chão, que preside, desde sua fundação, em 2001, o Instituto Akatu de Consumo Consciente. Na sua luta, busca que os habitantes do planeta deixem como herança uma Terra viável para as futuras gerações.

Convido os leitores a darem um passeio pela sofrida, porém fascinante, Calábria. Na seção de Turismo, terão a oportunidade de conhecer sua história de invasões estrangeiras, de terremotos avassaladores e de um povo forte e resistente. A aromática e saborosa culinária da região é, aliás, preciosamente descrita pela chef Silvia Percussi na seção Gastronomia.

Já que iniciamos esta carta com novidades, vamos encerrar com mais algumas. Temos uma nova seção, Perfil, que neste número nos traz a bela história de amor do casal Liliana e Sergio Pugno, imigrantes italianos que se conheceram em um navio em 1949 e permanecem apaixonados até hoje. Também gostaria de contar que a DanteCultural passa a ser trimestral, ganhando, portanto, mais uma edição por ano. Assim, até novembro!

Boa leitura a todos,

Marco FormicolaPresidente do Colégio Dante Alighieri

Carta ao leitor

3

4

Notas 6

Entrevista 8

Capa 16

Terraço Itália 24

Queijos italianos 27

Literatura 32

Música 36

Cinema 38

Perfil 40

Espaço aberto 42

Ensaio fotográfico 44

Gastronomia 48

Turismo 52

Artigo/Educação 58

Memória 59

Festa da República Italiana, Grupo Angrogna e ex-aluno premiado em Cannes

Hélio Mattar fala sobre a importância do consumo consciente

São Vito, San Gennaro e Nossa Senhora Achiropita: três santos festejados

A história de um dos restaurantes mais charmosos de São Paulo

Os tipos, as origens e os modos de produção

Um homem à espera da morte narra sua vida em Tristano Morre

O romântico Sergio Endrigo e seus encontros com o Brasil

Cinecittà, a "Hollywood italiana", completa 70 anos

Liliana e Sergio se conheceram num navio em 1949 e continuam apaixonados

"As mãos tremem num medo e isso a faz gostar do desenho das letras no papel"

O som dos teclados, violões e acordeons das cantinas e festas italianas

Sabores picantes dominam a cozinha calabresa

As terras ásperas da Calábria, no sul da Itália

Adolescentes acomodados não buscam mais grandes desafios

Álbum aberto

4Capa: Thatiane Faria e Arquivo pessoal padre Pasquale Priolo

Arquivo pessoal Liliana Pugno Tadeu Brunelli Site oficial www.endrigo.it Thatiane Faria Divulgação Luiza Fagá C1 C2 C3 C4 C5 C6

Fernando Homem de Montes - Publisher (jornalista responsável - MTb: 34.598)

Marcella Chartier - Editora

Revisão: Luiz Eduardo Vicentin

Projeto Gráfico: Nelson Doy Jr.

Diagramação e arte: Simone Alves Machado e Joyce Buitoni (assistente)

Ilustração: Milton Costa

Comercial: Vinicius Hijano

Colaboradores: Ana Luiza Daltro, Beatriz Scavazzini, Carolina Troiano, Edoardo Coen, Guilherme Conte, José Henrique Lopes, Luisa Destri, Luiza Fagá, Rafael Capuani, Silvana Leporace, Silvia Percussi, Thatiane Faria

A Revista DanteCultural (ISSN 1980-637X)

é uma publicação do Colégio Dante Alighieri

Cultural

Marco Formicola - Presidente

José de Oliveira Messina - Vice-presidente

Renato Bernardo Fontana - Diretor Secretário

José Piovaccari - 2º Diretor Secretário

Milena Montini Martins de Siqueira - Diretora Financeira

Salvador Pastore Neto - 2º Diretor Financeiro

Carlo Cirenza - Diretor Adjunto

Ítalo Américo Lorenzi - Diretor Adjunto

José Luiz Farina - Diretor Adjunto

José Perotti - Diretor Adjunto

Lauro Spaggiari - Diretor Geral Pedagógico

DanteCulturalDanteCultural

CartasMande suas sugestões e críticas para [email protected]

Tiragem: 6 mil exemplares

Colégio Dante AlighieriAlameda Jaú, 1061. São Paulo-SPFone: (011) 3179-4400www.colegiodante.com.br

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Montanhas e Liberdade

O Dante recebeu, no dia 26 de abril, o Gruppo Teatro Angrogna, que veio de Piemonte, na Itália, para se apresentar. A peça musical Montanhas e Liberdade, com 18 pessoas de diferentes profissões em cena, conta a história da emigração dos italianos. Com o auxílio da mímica e a interpretação de canções em italiano, occitano,

Notas

piemontês, francês, espanhol e português, além da releitura particular de poesias brasileiras, o espetáculo, apresentado no auditório Miro Noschese, mostrou não só a tristeza e as dificuldades enfrentadas pelos italianos, mas também a alegria peculiar desse povo.

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Celebração da República Italiana no Dante

A Festa da República Italiana, promovida pelo consulado da Itália para celebrar a instalação da república e o fim da monarquia em 2 de junho de 1946, aconteceu, neste ano, no pátio central do Dante. O espaço foi escolhido pelo cônsul italiano Marco Marsilli. “Minha vontade é sempre organizar a data em grandes instituições de origem italiana que, mesmo que tenham se tornado brasileiras, ainda tenham ligações muito estreitas com a Itália. Por isso escolhi o Dante”, afirma Marsilli. Cerca de 400 pessoas compareceram ao evento, entre autoridades do Brasil e da Itália. Ao final do dia, um quarteto italiano de jazz, trazido pelo Instituto Italiano de Cultura, se apresentou no auditório do Colégio.

Rafael Capuani

Nelson Wollmer

Prata da casa

Nove prêmios e participações em mais de vinte festivais internacionais e nacionais. O ex-aluno Gregório Graziosi, formado no Ensino Médio em 2001, ainda não terminou o curso de Cinema na Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), mas já é reconhecido pela boa qualidade de seu trabalho, tanto no Brasil quanto no exterior. Seu primeiro curta-metragem, Saba, foi exibido na última edição do Festival de Cannes, na França, além de ter recebido prêmios como o de melhor documentário no Festival de Curtas do Rio, e no FilmGate International Students Film Festival, nos Estados Unidos. Além disso, foi com ele que o cineasta tornou-se o diretor mais jovem a exibir um filme no Milano Film Festival, na Itália. Gregório fez o roteiro, a produção e a direção do filme em parceria com Thereza Menezes, sua colega de faculdade. Trata-se da história de um casal de centenários, bisavós de Gregório, e leva esse nome porque a palavra "saba" (que significa, em japonês, corrosão) remete à velhice. "Sentia que os poros deles exalavam memória e vivência, uma experiência que eu não tinha", explica, referindo-se à maneira como nasceu a idéia. O interesse pelo assunto surgiu ainda nos tempos

de colégio. "Os primeiros registros audiovisuais que realizei com meus bisavós aconteceram há mais de dez anos para disciplinas da Escola", conta. "Podemos dizer que o Saba foi germinado no Dante".Seu último curta-metragem, Saltos, foi produzido depois de o roteiro ter sido selecionado no Festival de Curtas da Cultura Inglesa. No filme, que está em processo de pós-produção, um atleta de saltos ornamentais começa a perder a audição. Agora, Gregório está preparando mais um filme, Mira, sobre um jovem fotógrafo que procura personagens do cineasta Michelangelo Antonioni nos projetos do arquiteto Oscar Niemeyer. O projeto será também seu trabalho de conclusão de curso da faculdade, ainda em 2007.

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Nathalie Colas

EstacionamentoCom Manobrista

Entrevista

8

Divulgação

Por um planeta

sustentávelHélio Mattar, presidente do Instituto Akatu de Consumo Consciente, alerta para o desperdício e propõe uma reflexão

Aquecimento global, desenvolvimento sustentável, responsabilidade social: quem

desconhece os significados desses termos, ao menos já os ouviu ou leu em algum lugar. A humanidade consome, hoje, 25% a mais de recursos naturais do que a Terra pode renovar. Água, energia, ar puro e terras agricultáveis estão se esgotando e exigem de nós mais atenção e "comportamentos de economia", como define o Instituto Akatu de Consumo Consciente. Akatu vem do tupi e significa "semente boa" e "mundo melhor", abrigando a idéia de que é necessária a dedicação individual para que exista a chance de o planeta ser salvo. O Movimento Cuide, uma das campanhas promovidas pelo instituto, prega: "Consuma sem consumir o mundo em que você vive".Presidente do Akatu desde a sua fundação, em 2001, Hélio Mattar garante que é um consumidor consciente. E ressalta a importância de se pensar no consumo consciente como parte de um ciclo de interdependência. "O impacto do que você consome vai chegar em você. Pode levar mais ou menos tempo, pode vir mais forte, mais fraco, mas vai chegar". Ex-aluno do Dante formado em 1964, Hélio foi Secretário de Desenvolvimento da Produção do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior do governo Fernando Henrique Cardoso, Diretor Presidente da Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança e do Adolescente de 2000 a 2003, e um dos fundadores do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social. Em seu escritório com vista para o desperdício diário da Avenida Paulista, divisórias de madeira compensada e um quadro com a bandeira do Brasil e os dizeres "Ordem e Progresso" substituídos por "Lar, Doce Lar", ele concedeu esta entrevista à Dante Cultural.

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Quais são suas lembranças do Dante? Fui aluno do Dante do jardim da infância até o 3º ano científico. Uma das coisas mais acolhedoras para mim é olhar a porta de entrada do Colégio. Sempre que passo em frente, me lembro emocionadamente do Seu Marino, que tocava o sino. Lembro também do professor Gianfederico Porta, que dizia que eu era a prata a casa... E de quando meu professor de português me selecionou para representar o Colégio nas Sabatinas Maizena. Era um programa de auditório da TV Tupi que tinha alunos de várias escolas disputando uma sabatina. Fiquei em segundo lugar.Grande parte do meu conhecimento, da minha formação lógica, moral e ética, e da minha disciplina na ação, na visão do mundo que tenho hoje, veio do Dante Alighieri.

Conte um pouco sobre sua trajetória profissional. Como começou a trabalhar com a disseminação do consumo consciente?

A minha história profissional se iniciou como professor particular. Quando eu tinha 11 anos, era muito bom aluno. Como passava por dificuldades financeiras em casa, procurei Dona Celina, uma secretária da diretoria, e disse: "Eu sou muito bom aluno, acho que saberia dar aula. Você não tem ninguém para indicar para eu começar?". E tive meu primeiro aluno pelas mãos dela. O número de interessados foi aumentando, até que, aos 15 anos, eu não tirava férias. Trabalhava das oito da manhã às 11 da noite todos os dias. Desenvolvi uma capacidade didática que me acompanhou pela vida. Depois de me formar em Engenharia de Produção na USP, onde continuei dando aulas particulares, fiz mestrado e doutorado na Universidade de Stanford, na área de engenharia industrial. Fui professor da área de políticas de energia no ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica) e de organização e economia industrial. Comecei a trabalhar em empresas

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nacionais e multinacionais, e nesses últimos dez anos me liguei ao MBA executivo da USP e ao MBA em Gestão de Empreendedorismo Social, em que sou palestrante na área de responsabilidade social empresarial e consumo consciente. Mas já no IPT (Instituto de Pesquisas Tecnológicas) da USP, montei a área de economia industrial. Coordenei projetos grandes que anteviam o que eu viria a fazer quase 30 anos depois: me envolvi em análises de impactos sociais, econômicos, ecológicos e culturais das mudanças tecnológicas. Fiz um estudo sobre a economia do álcool em que procurava entender como a economia de biomassa se desenvolvia. Na época, não havia um ambiente econômico nem as produções mundiais significativas que hoje colocam esse programa na linha de frente brasileira. Mas eu já dizia que, ou o álcool ia dominar a economia, ou não teria nenhuma projeção. Não existiria meio termo. E, de fato, tentou-se ficar no meio termo durante anos, até que acabou o programa do álcool. Agora ele voltou com força na direção dos carros flex e vai efetivamente dominar ao menos o transporte individual. Ajudei também na fundação do PNBE (Pensamento Nacional das Bases Empresariais), que era um grupo de empresários progressistas que procuravam estabelecer formas de comunicação e diálogos mais intensas entre o capital e o trabalho. Fui coordenador geral desse grupo durante um ano e meio, depois fiz parte do conselho durante algum tempo.

Você trabalhou no governo Fernando Henrique Cardoso. Como chegou lá? Depois de passar anos em empresas, com uma posição econômica confortável, resolvi que tinha chegado o momento de devolver um pouco do privilégio que eu tinha recebido quando estudei em instituições públicas. Fui para o governo Fernando Henrique e fiquei dois anos como

Secretário de Desenvolvimento da Produção no Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Foi um período riquíssimo em que eu pude entender como funcionava o governo, mas também tive frustrações, porque a velocidade com que ocorrem as coisas é muito lenta.

E como surgiu o Akatu? Fui um dos co-fundadores do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social, e daí veio a ligação com o Akatu. Dentro do Ethos, foi ficando claro que poucos consumidores têm uma visão do que é a responsabilidade social e ambiental das empresas. Assim, esse fator não seria valorizado nos atos de compra e as empresas não melhorariam esse aspecto em sua gestão. Iriam se manter no tradicional, que é a gestão dos produtos, do marketing e da produção. Lancei então o Akatu, buscando fazer com que o consumidor valorizasse a responsabilidade social e tivesse informação do que as empresas estavam fazendo, de maneira a poder fazer suas escolhas não apenas com base em preço, qualidade e inovação dos produtos, mas também com base na responsabilidade social. O ato de consumo envolve por que, como, o que e de quem comprar, como usar e como descartar produtos e serviços. São seis fases de consumo, em que o consumidor precisa desenvolver sua consciência em termos de impacto que ele vai ter sobre a sociedade e sobre o meio ambiente. O grande problema da humanidade hoje é o aquecimento global, e as mudanças climáticas têm relação direta com a decisão do que comprar. Se as pessoas comprassem apenas o que realmente precisam, sem fazer do consumo um ato de identidade, mas apenas um instrumento de bem-estar, seria necessário produzir menos, usar menos recursos naturais, e com isso todos nós contribuiríamos para combater o aquecimento global. No Akatu, passamos a trabalhar, então, desenvolvendo seis eixos de atuação: o eixo de publicidade - temos uma agência que cria as campanhas; um eixo de atuação de imprensa - meios de comunicação que divulgam o consumo consciente; um eixo comunitário - em que capacitamos lideranças de consumo consciente para que sejam multiplicadores dessa causa; um eixo pedagógico - em que professores de instituições educacionais ensinam seus alunos sobre o assunto; um eixo de empresas disciplinadoras - que ajudam a divulgar o consumo consciente com os funcionários, clientes, fornecedores e consumidores; e o nosso site. Hoje temos, no Akatu, 22 pessoas e 80 parceiros empresariais.

Nos tempos de Dante, quando o

ex-professor Gianfederico Porta o

chamava de "prata da casa"

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Hélio era bom aluno e começou a dar aulas particulares aos 11 anos, para colegas da Escola

Faço a você a pergunta sobre aquecimento global que já esteve no "Fórum da Semana" do site do instituto: "A divulgação do tema na mídia é suficiente para causar a mobilização da sociedade contra o fenômeno?". A divulgação que a mídia vem fazendo do aquecimento global é extremamente importante, porque a primeira etapa para que as pessoas mudem de comportamento é a sensibilização para o problema. Então a mídia tem um papel extraordinário em mostrar quais as conseqüências da mudança climática, da elevação do nível dos mares, da mudança da fauna e da flora marinhas.O movimento ambientalista conseguiu sensibilizar a população. As pessoas sabem que os problemas ambientais existem, que há um problema de desmatamento amazônico, por exemplo. No entanto, quando você pergunta o que elas estão fazendo para mudar a situação, elas se retraem e dizem: "Mas é muito longe, não moro lá, não corto madeira...". Elas não percebem que vários de seus hábitos de consumo se relacionam com isso. Com o aquecimento global é a mesma coisa. E uma das coisas que o Akatu faz é mostrar o impacto do consumo. Nós consumimos água, energia, roupa e comida todos os dias. E estamos fazendo isso em média, no Brasil, por 71 anos, que é a expectativa de vida que temos hoje. Há 50 anos,

a expectativa era de 49 anos. As pessoas vivem 22 anos a mais, consumindo muito mais e, portanto, qualquer um de nós, em seus hábitos de consumo, vai causar impacto. Em relação ao aquecimento global, fizemos um cálculo: se uma única pessoa rodar com seu carro 20 km por dia, para que a emissão de gás carbônico desse veículo seja compensada pela absorção de carbono do crescimento de árvores, seriam necessários 35 campos de futebol cheios de árvores crescendo continuamente (não pode ser uma floresta, porque as plantas absorvem carbono quando crescem). A floresta amazônica é importantíssima no equilíbrio da umidade. O ideal seria um manejo sustentável dessa floresta cortando árvores seletivamente para que outras pudessem crescer em seu lugar. Isso seria bom também para permitir o uso da madeira de lei, que é maravilhosa, sem prejuízo da floresta.

