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IV Seminário de Trabalho e Gênero protagonismos, ativismo, questões de gênero revisitadas ST-6 Trabalho e gênero em serviços: das formas atípicas ao profissionalismo Trabalho musical e gênero: identidade e arranjos domésticos Jordão Horta Nunes (UFG) Matheus Guimarães Mello (UFG) 26 a 28 de setembro de 2012, Goiânia

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IV Seminário de Trabalho e Gênero protagonismos, ativismo, questões de gênero revisitadas

ST-6 – Trabalho e gênero em serviços: das formas atípicas ao profissionalismo

Trabalho musical e gênero: identidade e arranjos domésticos

Jordão Horta Nunes (UFG)

Matheus Guimarães Mello (UFG)

26 a 28 de setembro de 2012, Goiânia

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Resumo: O objetivo é analisar o trabalho em atividades musicais no Brasil, a identidade social dos trabalhadores e os arranjos domésticos correlatos. O trabalho de músicos envolve várias atividades e evidencia uma miscelânea entre reconhecimento subjetivo, responsabilidade pela formação de novos músicos e precarização nas condições laborais e nas formas de contratação. A metodologia emprega técnicas quantitativas e qualitativas, recorrendo a bases de dados oficiais, surveys e entrevistas de profundidade com músicos selecionados a partir de resultados do survey. Os resultados evidenciaram dois processos de socialização musical, já presentes na literatura: familiar e religiosa. Uma análise fatorial corroborada por proposições presentes nas entrevistas indica que a rede de sociabilidade, mais que a rede de contatos profissionais, influencia o reconhecimento subjetivo e a atribuição institucional da condição de músico, ou seja, sua identidade social. Esta por sua vez compreende não só competência técnica e filiação a tendências musicais, mas motivações simbólico-religiosas e estratégias de gênero. As múltiplas atividades realizadas pelos músicos, dentre elas, o exercício da docência, influem no tipo de estratégia de conciliação de casais biativos, somando-se aos condicionamentos decorrentes da ideologia de naturalização das classes de sexo.

Palavras-Chave: Trabalho Musical; Arranjos Domésticos; Identidade. Introdução O trabalho dos músicos, geralmente ofuscado pela fruição dos ouvintes e pela análise

de suas obras ou realizações musicais no discurso comum ou da crítica especializada, tem sido pouco pesquisado na sociologia das ocupações e profissões, e mesmo na dimensão mais ampla de uma sociologia do trabalho. O tema já foi objeto, em meados do século XX, da análise seminal de Howard Becker em alguns artigos (1951, 2008 [1963]). Pierre-Michel Menger, meio século depois, analisando o trabalho dos músicos eruditos na França, atualiza a pesquisa sobre o mundo das artes empreendida por Becker e identifica nos compositores, criadores de novas tendências que só serão convenientemente apreciadas no futuro, os responsáveis pelas mudanças no mundo musical. Em Portrait de l´artiste en travailleur (2002), Menger considera o artista contemporâneo como um profissional irrequieto, inventivo e motivado que trabalha num regime de emprego hiperflexível e que, longe de desfrutar ou mesmo almejar a estabilidade da sociedade assalariada, alinha-se ao perfil de outras ocupações ou profissões num contexto de incerteza econômica e alta competitividade no interior da própria categoria. Entre o perfil do “trabalhador cultural”, outsider que se penitencia quando conduzido, por questão de sobrevivência, a se dobrar diante das facilidades da música ligeira e comercial e o profissional de alto nível, criador e empresário de si mesmo, capaz de suplantar os regimes de contratação ou vinculação intermitente que beiram a precarização, situa-se a maioria de trabalhadores que são professores de música, tocam em orquestras, mas também em bandas, apresentam-se em salas de concerto, mas também em bares e restaurantes, têm formação superior completa ou em andamento, além de outras possíveis combinações de atividades.

Esse tipo de trabalho em serviços musicais compreende o objeto desta comunicação e o objetivo aqui é analisar o trabalho em atividades musicais, a identidade social desses trabalhadores e os arranjos domésticos correlatos ao trabalho musical e às estratégias de

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gênero no setor. Foi realizado um estudo de caso em Goiânia, como suporte empírico para a análise aqui realizada.1 Outros objetivos da investigação foram: identificar as diferentes atividades musicais exercidas por músicos goianienses; compreender quais condições sociais e disposições são influentes na construção objetiva e subjetiva de suas identidades profissionais. A situação de trabalho de trabalhadores do mundo da música, prestadores de vários tipos de serviços, é caracterizada pela diversificação de atividades exercidas, num contexto em que ainda prevalece a falta de visibilidade e o prestígio social relativamente baixo da ocupação. A necessidade de estudar a rede de relações do mundo da música decorre do baixo número de pesquisas, pelo menos no contexto brasileiro, que centralizam os músicos “por trás da música”, e em menor número ainda estão aquelas que os abordam em sua dimensão social e profissional (LUDOVICO, 2007).

Segundo a Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios – PNAD, dos 129.577 trabalhadores em serviços musicais ativos em 2009, 9,9% deles (11.688) tinham um trabalho secundário na semana de referência. A porcentagem de trabalhadores com vínculos secundários em 2009 no Brasil (sem especificar o setor de atividade) foi de 4,8%. Dentre os músicos que tinham trabalho secundário, a maioria (34,7%) ocupava-se com ensino (particulares ou público) ou com outras atividades musicais (11%). Há considerável dispersão em outros setores econômicos, como os 10,3% dedicados a atividades pecuárias. Embora isso indique, por um lado, a extensão da indústria cultural no segmento sertanejo romântico, gerando postos de trabalho, depõe, por outro lado, contra o caráter profissional do trabalho musical. Vejamos, por exemplo, o contraste com o grupo ocupacional de médicos (código 2231 na CBO-PNAD). Dentre os 268.903 médicos em atividade em 2009, 52,1% (140.175) tinham um trabalho secundário. A faixa de trabalhadores não registrados no setor é proporcionalmente bem menor, pois a RAIS MIGRA2 2009 indica 193.966 vínculos formais, dos quais 24,43% (47.388) estão duplicados, ou seja, indicam mais de um contrato formal simultaneamente no mesmo período. No entanto, a PNAD, que inclui também os vínculos não formais, evidencia a diferença em relação ao grupo dos músicos: dentre os que mantêm trabalho secundário, 91,1% estão no mesmo grupo de atividades, ou seja, a medicina (como em contratos com outros hospitais e convênios); 4,5% dão aulas no ensino superior e o pequeno resíduo dispersivo ocupa-se, em geral, de atividades dirigentes, de alto nível de formação.

