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IV SIMPÓSIO GÊNERO E POLÍTICAS UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA 08 a 10 de junho de 2016 GT6. GÊNERO E VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES A história de uma mulher vítima de violência doméstica em Mirandópolis - SP Cristina Aparecida Vieira Gomes Pavaneli (FAM) Thiago Agenor dos Santos de Lima (FISMA/FEA) Shizuko Miguita (FAM)

IV SIMPÓSIO GÊNERO E POLÍTICAS - fea.br · da Faculdade de Mirandópolis (FAM), descrita no trabalho de conclusão de curso (TCC)4. Os sujeitos de pesquisa, residem no bairro Morada

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IV SIMPÓSIO GÊNERO E POLÍTICAS

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA

08 a 10 de junho de 2016

GT6. GÊNERO E VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES

A história de uma mulher vítima de violência doméstica em Mirandópolis -

SP

Cristina Aparecida Vieira Gomes Pavaneli

(FAM)

Thiago Agenor dos Santos de Lima

(FISMA/FEA)

Shizuko Miguita

(FAM)

A HISTÓRIA DE UMA MULHER VÍTIMA DE VIOLÊNCIA

DOMÉSTICA EM MIRANDÓPOLIS - SP

Cristina Aparecida Vieira Gomes Pavaneli1

Thiago Agenor dos Santos de Lima (FISMA/FEA)2

Shizuko Miguita (FAM)3

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo principal apresentar a história de vida de uma

mulher que sofreu violência doméstica no município de Mirandópolis, interior de São Paulo.

Para o presente estudo, foi utilizado pesquisa bibliográfica e documental, bem como a

realização de entrevista semiestruturada, a fim de demonstrar as formas da realidade social que

vivem as mulheres vítimas de violência. Verifica-se que ainda é pouco discutido a temática da

violência, como também, não existe, ou é desconhecida pelos sujeitos, uma rede de proteção

social que viabilize atendimento e tratamento para as marcas deixadas pela violência, na vida

cotidiana dessas mulheres, mesmo havendo proteção através da Lei Maria da Penha e outras

legislações sociais, como no caso da Assistência Social e Saúde.

Palavras – Chave: Violência doméstica; História de Vida e Família.

1 Introdução: O percurso metodológico

O trabalho consiste em apresentar entrevista semiestruturada realizada no âmbito

da Faculdade de Mirandópolis (FAM), descrita no trabalho de conclusão de curso (TCC)4.

Os sujeitos de pesquisa, residem no bairro Morada do Sol, da cidade de

Mirandópolis – SP, cidade de Pequeno Porte II5. A escolha dos sujeitos da pesquisa se deu pelo

fato da pesquisadora morar no mesmo bairro e conhecer os sujeitos, inclusive compartilhando

1 Graduanda do curso de Serviço Social da Faculdade de Mirandópolis – FAM. E-mail:

[email protected]

2 Graduado em Serviço Social e Especialista e MBA em Política Social no contexto da Nova Política Nacional de

Assistência Social pela AEMS. Mestrando em Serviço Social e Política Social pela UEL. E-mail:

[email protected]

3 Licenciada em Letras Vernáculas e Alemão pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Marília (1975),

graduação em Pedagogia pela Faculdade de Educação, Ciências e Letras Urubupungá (1979) e mestrado em

Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (2006). Atualmente é docente na Faculdade de

Mirandópolis. E-mail: [email protected]

4 Para esse artigo foi proporcionado um maior rigor analítico para a apresentação dos resultados.

5 Considera-se os descritos da Política Nacional de Assistência Social – PNAS (2004): municípios pequenos 1:

com população até 20.000 habitantes; municípios pequenos 2: com população entre 20.001 a 50.000 habitantes

municípios médios: com população entre 50.001 a 100.000 habitantes. Municípios grandes: com população entre

100.001 a 900.000 habitantes. Metrópoles: com população superior a 900.000 habitantes. (BRASIL, 2004, p. 11).

situações do cotidiano pessoal e familiar. Essa relação com a pesquisadora propiciaram as

confidências, em muitos diálogos que tiveram, que vivenciaram situações de violência por parte

dos companheiros.