Como você pratica o consumo consciente na sua vida pessoal?Eu penso antes de consumir. Há muitos anos não compro roupa, ganho de presente. Tenho mais roupas do que seria suficiente para três ou quatro pessoas, como, aliás, a classe média alta e mesmo a classe média no Brasil têm. Mais sapatos, mais TVs, mais sistemas de som, mais de tudo. Casa maior do que a gente precisa,

Arquivo Dante

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A peça publicitária “Favela”, do

Movimento Cuide

mais carros do que a gente precisa. Temos no nosso site o teste do consumo consciente, baseado em estatísticas que fizemos: de acordo com ele, existem 13 comportamentos que definem quem é um consumidor consciente. Fizemos uma classificação no Akatu: dos 13 comportamentos, para ser engajado você tem que cumprir entre oito e dez. E para ser consciente, entre 11 e 13. Segundo a pesquisa mais recente, de 2006, no Brasil não existe nenhum consumidor que cumpra os 13 comportamentos. Até pouco tempo atrás, eu era apenas engajado. Entre as atitudes que pratico, estão fechar a água quando tomo banho, quando escovo os dentes, quando, no fim de semana, lavo a louça. Desligar a lâmpada quando saio dos ambientes, desligar aparelhos eletrônicos quando não estou usando (desligo inclusive o controle remoto, que consome 25% da energia do aparelho quando ele está ligado). Eu uso o outro lado da folha de papel, compro produtos orgânicos, planejo compra de alimentos, peço nota fiscal, leio rótulos antes de comprar. Apenas recentemente eu introduzi mais um comportamento: o da reciclagem do lixo. Cuido muito da água e da energia, eles são emblemáticos, porque são elementos extremamente importantes para o aquecimento global. Energia, porque não existe geração de energia sem emissão de carbono. Mesmo no

Brasil, em que temos quase 80% de geração de energia hidrelétrica, existe uma forte emissão de carbono.

No Brasil, a energia ainda é produzida principalmente por usinas hidrelétricas, um tipo de energia renovável. Mas a formação de represas causa, muitas vezes, o desalojamento de milhares de pessoas, a desapropriação de terras e efeitos negativos no equilíbrio do ecossistema de cada região. De que forma você acha possível manter um desenvolvimento sustentável na produção de energia no Brasil sem gerar esses problemas? Na formação do lago, uma grande área plantada fica coberta. A matéria orgânica submersa se decompõe e emite metano, que é um gás que influi muito mais no efeito estufa do que o gás carbônico. Então, uma hidrelétrica também está contribuindo para o aquecimento global. Hoje existe tecnologia para se desenvolver energia solar, eólica ou até a nuclear, que se tornou muito mais segura nos últimos anos. Além disso, existem tecnologias que vão se desenvolver, baseadas na captura de carbono emitido em usinas termelétricas. São tecnologias caras, mas quanto mais usadas, mais baratas ficam. Eu acho que nenhuma energia em particular poderá ser responsável pelo suprimento de uma

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determinada área. O biodiesel terá seu papel, assim como o etanol, a energia elétrica, as energias solar, eólica, nuclear, das marés. Sempre existirão regiões em que haverá mais dificuldade com um ou outro tipo de energia. Por isso também é essencial uma matriz energética diversificada. Acredito na descentralização da geração. Pequenas centrais hidrelétricas que causam um estrago social e ambiental infinitamente menor, pequenas quedas d'água que podem ser aproveitadas sem represamento... É importante fugir dos grandes sistemas, caso das grandes represas. Com isso, você precisa menos de grandes distribuidoras e tem muito menos gasto de matérias-primas para carros, postes etc., que são necessários para a construção das linhas de transmissão. Quando as pessoas me dizem: "Ah, mas é o deslocamento de apenas alguns milhares de pessoas", eu digo: "Se você fosse uma delas, não diria isso". Tirar as pessoas do lugar onde elas vivem é privá-las do acolhimento de sua própria casa, eliminar suas memórias. Eu, por exemplo, que moro em São Paulo e passei quatro anos nos Estados Unidos. Quando voltei, a Avenida Paulista tinha mudado totalmente. Até hoje procuro as minhas memórias na Avenida Paulista. Até hoje, às vezes, eu tenho dificuldade de saber em que ponto da avenida estou. Antes havia casarões, não são mais as mesmas referências. E perda de referências desorienta as pessoas emocionalmente. Acho que isto é o grande exercício do consumo consciente: se cada um pensar dessa forma, não construiremos grandes hidrelétricas, mas pequenas, e usaremos as quedas d'água.

A Pesquisa Akatu nº7, publicada em 2006, mostra que a maioria dos brasileiros já adquiriu hábitos como o de fechar a torneira ao escovar os dentes e o de apagar as lâmpadas ao deixar um recinto, o que traz reduções nas contas de água e luz. Já o de não jogar papel na rua, por exemplo, é praticado por poucos. Você acha que a única maneira de convencer as pessoas a adquirirem esses comportamentos de economia, como o Akatu chama, é garantindo que elas tenham um retorno financeiro?Os comportamentos de economia, em média, são praticados por 75% da população brasileira. Os de planejamento (práticas para a otimização racional dos recursos, que dão retorno a médio ou longo prazo) são realizados por 45% e os de impacto coletivo e não individual (como o de não jogar lixo na rua, por exemplo), só são praticados por 29% da população. De fato, o bolso tem atratividade para as pessoas. No entanto, é preciso que elas percebam que

existem várias formas de pagar. O produto orgânico é mais caro. Quem não o consome por esse motivo, acha que não está pagando. Mas está, com a saúde. O produto com agrotóxico tem matérias-primas tóxicas que se acumulam no seu organismo e vão causar uma doença no futuro. Além disso, você vai pagar pela limpeza do meio ambiente, porque os agrotóxicos penetram na terra, chegam nos lençóis freáticos e na água. Se a água passar por um tratamento, você vai pagar mais caro por ela. Se não passar, as pessoas consumirão água de má qualidade (hoje, 22 milhões de pessoas no Brasil consomem água sem tratamento), ficarão doentes, irão para o sistema de saúde pública, que vai ficar mais caro e você vai pagar mais impostos. Com o uso do automóvel, a mesma coisa. Se o carro é à gasolina, você vai contribuir para o aquecimento global, para as mudanças climáticas, que gerarão problemas com safras agrícolas. Os alimentos vão ficar mais caros e você vai ter que pagar pelo alimento mais caro. É o ciclo de interdependência.

Mas a maioria da população brasileira não pode pagar por produtos orgânicos, por exemplo... Independentemente da classe, é importante que, dentro de seu âmbito de consumo, ela faça o melhor possível. Todos nós consumimos água, energia, roupa, alimentos. Se mesmo as pessoas das classes mais baixas consumirem conscientemente esses elementos, e também sejam assim ao usar e descartar, elas estarão contribuindo.

O que você acha da gestão de Marina Silva como ministra do Meio Ambiente? Eu tenho um viés positivo, gosto muito dela do ponto de vista humano. É muito fácil dizer que não está funcionando, que algo poderia ser diferente, mas o que faz o governo ir numa direção ou em outra é a pressão da sociedade. Eu poderia fazer uma crítica dizendo que talvez o Ministério do Meio Ambiente pudesse ser mais incisivo em ação política. No entanto, não estou lá para acompanhar isso. Estive no governo e sei das dificuldades para se articularem as coisas, das pressões de interesses específicos que são muito fortes. Eu acho que houve avanços interessantes, por exemplo, na maneira como estão sendo pensadas questões como a exploração de florestas, mas a maneira de implementar tem deixado muito a desejar. Acho que deveríamos nos voltar para nós mesmos e vermos o que estamos fazendo como sociedade civil de modo a pressionar o governo para que

O Movimento Cuide mostra os efeitos do

consumo excessivo

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ele caminhe na direção do interesse público e não dos interesses privados, corporativos.

A conjuntura econômica influi diretamente no comportamento dos consumidores, como comprova o estudo feito pelo instituto: em 2003, ano de crise, os números em relação à população consciente eram piores. Se tivermos uma nova crise como a de 2003 - inflação alta, estagnação do PIB, desemprego elevado -, você acha que os índices piorariam? Depende basicamente do quanto de sucesso nós conseguirmos no movimento do consumo consciente. Não é um movimento só do Akatu, tem muitas entidades. O fenômeno social de consumo consciente tem no Brasil apenas 5, 6 anos. É natural que, no início, as pessoas se sensibilizem e comecem a agir ainda muito à mercê do contexto. 28% da população brasileira é engajada, mesmo numa situação como a atual, de menor desemprego, maior crescimento econômico.Temos mais de 5% conscientes, 28% engajados, no total 33%, ou seja, um terço da população brasileira pensando conscientemente no seu consumo. A perspectiva do futuro depende de continuarmos com o envolvimento da mídia, com o trabalho do Akatu e o de várias entidades, especialmente se as escolas se envolverem nisso com as crianças.

As crianças fazem uma educação de baixo para cima com os pais, elas os ensinam a não fumar, a fechar a torneira, a apagar a luz etc.

O que se fala é que, para contribuir com o desenvolvimento sustentável, é necessário que países como o Brasil não copiem os mais desenvolvidos (que consomem 70% da energia, 75% dos metais e 85% da produção de madeira mundiais), mas reduzam o consumo de energia. Como fazer isso? Mudando o modelo de produção e de consumo, na direção de tecnologias mais limpas, de empresas socialmente responsáveis. Porque a empresa só pode ser bem sucedida se ela estiver numa sociedade saudável. O governo precisa ter força de fazer campanha e apontar novos caminhos - por exemplo, criando uma lei que obrigue as empresas a ter um selo de produto transgênico. Se o consumidor quer ou não consumir, ele vai estudar e chegar a essa conclusão por si mesmo. Mas se ele nem sabe o que tem no transgênico, não consegue tomar a decisão. Fora isso, na pesquisa do Akatu, entre os 33% mais conscientes, mais de 60% dizem que o que compram e usam define o que eles são. E o que faz uma pessoa ser o que é não é o consumo, mas a forma de ela ser afetiva, seus amores, a forma como ela se relaciona com os amigos, sua posição no mundo. Então é fundamental no modelo de consumo que ele passe a ser um instrumento do bem-estar das pessoas. Hoje, já se consome 25% a mais do que a Terra consegue renovar em água, terras agricultáveis, ar limpo e capacidade de absorção de resíduos, e isso é muito grave. Apenas 1 bilhão e 700 milhões de pessoas, dos 6 bilhões e 600 milhões que habitam o mundo, de fato consomem. O resto, ou é miserável, ou consome pouco. Então é preciso que as pessoas comecem a olhar sua vida e perguntar em busca do quê elas estão. E a resposta geral é que as pessoas estão em busca da felicidade, não de consumo. Claro que, sem nenhuma possibilidade de consumir, não tem como ser feliz. É preciso ter água, energia, alimento, roupa, habitação, transporte, lazer, cultura. As pessoas precisam rever suas vidas e priorizar os afetos, as amizades, os amores, a expressão artística, a cultura, as emoções. Se as pessoas não revirem essa forma de viver a vida, em primeiro lugar, o consumo de antidepressivos vai continuar crescendo, porque as pessoas estão buscando nos remédios a alegria de viver que elas não conseguem encontrar na vida. É o ciclo vicioso de stress: trabalhar mais para consumir mais, para me endividar mais, para trabalhar mais... vai continuar. Um ciclo no qual a vida não subordina o trabalho, mas o trabalho subordina a vida.

1. Planeje suas compras. Não seja impulsivo nas compras. A impulsividade é inimiga do consumo consciente. Planeje antecipadamente e, com isso, compre menos e melhor.

2. Avalie os impactos de seu consumo. Leve em consideração o meio ambiente e a sociedade em suas escolhas de consumo.

3. Consuma apenas o necessário. Reflita sobre suas reais necessidades e procure viver com menos.

4. Reutilize produtos e embalagens. Não compre outra vez o que você pode consertar, transformar e reutilizar.

5. Separe seu lixo. Recicle e contribua para a economia de recursos naturais, a redução da degradação ambiental e a geração de empregos.

6. Use crédito conscientemente. Pense bem se o que você vai comprar a crédito não pode esperar e esteja certo de que poderá pagar as prestações.

7. Conheça e valorize as práticas de responsabilidade social das empresas. Em suas escolhas de consumo, não olhe apenas preço e qualidade. Valorize as empresas em função de sua responsabilidade para com os funcionários, a sociedade e o meio ambiente.

8. Não compre produtos piratas ou contrabandeados. Compre sempre do comércio legalizado e, dessa forma, contribua para gerar empregos estáveis e para combater o crime organizado e a violência.

9. Contribua para a melhoria dos produtos e serviços. Adote uma postura ativa. Envie às empresas sugestões e críticas construtivas sobre seus produtos/serviços.

10. Divulgue o consumo consciente. Seja um militante da causa: sensibilize outros consumidores e dissemine informações, valores e práticas do consumo consciente. Monte grupos para mobilizar seus familiares, amigos e pessoas mais próximas.

11. Cobre dos políticos. Exija de partidos, candidatos e governantes propostas e ações que viabilizem e aprofundem a prática do consumo consciente.

12. Reflita sobre seus valores. Avalie constantemente os princípios que guiam suas escolhas e seus hábitos de consumo.

Fonte: www.akatu.org.br (site oficial)

Doze Princípios do Consumidor Consciente

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Você é otimista? Eu sou muito otimista por uma razão: vivemos uma situação que nunca foi vivida. Temos comunicação de massa, internet, possibilidade de comunicação como nunca antes aconteceu. E eu vejo as pessoas ansiosas por um outro tipo de vida. A comunicação de massa e a internet abrem espaço para essas pessoas se encontrarem. Há um espaço de sensibilização e conscientização para o que está acontecendo que nunca antes houve. Acho que o consumo será colocado no seu devido lugar ao longo do tempo, até porque o próprio planeta vai colocar um limite ao consumo. O que vemos hoje de violência, terror, drogas, tem tudo a ver com o tipo de vida que estruturamos, fortemente baseada no consumo. Há cinco anos, eu achava que levaria duas gerações para que as coisas começassem a mudar. Hoje, já acho que é possível fazer em uma geração só. Eu tenho 60 anos e vejo minha geração falando muito sobre o problema que é viver na cidade em que a gente vive. A tecnologia também é parte da solução, nunca tivemos um século na história da humanidade com tanto desenvolvimento científico e tecnológico.Devemos também pensar num fator: no ano que vem, fará 120 anos que as pessoas passaram a trabalhar 8 horas por dia. Antes elas trabalhavam 15, 16. Já não está na hora de a gente reduzir o tempo de trabalho? De ir para uma sociedade realmente industrial? Se passarmos a trabalhar quatro horas em média por dia, haverá espaço para muito mais gente entrar no mercado de trabalho. Ganharemos menos, mas teremos mais tempo para viver fazendo o que gostamos. O governo poderia então usar os impostos recolhidos para fazer uma rede de sustentação, deixando as pessoas menos inseguras. Assim, elas precisariam acumular menos para se sentirem mais seguras. Parte da acumulação vem daí: as pessoas querem se sentir seguras e nunca chegam ao ideal. É necessário se afastar do vício da acumulação. Nós estamos agora desenhando a utopia do Akatu, o projeto de um mundo para daqui a 35 anos, em 2042. Estamos desenhando como é a casa, o transporte, a vida das pessoas. E uma das coisas que aparecem é um mundo em que a gente vai compartilhar muito mais, onde se vai conviver muito mais, onde a expressão artística vai fazer parte da vida das pessoas e onde o afeto vai existir muito mais. O mundo sempre foi movido por utopias.