A estratégia metodológica consistiu em aplicar um pequeno survey com trabalhadores em serviços musicais, na cidade de Goiânia e, com base nos resultados, realizar entrevistas semiestruturadas com participantes selecionados da primeira etapa, além de eventuais outros escolhidos a posteriori. Foram respondidos 155 questionários por informantes selecionados por amostragem intencional em escolas de ensino musical, eventos de música, lojas de instrumentos musicais e entre alunos da Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás. O levantamento quantitativo captou

1 A pesquisa empírica em Goiânia foi realizada por Matheus Guimarães Mello, então bolsista de iniciação científica, entre 2008 e 2009 e já graduado em ciências sociais, em 2011 e 2012, sob orientação de Jordão Horta Nunes. Os resultados do projeto de pesquisa originaram também outras publicações: MELLO, 2011; NUNES, MELLO, 2011. 2 A RAISMIGRA é uma base de dados derivada do registro administrativo Relação Anual de Informações Sociais

- RAIS - e visa o acompanhamento geográfico, setorial e ocupacional da trajetória dos trabalhadores ao longo do tempo. Outras informações sobre bases de dados do MTE no Brasil estão em http://www.mte.gov.br/pdet.

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resultados de variáveis do perfil socioeconômico, perfil de carreira, representações sociais, atitudes e valores em relação à atividade ocupacional e aspectos da identidade profissional. A etapa quantitativa envolveu, além da análise estatística descritiva em bases administrativas de dados sobre trabalho (RAIS e PNAD) e no survey realizado, uma análise fatorial exploratória. Os fatores extraídos foram interpretados e auxiliaram a seleção de informantes, principalmente com base em contatos com músicos que haviam respondido o questionário e haviam concordado em realizar entrevistas. A análise qualitativa empregou basicamente o princípio da seleção gradual (FLICK, 2004, p. 81) com base na codificação (STRAUSS, 1987; STRAUSS, CORBIN, 2008;) de entrevistas e consulta de obras correlatas aos temas da identidade laboral e do trabalho em serviços musicais. A codificação envolveu um processo indutivo a partir de enunciados de autores e informantes agrupados em unidades hermenêuticas (MUHR, FRIESE, 2005, p. 28-9), mas também dedução com base em experiências de pesquisa já realizadas e incorporação de teorias e conceitos principalmente oriundos da sociologia do trabalho francesa, do interacionismo simbólico na análise de serviços e da conciliação família-trabalho. Recorreu-se, na análise qualitativa, ao aplicativo Atlas-ti.

Trabalhadores em serviços musicais: perfil e representações

Verifica-se, no Brasil, um aumento anual expressivo de vínculos formais nas famílias ocupacionais de músicos, compositores, arranjadores, regentes e musicólogos e na de músicos intérpretes. Enquanto o número total de vínculos empregatícios em serviços cresceu no Brasil 42% de 2003 a 2010, o número de vínculos na família de músicos cresceu 49%3, no mesmo período, segundo a RAIS-Trabalhadores. Contudo, o crescimento ocorreu na família ocupacional de intérpretes (código 2627 na Classificação Brasileira de Ocupações, que inclui cantores e instrumentistas, populares ou eruditos), enquanto a família de compositores, arranjadores e regentes não comportou crescimento. Se acompanharmos a posição de Menger a respeito do papel dos compositores como criadores e orientadores no quadro de profissionais de serviços musicais, diríamos que a ação do Estado, principal responsável pelo fomento da música erudita e do conjunto de orquestras e grupos musicais que administram vínculos, ainda que intermitentes - com arranjadores, compositores e regentes - não têm sido eficiente no Brasil, nesse setor. Por outro lado, sabe-se que o mercado se serviços musicais é pautado pela informalidade e precarização e que o número de atividades de trabalho não registradas é muito superior aos vínculos formais. A PNAD de 2009 registra, por exemplo, 129.577 vínculos de trabalho de músicos como estimativa com base na amostra nacional, ou seja, mais de dez vezes o número de vínculos formais no mesmo ano (11.109, segundo a RAIS). Entretanto, em relação ao número total de ocupados, seja formal ou informalmente, a participação do setor artístico ainda é pequena, quando comparada à de outros países, conforme atestou Liliana Segnini comparando políticas públicas culturais no Brasil e na França em pesquisa recente (2010).

O crescimento, ainda que relativo, no trabalho musical parece não inibir, no entanto, uma representação social comum sobre o trabalho de artistas em geral, dentre eles os

3 Em 2003 havia 16.370.539 vínculos formais em serviços; em 2010 o número foi de 23.268.395. Em 2003 havia 7.066 trabalhadores em vínculos formais de serviços musicais (4.431 compositores, arranjadores, regentes e musicólogos e 2.635 intérpretes); em 2010 o número sobe para 10.509 músicos (4.292 compositores, arranjadores, regentes e musicólogos e 6.217 intérpretes).

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músicos, a de que seriam, em função da criatividade associada a seu trabalho e a outros atributos do self de um artista, pouco apegados ao trabalho regular, padronizado e sistemático como, por exemplo, é o de um profissional técnico de alto nível ou um gerente administrativo. Sua condição e personalidade de criador seriam incompatíveis com as preocupações medíocres do trabalho cotidiano, reprodutor das condições materiais de vida e consumo básico. A representação revive a velha fábula de Esopo sobre a formiga “operária”, no trabalho cotidiano, regular, produtivo, e a desvalorização da cigarra “artista”, em sua atividade, sazonal ou esporádica, de cantar, como um não-trabalho. Pretende-se aqui questionar essa forma identitária que ainda permanece sobre o trabalho musical, sobretudo no campo que poderíamos chamar de crítica da música “ligeira” guiada pela indústria cultural, como diriam Adorno e Horkheimer, ou reorientada pela difusão globalizada e facilitação do acesso praticamente livre das formas e gêneros musicais no contexto da sociedade em rede (CASTELLS, 2005). O músico hoje precisa envolver muito mais trabalho na criação e constituição de uma rede de consumidores que frequentarão suas apresentações e adquirirão seus CDs ou arquivos de músicas individuais comercializadas na Internet. Mais ainda que no passado, o músico continua a dar aulas, criar composições encomendadas, como jingles ou trilhas sonoras, tocar em bares, festas ou cerimônias, participar de formações diferentes, cultivar gêneros e formas musicais diferentes, publicar obras didáticas e, sobretudo, participar de redes de relacionamentos específicas do mundo musical, como o MySpace. Essa multiplicidade de atividades certamente traz reflexo nos arranjos domésticos de casais biativos no mercado de trabalho, em que pelo menos um dos cônjuges é músico.

GRÁFICO 1 – RENDIMENTO DE MÚSICOS – BRASIL – 2009

Fonte: Microdados da PNAD – 2009 – Construído pelos autores

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GRÁFICO 2 – RENDIMENTO DE MÚSICOS

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Sexo

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Fonte: Survey da pesquisa. Construído pelos autores.