Inicialmente foi elaborado o projeto de pesquisa, no âmbito das disciplinas de

Pesquisa em Serviço Social I e II, conforme projeto pedagógico6. O mesmo foi aprovado e

designado a orientação. Logo após, foi feito contato com os sujeitos de pesquisa e explicado os

objetivos da entrevista. Havendo o consenso pelas mesmas foi designado a sala das

dependências da FAM para a realização das entrevistas, tendo em vista o sigilo, foi agendado

horário e dia diferenciados.

Na tentativa de (re) construir o processo da história de vida dos sujeitos da pesquisa

e sua relação com a violência, optou-se por utilizar o método da “História Oral”, pois as

lembranças são espaços vivos repletos de significados, um rico potencial para conhecer a

história. Essa escolha se deu pelo fato de:

A explicitação das intencionalidades, a construção ética da pesquisa, o respeito aos

participantes e à sua livre expressão são fundamentais nesta metodologia que nos

coloca em contato direto com os sujeitos, permitindo-nos conhecer sua vida cotidiana,

seu modo de ser, de lutar, de resistir, de expressar-se pela mediação da arte e de

reivindicar direitos. (MARTINELLI, 2012, p. 5).

Esse método, foi também associado ao uso do caráter qualitativo, o qual permitiu

uma análise subjetiva dos depoimentos, com o objetivo de – “Identificar e descrever a história

de vida das mulheres vítimas de violência no município de Mirandópolis”, desdobrando-se nos

objetivos específicos, tais como: descrever como as mulheres compreendem a violência em

suas vidas, sobretudo, a suas manifestações e se houve o rompimento com os agressores.

Além de uma pesquisa bibliográfica e documental, realizada e produções cientificas

(livros, revistas, artigos), como nas legislações e normativas que permeia a área de abrangência

sobre a temática, foi realizada uma entrevista com um questionário inicial com seis perguntas,

e conforme foi sendo aplicado, novas questões complementares foram sendo realizadas para a

compreensão do todo.

Cada sujeito de pesquisa, assinou o “Termo Livre e Esclarecido”, onde constava os

objetivos da pesquisa e o compromisso de que os sujeitos não seriam identificados, por isso

nesse trabalho será utilizado nome fictício.

6 Pode ser acessado em http://www.uniesp.edu.br/fam/downloads/ppcServicoSocial.pdf

As entrevistas possibilitaram um espaço de resgate das memórias, trazendo junto as

lembranças doloridas e sofrimentos para os sujeitos. Em alguns momentos registrou-se

lágrimas, pensamentos confusos, inclusive indignações e raiva.

Pela complexidade da realidade vivenciada e atendendo as normatizações do evento

pela qual o presente artigo foi aprovado, nesse trabalho, optou-se apenas pela história de vida e

análises de um único sujeito de pesquisa, doravante denominada “Flor de Lis”, e suas falas

quando citadas serão grafadas de formas diferenciadas de uma citação direta.

A exposição da pesquisa neste artigo será feita através de apresentação de uma

síntese sobre a produção identificada em relação a questão da violência doméstica. Após,

apresenta-se a descrição das entrevistas, em um movimento dialético (particularidade,

singularidade e totalidade), isso significa dizer que a forma de exposição que é apresentada não

ocorreu da mesma forma que se procedeu a entrevista, por várias vezes o depoimento tomou

rumos diferentes e se complementaram, em seguida nas considerações finais são apresentados

os principais dados obtidos, bem como propostas de intervenção frente a temática, encerrando

a exposição.

2 Considerações sobre a violência doméstica: “hoje em dia as mulheres estão assim tem a

lei Maria”7

Para esse trabalho, levar-se-á como compreensão conceitual os aspectos descritos

na Declaração das Nações Unidas de 1949, sobre a violência contra a mulher, aprovada na

conferência de Viena em 1993, e também a Lei Maria da Penha, que expõe sobre a violência

como: “[...] todo e qualquer ato embasado em uma situação de gênero, na vida pública ou

privado, que tenha como resultado dano de natureza física, sexual ou psicológica, incluindo

ameaças, coerção ou a privação arbitrária da liberdade.” (ADEODATO, 2006, p.2).

Entende-se então que a violência doméstica contra a mulher recebe esta

denominação por ocorrer em sua vida “doméstica”, ou seja, no ambiente de sua residência, e o

agressor geralmente mantém ou manteve uma relação com a vítima.