Orações e

farturaAs festas italianas de São Paulo preservam as tradições de um povo zeloso por suas raízesPor Guilherme Conte

Festas Italianas

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"Mamma, son tanto felice...!", canta, estufando o peito, um rechonchudo e suado cantor aboletado em um vistoso terno branco. O público, animado, tenta acompanhar com enérgicas (e um tanto quanto desajeitadas) palmas. Garçons vestidos à moda baresa passam pra lá e pra cá carregando pratos de spaghetti, ficazzella e richitelle. O branco, o vermelho e o verde abundam. É a festa de São Vito, no coração do bairro do Brás, que ocorre entre maio e julho e teve em 2007 sua

a89 edição.Um olhar a partir do salão do primeiro andar, à direita do palco, permite estimar que os 500 lugares da cantina, mais os 3.000 da praça de alimentação, estejam quase todos tomados. "São mais ou menos 120 kg de fígado por fim de semana", diz, orgulhosa, Lourdes Recupero, uma das mammas da festa. E isso só para a guimirella, a menina-dos-olhos gastronômica da festa. É uma tradicional receita de origem grega adaptada pelos polignaneses, feita de pedaços de fígado embebidos em banha de porco (a "banha-pendão") e intercalados, no espeto, com folhas de louro. No original, porém, o fígado era de carneiro.Lourdes, que nasceu no bairro e é freqüentadora da festa desde quando o evento era uma quermesse de rua, mudou para atrás do balcão em 1988. Simpática, logo convida para o almoço semanal às sextas-feiras, para o bingo quinzenal e para o almoço dominical mensal. Tudo naquele mesmo salão. E diverte-se ao lembrar de um

episódio de 2006, quando, por um problema da rede de distribuição elétrica, a festa ficou sem luz por horas. "Tudo continuou normalmente! Velas foram acesas e os garçons continuaram levando os pratos para as mesas", conta.Difícil é encontrar alguém que não tenha uma longa história sobre a festa. Algumas transcendem gerações e oceanos. Angela Cristina Fortunato Cattozatto é outra que passou a vida toda ali. Sua mãe, Anita, nasceu em Polignano a Mare, na província de Bari, e logo que chegou ao Brasil se estabeleceu no Brás e começou a participar da vida na São Vito.Quando Ângela tinha 14 anos, conheceu Francisco, um dos jovens músicos que se apresentavam na festa. O pai dele conhecia dona Anita dos tempos de Polignano. Festa vai, festa vem, os dois jovens começaram a namorar e acabaram se casando. Neste ano, os gêmeos do casal, Anna Bárbara e Filippo, de 12 anos, colaboram pela primeira vez para a festa.

Uma festa que nasceu da solidariedadeModesto Gravina Netto, que assumiu a presidência da Associação Beneficente São Vito Mártir (A.B.S.V.M) em 1999, conhece de cor e salteado a história da festa. E confessa emocionar-se cada vez que a conta, por ser testemunha desde os primeiros de seus 74 anos de idade. A ligação começa com seu avô Modesto, outro cidadão de Polignano a Mare. Como muitos dos italianos que chegaram ao Brasil no começo do século XX, ele foi morar com outros "paesanos" (nome dado aos italianos que vieram ao Brasil em busca de uma vida melhor) no bairro do Brás.Em 1919, Modesto foi um dos fundadores da associação, uma verdadeira rede de solidariedade entre os imigrantes que chegavam da Itália. "Eles encontravam os primeiros passos necessários para estabelecerem-se no Brasil: um lugar para ficar, um emprego, essas coisas", conta Gravina Netto.É dessa época que datam também a primeira

A família Fortunatto Cattozatto se une para

colaborar na cozinha da festa de São Vito

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capelinha dedicada ao padroeiro e as primeiras procissões destinadas a arrecadar fundos para a construção da igreja e da sede da associação. A festa acontecia na rua, assim que o andor (suporte em que se carregam as imagens sagradas) entrava na capela. A atual igreja foi inaugurada em 1954, no terreno vizinho. Ela foi construída a partir das estruturas de um prédio. Em seus seis andares, à época da inauguração funcionavam cursos de corte, costura, bordado e datilografia, além da sede da associação. O presidente era Miguel Gravina, filho de Modesto e pai de Gravina Netto, que esteve à frente da instituição de 1937 até seu falecimento, em 1967.Gravina Netto lembra como eram feitos os leilões para definir quem carregaria o andor nos diversos trechos da procissão. "O valor inicial se multiplicava ao longo do percurso, até a entrada na igreja", conta. Os lances eram feitos a cada parada. Era praxe também o andor se deter na frente da casa de quem estivesse doente, para que os membros da procissão o saudassem à janela e fizessem suas doações. Todos oravam em nome da restituição da saúde do enfermo.Incapaz de conviver com a ausência do pai, Gravina Netto se afastou da festa e do dia-a-dia da associação, mas só até o fim da década de 1990, quando retornou como presidente. Destaca como fundamental a gestão de Modesto Mastrorosa, que assumiu a presidência da associação no final da década de 1970.Uma vez que a igreja estava construída e os objetivos iniciais da A.B.S.V.M. haviam sido cumpridos, Mastrorosa passou a angariar fundos para a construção de uma creche, em um terreno adquirido junto à prefeitura em regime de

comodato (o espaço ficava gratuitamente com a associação enquanto ela mantivesse a creche). Como o dinheiro arrecadado nas festas anuais, que antes ia para a manutenção da igreja, passou a ser dirigido à construção da creche, o pároco da época desentendeu-se com a direção da associação. Começou aí uma batalha judicial que se arrastou por anos. O pároco, declarando falta de recursos, chegou a deixar um cadeado na porta da igreja por dias. Consternado com essas notícias, Gravina Netto então resolveu agir. "Eu não podia deixar que tudo o que havia sido construído por nós fosse destruído daquele jeito", conta, emocionado. Com o falecimento de Mastrorosa, em 1999, Gravina Netto assumiu a presidência da

"Tudo o que fazemos hoje é movido pela preocupação social antes de tudo", afirma o presidente da Associação Beneficente São Vito Mártir, Modesto Gravina Neto T

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A Legenda áurea, obra do frei Jacopo de

Varazze, conta simultaneamente as histórias de São Vito e de São Modesto. Vito foi um menino que era constantemente surrado pelo

São Vito Mártir

pai por se recusar a adorar os ídolos. Já criança, começou a operar milagres em nome do Senhor.Um deles foi restaurar a visão de seu pai, que teria ficado cego ao abrir o quarto do filho e ver sete anjos em volta dele. Isso, ao invés de levar o pai à crença, só o fez odiar mais o pequeno Vito.Modesto, professor do menino, viu um anjo ordenando-lhe que levasse Vito para outro país. O anjo foi atendido, mas o menino foi chamado de volta para livrar o filho do imperador Diocleciano de uma possessão demoníaca. Ele o fez, mais uma vez em nome do Senhor. O imperador ordenou-lhe que fizesse sacrifícios aos deuses. Ele recusou, em nome de sua fé cristã, e acabou indo preso."Mas de repente o ar fica turvo, a terra treme, os trovões soam, os templos dos ídolos desabam e esmagam muita gente. (...) Logo depois um anjo soltou os mártires, levando-os para a beira de um rio onde, após terem rezado um pouco, entregaram suas almas ao Senhor. Seus corpos, protegidos por águias, foram encontrados e sepultados por Florência", diz uma passagem de Varazze sobre o que se seguiu. Esses fatos teriam ocorrido em 15 de junho de 303 d.C., data em que se celebra o dia de São Vito Mártir.

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Acima, a guimirella e a ficazza. Ao lado, a

ficazzella e o spaghetti,que tem sua massa

cozida na hora de servir

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O santo da Mooca, o bairro mais italiano de todosNão muito longe dali, do outro lado da Avenida Alcântara Machado (Radial Leste), fica a Paróquia San Gennaro. Basta caminhar um pouco para dentro da nave da igreja para sentir-se completamente alheio ao barulhento corre-corre da Rua da Mooca, uma das principais vias do bairro.O prédio da paróquia é decorado com austeridade - o que está de acordo com os preceitos que regeram a vida de San Gennaro, ou, para os brasileiros, São Januário, um bispo pobre que

associação. Já estavam prontos o salão em que a festa ocorre atualmente e a creche. A intercessão de dom Cláudio Hummes (na época arcebispo de São Paulo e nomeado em 2006 pelo papa Bento XVI prefeito da Congregação para o Clero), após uma carta escrita por Gravina Netto, levou a um acordo judicial entre as partes acerca do espaço da associação no prédio da igreja. Ainda assim, existem hoje, concomitantemente, duas festas de São Vito, a um quarteirão de distância: a histórica, dentro do salão, que continua tendo sua renda direcionada à creche; e a quermesse de rua organizada pela paróquia depois da desavença, com fundos arrecadados para a igreja.Na creche, são 120 crianças de até quatro anos que recebem gratuitamente alimentação completa, cuidados de higiene e médicos, além de acompanhamento psicológico. "Tudo o que fazemos hoje é movido pela preocupação social antes de tudo", afirma Modesto, cheio de orgulho.

marcou sua vida paroquial por um intenso contato com os fiéis, onde quer que eles estivessem.O largo sorriso, os gestos expansivos e o sotaque entregam: o padre Pasquale Priolo nasceu do lado de lá do Atlântico. Natural de Lauria di Potenza, no centro-sul da Itália, estudou em Nápoles, terra do padroeiro da festa. Ele conta emocionado que pôde ver com os próprios olhos, na juventude, o sangue de San Gennaro liquefazendo-se (ver box). "Falo isso com o coração. É uma coisa divina, que não dá para explicar com palavras", conta. "Isso mostra que San Gennaro está vivo, no céu, protegendo a todos nós".Padre Pasquale, como é conhecido pelo bairro, conta que uma das grandes emoções é quando ele dá a notícia, na missa, de que o sangue de San Gennaro se liquefez. "As pessoas ficam realmente muito felizes, vibram", diz. Outra prova de devoção ao santo, diz, é a quantidade de crianças chamadas Gennaro e Gennarino que correm pelas ruas da Mooca.Há 15 anos à frente da paróquia, o padre participa ativamente da organização da festa. Diz que seu maior esforço é unir cada vez mais a comunidade. Ao contrário do que ocorre na São Vito, a festa de San Gennaro, que neste ano

acompleta sua 34 edição, e ocorre entre setembro e outubro, é intimamente ligada com a vida paroquial. "É com ela que mantemos o templo,

"A massa é cozida nesses barris cheios de água quente, na hora", explica o padre Pasquale

"Falo isso com o coração. É uma coisa divina, que não dá para explicar com palavras", afirma o padre Pasquale sobre o milagre da liquefação do sangue de San Gennaro

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San Gennaro - ou São Januário - nasceu na

cidade de Nápoles em 270 d.C. Ordenado sacerdote aos 32 anos, logo foi nomeado bispo da cidade de Benevento, sul da Itália. Sua vida religiosa foi marcada por um esforço constante de evangelização e socorro aos necessitados.Em 304 d.C., o imperador romano Diocleciano baixou uma série de éditos

San Gennaro

condenando o cristianismo e perseguindo os fiéis, em um movimento que havia sido consolidado pelo imperador Décio em meados do século II. O cristianismo só seria tolerado oficialmente a partir de 313 d.C., com o Édito de Milão.Conta-se que, condenado à morte após recusar-se a fazer oferendas a deuses pagãos, San Gennaro teria passado ileso por uma fornalha e domado as bestas a que fora atirado. Ele foi, por fim, decapitado em 19 de setembro de 305, dia em que se celebra seu martírio.Há em Nápoles uma relíquia: duas ampolas de um sangue supostamente seu. Três vezes por ano - no sábado que antecede o primeiro domingo de maio, no dia 19 de setembro e no dia 16 de dezembro, data esta em que suas relíquias foram levadas de Benevento para Nápoles - as ampolas são levadas até sua imagem e são rezadas, durante oito dias, orações e ladainhas.O sangue então se liquefaz. Um pano branco é agitado e o povo fora da igreja fica eufórico. Quando isso não acontece, é sinal de mau agouro: o ano mais trágico em que isso aconteceu foi 1939, estopim da Segunda Guerra Mundial.

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as reformas necessárias e, sobretudo, nossa obra social", diz. O Centro Comunitário San Gennaro abriga, na Creche Menino Jesus, cerca de 60 crianças com três refeições diárias, dormitório e diversas atividades. Foi também com dinheiro arrecadado na festa que se iniciaram as reformas da igreja e foram comprados cinco imóveis, área em que se construiu um salão com capacidade para mil pessoas, onde hoje se realizam as comemorações.Ao lado das motivações culturais e sociais, a questão religiosa também permeia todas as preocupações da San Gennaro. "Procuramos sensibilizar as pessoas para participarem da vida da igreja durante todo o ano", conta o padre. "Levamos a mensagem do evangelho para que cada vez mais vivamos seguindo a palavra de Deus, com muita alegria, fé, amor e zelo. Deus abençoa quem faz o bem, doando um pouco de seu tempo em benefício do outro".São cerca de 400 voluntários, a maioria do bairro da Mooca - freqüentadores da liturgia dominical, garante o padre. Eles se revezam nas barracas

que servem as iguarias: a fogazza, o macarrão (com molho de tomate em grandes pedaços, à moda napolitana), a pizza (de massa fininha e recheio generoso) e o antepasto à base de berinjela. Para embalar tanta comilança, nada melhor que a música napolitana, que já teve seu O sole mio transformado em It's now or never na voz do rei Elvis Presley.

Uma geladeira lotada de berinjelaImpossível contar a história da festa de San Gennaro sem falar da carismática e simpaticíssima figura de Maria Luiza Cecotto Vargas. Embora ela carregue a fama (ao que parece, bem real) de conhecer a Mooca inteira, poucos conhecem seu nome verdadeiro. Lá para os lados do Juventus, ela é a Ziza.Credenciais não lhe faltam. Ziza começou a

atrabalhar na festa em sua 7 edição, herdando da vizinha, então doente, o comando da barraca do antepasto. Chegou a fazer e a temperar em casa todo o antepasto consumido na festa: 30 caixas de berinjela na primeira semana e outras 10 em cada uma das seguintes. Sua filha Andréia, então

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com quatro anos, dormia na barraca. Logo já estava distribuindo guardanapos. Nesses primeiros anos, ainda sem a cobertura na rua e sem o salão, as chuvas eram uma constante ameaça.Em 1986 houve uma cisão entre os jovens da comunidade. Ziza, que já era uma espécie de "cara da festa" (era quem ia à TV, ao rádio e às reuniões com os fornecedores), viu-se incumbida de coordenar o restaurante e achar 86 voluntários para servir os freqüentadores. Tudo certo, não faltasse um mês para o início da festa. E não é que conseguiu? Eram "os noventa filhos da Ziza", nas palavras do padre Esvígio Concilio, que marcou época à frente da paróquia. Naquele ano, o sangue de San Gennaro não se liquefez. E veio o mau agouro: em pleno dia 19 de setembro, data da procissão solene, seu marido foi embora de casa (mas voltaria alguns meses depois).Ziza ficou 14 anos à frente do restaurante. Em 1984, 13 integrantes da família - entre pais, filhos, irmãos, cunhados e sobrinhos - trabalharam na festa. E todo o tempo de Ziza era dela. "Se tinha casamento, aniversário e batizado durante a San Gennaro, todo mundo já sabia: eu não ia." Eram os tempos do saudoso maestro Agostinho Záccaro, lendário músico da comunidade italiana que tocava nos shows das festas na década de 1980 e 1990.Em 1999, seu último ano à frente do restaurante, Ziza chegou a etiquetar sozinha todas as 724 cadeiras do salão. Longe do trabalho no restaurante, ela passou longo tempo sem conseguir voltar à festa. Era difícil para ela estar do lado de fora do balcão. Só voltou em 2006, como visitante. Quem esteve lá conta que foi ovacionada - a festa parou para ela.

A oração antes de receber os fregueses, na festa de San Gennaro

Ziza cuidou do restaurante da festa de San Gennaro por 14 anos. "Se tinha casamento, aniversário e batizado durante a San Gennaro, todo mundo já sabia: eu não ia."