O perfil de rendimento dos músicos no Brasil, com base nos dados da PNAD de 2009 (Gráfico 1), associada à informação do Ministério do Trabalho e Emprego (RAIS) de que a média salarial dos vínculos formais em serviços musicais foi 3,63 salários mínimos, indica que a categoria recebe, em geral, uma remuneração relativamente baixa para o nível técnico que se exige na ocupação: 42,2% dos que trabalham com vínculos registrados têm nível de escolaridade maior que o ensino médio completo, segundo a RAIS 2010 e 58% têm de 11 anos de estudo completos, segundo a PNAD. A distribuição em relação a gênero é desigual: 84% dos trabalhadores são homens e 16% mulheres, segundo a PNAD; no mercado formal de trabalho a diferença é menor: 76% homens e 24% mulheres. Há uma interessante peculiaridade no setor, que se verificou na PNAD (Gráfico 1), na RAIS (a média de rendimento dos homens é 3,49 s.m. e a das mulheres é 4,09 s.m.) e na amostra pesquisada (Gráfico 2): a distribuição do rendimento mensal das mulheres é ligeiramente superior ao de homens, o que contraria a muito criticada tendência de falta de isonomia em relação a gênero. Comentaremos adiante esta característica.

O levantamento quantitativo indicou a distribuição de atividades entre os músicos pesquisados, por gênero, reproduzida nas Tabelas 1 e 2. A atividade docente, em aulas de educação ou teoria musical, além de aulas de instrumento, ocupa, para os homens, quase 30% do conjunto de outras atividades desempenhadas. Este fato evidencia a importância que tem o ensino musical na formação de uma rede do trabalho no mundo da música, pois os que efetivamente vêm a trabalhar no setor, mesmo os que se tornam concertistas ou solistas de renome, continuam a investir parte considerável de seu tempo de trabalho na formação de outras gerações. No entanto, entre as mulheres a porcentagem é ainda maior: 53%, distribuída em aulas de instrumento, de educação musical, de teoria musical e de canto ou técnica vocal. Vê-se que os homens desempenham mais atividades relacionadas à representação social do músico como performer, talvez aquelas mais comumente relacionadas ao self nos serviços musicais: tocar em orquestras ou grupos musicais, performance solo e composição. Também os homens predominam em atividades que possibilitam maior rendimento e estão relacionadas à reprodutibilidade técnica das obras musicais: trabalhar em estúdio de gravação, produzir jingles ou trilhas sonoras, produzir shows e espetáculos.

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TABELA 1 – ATIVIDADES DOS MÚSICOS - HOMENS– GOIÂNIA - 2009

Atividade N % respostas % casos

Aulas de instrumento 65 13,6% 60,7%

Casamentos (performance individual ou coletiva) 64 13,4% 59,8%

Aulas de educação musical 47 9,8% 43,9%

Igreja (performance instrumental ou vocal, coletiva ou individual)

45 9,4% 42,1%

Orquestra, banda, conjunto, duo, trio - performance instrumental coletiva

43 9,0% 40,2%

Estúdio de gravação 35 7,3% 32,7%

Performances solo 33 6,9% 30,8%

Aulas de teoria musical 31 6,5% 29,0%

Bares ou restaurantes (performance individual ou coletiva)

22 4,6% 20,6%

Produção de espetáculos e shows 15 3,1% 14,0%

Produção de trilhas sonoras e/ou jingles 13 2,7% 12,1%

Indústria Fonográfica 12 2,5% 11,2%

Composição 11 2,3% 10,3%

Outras 42 9,4% 39,30%

Total 478 100% 446,7%

Fonte: Questão com respostas múltiplas do survey realizado. Construção dos autores

TABELA 2 – ATIVIDADES DOS MÚSICOS – MULHERES – GOIÂNIA - 2009

Atividade N % respostas % casos

Aulas de instrumento 32 19,5% 71,1%

Aulas de educação musical 25 15,2% 55,6%

Casamentos (performance individual ou coletiva) 20 12,2% 44,4%

Aulas de teoria musical 19 11,6% 42,2%

Igreja (performance instrumental ou vocal, coletiva ou individual)

18 11,0% 40,0%

Aulas de canto ou técnica vocal 11 6,7% 24,4%

Orquestra, banda, conjunto, duo, trio - performance instrumental coletiva

8 4,9% 17,8%

Performances solo 8 4,9% 17,8%

Musicoterapia 6 3,7% 13,3%

Estúdio de gravação 4 2,4% 8,9%

Produção de espetáculos e shows 4 2,4% 8,9%

Produção de trilhas sonoras e/ou jingles 3 1,8% 6,7%

Composição 2 1,2% 4,4%

Outras 4 2,50% 8,90%

Total 164 100% 364,40% Fonte: Questão com respostas múltiplas do survey realizado. Construção dos autores

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Quando questionados a respeito da motivação por que vieram a estudar especificamente ou se aperfeiçoar em música, a resposta mais frequente (21%) contemplou a própria escola, dentre alternativas apresentadas, como a família, a religião, os meios de comunicação de massa ou a própria produção musical difundida pela indústria cultural. No entanto, essa importância contrasta com a resposta apresentada pelos músicos quando indagados a respeito dos motivos pelos quais vieram a trabalhar com música. A motivação é atribuída a fatores subjetivos, como gosto ou prazer (31%), vocação ou talento (24%), realização pessoal (15%), em detrimento de fatores objetivos como oportunidades no mercado de trabalho (7%), influência institucional (família, religião, formação escolar). Por outro lado, a ambiguidade diminui quando os músicos reconhecem as aulas de instrumento musical como atividades da ocupação com a qual mais se identificam (17%), seguidas da performance solo (13%) e aulas de educação musical (10%), em destaque no conjunto de uma miríade de outras atividades, como tocar em igrejas, casamentos e bares ou produzir espetáculos e shows.

Dilma Pichoneri analisou, em tese recentemente defendida (2011), a posição de músicos que adquirem uma condição relativamente estável num corpo de orquestra em São Paulo, ou seja, aqueles que se aproximariam mais do estatuto de profissionais stricto sensu, a respeito de atividades de docência, em relação a atividades de performance solo ou em formações como grupos de câmara, com intenções artísticas mais explícitas: embora seja uma opção que garante o trabalho, “nem sempre viabiliza a permanência como músico, pois os conhecimentos e o treinamento exigido são muito diferentes. Assim, como todos os entrevistados afirmaram o sonho profissional de serem músicos de orquestra, o caminho da docência pode consistir um desvio na trajetória”. Portanto, no caso mais específico de músicos de orquestra ou que se dedicam mais ao gênero erudito, mantém-se a perspectiva identitária relativamente ambígua, de reconhecer a performance artística como a atividade mais importante e não valorizar a atividade do ensino musical, cuja recepção bem sucedida que deu origem à própria expertise que torna possível a condição de solista ou de integrante de corpos musicais estáveis.