A violência pode ser classificada como sendo: emocional, social, física, sexual,

financeira e perseguição, conforme descritos por diversos autores, ainda de acordo com a

Organização Mundial da Saúde (OMS), a violência contra a mulher tornou-se "uma epidemia,

que produz agravos à saúde física, psíquica e sexual das mulheres e meninas, devendo ser

enfrentada com políticas públicas e a punição dos agressores.

7 Esse subtítulo deu-se pela expressões descritas pela Sra. “Flor de Lis” na entrevista.

Assim sendo, cada vez mais a violência vem se generalizando no meio social.

Especificamente sobre a violência doméstica, os dados não são diferentes, entretanto, nos

estudos que abordam este tema, não existem estatísticas sistemáticas e oficiais que deem

visibilidade à dimensão dessa realidade envolvendo mulheres vítimas, presentes em todas as

camadas sociais.

No Brasil, foi promulgada a Lei 11.340/06, conhecida como Lei “Maria da Penha”.

Ganhou este nome em homenagem à Maria da Penha Maia Fernandes que, por vinte anos, lutou

para ver seu agressor preso. Ela era biofarmacêutica e foi casada com o professor universitário

Marco Antônio Herredia Viveros. Em 1983 ela sofreu a primeira tentativa de assassinato,

quando levou um tiro nas costas enquanto dormia, o seu marido, o Sr. Viveros foi encontrado

na cozinha, gritando por socorro, alegando que tinham sido atacados por assaltantes.

Desta primeira tentativa, Maria da Penha saiu paraplégica. A segunda tentativa de

homicídio aconteceu meses depois, quando Viveros empurrou Maria da Penha da cadeira de

rodas e tentou eletrocutá-la no chuveiro. Apesar de a investigação ter começado em junho do

mesmo ano, a denúncia só foi apresentada ao Ministério Público Estadual em setembro do ano

seguinte e o primeiro julgamento só aconteceu 8 anos após os crimes. Em 1991, os advogados

de Viveros conseguiram anular o julgamento. Em 1996, Viveros foi julgado culpado e

condenado a dez anos de reclusão, entretanto conseguiu recorrer.

Mesmo após 15 anos de luta e pressões internacionais, a justiça brasileira ainda não

havia dado decisão ao caso, nem justificativa para a demora. Com a ajuda de ONGs, Maria da

Penha conseguiu enviar o caso para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (OEA),

que, pela primeira vez, acatou uma denúncia de violência doméstica.

O Sr. Viveiro só foi preso em 2002, para cumprir apenas dois anos de prisão. O

processo da OEA também condenou o Brasil por negligência e omissão em relação à violência

doméstica. Uma das punições foi a recomendações para que fosse criada uma legislação

adequada a esse tipo de violência.

E esta foi uma síntese sócio histórica para a criação da lei. Um conjunto de entidades

então reuniu-se para definir um anteprojeto de lei definindo formas de violência doméstica e

familiar contra as mulheres, estabelecendo mecanismos para prevenir e reduzir este tipo de

violência, como também prestar assistência às vítimas. E, somente em setembro de 2006, que

a lei finalmente entra em vigor, fazendo com que a violência contra a mulher deixe de ser tratada

com um crime de menor potencial ofensivo, embasada no parágrafo 8º do artigo 226 da

Constituição Federal, na Convenção sobre a eliminação de todas as formas de violência contra

a mulher, na Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a

mulher e em outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil, com

o objetivo de criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher.

Todavia, a Lei instituiu a criação de juizados especiais para os crimes previstos

nessa legislação e estabeleceu medidas de assistência e proteção às vítimas, além de assegurar

a criação de políticas públicas para a garantia dos direitos da mulher.

De acordo com essa lei, a esfera da unidade doméstica refere-se ao espaço onde

convivem constantemente as pessoas tendo ou não vínculo familiar, inclusive aquelas que

esporadicamente se agregam. Já o âmbito da família é entendido como o grupo formado pelas

pessoas que são ou se consideram aparentados, que se unem por laços naturais, afinidades ou

vontade expressa. Com referência à relação íntima de afeto, corresponde a qualquer relação em

que o agressor conviva ou tenha convivido com a vítima, independente de residirem sob o

mesmo teto, sendo que se pode classificar a violência doméstica como:

Art. 7. São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: I -

a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou

saúde corporal; II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe

cause danos emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe

o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações,

comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento,

humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz,

insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou

qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;

III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a

presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante

intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a

utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método

contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição,

mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o

exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos; IV - a violência patrimonial,

entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição

parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens,

valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas

necessidades; V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure

calúnia, difamação ou injúria. (BRASIL, 2006, s/p).