O spaghetti da San GennaroA

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A devoção por Madonna AchiropitaNão muito longe dali, em pleno bairro do Bixiga (ou Bela Vista), fica a Rua 13 de Maio. Se Meca é o lugar mais sagrado para os islâmicos, essa rua é o templo máximo de adoração dos paulistanos chegados em uma cantina. É onde fica a Paróquia Nossa Senhora Achiropita, quase que em caráter de exclusividade - só há mais uma igreja dedicada a essa santa em todo o mundo: em Rossano, sul da Itália.A escolha da santa para a padroeira da paróquia foi fruto de uma disputa. Ela era cultuada pelos calabreses do bairro, enquanto os cerignolanos eram devotos de Nossa Senhora da Ripalta. O pároco bem que tentou contemporizar, batizando-a, em 1936, ano de sua fundação, de paróquia São José do Bixiga. Mas a briga continuou e, 23 anos depois, os calabreses venceram e a igreja passou a dedicar-se à Madonna Achiropita, padroeira da antiga capelinha do local. À Nossa Senhora da Ripalta coube o altar esquerdo, contíguo ao principal.Os números da festa, que ocorre sempre entre

aagosto e setembro (este ano marca a 81 edição), impressionam. Estima-se que ela receba atualmente 200 mil visitantes, que devoram por ano 10.000 quilos de farinha, mais 10.000 quilos de macarrão, 5.000 em mozarela, lingüiça e carne, 10.000 litros de vinho, e por aí vai... Só na produção da fogazza, a estrela da festa, trabalham 120 pessoas, entre os quase mil voluntários em toda a celebração. Além das 35

barracas na rua, há uma cantina nos fundos da igreja. É fato que as comidas, as músicas e a tradição italiana são o que mais atrai os visitantes. "Isso é importante não só pelo divertimento, que agrada a todos, mas por unir as pessoas da paróquia. É como um grande mutirão", explica o padre Antonio Sagrado Bogaz, pároco da Achiropita há oito anos. Mas não é só de comes e bebes que se faz a festa da Achiropita, tipicamente calabresa. "Procuramos fugir da idéia de 'festa pela festa'", diz Suzana Manoel Flor, coordenadora de relações públicas desta edição. "Tem que ter muita espiritualidade, é primordial no nosso trabalho". Ela trabalha na Achiropita há 30 anos e explica que a principal motivação para a organização das festas são as obras sociais.Erguido com o dinheiro arrecadado em quatro festas, o Centro Educacional Dom Orione atende cerca de 450 crianças de baixa renda do bairro, entre 6 e 18 anos. Elas recebem três refeições diárias, lazer, acompanhamento psicológico, aulas de informática, prática esportiva, reforço escolar, música e artes plásticas. Além disso, há um projeto de encaminhamento para estágios, a partir dos 15 anos: atualmente são 92 jovens estagiando.Também parte das obras sociais da igreja, a Casa Dom Orione presta assistência à terceira idade, além de acolher a população de rua, com espaço para banhos, lavagem de roupa, café-da-manhã e

Arquivo pessoal Suzana FlorA procissão dos fiéis a Nossa

Senhora Achiropita

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A história de Nossa Senhora Achiropita

remete ao ano de 580 d.C., quando o capitão Maurício, futuro imperador romano, foi parar por acaso numa aldeia calabresa. Um monge então lhe disse que fora Nossa Senhora que o teria levado para lá, e não os ventos. Previu que o capitão seria nomeado imperador e disse a ele que, depois disso, deveria erguer um templo para Nossa Senhora.A previsão fez-se realidade dois anos depois, quando o capitão chegou ao poder. Conta-se que, durante a construção da igreja, a imagem da santa que era pintada durante o dia desaparecia à noite.Em uma madrugada, uma senhora pediu para que o vigia do templo a deixasse entrar. Passado algum tempo sem que ela saísse, ele resolveu conferir o que estava acontecendo. Ele então encontrou uma nova imagem da santa pintada na parede.

Nossa Senhora Achiropita

Os anos foram passando e notícias de milagres começaram a aparecer. Até que, a partir do século XII, o dia 15 de agosto passou a ser dedicado à Nossa Senhora Achiropita. Sua representação é tipicamente calabresa: além do porte mais robusto, os brincos nas orelhas evidenciam a vaidade notória das mulheres daquela região.

almoço. O serviço atende cerca de 170 pessoas. Há também o centro de alcoólicos anônimos e a farmácia com remédios doados, ações que também recebem a ajuda da igreja. Em 2006 foi inaugurada a creche Mãe Achiropita, que atende em período integral 175 crianças de até 6 anos. "Sem a festa, nada disso seria possível", diz Suzana.O padre Bogaz explica que a religiosidade é a marca mais importante das comemorações. "Todos os dias da festa se iniciam e terminam com uma oração, com todos juntos". Há ainda bênçãos constantes e a famosa procissão, que caminha pelas ruas do bairro.Ele se mostra feliz com o aumento gradativo do público e de pessoas interessadas em participar como voluntárias. Além disso, é cada vez maior a vida religiosa na festa. "Antigamente mal líamos o Pai-Nosso. Hoje rezamos, lemos a Bíblia, cantamos... Não há barraca que não termine o trabalho sem uma oração!", orgulha-se o padre, que acredita que a explicação é simples: fé. "É muita devoção à Nossa Senhora Achiropita. Como compreender o fato de que quase mil voluntários ficam durante dez noites trabalhando até duas, três horas da manhã? O natural é que as pessoas esmoreçam no percurso. Aqui, não." Difícil discordar dele.

As ruas do Bixiga são cobertas por um tapete decorado pelos fiéis, por onde passa a procissão

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A vista do centro da cidade, a 165 metros

de altura, é um dos principais atrativos do

restaurante

Terraço Itália

Há 40 anos no

topo da cidade

Por Beatriz Scavazzini

Sérgio Comolatti é o presidente do grupo que leva seu sobrenome. O Terraço Itália foi idealizado por seu pai há 40 anos, como um "presente para São Paulo"

Localizado em um dos mais altos edifícios de São Paulo, o restaurante Terraço Itália mantém a sofisticação no ano em que completa seu 40º aniversário

Um fim de tarde ensolarado. Nas ruas de São Paulo, movimento intenso. Dentro do edifício, o sol atravessa as janelas dos salões. As cores das cortinas e dos estofados tornam-se mais vibrantes. A sensação é a de ter a cidade aos pés. Um drinque ou um jantar significam a possibilidade de ver São Paulo de um lugar privilegiado. É ali, a cerca de 165 metros de altura, e próximo às principais vias do centro antigo da capital - entre as avenidas São Luís e Ipiranga e em frente à Praça da República -, que está o Terraço Itália, um dos pontos mais altos da cidade. Antes de entrar e tomar o elevador até o 41º andar (com direito a uma "baldeação" no 37º) para chegar no restaurante que completa 40 anos em setembro, quem circula na região do edifício pode ver marcos arquitetônicos de São Paulo. Na vizinhança, o Copan, de Oscar Niemeyer, a Estação da Luz, o Teatro Municipal, o Liceu de Artes e Ofícios e o antigo Fórum de São Paulo. Inaugurado em 1965 por Franz Heep, um dos principais representantes da arquitetura modernista, o prédio tombado pelo Patrimônio Histórico é o segundo mais alto da cidade, perdendo apenas para o edifício do Banespa, também no centro de São Paulo.Na época de sua construção, despontava no país um anseio pela modernidade e pelo futurismo, o que fez com que surgissem muitos empreendedores. Em meio a esse cenário, Evaristo Comolatti, italiano radicado no Brasil, decidiu "dar um presente a São Paulo, um lugar para onde se pudesse levar a família e os amigos", como dizia. Segundo seu filho Sérgio,

atual presidente do Grupo Comolatti, a idéia do restaurante surgiu durante uma conversa entre Evaristo e o proprietário do edifício, em uma das reuniões do Circolo Italiano (associação civil que promove a difusão da cultura italiana no Brasil), feitas no próprio prédio. A partir daí, os dois montaram uma sociedade e em menos de dois anos começaram as obras do restaurante.Um dos mais antigos funcionários da casa, João de Mello, de 68 anos, vê a construção do local como uma vitória para época. O chefe de manutenção começou como carpinteiro,

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Casados há 23 anos, Ricardo e Luiza

freqüentam o Terraço Itália desde o início

do namoro

O Terraço se tornou parte significativa da história de casais como a advogada Luiza e o magistrado Ricardo Belli, que começaram a freqüentar o restaurante na época do namoro, quando ainda estavam na faculdade. Casados há 23 anos e pais de duas filhas, estão familiarizados com quase todos os funcionários e freqüentam o restaurante ao menos uma vez por semana, no jantar dançante. "Lá me sinto muito especial", conta

Luiza. "Ainda permanece ali uma sensação tipicamente italiana de estarmos em casa, com um clima que pode se tornar marcante por conta de detalhes como champagne, flores, uma sobremesa e música", completa. O chef italiano Giancarlo Marcheggiani se lembra de muitos momentos em que o mâitre recebeu pedidos para colocar alianças em meio a uma sobremesa, ou no arranjo de flores da mesa. "Este ainda é um lugar de muita emoção e romantismo, onde ainda é possível manter esta tradição", diz Marcheggiani. Além de romances, o chef já presenciou situações inusitadas ao longo desses anos de trabalho, como o dia em que um rapaz levantou-se da mesa, pegou sua mochila e saltou com um pára-quedas da varanda.Marcheggiani é o responsável pela elaboração dos cardápios e pela produção dos pratos. "Cheguei aqui e comecei a modernizar a culinária, sempre com a idéia de resgatar os sabores da Toscana, do Piemonte, da Lombardia e de Trentino, e adaptá-los ao gosto dos brasileiros", conta o simpático toscano que veio ao Brasil a convite de um amigo e aqui se estabeleceu. E ressalta as semelhanças entre o país e sua Itália natal. "O costume de comer na Itália é como um ritual. Lá os restaurantes são extensões da cozinha, como nas casas", recorda. Segundo ele, o Terraço recupera esse clima.

Cenário romântico

O ambiente sofisticado já recebeu personalidades

como a rainha Elizabeth e Frank Sinatra

participando da construção do edifício durante as madrugadas. "Era tão pequenininho e agora está cada vez mais bonito", diz, zeloso. No início, o restaurante contava apenas com

dois pequenos salões (hoje são quatro) e o terraço de onde se pode ver pontos como o Masp, o edifício Copan e o pico do Jaraguá. Com cerca de 120 funcionários, o ciclo do restaurante é contínuo, ou seja, não fecha entre os horários de almoço e jantar. A rotina começa por voltas das 5 horas da manhã, quando chegam as remessas vindas das feiras, dos mercados e dos açougues com produtos frescos e prontos para serem parte das receitas criadas pelo chef da cozinha. Os primeiros cozinheiros chegam por volta das 7h30, e o preparo inicial começa.Quando o Terraço (nome pelo qual é conhecido por seus habituès) surgiu, já recebia convidados elegantes. Já passaram por lá personalidades como a rainha Elizabeth, Pelé, Jânio Quadros, Mário Covas, Frank Sinatra, Tônia Carrero e Bibi Ferreira. Ainda hoje é provável se deparar com Jô Soares, por exemplo. Além disso, ali são organizadas algumas reuniões dos membros da Academia Brasileira de Letras.

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Arquivo pessoal Luiza Belli

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Por Marcella Chartier

Queijos italianos

Como protagonista, cortado em cubos e acompanhado por um bom vinho, ou ralado, complementando uma pasta italiana. Cremoso ou temperado a gosto, como antepasto. São apenas algumas das muitas maneiras para se apreciar um queijo artesanal, feito com cuidados especiais. E os produtores italianos ocupam um lugar de honra nessa área: eles criaram mais de 300 tipos de queijos, variedade ainda maior do que na França, famosa por sua produção. "Algumas variações são muito regionais, como é com os vinhos. Na Itália, atravessou o rio, já é outro lugar, outro clima, e o queijo já recebe um nome diferente", explica o professor de culinária italiana Marcelo Néri, do Senac. Provolone, gorgonzola, mozarela de búfala ou em tablete, ricota (que, por ser um tipo mais neutro, pode ser consumido como doce ou salgado) e mascarpone (usado principalmente em sobremesas, como o tiramisu) são apenas alguns dos exemplares mais conhecidos por aqui. Mas o Brasil não só consome, mas também produz queijos artesanais de origem italiana, como o grana padano, o taleggio e o caprino romano, fabricados e distribuídos pela Capricoop (Cooperativa de Produtores de Leite de Cabra e Ovelha e Derivados). São três fábricas: duas no interior de Minas Gerais e uma em Mogi das Cruzes, interior paulista. Das 575 mil toneladas de queijo produzidas pelo Brasil em 2006, segundo a Associação Brasileira das Indústrias de Queijos (ABIQ), cerca de 40 mil foram dos tipos italianos mais populares por aqui: o parmesão, o provolone e a ricota. O que diferencia cada queijo são principalmente dois elementos: o leite, que pode ser de vaca, búfala, cabra ou ovelha - e as etapas de produção. O parmesão tipo grana padano, por exemplo, é fabricado pela Capricoop a partir de

leite de vaca e maturado por no mínimo dezoito meses. O taleggio leva menos tempo: 30 dias são suficientes para a maturação. Já o caprino romano é feito de leite de cabra e maturado por, no mínimo, oito meses. É o mais caro, entre os tipos italianos feitos na cooperativa: um quilo custa cerca de R$ 75,00. O processo de fabricação também é diferente para cada tipo de queijo, mas alguns procedimentos são básicos, como a pasteurização do leite logo após a ordenha. A matéria-prima é aquecida a 80° C, para eliminar microorganismos e impurezas. A massa é então cortada para a separação do soro. Os métodos de aquecimento, agitação e enformação são particulares de cada queijo. Os próximos estágios são a prensagem para a retirada do excedente de soro e a salga, em geral atingida a partir da imersão em salmoura. É também nessa etapa que se formam as cascas de queijos como

Artesãos do queijo

Os tipos italianos de melhor qualidade são feitos com ingredientes cuidadosamente selecionados e toques de tradição

O parmesão original, parmigiano-reggiano, é fabricado na Itália apenas entre 15 de abril e 15 de novembro

ABIQ

O gorgonzola tem sua origem na região de Milão. Nele é injetado um fungo, que deixa o queijo com uma cor esverdeada

Enit

o parmesão.O período de maturação começa em seguida, com temperatura e umidade controladas minuciosamente até que se chegue ao produto final ideal, pronto para a embalagem e para o transporte. "O parmigiano fica meses descansando e tendo sua casca polida. Na Itália, eles martelam o queijo e, pelo som, sabem quando está no ponto certo de maturação. Mas aí é gente que trabalhou com isso a vida inteira, aprendeu com o pai, que aprendeu com o avô, tem tradição", afirma Néri. "Existe também um outro método em que um pedaço fino de ferro é introduzido no queijo para a retirada de uma amostra. O cheiro indica o amadurecimento". Certos métodos de maturação, ainda praticados principalmente em regiões da Itália, contrariam normas de higiene. "Alguns são enterrados e ficam expostos a microorganismos, sem nenhuma proteção, e formam uma casca horrível. Qualquer queijo passou por um processo de apodrecimento, mas nesse caso ele não é controlado", afirma Néri. A tradição faz com que se mantenha a fórmula. "Depois que sai debaixo da terra, vira artigo de disputa", completa.No Brasil, o órgão que controla a qualidade dos queijos é o Serviço de Inspeção Federal do Ministério da Agricultura (SIF), que vem indicado na embalagem. "Na hora da compra é importante conferir se o queijo possui o carimbo que certifica que ele está sendo elaborado dentro dos padrões", explica Airton Gianesi da Costa, diretor-presidente da Capricoop. "Além disso,

as embalagens precisam cumprir as portarias editadas pelo Ministério da Agricultura, que tornam obrigatórias a rotulagem dos valores nutricionais, validade e data de vencimento do produto". Os valores nutricionais de cada tipo de queijo variam. "O teor de gordura muda em função do leite", explica Néri. "Mas mesmo os mais leves são gordurosos e fontes de cálcio".

Em famíliaVestindo os agasalhos da seleção de futebol da Itália, os irmãos Davide e Vittorio Auricchio passam a manhã toda num escritório, verificando contas e resolvendo procedimentos burocráticos de sua empresa. Depois do almoço, aventais, toucas e botas de borracha brancas para começar o trabalho duro: são cerca de 4 horas produzindo a mozarela proveniente das búfalas que eles mesmos criam numa fazenda em Guaratinguetá, interior de São Paulo. "Na Itália, quem trabalha são os proprietários", explica Davide, com o carregado sotaque italiano.Desde 1998, quando os irmãos Auricchio vieram com o pai, Benito, de Battipaglia (província de Salerno, no sul da Itália), a La Bufalina cresceu e passou a vender não só para restaurantes, mas abriu duas lojas em São Paulo, capital. Hoje, fornece queijo para restaurantes como o Fasano e a pizzaria Bráz. "Vim com minha esposa em lua-de-mel e veio a idéia de produzir a mozarela no Brasil", conta Davide. A infância de Vittorio e Davide foi marcada pela produção de mozarela de búfala. "Crescemos juntos no laticínio do meu pai e no restaurante da minha irmã. Com 18 anos, a gente trabalhava nos fins de semana como garçom e, durante a semana, ajudava o meu pai", diz Davide. "Chegou um ponto em que era necessário se industrializar e produzir cerca de 2 mil quilos por dia, exportar, para concorrer no mercado. Ficou difícil porque a gente trabalhava com uma qualidade que não pode ser reproduzida em grande escala".Depois dos testes realizados e da região escolhida, os Auricchio compraram animais da raça mediterrânea, como as que são criadas na Itália. No início, eram apenas os dois irmãos, Benito e uma ajudante. "Produzíamos 250 quilos

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Caciocavallo é colocado aos

pares em peças de madeira (a cavalo).

Têm formato de pêras e um sabor

semelhante ao do provolone

Enit

ARTIGO DE LUXO

Os primeiros a fabricarem um queijo com casca, que podia viajar, foram os etruscos, há 2.500 anos. Era o piacentino, também chamado de grana padano. O parmigiano-reggiano, produzido apenas numa área restrita perto de Parma, Reggio Emilia e Modena, era guardado em cofres pelo povo da região, por ter um preço elevado. São necessários 600 litros de leite de vaca para fazer uma roda de 40 quilos, armazenada de dois a três anos antes do consumo.

