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IV SIMPÓSIO GÊNERO E POLÍTICAS
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA
08 a 10 de junho de 2016
GT6. Gênero e violência contra as Mulheres
A violência estrutural de gênero e as políticas públicas para mulheres no
Brasil
Dieni Oliveira Rodrigues
(Universidade Federal do Rio Grande do Sul, doutoranda em Sociologia)
2
IV SIMPÓSIO GÊNERO E POLÍTICAS PÚBLICAS
GT6. Gênero e violência contra as Mulheres
A violência estrutural de gênero e as políticas públicas para mulheres no Brasil
Dieni Oliveira Rodrigues1
Resumo: considerando a violência de gênero como tema, este trabalho tem como objetivo
analisar o conteúdo das políticas públicas de enfrentamento à violência contra a mulher no
Brasil, mais especificamente aquelas criadas a partir dos Planos Nacionais de Políticas para
Mulheres, sobretudo o Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra as Mulheres,
como um dos desdobramentos essenciais da Lei Maria da Penha na discussão do combate e
prevenção da violência. A metodologia utilizada será a análise de conteúdo, considerando a
necessária avaliação dos documentos e normas que guiam a política nacional de
enfrentamento à violência contra a mulher – Lei Maria da Penha, Planos Nacionais de
Políticas para Mulheres, Pacto de Enfrentamento a Violência e Convenção de Belém do Pará.
Os resultados ainda são preliminares, contudo é possível afirmar o reconhecimento da
violência estrutural de gênero por parte do Estado brasileiro, presente nos principais
documentos e normas que guiam as políticas públicas para mulheres. Ainda que seja no
âmbito da elaboração da política nacional para mulheres, é fato a criação de instrumentos e
redes de prevenção e enfrentamento à violência contra as mulheres em todo o país. Entretanto,
os desafios ainda são grandes, tendo em vista o caráter cultural desse tipo específico de
violência, que demonstra certa impermeabilidade às estratégias jurídicas e políticas de
transformação dessa realidade. A sua reprodução é verificada em todas as classes, territórios,
etnias e grupos sociais.
Palavras-chaves: violência; mulheres; políticas públicas.
Introdução
A violência é elemento que constitui intrinsecamente todas as sociedades, trata-se de
um fenômeno histórico, presente em todos os grupos sociais, atravessando as classes, a raça-
etnia, as gerações e os diferentes espaços, se apresentando das mais diversas formas e por isso
é tão intrigante. A violência de gênero é umas dessas formas e também é verificada em todas
as sociedades, manifestando-se de variadas maneiras (psicológica, sexual, patrimonial,
institucional, entre outras) e atravessando o cotidiano de grande parte das mulheres em todo o
planeta.
No Brasil, a violência contra a mulher é um componente estrutural da opressão de
gênero, um dos pilares constituintes da nossa sociedade, cuja prática é cotidiana e ainda
1 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFRGS. Mestre, Bacharel e Licenciada em
Ciências Sociais – UFPEL. Email: [email protected].
3
invisibilizada, o que mantém as mulheres em posições subalternas e dificulta o seu
desenvolvimento pleno (MENEGHEL, 2009). As mulheres conquistaram avanços
importantes sobre seu corpo, no mundo do trabalho, da cultura e da educação, porém os
ganhos de igualdade e liberdade ainda são limitados. Demandas por universalização da
igualdade se uniram a demandas por reconhecimento das diferenças: as mulheres são sujeitos
múltiplos, afetadas por diferentes discriminações e injustiças (FRASER, 2001).
Considerando a violência de gênero como tema, este trabalho tem por objetivo
analisar o conteúdo das políticas públicas para mulheres no Brasil, sobretudo aquelas
destinadas ao enfrentamento da violência contra a mulher, ressaltando os desdobramentos
essenciais da Lei Maria da Penha na discussão do combate e prevenção à violência. A
violência de gênero é tema de discussão dos movimentos feministas e de mulheres, no Brasil,
desde a década de 1970, e estes são centrais na construção dessa categoria enquanto um
problema público e social. A partir da inserção da noção de gênero, através da articulação dos
movimentos feministas e de mulheres, passou-se a construir uma definição específica de
temáticas femininas e, assim, reivindicá-las.