No entanto, é curioso notar que essa identificação com as atividades exercidas possui uma distinção de gênero subjacente, que cabe ressaltar com o objetivo de compreender como alguns processos de socialização influem na constituição do perfil de trabalho. Ao indagados sobre qual consideram a principal atuação profissional, 64,1% dos homens consideraram-se primeiramente como executantes e 31,1% como professores de música; enquanto que entre as mulheres, 18,2% consideraram-se como musicistas executantes e 77,3% como professoras de música. Mais do que somente a identificação, a maioria das mulheres está concentrada nas atividades de ensino: ao passo que 40% dos homens trabalham em orquestra, banda ou outras performances coletivas, apenas 17,8% das mulheres estão envolvidas com essa atividade; 20% dos homens se apresentam em bares e restaurantes contra 2,2% das mulheres. Enquanto isso, 60% dos homens dão aulas de instrumento contra 71,1% das mulheres; 43,9% dos homens dão aulas de educação musical, com 55,6% das mulheres fazendo o mesmo.

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GRÁFICO 3 – TEMPO DE FORMAÇÃO MUSICAL

Fonte: Survey da pesquisa. Construído pelos autores.

GRÁFICO 4 – NÍVEL DE ESCOLARIDADE

Fonte: Survey da pesquisa. Construído pelos autores.

Para compreender esse fenômeno é preciso levar em conta que a própria entrada das mulheres no meio do trabalho musical se dá com uma avaliação da possibilidade de "se manter" nessa área. Justamente nas atividades de ensino torna-se possível manter maior estabilidade no emprego, ao contrário de apresentações em bares, por exemplo, onde o trabalho é esporádico e quase sempre realizado como freelancer.

Há bem menos mulheres iniciantes proporcionalmente ao conjunto de profissionais, pois elas só se “arriscam” após terem uma formação musical segura. Percebemos isso no Gráfico 3, onde as mulheres possuem em média, um tempo de formação musical maior do que os homens. Isso fica ainda mais evidente no Gráfico 4, que indica que praticamente não há mulheres com escolaridade abaixo de ensino superior incompleto, enquanto que metade dos homens está na faixa do ensino fundamental até ensino superior incompleto. Dessa forma, temos agora uma interpretação plausível para o fato de as mulheres possuírem um rendimento médio maior: elas investiram mais na formação e priorizam formas de trabalho mais estáveis. Toda essa diferenciação de gênero está, portanto, centralizada no fato das mulheres de forma geral procurarem desde cedo priorizar o que oferecer mais segurança, o que não indica, entretanto, que sua carga de trabalho seja menor ou que se envolvam com menos atividades musicais diferentes simultaneamente.

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GRÁFICO 5 – TEMPO DE ESTUDO DIÁRIO

Fonte: Survey da pesquisa. Construído pelos autores.

Isto nos leva a acrescentar mais um fator explicativo, a possível e comum sobrecarga das atividades domésticas com as atividades profissionais, uma preocupação que as mulheres em geral ainda têm de levar em conta; daí a preferência por empregos cujos horários possam ser mais ou menos controlados. Podemos ver como isso influencia no exercício do trabalho musical no Gráfico 5, onde claramente os homens dispõem de mais tempo para estudo e treinamento, uma parte importante para o aperfeiçoamento qualquer que seja a atividade exercida.

A questão das estratégias de gênero no âmbito de arranjos domésticos constitui outro ponto importante na investigação do trabalho musical no Brasil. Sabe-se o casamento entre músicos é muito frequente (Cf. PICHONERI, 2011, p. 102-104), o que dificulta ainda mais uma igualdade entre sexos no que se refere a alcançar a excelência da performance musical, já que, nesse caso, a mulher estaria mais ainda “naturalmente” direcionada ao trabalho pedagógico, de ensino musical, até para proporcionar o tempo que o parceiro necessita para seu aprimoramento. Algumas pesquisas já realizadas sobre o tema no Brasil (BRUSCHINI (2000, 2006, 2007); BRUSCHINI, RICOLDI, 2009; NUNES, 2011) indicam um diferencial de gênero em relação ao tempo ocupado em afazeres domésticos. Verifica-se, com base na PNAD (Cf. NUNES, 2011) que 63,3% dos trabalhadores ocupam-se de atividades domésticas em 2009 e que, dentre os que se ocupam, há uma ligeira predominância de mulheres (56,8% para 43,2% de homens). Porém, dentre os que não se ocupam, apenas 12,8% são mulheres, o que conduz a inferir que, mesmo quando o trabalho doméstico é terceirizado, com a contratação de mensalistas ou diaristas (já que a amostra selecionada exclui chefes de família e cônjuges que não trabalham), é pequeno o percentual das que deixam totalmente os afazeres domésticos, em relação a 87,2% de homens que o fazem. Além disso, a média de horas semanais trabalhadas pelas mulheres ocupadas no trabalho mercantil que cuidam de afazeres domésticos é 21 horas, enquanto a média dos homens é de apenas 9 horas. Esta não é uma situação destoante do que ocorre em nível internacional, em que a partilha do tempo doméstico entre homens e mulheres é relativamente estável em diversos países: as mulheres se encarregam do tempo cuidando de afazeres domésticos de 60% a dois terços em relação aos homens (Cf. RIZAVI e SOFER, 2008)4.

4 O resultado aqui obtido apenas pode ser comparado por analogia em relação ao que se obteve em pesquisas como a de Sayyd Rizavi e Catherine Sofer, em que se tratava de analisar o compartilhamento do tempo do trabalho doméstico por casais. Os critérios de amostragem e as variáveis trabalhadas na PNAD não permitiriam esse tipo de análise, mas possibilitam uma inferência indireta. Os estudos comparativos internacionais apontam que a partilha é muito desigual e desfavorável às mulheres em tarefas como limpeza e lavar roupas e aos homens em consertos, reparação ou manutenção de equipamentos domésticos ou do carro. Uma partilha mais igualitária ocorre apenas em tarefas como as de compras ou, em alguns casos, cozinha.