Chalé

do Q

ueijo

O provolone tem a mesma forma de

produção da mozarela, mas as tiras são

cortadas, não rasgadas

a cada dois dias. A gente fazia a mozarela na segunda-feira e na terça de manhã eu e meu irmão íamos de furgão para São Paulo fazer a entrega. Na quarta de manhã começava a produção para entregar na quinta. E assim foi por pouco mais de um ano", lembra Davide. Com o aumento da produção, mais funcionários foram sendo contratados. Mas ainda hoje, a La Bufalina tem no total apenas cem pessoas trabalhando, desde a criação, na fazenda, até a entrega dos produtos e a administração das lojas. A produção diária chega a 500 quilos.As 500 búfalas leiteiras da criação têm uma dieta balanceada de cevada, massa de soja, polpa cítrica, farelo de algodão e capim selecionado (para evitar que elas consumam um vegetal ruim e, conseqüentemente, forneçam leite azedo). Além de garantirem uma variedade de nutrientes que faz com que elas gerem um leite de melhor qualidade, a massa de soja fortalece o animal, preparando-o para a gestação.Como as búfalas liberam o leite apenas com estímulo, os bezerros sugam o primeiro litro e depois mamam em vacas que são criadas na mesma fazenda. Da ordenha, feita às 5 horas da manhã, o leite vai direto para um tanque resfriador que movimenta a matéria-prima para que ela se mantenha homogeneizada, por cerca de 10 horas. Depois, o leite é pasteurizado e levado para a pequena fábrica atrás da loja, onde ele se transforma em queijo.Com o aquecimento, forma-se uma massa semelhante a um pudim. Ela é repartida para a separação do soro, que é deixado numa temperatura de quase 90 graus, sem fervura. Daí vem a ricota, colocada em formas redondas com pequenos orifícios para que o soro seja drenado. São produzidos, por dia, até 20 quilos de ricota.A massa que foi separada do soro é então cozida em água fervendo. "Isso garante a ausência total de bactérias", afirma Davide. "Por isso que, na

As mãos de Benito definem o ponto certo da massa

Os bezerros são alimentados com leite de vaca; as búfalas, com capim selecionado, massa de soja, cevada, polpa cítrica e farelo de algodão

Rafa

el C

apuani

Rafa

el C

apuani

Itália, a mozarela de búfala é servida em hospitais". É sempre um dos irmãos Auricchio quem mexe a mistura até que ela forme filamentos. Benito sente com as mãos se ela já alcançou o ponto certo. Quando isso acontece, o conteúdo de cerca de 20 quilos é despejado numa máquina que define o formato redondo da mozarela, menor ou maior de acordo com o pedido dos clientes. "Quando é para restaurantes de buffet, são as pequenas, as médias geralmente vão para as pizzarias", explica Davide. Do formato da mozarela, vem seu nome: mozzare significa rasgar. "Antigamente, na Itália, uma pessoa

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Do leite à mozarela de búfala

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segurava a massa no ponto e a outra rasgava com as mãos", conta Vittorio. As esferas brancas e brilhantes já apresentam a textura cremosa peculiar da mozarela de búfala quando, ao sair dos rolos que as deixam redondas, caem em um recipiente de água gelada, para que elas obtenham firmeza. Em seguida, são despejadas em tanques contendo sal e a água

“Nós fazemos a mozarela, não fabricamos”,

diz Davide

Rafa

el C

apuani

Fotos: Rafael Capuani

excedente que escorre da massa, que foi fervida e depois resfriada naturalmente. Essa mesma água vai para a embalagem. "A mozarela boa mesmo é um dia depois. Hoje é mezzo", afirma Davide. "Ela é ideal para finalizar risotos ou rechear massas", ensina Néri.Além da ricota e da mozarela, outro subproduto desse processo é a manteiga, que é feita a partir da gordura que resulta da fervura da água que escoa da massa. Mas, por enquanto, a produção de manteiga da família é apenas para consumo próprio. Eles pretendem estendê-la para os consumidores em breve, quando também passarão a produzir sorvete e iogurte de leite de búfala.

Clientes educados"A mozarela de búfala é um produto diferenciado, não é mozarela em tablete. É muito mais úmida, precisa estar fresca para o consumo", diz Davide. Nas lojas de São Paulo, o queijo chega às 8 horas da manhã e é vendido até acabar. "Quando chegamos aqui, vimos que a mentalidade das pessoas era a de que não podia faltar o produto na loja. Mas sendo um produto fresco, tem que acabar. Se o cliente chega para comprar e não tem mais, precisa voltar no dia seguinte", completa. "Entregamos todos os dias porque queremos que se coloque na mesa um produto fresco. Nós não fabricamos a mozarela, fazemos mesmo".

Depois de pasteurizado, o leite fica descansando até adquirir uma consistência semelhante à de um pudim.

A massa é quebrada e separada do soro que, aquecido a 90 graus, se torna ricota.

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Sem o soro, a massa é cortada em pedaços antes da fervura.

Aos poucos, adiciona-se água fervendo para cozer a massa, mexendo até que ela se transforme num filamento que se estica. Nesse ponto, tira-se o excesso de água.

A massa de até 20 quilos vai para a máquina que corta o queijo em formato redondo.

As esferas caem num recipiente com água gelada, o que dá a firmeza do queijo.

Depois de pronta, a mozarela vai para um tanque contendo sal e a água excedente do cozimento,que, depois de fervida e separada da gordura, é resfriada e embalada com o queijo.

La Bufalina Av. Macuco, 494, Moema

São Paulo/SP - Tel: 5051-2737 Rua Conselheiro Brotero, 1.080, Higienópolis

São Paulo/SP - Tel: 3825-8000

LiteraturaUm herói feito de pesadelosNarrador da obra mais recente de Antonio Tabucchi, Tristano relembra seus sonhos e angústias antes de morrer

A vida? O que pulula quando levantamos uma pedra e descobrimos um formigueiro: as formigas fogem, e continuamos a chamá-lo de formigueiro. "Fica-lhe o quê? Um buraco. Escave, e continue a escavar", diz Tristano, um ex-combatente das tropas italianas na Segunda Guerra. Um velho em seu leito de

morte que, diante de um escritor convocado para tomar-lhe o depoimento e registrar sua biografia, escava.O narrador de Tristano morre, de Antonio Tabucchi, escava porque, chegando aos 80 anos, e cansado de ser velho e de estar preso à cama, quer ao mesmo tempo se despedir e se renovar. Mas alerta: "Vou contar os pormenores desta história, acho melhor, vou ignorar o essencial, que nem precisa que lhe expliquem...". O essencial: como a vida de qualquer outro herói, a desse homem contém diversos pesadelos. Suas tormentas são os erros, as dificuldades, as deficiências. O filho que não teve, a noite de amor que não viveu, o tiro que não disparou. A noite: "Porque a noite arrasta consigo os sonhos, e sobretudo os pesadelos, e é difícil enfrentar os pesadelos, mais ainda do que enfrentar os nazistas, por aí se vê realmente quem é herói". A história: Tristano quis desertar das tropas italianas durante a invasão a Creta, mas terminou condecorado. Agora, vai morrer, porque se recusa a amputar a perna gangrenada. A ferida, já chegando à virilha, obriga-o a passar as horas deitado de bruços nas almofadas. Quando menino, conversava com as cigarras. Velho, não consegue se livrar do incômodo sonoro provocado pelas asas pesadas de uma mosca varejeira. Voltam-lhe, sobretudo, os momentos em que esteve de tocaia atrás de uma pedra, escondido entre as ramagens de um arbusto, oculto por uma rocha.Para justificar-se ao escritor convocado, Tristano compara sua decisão ao comportamento dos elefantes - que se distanciam da manada para

morrer. Saem sempre aos pares: o moribundo e um companheiro, que assistirá ao outro desenhar círculos na terra. O diâmetro da figura vai-se reduzindo a cada volta. O espectador não pode adentrar o espaço demarcado pelo companheiro, que morre só, embora observado. Findo o ritual, o animal testemunha junta-se novamente à manada.Assim como o elefante anunciando sua morte, Tristano traça círculos: reminiscências, desejos, fotografias, diálogos, alucinações. Algumas passagens são narradas mais de uma vez, e nunca da mesma forma. Ao contar os episódios que marcaram sua trajetória, o narrador as modifica: confundindo personagens, acrescentando detalhes, imprimindo-lhes suas frustrações. Os pormenores: as lentas tardes de domingo, em que Frau (amiga de infância criada com Tristano) lia poemas em alemão. A noite (ou o dia?) em que conheceu Dafne, a dos olhos de azeitona preta. O encontro com a guerrilha, a traição de sua amante. Uma papoula recolhida à beira das colinas gregas. A morte. Os episódios surgem em variações - como os improvisos de Schubert em Rosamunde, que Tristano evoca com freqüência para ilustrar a melancolia de sua história e de sua condição (e talvez também para marcar sua obsessão pelo passado). É doloroso ter as pernas gangrenadas, quase atingindo-lhe o sexo. Frau, ao seu lado desde o início, leva à cama doses diárias de morfina. Distinguir alucinações e devaneios e de memórias pode ser doloroso. A prosa poética de Tabucchi seduz em todos os momentos. Não há propriamente um fio condutor da narrativa, exceto a ansiedade do leitor por descobrir: afinal, quem é esse velho? Tristano pode ser Clark, Ninototo. Pode ser seu irmão. Rosamunda, Marilyn, Guaglioma, Dafne - são uma? O que não muda são as estrelas. Ele cresceu observando o céu pela luneta de seu avô. E recolheu miudezas com o microscópio de seu pai. Ao final, aprendeu: "A vida descobre-se a olho nu, nem demasiado longe, nem demasiado perto, na altura dos olhos".A narrativa de Tristano é polifônica e sinestésica.

Por Luisa Destri

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Nem sempre sabemos quem está falando ou com quais olhos ele observa sua história. Pelas mãos de Tabucchi, o depoimento oral assume o formato de um fluxo de consciência. Diálogos estabelecidos pelo narrador no passado tornam-se trechos de sua enunciação: o que havia sido dito ou escrito por Dafne, por exemplo, é incorporado à sua fala. De um episódio vivido por Tristano passa-se a uma interrupção feita por Frau, que aparece à porta. Tudo nos chega pelo suspiro do herói.Tristano morre é também uma reflexão sobre a literatura. Ao longo de seu depoimento, o velho reflete sobre as dificuldades de um escritor narrar uma história que não lhe é própria: como esse escritor (cuja identidade permanece oculta) poderá relatar com fidelidade o que se passou com Tristano se não estava lá? Como lidar com emoções que não são suas?Mas o desejo de registrar sua história é, em verdade, contraditório: "Não o chamei para você gravar a minha voz, não quero que a minha voz fique, além do que seria demasiado fácil, que escritor seria você?". E, no entanto, o escritor é, para o depoente, aquele que brinca com as emoções dos outros.E que escritor seria Tristano? Se decidiu testemunhar, é também um autor. Aqui está mais uma razão para não confiarmos na história (as outras: a memória, a morfina, a condição de um ex-combatente que não pode sair da cama).Além de marcado pelas recordações, o relato encerra diversas referências: aos poemas clássicos de Homero, às falas de Scarlet O'Hara, em E o vento levou, ao inseto de Kafka e ao êxtase dos místicos espanhóis. A Oscar Wilde e a Edgar Allan Poe.O discurso aparentemente hermético e intertextual exige um esforço de leitura. Não é preciso, contudo, que se conheçam todas as referências do texto - até porque não se esgotam com facilidade. Voltar a um trecho é descobrir outra poesia, perceber um novo sentido, encontrar um caminho diferente. A primeira, a segunda e as leituras seguintes são igualmente recompensadoras: no emaranhado de Tristano, encontramos lições, reflexões e imagens que poderiam ser nossas.Para o velho, o tempo se foi. O narrador obedece apenas a seu corpo: se está cansado, pára. Não há noites, não há dias. A janela de seu quarto permanece fechada. Tem dificuldade para olhar o relógio, mas são recorrentes as referências às horas - e, entre elas, reflexões sobre o tempo e o desejo. E o desejo de Tristano não morreu.Por mais freqüentes que sejam as tentativas de atribuir às narrativas do italiano Antonio Tabucchi um caráter de resistência política ou o mérito de refletir sobre a história contemporânea européia, o que lhe interessa em Tristano são, de fato, seus sonhos, medos e relatos.

Tristano morreAntonio Tabucchi

Editora Rocco/ 192 páginas

Trecho da obra

(...) E afinal o mundo é feito de atos, de ações... de coisas

concretas que acabam por passar, porém, porque a ação,

escritor, verifica-se, acontece... e acontece apenas naquele

preciso momento, e depois desaparece, deixa de existir, foi.

E para ficar são necessárias palavras que façam com que

continue a ser, que testemunhem. Não é verdade que verba

volant. Verba manent. De tudo aquilo que somos, de tudo

aquilo que fomos, ficam as palavras que dissemos,

as palavras que agora você escreve, escritor, e não aquilo que

eu fiz em determinado lugar e em determinado momento.

Ficam as palavras... as minhas... sobretudo as suas...

as palavras que testemunham. No princípio não era o verbo,

mas no fim, escritor. Mas quem testemunha pela

testemunha? A questão é esta, ninguém testemunha pela

testemunha... Feliz, infeliz, não é este o problema que me

coloco, sabe, escritor, aquilo que me consola é que nessa

grande soma, nessa odiosa soma de vocês cheia de números,

eu não apareço como uma unidade entre as demais, não me

incluíram na soma, vê, queriam-me par e eu era ímpar, fiz

com que errassem as contas... É a minha poesia das

segundas-feiras, ou das terças... a dos domingos, esqueci-a

porque não gostava dela, e ofereço-lhe esta.

(...) Mas apesar do que lhe dizia há pouco, tenho uma

vantagem em relação a você, amigo, eu sou sua voz e a sua é

a mera escrita, a minha é voz... a escrita é surda... estes sons

que você ouve agora no ar sobre a sua página irão morrer,

a escrita fixa-os e mata-os, como um fóssil cristalizado no

quartzo... a escrita é uma voz fossilizada, e não mais tem

vida, o espírito que possuía com aquelas ondas que vibravam

no espaço desvaneceu-se... dentro em pouco a minha voz

terá desaparecido, a sua escrita ficará... poderá gravá-la

com o seu instrumento, é certo, mas estará morta, uma vez

mais as palavras serão sempre as mesmas, imutáveis,

infinitamente desprovidas de vontade, não uma voz,

o simulacro de uma voz...(...) (p. 180)

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Eis que eu estava grávidaNo livro Em nome da mãe, Erri de Luca faz delicada criação literária sobre passagens não narradas na Bíblia

palavra é sopro. Mas, Aembora a Maria tenha sido concedida a graça de gerar o filho de Deus, os evangelhos

de Lucas e de Mateus, que descrevem o episódio da Anunciação, atribuem a ela apenas a seguinte fala: "Eu sou a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a Tua palavra" (Lucas, 1, 38).Entre a visita do anjo que lhe plantou a semente sagrada no ventre e o parto que realizou sozinha na manjedoura, a mãe de Jesus foi personagem de outras histórias: o casamento com José (que a aceitou, apesar de grávida), os conflitos com a comunidade (que a discriminou), o recenseamento ordenado por César Augusto e que levou o casal a Belém. Sempre personagem, nunca principal.Se a contribuição masculina para o nascimento de Jesus está ausente na concepção e se a mãe pôde, sozinha, cortar o cordão umbilical de seu filho, a Maria deve ser concedido o dom da voz. É o que faz o italiano Erri de Luca no livro Em nome da mãe: Maria (Miriam, em hebraico) torna-se narradora de sua gestação.Não se trata de um texto religioso, tampouco de uma subversão às escrituras sagradas - mas da expressão (romanceada) de uma mulher que aceitou sua missão e se manteve fiel à sua fé, a seu marido e a seus costumes.Como uma poesia, o relato de Maria é dividido em

estâncias. Com linguagem delicada e serena, a narradora descreve sua relação com José, a reação de outras mulheres à sua gravidez anterior ao casamento, as mudanças de seu corpo e as expectativas em relação ao filho anunciado.A grávida prepara-se para receber Jesus com gestos de amor. No início da manhã, sobre o telhado de sua casa, descobre o corpo para que ele receba a luz ainda branda do Sol. E lhe diz: "É a [luz] que te espera aqui fora. Não serve só para ver ao longe, também é calor. Sentes a onda que nos cobre enquanto estamos estendidos? Chama-se Sol. Os olhos não conseguem olhá-lo, mas os teus, sim, protegidos pela água do ventre".Mas é na noite do parto, já com o filho a seu lado, que a sensibilidade da narradora atinge seu máximo. Sentindo-se vazia, fica acordada até amanhecer, conversando com o bebê sobre o futuro, apresentando-lhe o mundo, examinando seu corpo. Quer que nessas horas de insônia sejam apenas os dois, mãe e filho sem pastores, sem romanos, sem José: “O que vier, amanhã e depois, será o contrário de agora, desta noite".