Pela primeira vez uma lei expressa necessariamente as formas de conceituar e

verificar a violência, principalmente, auxiliando nos processos de prevenção e melhor

atendimento. Para a compreensão também de um tratamento especializado, essa lei prevê que

os juizados poderão contar com uma equipe multidisciplinar que será composta por uma rede

de profissionais das áreas psicossocial, jurídica e de saúde. Nas comarcas onde esses ainda não

tenham sido criados, os crimes devem ser julgados nas varas criminais, bem como estabelece

as proibições, sendo: Art. 17. “É vedada a aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar

contra a mulher, de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a

substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa. (BRASIL, 2006, s/p).

As mulheres vítimas devem ser encaminhadas a programas de serviços de proteção

e assistência social, uma vez que a Lei Maria da Penha prevê a criação de políticas públicas que

venham a garantir os direitos das mulheres em suas relações domésticas e familiares, visando

resguardar a mulher vítima de violência doméstica de toda a forma de negligência,

discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, prevendo uma forma personalidade

de atendimento.

A Lei Maria da Penha marca o início de um novo tempo, pois essa norma jurídica

transformou os casos envolvendo mulheres vítimas de violência, uma vez que antes eram

tratados pelo direito penal como irrelevantes, enquadrando em crimes de menor potencial

ofensivo. As mulheres eram oprimidas por toda a ordem de violência para, a partir dessa lei,

recuperar sua dignidade, por meio da conquista do respeito e consideração pelos operadores

jurídicos. Um grande passo foi dado com essa lei, no sentido de que a violência que ocorre nas

relações familiares e de afeto deixou de ser tratada como um problema privado, onde reinava a

impunidade sobre os agressores.

Outro benefício da Lei Maria da Penha é a agilidade com que os casos envolvendo

crimes contra as mulheres podem ser analisados e as providências cabíveis tomadas, conforme

a situação. Isso significa que quando a notícia de um crime enquadrado na Lei chega até uma

delegacia de polícia, os procedimentos adotados divergem dos demais casos, uma vez que essa

norma jurídica determina especificamente as providências legais cabíveis a serem tomadas pela

autoridade policial e seus agentes.

É importante ressaltar que existem delegacias especializadas para atender casos de

violência doméstica dos crimes enquadrados na Lei Maria da Penha, chamadas de Delegacias

Especializadas de Atendimento à Mulher — DEAMS. Nesses órgãos, há uma norma técnica

que foi lançada em setembro de 2010 pela Secretaria de Políticas para as Mulheres8, com a

finalidade de padronizar o atendimento aos casos de violência doméstica.

Por outro lado, um dos entraves para a efetivação da Lei é a questão da interpretação

e aplicação realizada pelo Judiciário. Neste sentido, como exemplo paradigmático, pode-se citar

o caso do juiz que entre os meses de junho e julho de 2008, negou 60 pedidos de medidas

preventivas amparadas na Lei Maria da Penha, alegando serem inconstitucionais. Segundo ele,

violariam o artigo 5º da Constituição Federal no qual está expresso que todos são iguais perante

a lei, sem distinção de qualquer natureza, sendo homens e mulheres iguais em direitos e

obrigações. Em entrevista ao jornal Correio do Povo (ANIS, 2008, online), o juiz afirmou,

8 Site http://www.spm.gov.br/

ainda, que "a melhor forma de a mulher se proteger é não escolher homem bagaceiro e pudim

de cachaça, pedindo separação ou divórcio, quando preciso, e não perpetuando uma situação

insustentável”.

Outro grande problema é que, muitas vezes, as mulheres mantêm a esperança de

que o companheiro mude de comportamento e acabam acreditando quando ele promete que não

vai mais agredi-la, sendo que na maioria das vezes, os registros de ocorrência nem sequer

configuravam "ocorrências passíveis de serem investigadas, mas sim relatos de cenas de

conflitos intraconjugais".