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A assimetria entre o tempo médio ocupado por homens e mulheres nos afazeres domésticos é ainda mais pronunciada na família ocupacional dos músicos: 26 horas semanais para as mulheres e 12 para os homens, comparada com 21 horas para mulheres e 9 para homens para trabalhadores em geral ocupados na semana de referência em 2009. Contudo, a distribuição mostra nuanças próprias quando relacionada com variáveis que a influenciam significativamente, como renda e escolaridade. Nos dois casos (Gráficos 6 a 9) vemos a inversão da correlação negativa entre renda ou escolaridade e tempo dedicado a afazeres domésticos, mais pronunciada nas mulheres do que nos homens. Nos trabalhadores em geral, quanto mais elevada a escolaridade, menos tempo se gasta com atividades domésticas, de forma mais relevante entre as mulheres, conforme indica o Gráfico 6. O rendimento também apresenta o mesmo comportamento, em que a faixa de rendimento domiciliar per capita (PNAD 2009) está associada ao trabalho doméstico (doravante TD) e ao sexo (Gráfico 8). Por um lado, é evidente que um poder aquisitivo mais alto permite a aquisição de equipamentos que aliviam o TD, como máquinas de lavar, fornos de micro-ondas, mas também alimentos congelados e preparados para consumo, o que pode reduzir o TD, embora não necessariamente a diferença na partilha entre homens e mulheres. O fator mais significativo, talvez, relacionado aos rendimentos, seja a possibilidade de terceirizar o TD, contratando empregada doméstica. Os gráficos ressaltam, no entanto, uma notável discrepância entre homens e mulheres no que se refere a incorporar os efeitos de rendimentos ou da escolaridade mais elevados sobre o tempo de cuidado a afazeres domésticos. As mulheres são muito mais suscetíveis a esses fatores.

GRÁFICO 6 – TRABALHADORES OCUPADOS EM 2009 – ESCOLARIDADE X TEMPO

DE DEDICADO A AFAZERES DOMÉSTICOS

Fonte: PNAD Pessoas 2009 – Construção dos autores

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GRÁFICO 7 – TRABALHADORES MÚSICOS OCUPADOS EM 2009 – ESCOLARIDADE

X TEMPO DE DEDICADO A AFAZERES DOMÉSTICOS

Fonte: PNAD Pessoas 2009 – Construção dos autores

GRÁFICO 8 – TRABALHADORES OCUPADOS EM 2009 – FAIXA DE RENDIMENTOS X

TEMPO DE DEDICADO A AFAZERES DOMÉSTICOS

Fonte: PNAD Pessoas 2009 – Construção do autor

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Entre os trabalhadores em serviços musicais, a situação é outra. Ainda que se verifique a tradicional sobrecarga das mulheres em atividades domésticas, efeito de uma naturalização de gênero, o tempo em afazeres domésticos aumenta com a escolaridade, para os homens de forma mais discreta, para as mulheres de modo pronunciado. No caso dos rendimentos domiciliares per capita, não é possível considerar uma correlação positiva ou negativa, mas é possível notar uma carga no TD maior na faixa de 2 a 5 salários mínimos de rendimento, que fica um pouco acima da faixa modal de trabalhadores em música no Brasil. Com esses dados é possível conjeturar que, em domicílios onde há músicos trabalhando a terceirização do TD é menor e a sobrecarga da mulher em afazeres domésticos é ainda maior, mesmo nos casos de escolarização mais elevada e, possivelmente, de expertise técnica maior, das mulheres envolvidas. Porém há dois fatores que nos levam a questionar esse tipo de explicação para o caso de músicos. Primeiramente há os exemplos de casais biativos que trabalham em atividades diferentes e não correlatas. Nesses casos a colaboração mútua em atividades laborais não ocorre e a solução para os afazeres domésticos pode privilegiar a terceirização, ou seja, o emprego de funcionários domésticos. O depoimento de Benjamin, músico há 30 anos, 48 anos, casado, 3 filhos, e professor em instituição federal de ensino superior, cuja esposa administra uma academia de ginástica, é exemplar nesse sentido:

Levar trabalho pra casa é muito chato, a discussão do que aconteceu em casa, os dissabores do trabalho isso é chato. Eu acho uma coisa

GRÁFICO 9 – TRABALHADORES MÚSICOS OCUPADOS EM 2009 – FAIXA DE

RENDIMENTOS X TEMPO DE DEDICADO A AFAZERES DOMÉSTICOS

Fonte: PNAD Pessoas 2009 – Construção do autor

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difícil de conciliar é o trabalho dela com os meus, ela volta muito tarde pra casa, e eu passo muito mais tempo em casa do que ela, quando eu estou em Goiânia, então isso afeta de alguma forma. Você tem que estender de alimentação e coisas nesses sentidos, no mais é tranquilo.

A família de Benjamin é composta, em sua maioria, por mulheres; há duas filhas e a

sogra, que também mora no domicílio. Contam também com empregada doméstica. Benjamin declara que nunca teve problemas para conciliar trabalho e família, a não ser quando a primeira filha era muito pequena e ele trabalhava como músico de orquestra e na UFG:

A gente tem uma equipe em casa. Fora os habitantes naturais da casa, minha esposa, duas filhas, hoje minha sogra mora comigo, tem gente pra trabalhar lá em casa sempre, então isso ajuda muito, os afazeres domésticos mesmo só em finais de semana. Então nós ficamos muito juntos, a gente divide as coisas, supermercado, que eu não gosto muito, feira muito menos, mas a gente tendo um ou outro pra fazer a gente divide tranquilo, nem sempre tranquilo, mas concilia.

Por outro lado, há casos em que a conciliação torna-se imprescindível em virtude do

tempo que o músico deve dedicar ao treinamento, a que se acrescenta geralmente a docência. A participação do cônjuge, nesses casos, é fundamental. Carolina, 39 anos, que trabalha com música há 15 anos, pianista e professora universitária, casada, com uma filha, declara:

O que acontece a minha profissão está na minha casa, está na minha família o tempo inteiro. A minha família é muito envolvida nisso, meu marido já carregou músico pra cima e pra baixo, vai aos concertos e prestigia; eu acho que se ele não fosse uma pessoa assim, que aceita aquela música 24 horas na minha vida, provavelmente não daria certo.

Carolina também conta com a ajuda de empregada doméstica e faxineira, mas

ressalta que o empenho na organização é fundamental para todos na família: “tenho a sorte do meu marido adora fazer supermercado, uma funcionária boa que cuida da minha filha, comida ela faz; tem uma faxineira que organiza ali, assim, a gente vai mantendo, minha filha me puxou e ela também é organizada nas coisas dela”. No entanto, a conciliação pode também abranger atividades relacionadas à rede de relações e convenções que envolve o trabalho dos músicos. Esta rede, conforme a análise de Howard S. Becker, envolve técnicos de som e iluminação, afinadores, luthiers, empresários, copistas, arranjadores, proprietários de estabelecimentos, além de pessoas que integram a rede de sociabilidade dos músicos desde o núcleo familiar e sua extensão, até amigos, admiradores ou meros espectadores ou ouvintes (Cf. BECKER, 1984). Cássia, 44 anos, dois filhos, hoje divorciada, combina as atividades de pianista e produtora de shows com um emprego fixo de assistente social num Centro de Assistência Psicossocial em Goiânia. Com um histórico de trabalho em música há

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30 anos, relata a colaboração de seu ex-marido, com quem conviveu durante vinte anos: “quanto às atividades domésticas eu nunca tive ajuda, ele nunca se propôs a fazer, mas era uma pessoa que investia no Fé Menina [grupo vocal do qual faz parte], fazia as capas Fé Menina, era responsável por nosso todo visual, era compositor, nós temos músicas em três discos, então era muito parceiro nesse sentido, nunca cobrou eu chegar em casa de madrugada, viajar”.