Em nome da mãeErri de Luca

Companhia das Letras/ 96 páginas

Além da macarronadaCozinha italiana completa não traz apenas opções de pratos, mas também um pouco da história de cada um deles

Peixes e frutos do mar. Ovos, aves e carnes de

caça. Massa. Cogumelos. Óleos, vinagres, ervas, especiarias e temperos. Leite e derivados. Vinhos, licores e destilados. Como podemos ver por alguns dos nomes dos capítulos desse livro, muito bonito e bem ilustrado, a cozinha italiana vai muito além do clichê da macarronada. Mas o objetivo do casal de autores não se limita a explicações culinárias e receitas. Ali são abordadas não apenas as diferenças geográficas e culturais nos hábitos

alimentares dos italianos, mas a própria história da alimentação no país.Um dado interessante - e relativamente desconhecido do grande público - diz respeito à influência estrangeira no que vemos como o mais tipicamente italiano na cozinha. O óleo de oliva, por exemplo, chegou às regiões da Apúlia e Sicília por meio dos gregos. Já a polenta, o milho e o tomate saíram da América para Veneza.Ao final de cada capítulo, um guia com verbetes de A a Z detalha não só a história, mas os diversos modos de produção e os usos culinários

Por Luisa Destri

Por Ana Luiza Daltro

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Para saciar nossa vontade de boas históriasEm coletânea de contos, Italo Svevo revela-se um grande narrador

crítico literário David Arrigucci Jr. nos define Ocomo homo narrator: "O homem é um animal narrativo". Todos estamos sempre atrás de boas histórias: ao perguntar para um amigo sobre as novidades, esperando o próximo capítulo da novela, descobrindo o passado da família. O enredo nem sempre é original - basta um jeito encantador de contá-lo.Exemplos de excelentes narradores e histórias sedutoras estão reunidos em Argo e seu dono, de Italo Svevo. O italiano, que inicialmente não conseguira reconhecimento em seu trabalho, foi redescoberto por grandes escritores, como James Joyce. O que torna deliciosos os oito contos da coletânea é o narrador - especialmente quando em terceira pessoa. Seu ponto de vista onisciente e imparcial sobre os pensamentos das personagens adquire mais importância do que a própria história.Em "A novela do bom velho e da bela jovem", o velho - que após apaixonar-se pela jovem decide escrever sobre moral - é tratado com ironia. É a partir da posição do narrador que somos compelidos a olhar com desconfiança para os pensamentos da personagem - que frequentemente culminam em aforismos:

"As mulheres bonitas sempre parecem antes de tudo inteligentes. Uma tez bonita ou um belo corpinho são de fato a expressão da inteligência mais absoluta".O homem em idade avançada que procura a juventude em relacionamentos amorosos é mote também para "O meu ócio". Nesta narrativa breve é o velho quem nos conta suas manias, sua hipocondria, suas teorias sobre o tempo e sobre a doença. Eliminado o narrador externo à narrativa, mantém-se, contudo, o distanciamento. É que os aforismos desse velho freqüentemente assumem um tom jocoso: "Emagrecer tampouco era fácil. Eu pesava então noventa e quatro quilos. Em três anos consegui diminuir dois quilos, portanto para chegar ao peso desejado por Raulli eu ainda precisaria de dezoito anos".Além do narrador, as personagens construídas por Svevo também são encantadoras. Até mesmo quando não se trata de pessoas. O cão Argo, do conto que dá nome ao livro, descreve com precisão a alegria dos homens: "Quando o dono quer rir fecha um pouco os olhos e abre a boca".

Argo e seu donoItalo Svevo

Berlendis & Vertecchia/ 191 páginas

de cada alimento. Em seguida, encontramos várias e inspiradoras receitas regionais - são mais de 175 no total.Um dos autores, Antonio Carluccio, possui um restaurante em Londres, o "Neal Street". Os negócios, que vêm se expandindo Reino Unido afora, compõem-se também de uma rede de lojas de especialidades italianas chamada "Carluccio's". Ele é autor de vários best-sellers sobre a cozinha de seu país e já fez duas séries para televisão.Antonio e Priscilla (também autora do livro) não

escondem a vontade de resgatar e preservar as tradições, mas levam em conta as perspectivas e necessidades do homem contemporâneo (bem como a crescente preocupação com o meio ambiente e a saúde). A principal idéia é a de que a excelência da culinária italiana deve-se à sua simplicidade e aos seus ingredientes genuínos e de primeira linha. Mas poderíamos acrescentar tranqüilamente a esses fatores a notável paixão dos italianos pela boa comida.

Cozinha Italiana CompletaAntonio e Priscilla CarluccioEditora Globo/320 páginas

Por Luisa Destri

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Canzone per SergioA trajetória do cantor Sergio Endrigo e seu namoro com o Brasil, um país que se emocionou com seu romantismo

Por José Henrique Lopes

uando, em setembro de 2006, se completou Qum ano de sua morte, a filha Claudia escreveu-lhe um depoimento em que lamentava não ter mais tempo para dizer o quanto gostava dele, nem para ouvir suas histórias, nem para vê-lo jogando cartas com os companheiros. Na mesma ocasião, Sergio Bardotti, um de seus principais parceiros musicais, manifestou-se com uma alegre mensagem, certo de que o amigo poderia agora desfrutar eternamente de algumas ilustres companhias, celebrando com o seu vinho, com a cerveja de Tom Jobim ou com o uísque de Vinicius de Moraes. Os dois depoimentos foram publicados no site oficial do cantor. Sergio Endrigo, falecido aos 72 anos em 8 de setembro de 2005, vítima de um câncer no pulmão, deixou órfãos não somente familiares e amigos, mas os fãs que, durante mais de quatro décadas, se emocionaram com sua voz em canções como Io che amo solo te, Era d'estate,

Música

Fotos: www.sergioendrigo.it

Ti amo e Canzone per te. A última, interpretada por Roberto Carlos, rendeu a Sergio seu único primeiro lugar no Festival de San Remo, em 1968, e carimbou o visto de entrada para o Brasil, país em que mais fez sucesso fora da Itália.Membro da comunidade italiana da cidade de Pula (Pola, em italiano), situada ao sul da Ístria (península do mar Adriático), região que hoje faz parte da Croácia, Sergio nasceu em 15 de junho de 1933 e herdou do pai, Romeo Endrigo, a inclinação artística. Autodidata, Romeo foi pintor, escultor e, na década de 20, chegou a se apresentar como tenor, mas sem grande sucesso. Como Sergio mal pôde conhecer o pai, já que ficou órfão aos 6 anos, só se inteirou da carreira musical deste graças a um caderno em que seu avô colava recortes de jornais com registros das apresentações de Romeo. Ainda criança, interessou-se pela música, sempre com o apoio da mãe, Claudia Smareglia.Aos 17 anos, após ser expulso por mau comportamento do colégio em que estudava, teve de começar a trabalhar e se mudou para Veneza, onde passou a se apresentar com amigos. Esperava que, cantando Frank Sinatra, pudesse ser descoberto por produtores que o levassem aos Estados Unidos. A carreira deslanchou somente em 1952, após a participação em um concurso de calouros do teatro Malibran, ainda em Veneza. Sergio não venceu, mas saiu de lá com convites para cantar em bares, restaurantes, clubes noturnos e bailes da cidade. Com isso, tinha início uma fase que durou até o fim da década, anos em que cantou com conjuntos musicais. Era uma vida divertida, mas que não lhe satisfazia. Ele queria fazer sucesso e rodar o mundo. Antes, porém, precisou escrever sua primeira canção, o que aconteceu somente em 1960, após assinar contrato com Nanni Ricordi. Questionado sobre a aptidão para composições próprias - que, até o momento, não existiam - enfurnou-se em casa e criou a balada Bolle di sapone. O primeiro sucesso veio em 1962, com Io che amo solo te, até hoje lembrada como uma de suas mais belas músicas. Entre 1959 e 2004, Sergio compôs cerca de 250 canções, Um galã romântico

à moda antiga

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Da parceria com Vinicius de Moraes (lembrado em ilustração da década de 1980), ficaram canções para crianças e versões do compositor brasileiro em italiano

Discografia de Sergio Endrigo no Brasil (LPs)

Sergio Endrigo - RCA Victor, 1963Endrigo - Fermata,1963Lontano dagli occhi - Fermata,1969I più grandi sucessi di Sergio Endrigo - RCA Camden,1969Grandes sucessos de Sergio Endrigo - Premier,1969Sergio Endrigo - Polydor, 1969Dieci anni dopo - Ricordi,1969Exclusivamente Brasil - Philips, 1979Força estranha - Philips, 1979A arte de Sergio Endrigo - Fontana, 1980Io che amo solo te - Lup, 1982E allora balliamo - RCA Victor, 1986Sergio Endrigo - RCA, 1986

distribuídas nos mais de cem álbuns que gravou, entre compactos, LPs, EPs e CDs. Escreveu livros e colaborou para outros - destaque para Quanto mi dai se mi sparo, publicado em 1995, no qual faz uma série de críticas ao mau momento atravessado pela produção musical italiana - e, como todo galã que se preze, também se aventurou no cinema. Em Tutte le domeniche mattina, de 1972, dirigido por Carlo Tuzzi, deu vida ao personagem Pino, que vivia numa colônia italiana na Suíça do pós-guerra e sofria com o preconceito por ser imigrante.

"A vida, amigo, é a arte do encontro"Dentre os mais de 20 países que o cantor visitou durante a carreira, como Canadá, Japão, Argentina, Grécia e Cuba, nenhum o acolheu tão bem como o Brasil. Veio ao país pela primeira vez em 1964, quando conheceu São Paulo. Mas em suas muitas outras visitas, pôde visitar o Rio de Janeiro, a Bahia, Curitiba, Belo Horizonte e Porto Alegre.Por aqui, fez amigos ilustres. Com Vinicius de Moraes compôs para crianças. Além da homenagem a seu papagaio, chamado Paco e cantado pelo poeta brasileiro em Il pappagallo, a parceria rendeu ainda La casa e L'arca, entre outras. Ao lado de Chico Buarque concebeu A Rosa, gravada no álbum "Exclusivamente Brasil", lançado em 1979. Nele, Sergio interpreta músicas de outros compositores brasileiros, como Café da manhã, de Roberto Carlos, e Carinhoso, de Pixinguinha e João de Barro. Dez anos antes, Toquinho emprestou seu talento e violão ao álbum "La vita, amico, è l'arte dell'incontro", talvez a maior celebração de seu encontro com Sergio Endrigo. No álbum, ao lado do poeta italiano Giuseppe Ungaretti, Sergio recita poemas e canta músicas de Vinicius traduzidas para o italiano. O Samba da benção, por exemplo, transformou-se no Samba delle benedizioni.

Canzone per teNo Festival de San Remo, em 1968, Roberto Carlos deu voz a Canzone per te, composta por Endrigo em parceria com o amigo Sergio Bardotti, e sagrou-se o primeiro intérprete estrangeiro a vencer a competição. Ao todo foram nove tentativas de Sergio no festival. Entre 1959 e 1969, o cantor vendeu mais de 1 milhão de discos. Nos últimos anos de vida, dedicou-se a uma autobiografia que não pôde concluir. O parceiro Sergio Bardotti morreu aos 68 anos, depois de uma parada cardíaca, no dia 11 de abril de 2007. Mas, a exemplo do amor cantado na própria Canzone per te, a poesia destes dois eternos românticos "foi tão grande que não sabe morrer".

Com Roberto Carlos, na premiação do Festival de San Remo em 1968

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A Bela de Roma Setenta anos de emoção comemorados por astros do cinema italiano

Cinema

Uma cidade cinematográfica de 600 mil metros

quadrados: 40 mil de praças e bosques, 12 palcos de filmagem, 12 oficinas para fabricação de cenários, cinco ateliês de costura, restaurantes, garagens, camarins e bibliotecas. Superproduções, astros e estrelas, diretores renomados. Hollywood? Não. Estes são apenas alguns atributos que fazem da Cinecittà um mito. A superprodutora italiana fundada nos anos 1930, próximo a Roma, às margens do rio Tibre, completou em abril setenta anos de história e participação no cinema italiano. Apesar de ter presenciado momentos difíceis como a 1ª Guerra Mundial, colaborou, com toda a sua estrutura, para anos de esplendor dessa arte. Atualmente, é local de filmagem para diversas produções italianas e estrangeiras, além de estúdio para programas de televisão. Os preços baixos e os amplos espaços são grandes atrativos para diretores de filmes históricos. Os primeiros filmes italianos inteiramente gravados ali foram Elevazione, Il feroce saladino e Aviazione, este último dirigido por Vittorio Mussolini, filho do general fascista Benito Mussolini. Nas comemorações, sensibilizados pelas lembranças da época, personalidades como Sophia Loren, Mauro Monicelli, Giuseppe Tornatore e Enio Morricone reuniram-se na grandiosa Cinecittà para homenagear os estúdios. A "Cidade do Cinema" foi fundada em 1937 para servir como meio de difusão do ideário fascista. Foi Luigi Freddi quem esteve à frente da Direção Geral de Cinematografia do governo da época e quem liderou a construção da produtora, que está localizada a cerca de 10 quilômetros do centro de Roma. No início, a "Hollywood italiana", como ficou conhecida por seu porte, foi

uma produtora de comédias rasas e de propagandas do regime Mussolini. "No entanto, apesar de produzir filmes sem quaisquer críticas ao regime, apenas 17 dos 279 rodados entre o ano de sua inauguração e 1943, quando houve a queda de Mussolini, foram de caráter exclusivamente de propaganda do governo", diz Maximo Barro, pesquisador e professor do curso de cinema da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap). Os outros filmes eram basicamente as comédias e os melodramas, além dos clássicos sobre história medieval.Durante a guerra, quando o alto poder da Itália se transferiu para Veneza, os estúdios chegaram a servir de depósito para material bélico para tropas alemãs, além de terem sofrido bombardeio aéreo da frente norte-americana. Tempos depois, nos anos de 1950, a Cinecittà despontou no cinema italiano. No pós-guerra, surgiu o Neo-realismo, movimento que ficou conhecido em todo o mundo. Sua principal intenção era transmitir nos filmes a veracidade daquele momento: os problemas sociais de um país em recuperação. Mas a "Hollywood italiana" não fez parte do movimento."Cinecittà era oposta a essa corrente. Ali se faziam filmes articulados, com roteiro, em geral históricos ou dramáticos. Um neo-realista não teria dinheiro suficiente para alugar um metro quadrado daquele estúdio", afirma Barro.Só com o fim do Neo-realismo, a Cinecittà passou a receber diretores como Luchino Visconti e Vittorio de Sica. Visconti filmou ali algumas de suas grandes produções, como Le notti bianchi (Noites brancas, 1957) e Bellissima (Belíssima, 1951), filme que retoma carac-terísticas da vertente anterior, com filmagens nas ruas e sob o argumento da pobreza. Com a chegada de tais diretores, os estúdios ficaram ainda mais conhecidos, uma vez que seus corredores estavam sempre tomados pelos mais talentosos cineastas da época, como Vittorio de Sica, Bernardo Bertolucci, Marco Belocchio e Pier Paolo Pasolini. No entanto, foi Federico Fellini, e sua paixão pelo extinto Teatro 5 (um dos sets de filmagem da produtora), o responsável por que Cinecittà mantivesse o encanto de um sonho extravagante posto em

Na "Hollywood Italiana" já foram

encenados filmes de Federico Fellini,

Bernardo Bertolucci e Pier Paolo Pasolini

Por Beatriz Scavazzini Fotos: www.artecinema.it

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prática. Ali foram construídos, entre outros, os sets de Le notti di Cabiria (Noites de Cabíria, 1957), Otto e mezzo (Oito e meio, 1963), e Il Casanova di Fellini (Casanova, 1976), alguns dos principais filmes do cineasta. A partir da década de 1990, novos materiais cenográficos, suas já conhecidas amplas dimensões e o aparato tecnológico de última geração tornaram-se os maiores atrativos do local, que tem no currículo filmes como Gangues de Nova Iorque, do diretor Martin Scorcese, e O paciente inglês, de Anthony Minghella. Cinecittà também foi palco de encontros como o dos atores Sophia Loren e Marcello Mastroianni no início de suas carreiras, e foi ali que a atriz Claudia Cardinale começou seus estudos sobre cinema: é parte do complexo da Cinecittà o Centro Esperimentale de Cinematografia, uma das mais importantes escolas de cinema que ainda hoje revela para a Itália grandes artistas. Pelos estúdios passaram também os brasileiros Carlos Alberto de Sousa Barros e Cesar Menolo, que fizeram ali o curso de cinematografia e, ao regressarem ao Brasil, filmaram o longa-metragem Osso, amor e papagaios (1957).