Na medida em que os movimentos feministas e de mulheres, nacionais e
internacionais, foram ocupando espaço na agenda política brasileira, a pauta dos direitos das
mulheres foi incluída no Estado brasileiro, através de medidas importantes. Tais medidas
serão analisadas aqui por meio de sua caracterização enquanto políticas e legislações e seus
possíveis desdobramentos na vida das brasileiras, sempre como um convite à reflexão dos
impactos a partir do reconhecimento dessa forma específica de violência e das formas de
prevenção, combate e assistência.
O protagonismo dos movimentos feministas e de mulheres
A caminhada da luta das mulheres no Brasil é longa. A reivindicação por direitos,
assim como a formalização das políticas de gênero, ainda requer muitos avanços. Vários
grupos de mulheres organizaram movimentos para pressionar o sistema político com
reivindicações políticas específicas de gênero. O processo gradual de redemocratização foi
fortalecido por um processo igualmente gradual de politização de gênero, através do qual as
questões antes consideradas “privadas” ou “pessoais” passaram a ser discutidas no âmbito
“político” ou “público” (ALVAREZ, 1988). À medida que esses processos desenvolveram-se
por meio das reivindicações por maior representação e força política para as mulheres
enquanto “grupo”, as lutas por creches comunitárias, por planejamento familiar não
4
coercitivo, contra a violência contra a mulher e a temática “feminina”, como um todo, foi
sendo introduzida nas arenas institucionais.
Tendo em vista as alterações nas relações entre Estado e Sociedade Civil e levando
em conta a participação expressiva das mulheres nos mais variados movimentos, passou-se a
reivindicar a presença feminina, ou seja, o recorte de gênero na elaboração e na
implementação das políticas públicas através da elaboração de uma agenda específica. Os
atores dos movimentos sociais já vinham há muito reivindicando melhorias nas condições de
vida, tais como: habitação, questões relativas ao mundo do trabalho, custo de vida elevado,
falta de acesso aos serviços coletivos e assim por diante (FARAH, 2004; SOARES, 1998).
A partir da reabertura democrática, inaugurou-se novas formas de atuação dos
movimentos, os quais passaram a articular-se com partidos políticos, sobretudo o Partido dos
Trabalhadores (PT), e consequentemente com os governos mais progressistas. Sendo a
Constituição Federal de 1988, a representação legal do processo de redemocratização e
inclusão de direitos de vários setores da sociedade, incluindo as mulheres e o enfrentamento
das desigualdades e violência. Assim, a partir da superação da resistência em atuar em
conjunto com o Estado, as propostas feministas passaram a se articular com as ações
governamentais e não-governamentais na construção das políticas públicas. De modo que,
além da inclusão das mulheres em políticas públicas especificas de gênero, “(...) reivindica-se
a sua inclusão entre os ‘atores’ que participam da formulação, implementação e do controle
das políticas públicas” (FARAH, 2004, p. 54). O que se traduziu na elaboração de uma
agenda específica com as pautas referentes às demandas das mulheres.
A agenda de gênero - formada por temas e propostas elaborados por mulheres dos
movimentos feministas, consolidada na década de 1970 - torna-se ainda mais complexa a
partir dessa reformulação da agenda mais abrangente do Estado. Os movimentos de mulheres
apoiaram o processo de descentralização das políticas, com ênfase na democratização da
construção destas, porém ainda não havia um aparato centralizado das políticas de gênero. Tal
agenda é baseada nas resoluções da Conferência Mundial sobre a Mulher em Beijing,
realizada em 1995, Convenções Interamericanas, nas Conferências Nacionais de Mulheres,
bem como nas reivindicações dos movimentos de mulheres brasileiras, é constituída das
seguintes temáticas-diretrizes: violência, saúde, meninas e adolescentes, geração de emprego
e renda, educação, trabalho, infraestrutura urbana e habitação, questão agrária, incorporação
da perspectiva de gênero por toda política pública e acesso ao poder político.
Cabe aqui colocar em destaque a atuação dos movimentos feministas e movimentos
de mulheres, os quais foram e são atores centrais, tendo como contribuição a inclusão da
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perspectiva de gênero na agenda pública, pressionando o Estado para que formulasse políticas
públicas específicas para as mulheres, as políticas de gênero. Essas políticas caracterizam-se
por ações diferenciadas para as mulheres, visando superar as desigualdades em relação aos
homens, tendo como base o reconhecimento da diferença de gênero (FARAH, 2004).