O relato de Simone, casada, 43 anos, uma filha, é exemplar no aspecto de uma conciliação trabalho e família bem sucedida, sem terceirização do trabalho doméstico:

A ajuda do meu parceiro é fundamental; se eu não tivesse o meu parceiro comigo eu teria que contratar uma pessoa ou colocar numa creche; mas a gente não quis essa opção, colocá-la com menos de três anos numa creche. A gente está planejando colocá-la com quatro anos na escola, mas é fundamental ajuda do parceiro, porque além dele eu não tenho outra pessoa que possa me ajudar. Minha mãe faleceu, minha sogra não mora em Goiânia, então hoje seria o meu parceiro ou seria uma babá. Felizmente eu e ele estamos conseguindo, com muito sacrifício a gente está conseguindo. Até hoje ela não teve babá, foi uma opção nossa, é uma opção difícil, de muito sacrifício, mas a ajuda dele está sendo fundamental.

Embora a pesquisa não tenha abarcado propriamente os tipos de estratégias e

redivisão de atividades ou papéis nos arranjos de conciliação família e trabalho, os relatos evidenciam um tipo de abordagem familista, que preconiza um contrato entre os pais, apelando principalmente a seu “sentido individual de responsabilidades e às solidariedades familiares e coloca pouco em questão a tradicional divisão sexual dos papéis” (DESCARRIES, CORBEIL, 2005, p. 63). De forma geral, se está distante, no Brasil, do desenvolvimento de um enfoque coletivo ou sociológico da conciliação família e trabalho, concebida como uma responsabilidade social e efetivada como ação articulada do “conjunto de atores sociais para assegurar uma melhor harmonização das responsabilidades familiares e profissionais” (id., ibid.). Embora se registre a aprovação de projetos sociais correlatos à conciliação, como o salário maternidade e a lei da aposentadoria para donas de casa, ou seja, mulheres que se dedicam exclusivamente ao trabalho doméstico em suas residências, tais concessões voltam-se mais para a manutenção de relações sexuadas correspondentes ao arranjo social que Arlie Hochschild e Anne Machung designaram como “mito de família tradicional” (2003), em que o homem é o provedor e a mulher encarrega das atividades reprodutivas, como cozinhar, limpar e de cuidados de proximidade com crianças e idosos. No entanto, algumas características identitárias concernentes ao trabalho de músicos conduzem a uma interpretação mais nuançada do acréscimo de tempo dedicado aos afazeres domésticos em domicílios de músicos em relação ao que ocorre em outras ocupações.

A análise fatorial realizada a partir dos questionários respondidas pelos músicos enfatizou dois processos de socialização relacionados à construção identitária no trabalho musical, já reconhecidos na literatura sobre o tema: familiar e religiosa. A socialização secundária, por meio principalmente de instituições públicas na formação musical, também é determinante como fator constitutivo do trabalho musical. Entretanto, a análise

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quantitativa corroborada por algumas declarações obtidas nas entrevistas, indica que a rede de sociabilidade, inclusive com maior amplitude que a rede de contatos ocupacionais ou profissionais, influencia mais ou está mais associada ao reconhecimento subjetivo e à atribuição institucional da condição de músico, ou seja, da identidade social de um músico. Esta compreende não apenas uma competência técnica e uma filiação a gêneros ou tendências musicais e estéticas, mas motivações simbólico-religiosas e estratégias de gênero. Embora a análise da identidade no trabalho em serviços musicais não constitua, de forma isolada, o objeto nesta comunicação5, convém sublinhar a importância que a socialização familiar e a religiosa apresentam na motivação e qualificação de jovens músicos. Os músicos cujo trabalho é explicado por esse fator reconhecem principalmente sua família como instituição responsável por sua formação musical e também como motivadora de seu aperfeiçoamento na música que impulsionou a carreira. Em segundo lugar credita-se à religião o mesmo papel, nas dimensões institucional-atributiva6 e de reconhecimento subjetivo. O depoimento de Clara é prototípico de uma identidade profissional explicada por este fator:

Bom, a princípio, eu sou de uma família de músicos, meu pai é um violinista clássico e minha mãe cantava com ele, eu tocava. Sou de uma família numerosa, onde 90 por cento são músicos, eu cresci, eu respirei música, então já foi algo assim quase que do meu meio, foi algo simples, já aprendi a ler partitura muito cedo, convivi com aquilo, e sou evangélica, na igreja isso é muito comum, as pessoas partirem para esse lado, para as tendências musicais, evangélicos, né? E cresci dessa forma.

O músico Noel que, diferentemente de Clara, teve uma formação praticamente autodidata até a idade adulta, também relaciona sua motivação pela música à família e à religião. Quando indagado a respeito de sua identidade, ou do papel a que mais se identifica, sua resposta é categórica:

Primeiramente eu sou um cristão, eu acredito muito em Deus, em Jesus Cristo, depois vem a minha família, a esposa, família, minha mãe, meus irmãos, depois vem à música; a música pra mim sempre em terceiro lugar, eu acho que a vida de qualquer ser humano se ele tiver a ligação direta com a fé dele sempre em primeiro lugar, aquilo seja uma cortina de proteção, uma porta que se abre, as coisas andam.

5 Os resultados completos da análise fatorial e da análise da identidade em serviços musicais estão no artigo

“Socialização e identidade: o trabalho em serviços musicais” (NUNES, MELLO, 2011). 6 Recorre-se aqui à teoria da identidade profissional de Claude Dubar, que considera dois eixos na constituição da identidade, o atributivo-institucional, indicado por marcadores de formação escolar ou profissional-ocupacional, e o subjetivo ou de reconhecimento, que remete ao processo de incorporação positiva ou negativa dos atributos institucionais na trajetória de vida (Cf. DUBAR, 2005).