CINECITTÀ E SUAS PRINCIPAIS PRODUÇÕES: Quo vadis? (1949) - Mervyn LeRoyLa bella di roma (1955) - Luigi ComenciniBen Hur (1959) - William WylerOtto e mezzo (1963) - Federico Fellini, com Marcello Mastroianni C'era uma volta in West (1969) - Sergio LeoneCitta delle donne (1981) - Federico Fellini, com Marcello MastroianniThe talented Mr. Ripley (1999) - Anthony MinghellaBuongiorno, Notte (2003) - Marco Bellocchio Gangs of New York (2003) - Martin ScorceseMy house at Umbria (2003) - Richard LoncraineThe passion of the Christ (2003) - Mel GibsonUnder the Tuscan sun (2003) - Audrey Wells, com Mario Monicelli

Os sets do filme Gangues de Nova Iorque, de 2003

Para filmar a série Roma, do canal HBO, a antiga cidade foi reconstituída

PerfilPara além-marUm amor que começou em alto-mar e adotou o Brasil como cenário definitivo

a noite anterior à partida, o italiano que Ndeixava seu país teve um sonho: um jardim enorme e florido, e os vultos sem rosto de uma mulher e de um menino. Era uma premonição , " "afirma Sergio Pugno, de 78 anos, que veio da Itália em 1949, numa viagem que definiu seu destino. Ele é casado com Liliana, de 82 anos, que conheceu no navio, e com quem teve um filho - hoje com 55 anos. A harmonia na convivência do casal é evidente. Na sala da casa na Avenida Ultramarino, no Alto do Mandaqui (zona Norte de São Paulo), o espaço favorito de Sergio é o do aparelho de som. A vitrola, o CD player, vinis e CDs minuciosamente organizados indicam a paixão pela música. Sergio fala com entusiasmo da beleza do jazz com violinos, de seu gosto por MPB e dos que considera os melhores músicos do mundo. Liliana nem se atreve a mexer no móvel. "Vou para o meu canto e fico fazendo meus colares, precisamos ter nosso espaço individual também", conta. Ela garante que já fez quase 300 colares. Não são destinados à venda, mas dados como presente às pessoas próximas. O que os dois adoram dividir é a narração de sua história de amor. Não se cansam de repetir o quanto o destino tramou para que ficassem juntos.O Conte Grande era um transatlântico em viagem inaugural e foi indicado a Liliana - que voltava ao Brasil depois de uma visita feita a parentes em seu país de origem - como a opção mais confortável no momento do embarque. O mesmo aconteceu com Sergio, que tinha lugar reservado em outra embarcação para seguir para Buenos Aires, na Argentina, porque seu pai havia sido convidado para dirigir uma fábrica de biscoitos. As duas famílias aceitaram fazer a troca, e o navio partiu de Gênova, parando em vários pontos da Europa. A primeira vez que Liliana e Sergio se viram foi em Cannes, na França. A jovem de 22 anos havia notado a beleza e o porte do rapaz que chamara sua atenção já na Itália, mas ele ainda não a vira. Num desejo comum de contemplar a paisagem marítima, os dois procuraram o melhor lugar: ele ficou no passadiço, exatamente embaixo da ponte de comando; ela foi sozinha para a proa. "Eu vi o vento mexendo os cabelos dela, que eram pretos, e pensei: mas que mulher linda!", lembra Sérgio. "Aí ela se virou e nosso olhar se

encontrou, como se fosse um relâmpago, de tão rápido".Os cabelos dela, hoje, são loiros. Cachos bem arrumados, perfume suave, um lenço no pescoço e brincos de pérola. O olhar de Sergio ainda é apaixonado e retribuído pelo de Liliana, que segura firme nas mãos do marido enquanto lembra os primeiros momentos que os dois passaram juntos. "Na terceira classe do navio não tinha orquestra e, como eu sabia bem na época, todos me pediam para tocar piano", conta Liliana. Sergio a reconheceu tocando e, enquanto todos dançavam, aproximou-se e perguntou se alguém poderia substituí-la no instrumento, para que ele pudesse dançar com a moça. Um americano que tocava folk se ofereceu e o casal dançou. "Foi aí que começou o namoro, mas muito respeitoso", conta Liliana. O primeiro beijo só aconteceu dias depois. "Ele falou pra mim: 'vamos na primeira classe?' Queria beijar, lógico", lembra Liliana.O Brasil estava cada vez mais próximo, e o momento da separação também. Na despedida, trocaram fotografias, endereços, e derramaram muitas lágrimas. Combinaram que Sergio escreveria assim que chegasse "Eu, como mulher, não queria ser oferecida", conta Liliana. Assim foi: a primeira carta chegou e, por quatro meses, o casal se comunicou dessa forma.Uma das cartas que chegou era do pai de Sergio para o de Liliana. Ele explicava que seu filho estava disposto a se estabelecer no Brasil, já que havia se apaixonado pela moça que conhecera no navio. O pai de Liliana construiu, então, um quartinho nos fundos da casa para que o namorado de sua filha morasse. "Ele veio no carnaval de 1950, ficou até meio tonto com tanta folia", lembra Liliana. Depois de uma semana no Brasil, conseguiu um emprego como técnico em receptores de rádio e televisão e começou a guardar dinheiro para o casamento, que aconteceu um ano depois. Ela trabalhou, por trinta anos, na loja de seu pai. "A loja tinha de tudo: alumínio, aço inox, cristal, brinquedos, plástico, louça", conta ela. Hoje, os dois são aposentados e passam a maior parte do tempo cuidando um do outro. Sergio começou a escrever um livro sobre a história do casal. "Por enquanto só há uma máquina de escrever e rascunhos", conta.

Por Marcella Chartier

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Liliana e Sergio se encontraram num navio que vinha da Itália para o Brasil

O casamento já dura 56 anos e os dois se confessam apaixonados como nos primeiros dias de namoro

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Espaço Aberto

"De braços jogados por cima da mesa, olhos distraídos e fixos na ponta do lápis. Foi desfolhando a madeira, girando com a mão esquerda apertada o lápis que apontava com o estilete folgado na mão direita".Remexendo em seus papéis antigos, achou uma folha quase que em branco por completo, salvo por três linhas apertadas no início da página, escritas com um traçado fino e delicado, a lápis. Como era bonita a sua letra envelhecida. Ela (era Raquel o seu nome?) se distanciava um comprimento de seis anos incompletos dessas palavras justapostas em espera. Outras três linhas se perderam na brancura do papel, que levava um estigma em baixo relevo. Não satisfeita com o encontro de palavras emersas do tempo atravessado, tentou por vezes repetidas recompor o que insistia em se desfazer, em se manter afogado no atrás. E parou. A subseqüente tentativa foi a de copiar as frases incoercíveis (de tom inspirador) em seu caderno: lugar de continuidade, de expulsar o aprisionado em si - que agora resolveu, assim, sair. Ela (de onde vem a impressão de que se chamava Raquel?) queria ver se era capaz de organizar qualquer força, lá no emaranhado de idéias, angústias, conflitos, diário. E parou.Parou porque era só isso. Por cerca de meia hora, deteve-se em acomodar seu coração disparado que, paradoxalmente (entre o azul e o vermelho), batia ora em consonância com a ardência, ora em dissonância com o iminente. Tempo necessário para se dar conta de que perdera a energia e agitação do quando-levava-sardas-no-rosto. Dava-se conta de que os seis anos incompletos a distanciaram da habilidade em encobrir com máscaras brilhantes o que de medíocre lhe extravasava com facilidade - naturalmente - em palavras-palavras.E sem escrever mais uma palavra, com os braços jogados sobre a mesa, olhava atentamente para o seu reflexo no vidro escuro à frente. A todo custo, queria enxergar se suas maçãs do rosto estavam avermelhadas. Como as sentia arder. Será que isso lhe sobrara em si? Seis anos. Incompletos. Seus olhos caíram sobre o papel: sente a certeza de que sua letra não é mais tão delicada e cuidada, mas inquieta e grossa. O lápis já não risca o papel com tanta suavidade de uma ponta bem feita."Seu peito se agita, mas sua mão se mantém firme e imóvel. Deixa o lápis sobre o papel, o estilete paralelo à borda direita da folha em branco e se levanta. Vai dormir".É, parece que as via avermelhadas: vê o vermelho de suas bochechas, mas não vê o vermelho do seu cabelo, pois ele tem a silhueta desfigurada no reflexo do vidro negro. Talvez não fosse mais ruiva, agora que continuava sua narrativa. Agora que fazia uma pausa depois dos dois parágrafos na folha (o primeiro existente - resistente - o segundo insólito, não sólido). Reinicia mais uma vez. Agora sim, sente um pulsar firme no meio do seu esterno à altura da mesa alta. As mãos tremem num medo e isso a faz gostar do desenho das letras no papel - só. Vai, não quer romper o ritmo que imprime no seu recomeço determinado pelos pulsos do seu coração. Nem por um segundo cabe pensar no amanhã, no daqui-a-pouco; evidente: sentirá náusea (de remexer, de balançar). Seu corpo se desacostumou com o sabor dessas angústias passeando à toa por aí, e, por isso, perde-se com as novas-velhas reações.Sem entender o que a movimentava, portanto (talvez fossem as tais lições de que nunca se esquecera), deixou a mão direita desenhar as letras entre as pautas azuis, tentando alcançar qualquer coisa, à toa. Estava pronta sua história: curta, sem conflitos, sem cores, sem ação. Qualquer coisa. Distraída, só para começar, para tirar de si pensamentos que lhe pesavam sobre as costas. Joga o lápis sobre o papel e se levanta. Vai tomar café.

Reescritura

Carolina Guidorzi Troiano é ex-aluna do Colégio Dante Alighieri (turma de 2001)

Hoje, está no 9º semestre do curso de Letras na USP. 43

Ensaio fotográficoPor Luiza Fagá

Se a música é uma das

marcas mais fortes na cultura de qualquer país, a canção italiana não deixa nada a desejar. Além da herança culinária, os imigrantes trouxeram para o Brasil um pouco de sua música: seus sabores e sons exercem forte influência na cultura brasileira.As tradicionais cantinas do Roperto e L'Italiano (fotos) estão entre a profusão de restaurantes no bairro do Bixiga (ou Bela Vista), em São Paulo. Massa, molho e música típica, além de uma decoração em tons de verde e vermelho, formam a combinação perfeita para encantar os fregueses.

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Para falar com a fotógrafa, mande um e-mail para [email protected] ou ligue: (11) 8340-6055.

A produção é da banda

Ece Som, que se apresenta desde os anos 80 em alguns dos principais eventos da capital paulista originados do legado cultural italiano. O espaço entre o palco e as grandes mesas em que ocorre o jantar transforma-se aos poucos em pista de dança.

Durante os jantares,

os artistas tocam desde a tradicionalíssima e popular tarantela até a clássica ópera italiana, passando por ritmos contemporâneos. A dupla que anima as noites do Roperto passeia pelo restaurante com o violão e o acordeom, tocando entre as mesas repletas de clientes. A festa de São Vito, sediada em São Paulo há quase 90 anos (veja reportagem na página 16), é outra prova do interesse que a cultura italiana desperta nos brasileiros. Durante a espera na fila da porta, já é possível ouvir a música que acompanha os festejos.

Gastronomia

Por Silvia PercussiFotos: Tadeu Brunelli Aromas

fortes e

muito sabor Calábria é uma fusão de montanhas A

charmosas com um litoral maravilhoso, ruínas regas e belíssimas cidades. Com Polino sobre g

uma colina ao norte, Sila com seu platô arborizado ao centro, e Serre e Aspromonte nas colinas do sul, a região é uma península com 250 km de comprimento ao sul da Itália, deitada entre os mares Tirreno e Jônico.É uma terra áspera que dá perfumados frutos cítricos, azeitonas e vinhos. Na gastronomia dessa região, existem pratos à base de carne ovina e suína, de hortaliças (especialmente a berinjela) e de peixes. Por causa da falta de água no interior e do clima seco, uma característica especial dessa cozinha é o cuidado com a conservação dos alimentos em azeite ou como embutidos.Camponeses, pastores e pescadores passaram, ao longo dos anos, os segredos da preparação das hortaliças, das carnes, e de modo especial do porco e do peixe-espada - que é abundante nas águas da Sicília e Bagnara. Uma das técnicas mais tradicionais prevê o uso do azeite extravirgem de oliva, que, graças à sua ação isolante, protege os alimentos das bactérias presentes no ar. Passam por esse processo os inimitáveis tomates desidratados ao sol de verão, as berinjelas cortadas em filetes e as doces azeitonas pretas e verdes, que, juntamente com as alcaparras, se tornam um ótimo antepasto. E ainda alcachofrinhas, cogumelos porcini (que no outono invadem os bosques calabreses e podem ser preparados assados ou refogados com a

cebola vermelha de Tropea e as excepcionais batatas de Sila), além dos pimentões vermelhos que são o verdadeiro orgulho da região. Mas é sobretudo o mar da Calábria que oferece a matéria-prima para as conservas mais saborosas: os atuns pescados no mar Tirreno, com sua carne compactada e de cor inconfundível, sem falar nas sardinhas recém-nascidas e anchovas apimentadas que compõem a famosa sardella.Muito popular na gastronomia da região é o peperoncino, uma espécie de pimenta que, crua ou desidratada, é macerada no azeite, que tempera tradicionalmente os pratos da culinária calabresa.A produção de azeite calabrês não é apenas grande, mas de boa qualidade. Numerosos frantoios (moinhos) da região receberam os marcos D.O.C. (denominação de origem controlada) e D.O.P. (denominação de origem protegida), que são concedidos apenas aos melhores deles. A produção, feita com azeitonas colhidas de oliveiras selecionadas, é voltada para a obtenção de um azeite de sabor peculiar e altamente digerível. Não podemos deixar de mencionar os azeites aromatizados, obtidos por meio da maceração em azeite de oliva de espécies desidratadas ao sol: sabores como o alecrim, o limão, o orégano e o manjericão aromatizam com seu perfume as receitas dessa cozinha.Como não poderia ser diferente, os pratos populares da região também têm elementos que proporcionam aromas e sabores fortes.

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SardellaIngredientes: 8 xícaras de chá de água 4 pimentões vermelhos médios 6 colheres de sopa de azeite de oliva1 xícara de chá de sardinha anchovada escorrida2 colheres de chá de orégano1/2 colher de chá de pimenta calabresa

Modo de preparo:Em uma panela grande, no fogo alto, ferva a água. Junte os pimentões e ferva até a pele começar a se soltar. Escorra-os e passe-os em água corrente. Com uma faca, corte-os ao meio, descarte as sementes e tire a pele. Pique-os em pedaços. Numa panela média, em fogo alto, refogue o pimentão em 4 colheres de sopa de azeite, mexendo às vezes, até ficar macio. Deixe esfriar. Junte a sardinha anchovada e misture. Bata no liquidificador até obter uma pasta. Adicione o orégano, a pimenta calabresa, o azeite restante e misture. Coloque em uma tigela e sirva à temperatura ambiente.

Bucatini alla MolicaIngredientes:400 g de bucatini100 g de azeite100 g de casca de pão italiano ralado5 anchovas em conservaazeitonas pretas, alcaparras, sal e pimenta a gosto

Modo de preparo:Lave as anchovas e refogue-as em fogo lento, em 50 g de azeite, até se desmancharem. Acrescente as azeitonas e as alcaparras. Cozinhe a massa em bastante água fervente com pouco sal. Em uma frigideira, coloque o azeite restante, aqueça-o e em seguida toste a farinha de pão. Escorra a massa, tempere-a com a farinha de pão tostada e, em seguida, com o outro molho. Se desejar, sirva com a pimenta.

Crucette (figos recheados)Ingredientes:1 kg de figos secos200 g de nozes50 g de açúcar1 pitada de canelaFolhas de louro

Modo de preparo:Pegue os figos secos, corte-os ao meio e recheie com as nozes. Se desejar, acrescente amêndoas secas. Feche as partes do figo de modo a formar uma cruz. Pulverize-os com açúcar e canela e leve-os ao forno preaquecido até ficarem mornos. Duram muito tempo se mantidos em cestos forrados com folhas de louro.

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Azeites aromatizados

O azeite tem uma tendência a absorver aromas e sabores. Os ingredientes usados

para aromatizá-lo devem ser colocados para macerar dentro de uma garrafa bem fechada com uma rolha de cortiça, durante um período de três a seis semanas. Em seguida, filtra-se o conteúdo da garrafa e distribui-se em frascos menores.Veja as receitas mais usadas, com os ingredientes em medidas para meio litro de azeite.