As políticas conquistadas pelas mulheres no Brasil
O Brasil, enquanto sociedade civil organizada, já vinha pactuando com as
convenções e tratados internacionais acerca dos direitos humanos das mulheres desde a
década de 1970, eis alguns dos mais importantes: 1º Conferência Mundial da Mulher, em
1975, realizada na Cidade do México; Convenção pela eliminação de todas as formas de
discriminação contra a mulher, ONU, em 1979; Convenção Interamericana para Prevenir e
Erradicar a Violência contra a Mulher; e a Convenção de Belém do Pará, realizada em Belém
do Pará, em 1994. Essas convenções e articulações dos movimentos sociais, que lutaram pelos
direitos das mulheres, foram centrais no processo que culminou em uma agenda de políticas
públicas de gênero.
Exemplos dessas políticas são os Conselhos de Direitos das Mulheres criados a partir
dos anos de 1980 e que hoje estão atuando em todos os estados brasileiros. Bem como as
Delegacias da Defesa da Mulher, as quais, ao longo das últimas décadas, vêm se
especializando no atendimento2. Cabe salientar a criação do Conselho Nacional dos Direitos
da Mulher, em 1985, bem como a instituição do Programa de Assistência Integral à Saúde da
Mulher (PAISM), em 1983, como exemplos de políticas de gênero pioneiras.
O ápice desse momento foi a criação da Secretaria Especial de Políticas para
Mulheres (SPM), em 2003, no primeiro mandato do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A
ação significa uma importante vitória para os movimentos de mulheres e feministas. A partir
desse momento, o Estado reconhece e cria um espaço específico para tais demandas. As
iniciativas anteriores a essa não apresentavam um caráter articulador e nacional, como o de
então. Com isso, o Brasil cria uma agência pública federal para a discussão e elaboração de
políticas públicas, que se propõe a cumprir essas tarefas em parceria com a sociedade civil.
Uma das primeiras ações foi a articulação junto aos movimentos feministas e de
mulheres da I Conferência Nacional de Políticas para Mulheres, na qual se deu o encontro
entre representações do poder público e da sociedade civil, que construíram as principais
2 O primeiro Conselho da Condição Feminina foi criado em 1983 e a primeira Delegacia de Policia da Defesa da
Mulher em 1985, ambos em São Paulo (FARAH, 2004).
6
diretrizes e os temas que guiaram a elaboração do I Plano Nacional de Políticas para Mulheres
(I PNPM), lançado em 2004. A Conferência e o Plano salientaram a importância das agências
estatais de políticas públicas para as mulheres, enquanto atores fundamentais na articulação de
políticas mais integradas, no processo que busca garantir os direitos (BOHN, 2010). É de
extrema importância uma agência estatal de políticas públicas que se proponha a articular uma
rede no interior de todas as instâncias federativas, pautada pelo gênero e em constante diálogo
com os movimentos de mulheres e feministas.
Sobre o conteúdo do Plano Nacional, vale destacar que foi constituído pelos
seguintes eixos: autonomia, igualdade no mundo do trabalho e cidadania; educação inclusiva
e não sexista; saúde das mulheres, direitos sexuais e direitos reprodutivos; e enfrentamento à
violência contra as mulheres. Todos os programas, ações, metas e objetivos tiveram como fio
condutor a transversalidade de gênero, que compreende a criação de uma matriz que oriente
competências politicas e responsabilize os agentes públicos, com a superação das assimetrias
de gênero em todas as instâncias de governo (MENEGHEL, 2009).