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A importância da família foi ressaltada por homens e mulheres entrevistados, inclusive acima da trajetória profissional, que certamente motiva os artistas, principalmente os que priorizam as performances, situações em que se manifesta o reconhecimento positivo dos selves. A valorização das relações primárias e afetivas da ambiente familiar ou religioso-comunitário é coerente e compatível com o tipo de relação mestre-discípulo que prevalece no ensino musical de alto nível, que ocorre geralmente na forma de seções de interação copresencial. Assim, o tradicional domínio masculino em relações sexuadas pode, e frequentemente dá lugar, em arranjos domésticos envolvendo casais biativos em que pelo menos um é músico, a conciliações mais igualitárias e equilibradas. O relato de Vanessa, 50 anos, duas filhas, musicista e professora acadêmica, casada com um veterinário, é exemplar nesse aspecto. Vanessa conheceu seu marido quando cantavam juntos no coral da universidade federal onde ela já cursava a graduação em música. Ela foi convidada a acompanhar o coro ao piano, pois sua prática com a música já ocorrera bem antes:

Eu estudei música desde cedo, na adolescência... Eu sou de uma igreja evangélica tradicional. Dentro das tradicionais como a batista e presbiteriana tem uma vivência musical muito consistente, muito rica. A professora particular que tive era organista da igreja e já começou a ver nos seus alunos a possibilidade de tocar. Então eu já comecei a tocar na igreja aos 13 anos de idade, acompanhar coral, participando dos grupos que cantavam.

O coral era considerado, na época, um dos cinco melhores do país. Vanessa comenta a experiência que o futuro esposo tinha com a música, apesar de não ser profissional: “ele toca violão, ele tem um rigor e um grau de exigência com música muito grande, às vezes mais do que eu para ouvir, para cantar”. A professora, no momento em licença para doutoramento, comenta a estratégia de conciliação doméstica com o marido:

Todo mundo faz tudo, a gente nem divide muito o que cada um faz, é meio comunista, no sentido de ser comum. Ele é companheiro em todos os sentidos, levar e pegar as filhas quando ele está na cidade. A dificuldade maior para ele me ajudar direto é que ele vai para as fazendas todos os dias, mas por ser autônomo tem essa flexibilidade na distribuição do tempo e dos dias de trabalho. Nessa fase que eu estou da Pós o dia em que ele está na cidade ele fala ‘você senta e estuda, eu vou levar e vou buscar’. Do tempo que ele dispõe ele me ajuda muito, mais do que as meninas, para vergonha delas.

O tipo de conciliação estabelecido entre Vanessa e seu companheiro não pode ser explicado apenas pela relação entre tempos de trabalho aplicado a tarefas tradicionalmente atribuídas a papéis sexuados e eventualmente reorientadas por estratégias de gênero. Ainda que esses fatores sejam significativos, principalmente em contextos societários carentes da formulação e efetivação de políticas públicas de conciliação, não remetem aos laços de sociabilidade e de convenções que unem os participantes de uma rede de cooperação no mundo da música, na acepção de Becker (1984).

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Os depoimentos não permitem inferir alguma alteração na partilha usualmente desigual dos afazeres domésticos, entre gêneros. Em casais com pelo menos um dos cônjuges músico os homens continuam, em tempo relativamente maior do que em outras ocupações a realizar mais consertos domésticos, cuidar da jardinagem, fazer manutenção de utensílios, transportar filhos à escola ou levá-los a atividades, cuidar de veículos automotores. As mulheres continuam a se ocupar da limpeza e dos cuidados de proximidade, ainda que se verifique certa reordenação nas atividades de preparação de alimentos e a manutenção da forma relativamente igualitária das atividades de compras. Entretanto evidencia-se uma disposição maior para colaborar nos afazeres domésticos, em homens casados com mulheres musicistas.

Ainda que se recorra, principalmente entre as famílias que atingiram melhor condição econômica, à terceirização do TRABALHO DOMÉSTICO RACIONALMENTE JUSTIFICADA PELO RECONHECIMENTO DO TRABALHO BEM SUCEDIDO DA MUSICISTA NA ESFERA PÚBLICA, NÃO SE VERIFICA A DESVALORIZAÇÃO do self de mulher-mãe e de sua posição no arranjo entre os sexos doméstico, QUE SERIA, segundo Hochschild e Ehrenreich (2003), correlata à valorização dessas atividades como mercadoria por estratos economicamente dominantes. Contudo, seria precipitado afirmar que a valorização de formas identitárias relacionadas à família ou ao mundo simbólico-religioso seriam preponderantes nos arranjos domésticos envolvendo músicos a ponto de suplantar as estratégias de gênero tradicionais ou mesmo as transformadas no contexto atual em que os domínios simbólicos da família e do consumo estão associados. Mais apropriado é considerar que a tensão entre a valorização da trajetória profissional e a manutenção de estratégias de conciliação mais igualitárias, nos limites de uma abordagem familista, é menor em arranjos domésticos entre casais biativos que envolvem músicos do que em arranjos conciliatórios em casais que trabalham em outras ocupações. A resposta de Carolina, por exemplo, quando indagada se consegue conciliar suas atividades pessoais e profissionais com as responsabilidades da família, ilustra um caso em que esse tipo de tensão permanece:

Eu acho que consigo sim. Às vezes é difícil, eu fico muito divida, mulher principalmente tem muito essa questão da família, essa dedicação como mãe. Às vezes, eu me sinto muito culpada, eu devia estar mais com ela [com sua filha de quatro anos], enfim, mas os projetos são muito importantes, minha profissão é muito importante pra mim. Então eu tento trabalhar isso, que é a mãe que ela tem, a mãe é pianista, é diferente das outras mães. Então não é sempre todo fim de semana que estou disponível, como talvez outra mãe em outra profissão. Já me cobrei muito, mas hoje eu tento aceitar um pouco mais, quando eu estou com ela realmente tento ficar 100% com ela. Quando estou estudando, estou realmente estudando. Claro que tem época que estou estudando pensando nela e fico estressada, mas hoje é menos.

Em relação especificamente aos homens músicos em arranjos domésticos, sua colaboração, ainda que se realize em número de horas relativamente superior a homens que desempenham outras ocupações, como se vê nos Gráficos 6-9, fica prejudicada em razão do

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tipo de distribuição desigual ou desordenada de suas atividades nas jornadas de trabalho, geralmente sem compatibilidade com o horário comercial e principalmente, com os horários de atividades domésticas, já que se dedicam, mais do que as mulheres, ao trabalho em estúdios, à produção musical, a trabalhar em bares e casas noturnas etc. Vimos atrás que os músicos homens dedicam-se mais a atividades mais diretamente relacionadas à representação social mais comum da ocupação, ou seja, como performers, tocando ou cantando. Trabalham, em proporção maior do que as mulheres, também em atividades relativas à produção musical. Assim, é comum em casais biativos envolvendo músicos ou artistas, ocorrer esse tipo de divisão sexual do trabalho. Enquanto um(a) se dedica mais à performance, que requer mais tempo de estudo e treinamento, outro(a) volta-se a tarefas de produção e organização, eventualmente compondo ou realizando arranjos, como no caso de Cássia e seu marido, comentado atrás. Porém, o mais comum, principalmente em casais em que apenas um dos cônjuges é músico, uma orientação na carreira profissional que pode ser também considerada uma estratégia de conciliação, mas que remete à permanência de relações sexuadas desfavoráveis às mulheres. Trata-se da trajetória típica das musicistas que renunciam a uma promissora carreira como solista, a que também corresponde um reconhecimento mais específico do self do artista, para se fixarem atividades mais estáveis e compatíveis com o trabalho doméstico e reprodutivo, como a docência. Várias declarações de profissionais entrevistadas dariam apoio a essas últimas considerações. O ambiente acadêmico, incluindo a estrutura típica de ensino musical que lhe é associada, pode constituir um patamar profissional que integra o componente identitário da socialização familiar e seus diversos elementos: pais e filhos, mestres e discípulos, regentes e executantes, acompanhadores e solistas, socialização musical na família e na igreja, ensino e treinamento musical na universidade. O depoimento de Simone é muito representativo desse tipo de trajetória:

Eu comecei criança, meus pais me colocaram para estudar piano, comecei muito cedo a tocar na igreja, minha mãe me pós para que eu tocasse na igreja. Desde cedo, mas eu nunca parei de estudar, sempre estudando e tocando na igreja, estudando e tocando na igreja. Depois eu comecei a fazer outros tipos de trabalho também, trabalhar com música popular, mas sempre estudando a música erudita, sempre ligada a UFG, porque antigamente tinha os cursos ligados de pré-graduação, cursos para crianças, curso fundamental, curso técnico em música. Quando chegou à época do vestibular, pra mim foi natural a escolha para música. Fiz faculdade de música, fiz primeiro bacharelado instrumento piano, depois eu fiz licenciatura em música também.

Simone, que prescinde da terceirização do trabalho doméstico e, juntamente com o marido, mantêm sua filha em casa até a primeira fase de escolarização, tem suas atividades musicais praticamente restrita à sua segunda casa, a universidade: “Não estou tocando em outros lugares, não tenho outra ocupação no momento, então assim, eu toco na UFG, eu ministro aulas de música na UFG. Venho para dar aula, para ensaiar com alunos que acompanho, sou pianista, venho para ensaios, então minhas atividades como musicista hoje são totalmente relacionadas à universidade”.

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Considerações finais As múltiplas atividades realizadas pelos músicos, dentre elas o exercício da docência,

influem no tipo de estratégia de conciliação de casais biativos, somando-se ao condicionamentos decorrentes da ideologia de naturalização das classes de sexo , que direciona os homens à espera produtiva e as mulheres ao âmbito reprodutivo (Cf. GOFFMAN, 1997; HIRATA, KERGOAT, 2007). A hierarquização das atividades, tradicionalmente, que tradicionalmente privilegia valores culturalmente associados ao gênero masculino, como liderança, inteligência e racionalidade adquire outros contornos no que concerne às atividades artístico-musicais, em que atributos como sensibilidade, emotividade, paciência e habilidade manual, tradicionalmente direcionados ao feminino, longe de serem menosprezados, são valorizados positivamente. Na arena da conciliação família trabalho as atividades consideradas tipicamente femininas, como a docência em nível inicial de escolarização e o acompanhamento de coros ou madrigais ao piano adquirem um valor estratégico, pois são realizadas em locais fixos. No caso de grupos pequenos ou aulas particulares há a possibilidade de desempenhá-las nos próprios domicílios, facilitando a manutenção dos afazeres domésticos.

Os resultados que apontam a elevada carga horária em atividades domésticas por homens e mulheres que trabalham com música indicam que estamos muito longe, no Brasil e, particularmente em Goiânia de um tipo de conciliação mais igualitária, ainda que os homens colaborem mais nos afazeres domésticos em relação a outras ocupações ou profissões. Por outro lado, evidencia um tipo de conciliação familista a inexistência de projetos sociais para o setor, que apresenta características específicas, como a multiplicidade de tarefas, a expertise técnica e a dependência de uma rede de cooperação que inclui desde os próprios músicos e seus familiares até pessoas encarregadas da promoção, divulgação e organização de eventos, manutenção de casas de espetáculos, produção de mídias culturais e até dos próprios consumidores segmentados por diversos fatores, incluindo os próprios gêneros musicais.

O tipo de conciliação relatado nos depoimentos não reverte a tão criticada sobrecarga das mulheres em atividades desagradáveis do trabalho doméstico. Pode-se também considerar uma desvantagem das mulheres, no aspecto da autoestima, ao se verem obrigadas, muitas vezes pelos encargos de mãe ou esposa, a abdicarem das performances musicais para abraçar a docência. Contudo, não é claro que esse tipo de trajetória implique uma subalternidade de gênero, a não ser em nichos mais específicos (embora não menos valorizados) como grandes corpos orquestrais, onde os postos de regência e de solistas são em geral ocupados por homens. Há outro lado que convém ressaltar na valorização da socialização familiar pelos músicos, que à primeira vista pode ser considerada retrógrada se pensarmos na valorização pessoal e simbólica das mulheres que são bem sucedidas no mundo da música ou, em termos genéricos, de uma identidade construída principalmente com base num tipo de trabalho que requer, além de talento, esforço e dedicação imensuráveis. Porém, reconhece-se uma transformação profunda, senão uma crise, nos processos de construção identitária tanto em nível cultural quanto na dimensão pessoal, individual, em diversos aspectos, desde a construção doméstica dos gêneros até o aspecto da religião, passando pela tradicional identificação com o trabalho (Cf. DUBAR, 2006). Embora apoiemos a crítica ao mito da família tradicional e a valorização de uma sociedade biativa, em que homens e mulheres tenham possibilidades e condições de trabalhar na

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esfera pública (Cf. MÉDA, 2002), a realização e a autoestima não necessitam decorrer primordialmente dos valores e produtos do trabalho. Nesse sentido, as formas de conciliação empreendidas por casais em que um dos cônjuges é músico, valorizando mais as relações parentais do propriamente as atividades domésticas, constituem um indício de que estejam repensando o trabalho doméstico, procurando passar mais tempo com os filhos e fazer algo juntos, inclusive música.

Os resultados encontrados evidenciam mais a necessidade de se investigar com maior extensão e profundidade a temática do trabalho de músicos e especificamente a questão da conciliação família trabalho, não somente em nível familista, mas também na discussão prospectiva de políticas públicas de programas e incentivos a casais parentais biativos. Certamente várias configurações familiares ainda não foram incorporadas na pesquisa, como casais homossexuais ou famílias monoparentais chefiadas por homens ou mulheres. Outro aspecto relevante que não foi abordado foi o papel da família extensa nas formas de conciliação, mas também nas redes de cooperação do mundo da música. Aguardamos, no entanto, a despeito das limitações consideradas e do estágio ainda inconcluso da pesquisa que o subsidiou, que este paper possa contribuir para a discussão e o desenvolvimento de outras pesquisas nessa temática. Referências bibliográficas BECKER, Howard S. Art Worlds. Berkeley: University of California Press, 1984.

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