Portanto, não existe dúvida de que a Lei Maria da Penha representa um marco na

luta pelos direitos das mulheres. Significa uma vitória dos movimentos feministas e mais um

avanço no que tange ao reconhecimento legal da igualdade através de um tratamento específico

em relação aos diferentes segmentos e situações sociais.

3 A história de vida da Sra. “Flor de Lis”

A Sra. “Flor de Lis”, viveu por alguns anos com a sua família em uma fazenda na

região do município de Mirandópolis – SP. Em uma pequena escola conclui a quinta série.

Desde pequena conviveu com o Sr. Pedro, estudaram e trabalhavam juntos na agricultura e

começaram inicialmente com uma amizade, na idade de 16 e 13 anos namoraram por sete anos,

devido a gravidez resolveram morar juntos e após quatro anos a separação.

[...] Meu marido. Pai do meu filho. Eu conheci ele assim, nóis se conheceu desde

pequeno, trabalhamos juntos, porque estuda ele não estudo. Eu estudei assim,

naquela escolinha de fazenda, de sitio assim. sabe, estudei até a quinta série daquele

tempo ainda, que hoje não vale mais nada, se pergunta alguma coisa pra mim sou

burrinha pra caramba. Agente, namoro sete anos juntos sabe, vivia junto, pra cima

e pra baixo, num tinha maldade. Ai quando eu fui me envolver com ele mesmo, eu

tinha 23 anos. Fiquei com ele. Engravidei do Matheus, foi assim tão rápido meu filho

que Deus que me livre, vivi com ele 4 anos, logo após 4 anos engravidei do Pedro,

depois num fiquei mais com ele não, não aguentei. (SUSPIRO). Eu não aguentei tanta

pressão. (Relato da Sr. Flor de Lis).

Verifica-se que no passado tão recente, as próprias relações afetivas e matrimoniais

eram estabelecidas muito cedo, inclusive se verifica a existência de casamentos organizados

por questões econômicas ou até mesmo pela questão da pobreza que afetava a vida das classes

trabalhadoras.

No início do relacionamento com o companheiro, esse não demonstrou nenhum

traço de agressividade, porém quando passou a conviver, após alguns meses, esse começou com

agressões verbais e as discussões foram sendo intensificadas, até a primeira agressão física,

sendo os principais motivos por causa de ciúmes.

[...] Nois brigava por causa de ciúmes, eu tinha ciúmes dele, só que ele falava. (pausa

para pensar). Fala até hoje que tinha ciúmes. Mais num tinha não. A pessoa sei lá

quem ama cuida num cuida, ele não, sai procurando as outras da vida, ai chegava

bêbado em casa no outro dia [...]Me agrediu” Fisicamente? (SUSPIRO). “Vixi,

muitas vezes. (LÁGRIMAS). [...]. (Relato da Sr. Flor de Lis).

As agressões físicas foram sendo constante, até que após quatro anos, por decisão

da própria Sra. Flor de Lis, deixou o companheiro. Outro fato, era que o companheiro não

acreditava ser o pais dos dois filhos do casal, o uso de álcool e a existência de relacionamentos

fora do matrimonio, conforme segue:

[...] A separação foi o seguinte, quando eu engravidei do Pedro, ele falava que o filho

não era dele, eu num sei porque, eu sou de falar que o filho num era dele, até o

Matheus, quando nasceu, aí esse menino parece japonês num é filho meu, mas é a

cara dele os dois. Fiz exame do Matheus. Fiz exame do Pedro. (PAUSA). Ele num

deveria ter feito isso comigo, né, sabendo que os filhos era dele. Eu peguei e fui me

distanciando, acabo, me magoou muito. (LÀGRIMAS NOS OLHOS). [...]Por que

bebia de mais, era um capeta, e ainda Me traia [...] Vixi, eu bati na prima dele, e nele

também. Eu taquei água quente nos dois. Sabe o que o ciúmes provoca né, taquei

mesmo, depois eu me arrependi. [...] O motivo assim, vive em zona, que se quer com

um homem desse, arriscada de pegar um doença. Eu não, não deixei o coração falar.

[...]. (Relato da Sr. Flor de Lis).