Azeite ao alhoCinco dentes de alho jovem ligeiramente espremidos e sem a casca e alguns grãos de pimenta branca. Muito adequado para temperar saladas verdes mistas com pedaços de carne branca.

Azeite de especiariasUm pedaço de canela, dois cravos da Índia, uma raspa da casca de um limão sem a parte branca, um pedaço de gengibre e cinco grãos de pimenta do reino preta. É utilizado principalmente para temperar saladas de cenoura.

Azeite ao limão sicilianoLave e enxugue bem um limão, corte-o em pedacinhos e leve-o a macerar em um prato com sal até que não saia mais suco. Depois de três semanas, filtre. Excelente para temperar tomates e saladas.

Azeite al peperoncinoUm ramo de alecrim, três quartos de pimenta dedo-de-moça, uma folha de louro e três dentes de alho. Saboroso para ser degustado com saladas verdes mistas.

O "caviar dos pobres", por exemplo, é feito com ovas de anchovas colocadas sob azeite e aromatizadas com pimenta calabresa. A cozinha da Calábria fundamenta suas raízes na valorização dos produtos da terra (o cultivo de uvas é um bom exemplo disso), e muitas receitas foram alteradas com o tempo, enriquecidas com as experiências de diversos povos. Os gregos batizaram a Calábria de Enotria, que significa "terra do vinho". Com elevada

graduação alcoólica e resistência às viagens, os tintos calabreses difundiram-se por todo o Mediterrâneo na Idade Média. Hoje, a Calábria produz sete vinhos que possuem D.O.C., provenientes das cidades de Bivoggi, Ciro, Lamezia Terme e Castrovillari. A produção estende-se a dezenas de outros tintos e brancos apreciados no mundo todo. Típico também é o licor cremoso de nozes chamado Nocino. Mas o mais famoso produzido na Calábria é

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o Limoncello, obtido a partir da maceração de cascas de limão siciliano no álcool.Nas regiões montanhosas, a massa feita em casa é quase sempre acompanhada de ragu de carne de vitela e, em Aspromonte, entre as comunidades descendentes dos gregos, são preparados molhos com carne de cabrito. Em Sila, as carnes de caça são as prediletas, mas também se destacam a sopa de legumes condimentada com azeite produzido na região das colinas e bem

como as trutas e enguias das tratorias.É típico em todo o território o assado de cabrito. Mais especial, entretanto, é a preparação da cabra cozida allá bovese, e em Altomonte podem ser saboreados os deliciosos galetos ao forno. A Calábria é, portanto, uma região que oferece não só sua beleza natural, mas também produtos de qualidade que vêm de sua terra e formam um cardápio simples e variado, de temperos inesquecíveis.

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Turismo

Crotone, cidade banhada pelo mar Jônico, tem fortes influências da cultura grega

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Lembranças de uma história milenar

Lembranças de uma história milenarMesmo depois de tantos terremotos e ataques militares, a Calábria conserva sua beleza graças à força de seu povo, que a reconstruiu ao longo dos anos

Por Edoardo Coen Imagens: Ente Nazionale Italiano per il Turismo (Enit)

A Calábria dos romanos, até o século VII, era a península Salentina (Lecce). Somente no ano 650 d.C. os bizantinos deram o nome Calábria a toda a região de Brutium (extremo sul italiano, correspondente ao istmo formado pelos golfos de Santa Eufêmia e de Squillace e rematado pelo estreito de Messina). Hoje, entende-se por Calábria a região a sudeste da linha que corre entre Cetrano, no mar Tirreno, e as fozes de Crati, no golfo de Taranto. É formada pelo último trecho da cordilheira dos Apeninos, área com 210 quilômetros de comprimento até o estreito de Messina e com uma variação de 30 a 100 quilômetros de largura.Por causa de sua posição central em relação ao mar Mediterrâneo, a Calábria foi, desde o século VIII a.C., palco de várias invasões. Primeiro dos gregos, que, fundando em suas costas as cidades de Sibari e Crotone, fizeram da região o berço da cultura insuperável da Magna Grécia. Em seguida,

romanos, greco-bizantinos, normandos, angevinos e aragoneses sucederam-se na Calábria até os inícios do século XIX, quando, somada a outras regiões do sul italiano, fez parte do Reino das Duas Sicílias. Este último período foi de decadência e abandono, agravado em 1783 por um terremoto que arrasou cidades e lugarejos da Calábria. Com a incorporação ao Reino da Itália em 1860, as condições de vida melhoraram, mas houve freqüentes e longos períodos de crise decorrentes da primitiva economia da região e do fenômeno migratório, que deixou marcas profundas em todos os setores da sociedade calabresa. Somente com o fim da 2ª Guerra Mundial, e com o advento da República, houve um desenvolvimento acelerado dos centros turísticos do litoral, acompanhado por uma grande expansão dos núcleos urbanos.

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Percorrendo a Calábria

O aspecto dos centros habitados calabreses é pobre, e para isso contribuíram os sucessivos terremotos que destruíram obras de arte notáveis e forçaram a substituição de um estilo arquitetônico próprio por um conjunto de construções anônimas.A essência da Calábria pode ser encontrada nos antigos caminhos que levam a burgos seculares arraigados em colinas e montes, numa terra de ásperos relevos desenhados pelo curso das torrentes. O povo calabrês, apesar das dificuldades resultantes dos maus governos que se sucederam no transcorrer dos séculos, soube conservar uma genuína fé religiosa, aliada a um amor profundo pela própria terra. Seus hábito seguem os costumes e as tradições populares transmitidos pelos povos que invadiram a Calábria no passado.Iniciaremos nossa viagem pela auto-estrada A3, que, partindo de Nápoles, alcança Reggio di Calabria na extremidade da península italiana. Essa estrada acompanha o mesmo traçado da antiga via consular romana Popilia, que por um longo período foi o único percurso de acesso ao território. Depois de poucos quilômetros, à esquerda tem-se a visão de Laino Castello, vilarejo coroado com as ruínas de um castelo e protegido por muralhas medievais. Suas ruelas são ladeadas por antigas casas construídas em pedra e por palacetes de três andares. Dentro deles, em forma de arco, pequenos brasões permitem identificar seus antigos proprietários. Os que ostentam uma coroa são edifícios

construídos no século XIX; já os que exibem o relevo de um lírio pertenciam a antigos comerciantes que, substituindo a coroa, exprimiam sua fidelidade aos Bourbons franceses.Mais adiante, o perfil de Morano Calabro, um povoado realmente único que conserva a fisionomia primitiva: um cone moldado por antigas casas que tem, no seu vértice, as ruínas de um castelo normando do século XIII. As ruas são em degraus e formam um intrincado labirinto com as casas, as cocheiras e as velhas estruturas rurais, que marcam a característica pastoril do burgo. As igrejas mais interessantes podem ser encontradas na área baixa: a da Colegiada da Madalena, construída em cruz latina, com sua torre campanária em cúspide e sua cúpula decorada com maiólicas (cerâmicas porosas) coloridas; e a igreja de São Bernardino, que foi restaurada e mantém o estilo original do século XV.Prosseguindo a viagem, aparece Altomonte, chamado antigamente Brahalla, termo de origem árabe. Em seguida foi chamado de Altofiume e assumiu o nome atual em 1352 por vontade da rainha Joana II de Nápoles. Entre seus monumentos mais bem conservados destaca-se a igreja Santa Maria della Consolazione, o maior edifício sacro em estilo gótico da Calábria, com sua fachada decorada com uma finíssima rosácea. Anexo à igreja há um museu com preciosas pinturas, entre as quais a representação de São Ladislao di Ungheria, da artista Simone Martini. À esquerda da A3, encontramos a cidade

O Duomo de Cosenza, restaurado em 1184,

mantém o estilo românico original

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de Corigliano Calabro. O burgo nos aparece sobre uma colina circundada de oliveiras, com um castelo que parece dominar as casas em volta. Diz a lenda que o nome tem sua origem no grego korion elaion, que significa "jardim do azeite". Fundado no século XI, o núcleo original é o característico bairro Ognissanti com suas ruelas tortuosas. Digna de ser visitada é a igreja Madonna del Carmine, que conserva as três entradas em pedra, preciosas como o testemunho de uma interpretação meridional da arte gótica.Aos nossos olhos agora se descortina Rossano, que surge como uma ilha no mar verde das oliveiras. Fundada na época do Império Romano, a localidade teve sua maior importância na época bizantina no século VIII, a ponto de ser chamada de Pequena Ravenna. Em 1836, um catastrófico terremoto a destruiu quase que por completo e, por isso, seus edifícios e casas, principalmente os palácios do centro histórico, são parte dos esforços empregados para a reconstrução da cidade. Atração imperdível é a igreja bizantina de São Marco, no extremo limite do planalto rochoso, que foi construída entre os séculos X e XI em forma de cruz grega. No Museu Diocesano, está conservado o Codex Purpureus Rossanesis, um dos mais preciosos dos documentos medievais, que reproduz os evangelhos de São Mateus e de São Marcos. A nossa viagem prossegue. De Rossano nos dirigimos para Cosenza, que é um dos maiores centros da região, assim como Reggio di Calabria e Catanzaro. Construída a 240 metros acima do nível do mar, chamava-se antigamente Cosentia e era a capital dos Brutius, um antigo povo da região, antes da dominação romana. Três violentos terremotos, em 1783, 1854 e 1870, arrasaram o seu tecido urbano, transformando em escombros os testemunhos de sua história milenar. A Catedral, construída em 1185 em estilo românico-normando, foi restaurada em 1750 e conserva o portal e a rosácea na fachada. Em seu interior preservam-se os túmulos de Isabel, esposa do rei Felipe III da França, e o de Luís de Anjou, morto em 1435, dezoito meses depois de seu casamento com Margherita de Savoia. Seguiremos agora pela auto-estrada A3 até o vilarejo de Sant'Eufemia Lamezia. Depois de 37 quilômetros numa estrada secundária, chegamos a Catanzaro. Fundada no século IX como burgo fortificado pelos Bizantinos para fazer frente às incursões dos sarracenos, também Catanzaro foi devastada pelos terremotos. A sua Catedral, refeita em estilo neoclássico no século XVIII, teve seu traçado românico original desfigurado. Outras igrejas, como San Domenico, San Rocco e a Immacolata também se descaracterizaram no decorrer das reformas. Tomaremos agora uma estrada que, beirando o litoral banhado pelo mar Iônio, nos levará até Stilo, situada ao pé do monte Consolino e cercada pelos restos de antigas muralhas, no silêncio de uma natureza áspera e selvagem.

A cidade é conhecida por ser o local onde nasceu o filósofo Tommaso Campanella e por abrigar um pequeno templo chamado Cattolica, raro exemplo de uma tipologia difundida na Grécia e na Ásia Menor. O burgo conserva na arquitetura das construções uma singela marca medieval. As grutas escavadas na montanha, chamadas laure, foram as primeiras moradias dos monges ermitãos do Oriente, como comprovam alguns afrescos ainda visíveis nas paredes. A Cattolica é uma construção de mínimas proporções que possui cinco cúpulas cilíndricas, entre as quais a central: a mais alta. Por fora, tijolos vermelhos recobrem o templo, que abriga valiosos fragmentos dos afrescos bizantinos.Na pequena península no lado oposto a Stilo, na província de Vibo Valentia e região de Tropea, está Capo Vaticano, famosa pelas belas praias procuradas por turistas e por paleontólogos interessados em estudar os sedimentos do período Quaternário, presentes em seu solo. A 36 quilômetros, alcançamos Gerace, a "cidade dominadora", como foi chamada na Idade Média, por ser "guardiã" dos territórios circunstantes. Atacada muitas vezes pelos piratas sarracenos no século X, foi razão de ásperas disputas no decorrer do período medieval. Esses séculos

Praia de Vibo Valentia, província banhada pelo mar Tirreno

deixaram testemunhas notáveis, principalmente a Fortaleza e a Catedral, autênticas jóias arquitetônicas e artísticas. A Catedral, de origem bizantino-normanda e consagrada em 1045, foi restaurada várias vezes e possui três naves divididas por vinte colunas. A Fortaleza, já existente em 950, quando a cidade resistia aos ataques dos árabes, foi construída em volta de uma poderosa torre central. Na Idade Média era acessível apenas por meio da ponte levadiça. Hoje, está reduzida a escombros.Atravessando a ponta da bota italiana, a 40 quilômetros, está Scilla. A cidade deve o seu nome ao monstro mitológico, que, de acordo com antigos moradores da região, jogava os navios contra os rochedos. Como todas as localidades da região, que periodicamente eram saqueadas pelos piratas, Scilla tem também o seu castelo construído na segunda metade do século III e reforçado no século V pela família Ruffo. Assim como a construção é o emblema do poder cível e militar do lugar, a igreja dello Spirito Santo é o símbolo da devoção popular. Construída no século VIII, ostenta uma delicada fachada barroca.Reggio di Calabria, na ponta da península italiana, foi fundada por colonos gregos e tem o seu nome derivado do verbo grego rhegin, com o significado de "partido", "quebrado", definição que se refere ao processo que separou a Itália da Sicília. A cidade foi assolada em 1908 por um terremoto que a reduziu a escombros e provocou a morte de

12.000 pessoas. Hoje, é uma cidade nova e moderna. Interessantes, do ponto de vista turístico, são as torres quatrocentistas do Castello e o Duomo em estilo românico.A última cidade a conhecer é Pentedattilo. Numa paisagem misteriosa e atormentada, entre corroídas cristas de rocha, ela se esconde à sombra de um rochedo. A natureza deu ao gigantesco penhasco a forma de uma mão, origem do nome do povoado, que deriva do termo greco-bizantino pentadaktilos (cinco dedos). O centro, de origem bizantina, viu entre os séculos III e V florescerem igrejas e mosteiros do rito greco-bizantino. Hoje sobrou apenas a igreja di São Pietro e Paolo, em péssimo estado de conservação, e a igreja da Candelora, próxima a um convento dominicano em ruínas.Agora podemos realmente dizer que a nossa viagem terminou. É hora de deixar esta terra áspera e doce, cheia de tradições e lendas, onde o tempo parece ter estacionado por um momento de magia.

A terra áspera da Calabria, no Altopiano della Sila

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Cosenza

Catanzaro

Crotone

Vibo Valentia

Reggio Calábria

Calábria

Artigo

Um artigo publicado pelo psicanalista

Contardo Calligaris num jornal de grande circulação levou-me a refletir sobre situações do dia-a-dia vivenciadas com os nossos jovens e sobre o nosso papel de adultos educadores. O artigo citado questionava os motivos de os adolescentes sonharem apenas com um futuro acomodado e razoável.Acredito que exista uma crise de auto-estima que leva a maioria dos jovens a não apostar na capacidade de transpor obstáculos e de ir em busca d e s i t u a ç õ e s m a i s desaf iadoras. Querem sempre fazer o mínimo, o possível; contentam-se com o mais fácil, com o imediato; satisfazem-se em perma-necer no estágio de aco-modação.É evidente que numa época de tanto pessimismo, em que as previsões em relação ao meio ambiente, ao mercado de trabalho, aos índices de violência, entre outras, são negativas, eles têm dificuldade em elaborar um pro jeto de v ida, traçando objetivos a curto, médio e longo prazo. Começam a viver só o aqui e o agora e transformam, em sua imaginação, o presente em algo eterno. Vão deixando que as coisas aconteçam...

Por Silvana Leporace

Se os jovens não estão otimistas por desacreditar que possam construir uma sociedade mais justa e melhor para as próximas gerações, nós adultos precisamos ajudá-los a encontrar pontos de referência, mostrando que existem sempre muitas possibilidades e não só limites. Precisamos valorizar o esforço, o envolvimento de cada um, a curiosidade para ir em busca de novos

c a m i n h o s e c o n h e -cimentos, o empenho para alavancar mudanças, e não aceitar que eles não queiram ir além do que d e m o n s t r a m . E s s a exigência precisa permear todos os setores da vida, para que voltem a inquietar-se e para que se mobilizem em direção às mudanças.Tenho a certeza de que muitos leitores estão questionando como fazer isso, pois também estão desencantados com muitas s i tuações. Só posso reforçar e repetir que t raba lhemos com as possibilidades, por menores que sejam, e não apenas com os limites. Caso

contrário, repetiremos o chavão: "Cada época tem o adolescente que merece".

Silvana Leporace é coordenadora do Serviço de Orientação

Educacional do Colégio Dante Alighieri

Sonhando

baixo

Se os jovens não estão otimistas por desacreditar que possam construir

uma sociedade mais justa e melhor para

as próximas gerações, nós

adultos precisamos ajudá-los a encontrar

pontos de referência(...)

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Memória

O pátio do edifício Leonardo da Vinci, no Colégio Dante Alighieri, na década de 1960. Nos uniformes dos alunos, gravatas, sapatos e calças sociais. Na foto menor, o mesmo pátio, hoje.

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