Para a reflexão aqui proposta, será destacado somente o último eixo que trata do
enfrentamento à violência contra as mulheres. O primeiro objetivo é bastante emblemático:
“implantar uma política nacional de enfrentamento à violência contra a mulher” e demonstra o
reconhecimento da diferença da violência sofrida pelas mulheres. A elaboração das políticas e
das demandas é guiada por essa diferença. A violência contra a mulher está vinculada às
desigualdades de gênero e ao poder atribuído ao homem, sobre a qual ainda sustenta-se uma
concepção de inferioridade e subjugação da mulher. A violência pode ser psicológica, física,
sexual ou patrimonial. São incluídas diversas categorias de violência de gênero no plano, que
justificam a elaboração de ações específicas que atendam as demandas de: assédio sexual,
desigualdade salarial, assédio moral, uso do corpo como objeto, tráfico de mulheres e
meninas, entre outras. (I PNPM, 2004). Dessa forma, é reconhecida a violência de gênero
como forma de dominação e, portanto, como produto de relações desiguais de poder
estabelecidas em todas as esferas sociais no Brasil e com isso o compromisso de superá-las:
A violência contra a mulher acontece no mundo inteiro e atinge mulheres de todas as
idades, classes sociais, raças, etnias e orientação sexual. Qualquer que seja o tipo,
física, sexual, psicológica, ou patrimonial, a violência está vinculada ao poder e à
desigualdade das relações de gênero, onde impera o domínio dos homens, e está
ligada também à ideologia dominante que lhe dá sustentação. (Idem, p.67)
No que tange ao atendimento e assistência às vítimas, há a proposta de garantir o
atendimento integral, humanizado e de qualidade às mulheres em situação de violência, com
destaque para a rede de atendimento às vítimas de violência. Para combater a violência contra
7
a mulher, segundo o PNPM, são necessários recursos públicos e comunitários, além da
efetivação de uma rede que envolva os poderes legislativo, judiciário, executivo, os
movimentos sociais e a comunidade. Formando redes de prevenção e de atendimento, as quais
devem ser compostas de assistência jurídica, social, serviços de saúde, segurança, educação e
trabalho. Esses serviços incluem: delegacias especializadas e comuns, centros de referência,
serviços de saúde, defensorias públicas e da mulher, casas abrigos, policia militar, corpo de
bombeiros, entre outros (I PNPM, 2004).
Enfatiza o cumprimento dos instrumentos internacionais e a revisão da legislação
brasileira de enfrentamento à violência contra a mulher, a qual no momento da publicação
deste compromisso de governo, em 2004, ainda não possuía legislação para a violência em
questão. Em resposta às pressões internacionais e aos movimentos de mulheres e feministas
foi criado um grupo interministerial com o objetivo de discutir um anteprojeto de lei sobre a
violência doméstica sofrida pelas mulheres, remetido ao Congresso em novembro de 2004.
O resultado foi a Lei 11.340, de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha,
considerada um avanço no enfrentamento à violência contra as brasileiras. A partir dela todo
caso de violência doméstica e familiar contra a mulher vira crime e passa pela investigação da
polícia e Ministério Público, devendo ser julgado em juizado especializado. Reconhece a
violência contra a mulher com base na Convenção de Belém do Pará3, que entende a violência
contra a mulher como ataque aos direitos humanos e liberdades individuais. A lei tipifica a
violência doméstica e familiar e a caracteriza como física, psicológica, sexual, patrimonial e
moral. Prevê a articulação de medidas integradas de prevenção, bem como a articulação de
serviços de assistência (jurídica, psicológica, de saúde, etc.) e atendimento às mulheres.
Essa legislação é uma demanda histórica dos movimentos de mulheres e feminista,
além de ser resultado da pressão de organismos internacionais de direitos humanos e das
mulheres. Recebeu esse nome por fazer referência à história e luta de Maria da Penha Maia
Fernandes, brasileira, farmacêutica vítima de tentativa de homicídio cometida pelo seu ex-
marido em 1983. Após anos recorrendo a justiça brasileira, sem reconhecimento e retorno,
resolveu contatar organismos internacionais como o CLADEM e CEJIL4,
que encaminharam
o seu caso para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos OEA. Obviamente não foi
tão imediato assim, porém para fins didáticos e melhor compreensão, o importante é entender
3 Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, realizada em Belém do
Pará, em 1994, a qual delimitou e orientou, a partir de então, o enfrentamento à violência de gênero nos países
pactuados. 4 CLADEM - Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher e CEJIL - Centro pela
Justiça e o Direito Internacional.
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que o Estado brasileiro começou a ser ostensivamente pressionado e criticado pelo descaso
com a violência estrutural contra as mulheres no país e para fins de relações exteriores,
acabou dando esse passo importante no reconhecimento e enfrentamento dessa injustiça de
gênero.
Foi um passo fundamental na caminhada das mulheres pelo direito à vida sem
violência, entendida como uma violação aos direitos das mulheres, a qual é também um
entrave ao desenvolvimento socioeconômico. Já que seus desdobramentos transbordam em
todos os campos da vida em sociedade, tendo sido reconhecida, no início dos anos 1990,
também como um problema de saúde pública pela Organização Mundial de Saúde
(MENEGHEL, 2009).