Por outro lado, a separação também foi incentivada pelos familiares do próprio

agressor, lembra sobre os diversos diálogos que teve com sua sogra

[...] De ficar com ele, de tentar, eu não tinha cultura própria. A mãe dele falou assim,

vai embora. É meu filho. Mais não vale nada. Ele vai te fazer sofrê. Já tá te fazendo

sofrer. (PAUSA LONGA). Ela viu meu sofrimento. Ela era evangélica. (EXPRESSÂO

DE SOFRIMENTO). Ela via meu sofrimento, sofri muito, muito e muito. Teve um

tempo que fiquei até meia assim, querendo voltar com ele né, agora não. Deus que

me perdoe falar, tenho até nojo dele. (Relato da Sr. Flor de Lis).

A separação provocou também o afastamento dos seus filhos com o ex-

companheiro, sendo que quando perguntado se havia vinculação a resposta foi a seguinte:

[...] Não, agora que ele quer, mas os meninos não quer. O Pedro já é pai. O mais

novo já é pai. Tenho uma netinha. Agora o Matheus, num quer saber de casar não.

Mas ele fala assim, se for da vontade de Deus, pode ser que eu te dou um neto ou uma

neta, mas eu não quero. [...] Me arrependi assim, foi bem assim no começo, quando

as crianças era pequena, eu achava assim que as crianças deveria ser criadas com o

pai, mas com o tempo eu fui vendo (PAUSA). Fui vendo que não era nada disso, e fui

me libertando [...] O Pedro muitas vezes, o Matheus também, então por isso eu falei

assim eu ficar me submetendo a isso daí, e minhas crianças eu vou embora, e to aqui

até hoje, graças a Deus meus filhos ta tudo criado. [...]. (Relato da Sr. Flor de Lis).

O que deveria ser uma estratégia perante a saída da situação de violência doméstica,

acabou sendo mais uma vez um problema, tendo em vista que não recebeu apoio dos familiares,

e lembra sobre a relação com o pai

[...] Assim, meu pai era um homem muito rígido, ele excluía eu da família, chegava

os dias dos pais eu ia dar um beijo nele dia dos pais, ele não queria, ele cuspia, ele

era um baiano ruim, ele falava porque, porque eu tinha largado do pai do meu filho,

baiano nunca aceito, num aceita a gente larga. Ele fala ai sua irmã ta com o marido

até hoje, faz 30 anos que tá com o marido. Só você que não tá. Mais eu não sou

obrigada a vive com uma pessoa que eu não gosto. [...]. (Relato da Sr. Flor de Lis).

Perante essas afirmações, ressalta-se que em todo o processo de vida a família tem

sem dúvidas um papel fundamental, tendo em vista que ela é a rede de proteção e possibilita

uma reconstituição perante as adversidades que paira pela vida de seus membros. Mas, devido

as próprias mudanças existentes na sociedade, há uma alteração, inclusive da capacidade de

proteção e cuidado, tradicionalmente atribuídos às famílias, o que ocorre em um processo de

fragilização dos vínculos familiares e tornam as famílias mais vulneráveis. (MIOTO, 2004, p.

139).

No caso, a história da Sra. “Flor de Lis”, por não encontrar proteção desejada no

ambiente familiar, decide mudar de cidade, deixando os filhos com seus genitores, e pelo uso

da prostituição e do tráfico de drogas, acaba sendo custodiada, e dessa fase ressalta:

[...] Teve um época. (CHORO). Eu fiz meus filhos sofrer. Era cabeça dura, tava

evolvida na vida louca. (PAUSA) Essa parte da minha vida é muito dolorosa pra mim.

Mas eu vou contar, porque é minha vida. Uma vez eu me envolvi no mundo do crime,

mas sem querer, sabe, quando você cai de gaiato, me envolvi porque eu quis

(PAUSA). Não. Isso foi uma cilada do diabo na minha vida, porque não é possível,

sempre fui uma mulher direita, eu sou direita, porque eu errei paguei pelo meu erro

muito caro, ai eu fui privada da minha liberdade longe daqui em Ribeirão Preto. Eu

me iludi com um cara preso, uma colega minha apresentou esse cara, nesse tempo

tinha telefone nesses lugar entendeu, ai ela me apresentou esse cara, fiquei

encantada, porque uma mulher carente, vivia apanhando, só trabalhando, lutando

pela vida, eu peguei e fui, ai quando chegou lá o dinheiro acabou, eu fiquei na casa

de uma mulher, que ela que me chamou o nome dela é Cida, Cidinha. Ela falava pra

mim fica na casa dela. E esse fica em casa ficou muito caro. Ela quis que eu levasse

droga, eu falei eu não sei fazer isso, não eu coloco em você, não eu não sei fazer isso,

mas antes disso, eu tinha ligado pra uma pessoa que essa pessoa era assim muito

perto da minha mãe, da minha família, pra avisa pra minha família que eu não ia

porque não tinha dinheiro, que era pra eles depositar um dinheiro pra mim vim

embora, ai eles não tinha dinheiro pra mim vim embora, ai ela falou se você leva 100

graminha. Mas quando eu cheguei nesse lugar, engraçado, a mulher num tinha visto

isso em mim, a gente tava em 4 mulher, e eu ela deixou num canto, revistou as três e

deixou eu La, ai as meninas sai, ai ela falou Flor de Lis tem uma denúncia pra senhora

de Mirandópolis. A pessoa que denunciou é de Mirandópolis, a senhora pode ver aqui

no bina do telefone. Mas, assim foi de telefone público, mas foi de Mirandópolis e tem

duas pessoas que sabia a roupa que eu tava, e essa pessoa que eu liguei pra ela, eu

contei pra ela na maior confiança, olha tem uma pessoa assim que eu to na casa dela

e eu vou ter que levar isso e isso pra ela me dar o dinheiro pra mim ir embora.

(PAUSA). Só essas pessoas sabia. Uma dessas pessoas foi caguetagem. Então essas

pessoas fez isso comigo, mas essas pessoas tá sofrendo. Nunca faz mal pra uma

pessoa que você paga aqui. Num tem outro inferno, é aqui, as maldades que você faz

pra uma pessoa, você olha pra trás e fala porque eu to sofrendo tanto, você pensa vai

lá atrás e pensa o que fez de maldade pra uma pessoa, e vai fala num fiz aquilo pra

aquela pessoa e estou pagando. E paga, e eu paguei muito caro. Fiquei presa.

(PAUSA). Porque eu perdi minha mãe e eu tava naquele lugar. Fui ver minha mãe

em tempo de saidinha dos pais, fiquei um ano e um mês lá. Eu era primário, mal

comportamento, mas até hoje eu num cai na real ainda, que tudo isso se passou na

minha vida. [...]. (Relato da Sr. Flor de Lis).

Os problemas vivenciados então pela Sra. “Flor de Lis”, acaba também afetando a

vida do seu filho que se envolve com o uso e tráfico de drogas. Após uma abordagem de

policiais, conduzido para a FEBÈM9. Um tempo depois, em meio as visitas para ele na

instituição, o genitor da Sra. “Flor de Lis” fica doente, e irá ser cuidado pela filha, que na

entrevista emocionada relatou

[...] o Pedro me deu muito trabalho, mas antes ele se envolveu no mundo das drogas,

também vendendo, foi preso, foi pra FEBEM. Quando eu sai da liberdade, eu

cuidando do meu pai com câncer e ele preso. E eu tinha que visitar ele no domingo e

na segunda feira cedinho, corre pra Barreto com meu pai, ficava a semana inteira,

no domingo de novo ia visitar o Pedro e ir pra Barreto com meu pai. Eu fiquei fazendo

essa vida dois anos e dois meses. Eu num era gorda assim. Me deu um distúrbio, num

era de comer não, quem quisesse me ver tinha que ir na minha casa, por que eu não

podia sair um minuto de perto do meu pai. Ele foi falecendo, falecendo, cheirando

mal, o povo já não aguentava mais carregar ele dentro da van porque cheirava mal.

Sofreu. (CHORO). Meu pai morreu com 33 quilos. Um homem que pesava 76 quilos

foi pra 33 quilos, só que ele andava, dentro da casa com um chapeuzinho na cabeça,

um shortinho samba-canção branquinho e uma bengalinha, morreu, morreu

andando, morreu daquele jeito, deu hemorragia nele, o colchão que era novinho teve

que joga tudo fora, As roupas dele tudo fora. Porque eu não sabia como limpa aquele

sangue, foi um sofrimento. (PAUSA). Eu acho que assim, quando o pai e a mãe da

gente vai embora, vai um pedaço da gente também embora, eles falam que não, como

se diz, eu tenho que morrê primeiro que meu filho, eu acho que a mãe tem que morrê

primeiro que os filhos, não os filhos morrê primeiro que a mãe, porque é uma dor

infeliz. (LÁGRIMAS). [...]. (Relato da Sr. Flor de Lis).

A morte do pai também mexe com as relações familiares, inclusive afeta

diretamente seu filho pois o uso de drogas ainda permanece na vida do filho mais velho,

inclusive já tentou a realização de tratamento, mas foi vencida pela desmotivação, como

também pela não existência de uma rede de tratamento no município ou na região. O filho

também mantem uma relação afetiva, já violentou a sua companheira, hoje não faz, devido a

gestação da companheira.

Em relação a questão da violência doméstica, que foi trazida na entrevista pela Sra.

“Flor de Lis”, informa que deixou marcas profundas, pois comenta:

9 Hoje é denominada Fundação Casa, que o principal objetivo é desenvolver o trabalho em medida socioeducativa

privativa de Liberdade para adolescentes e jovens, conforme prevê o Estatuto da Criança e Adolescente – ECA.

[...] Nada, não pergunto nada, e não entendo até hoje as coisas que eu sinto. Você

pensa que eu sou feliz, eu não sou feliz, todo mundo dá risada. Vou te explicá uma

coisa, eu as vezes tenho medo de sorrir, dá risada, se achou graça em uma pessoa, se

tá rindo, as vezes você brinca com seus amigos, dá risada, brinca, eu brinco as vezes,

mais fico pensando meu Deus daqui a pouco vai acontecer alguma coisa, to rindo de

mais, com medo, medo de rir, mede de ser feliz, medo de tudo. (Relato da Sr. Flor de

Lis).

Essas marcas deixaram cicatrizes. Atualmente a mesma está se relacionando com

um rapaz que esta custodiado, e foi apresentado por uma conhecida que reside no mesmo bairro.

Essa relação tem proporcionado a ela projetos novos planos no futuro, ressaltando que:

[...] Graças a Deus eu tenho e ele também tem comigo, porque ele está frequentando

a igreja também. [...] Ele é mais novo que eu, então ele tá frequentando a igreja e

tudo lá e vamos que vamos, não deu certo com um daqui de fora. Fui lá dentro conheci

e tô vivendo feliz [...]. Me sinto agora bem, depois de ter falado, sabia que me alivio,

eu tô me sentindo mais leve, acho que eu precisava de um tratamento, de chegar

conversa com a psicóloga, e despejar mesmo. (PAUSA). Poder chorar. [...]. (Relato

da Sr. Flor de Lis).

4 Considerações Finais

Como foi destacado nesse trabalho, a questão da violência doméstica afeta a vida

das mulheres nas diversas camadas sociais, mas é na classe trabalhadora que suas expressões

são marcadas, principalmente porque se relaciona com outras situações de vulnerabilidade e

risco, e agrava a condição social, econômica, psicológica, pois esses não possuem condições

financeiras para custear um tratamento, bem como, as próprias políticas sociais, em especial de

Assistência Social e Saúde, não veem conseguindo chegar até a territorialidade, onde as pessoas

vivem e vivenciam.

É preciso registrar, que a própria lógica da operacionalização das políticas sociais,

que tem a família como o foco prioritário de suas ações, burocratizam as ações, e não

conseguem deixar que os profissionais especializados realizem ações a partir da subjetividade

da história de vida dos sujeitos usuários. Temos vistos uma série de programas familiares com

enfoque na condição da pobreza pela culpabilidade da sua condição da pobreza, bem como,

com o enfoque direto em renda econômica.

Por outro lado, não se pode deixar de registrar, que nos anos 2000, ações

direcionado as diversas expressões e manifestações da “questão social” que afeta a vida das

familiares, são inseridas na agenda governamental e através das políticas sociais, ampliaram as

formas de atendimento, porém, como foi visto na entrevista acima, ainda é restrito a existência

de ações direcionadas as mulheres vítimas de violência, bem como para os agressores, que

conforme muitos estudos, também sofreram diversas formas de violência que marcaram as suas

história de vida.

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seus parceiros. Revista de Saúde Pública, v. 39, n. 1, fev. 2005 (online). Disponível em:

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