A dimensão politica e coletiva da história de Maria da Penha é emblemática, pois a
partir do reconhecimento da violência vivida por ela, outras “Penhas”, até então sem resposta
e reconhecimento do Estado, ou seja, totalmente a mercê de uma sociedade que privilegia o
homem em todas as relações, sobretudo, nas relações afetivas e conjugais, tiveram a
possibilidade de começar a “virar o jogo”. A lei contribuiu, sobretudo, na compreensão da
sociedade e do Estado de que a violência doméstica e familiar devia sair do âmbito doméstico
e ser tratada como ataque aos direitos humanos das mulheres, bem como no processo de
politização das relações de gênero e sua gradual retirada da esfera privada.
Com a elaboração de algumas políticas, a atuação de serviços desde a década de
1980 e a promulgação da Lei Maria da Penha, foi articulado em 2007, o Pacto Nacional pelo
Enfrentamento à Violência Contra a Mulher, um acordo federativo para consolidar a Política
Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres5, entre o governo federal, os
estados e municípios, para o planejamento de ações através de políticas integradas em todo o
território nacional.
O Pacto foi lançado e articulado na II Conferência Nacional de Políticas para as
Mulheres, juntamente com o II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (II PNPM), em
2008, no qual a proposta consiste em ampliar e aprofundar as políticas para mulheres no
Brasil. Neste são incluídas seis áreas estratégicas que se somam àquelas do I Plano6:
Participação das mulheres nos espaços de poder e decisão; Desenvolvimento sustentável no
5 Constitui, juntamente com o I Plano Nacional de Politicas para Mulheres, o esforço de articular as diretrizes e
metas do enfrentamento à violência enquanto ação articulada de governo. A ser incorporada nas ações de
prevenção, assistência e garantia de direitos das mulheres em diversas áreas, tais como a saúde, educação,
habitação, segurança e justiça. 6 As áreas que já constavam no I Plano são: Autonomia, igualdade no mundo do trabalho e cidadania; Educação
inclusiva e não sexista; Saúde das mulheres, direitos sexuais e direitos reprodutivos; e Enfrentamento à violência
contra as mulheres.
9
meio rural, na cidade e na floresta, com garantia de justiça ambiental, inclusão social,
soberania e segurança alimentar; Direito à terra, moradia digna e infraestrutura social nos
meios rural e urbano, considerando as comunidades tradicionais; Cultura, comunicação e
mídia não-discriminatórias; Enfrentamento ao racismo, sexismo e lesbofobia; Enfrentamento
as desigualdades geracionais que atingem as mulheres, com especial atenção às jovens e
idosas.
O conceito de violência incorporado no II Plano e, consequentemente, pela Política
Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres também se fundamentou na
definição da Convenção de Belém do Pará, que definiu a violência contra a mulher como
sendo “qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento
físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado” (II PNPM,
2008, p.95). E compreende a violência como um fenômeno multidimensional que requer
políticas amplas e articuladas em todas as esferas da vida social, apoia-se em três premissas: a
transversalidade de gênero, a intersetorialidade e a capilaridade (Pacto, 2007).
A definição de violência é ampliada, pois reconhece outras formas de violência
contra as mulheres e sua correlação com as demais áreas e tem como foco, no âmbito da
violência, a implementação do Pacto Nacional de Enfrentamento da Violência contra as
Mulheres. Suas ações foram estruturadas em quatro grandes áreas:
i) Consolidação da Política Nacional de Enfrentamento da Violência contra as
Mulheres e Implementação da Lei Maria da Penha; ii) Promoção dos Direitos
Sexuais e Reprodutivos e Implementação do Plano Integrado de Enfrentamento da
Feminização da Aids; iii) Combate à exploração sexual e ao tráfico de mulheres; iv)
Promoção dos Direitos Humanos das Mulheres em Situação de Prisão. (II PNPM,
p.101)
É possível concluir, que o II Plano buscou apresentar uma nova etapa na temática da
violência contra a mulher, tendo em vista a criação de novos espaços e programas, bem como
a lei, seus desdobramentos, fortalecimento e todos os serviços ligados à rede de atendimento.
A transversalidade de gênero, enquanto norte, está presente ao longo do capítulo, assim como
o combate a discriminação e ênfase na temática dos direitos das mulheres.
Com uma década de existência, em 2013, a Secretaria de Políticas para Mulheres
(SPM) publicou o III PNPM, construído com o movimento de mulheres rurais e urbanas, e
feministas, através das Conferências de Mulheres municipais, estaduais, culminando na 3º
Conferência Nacional de Políticas para Mulheres. Um dos destaques foi a releitura do Pacto
Nacional de Enfrentamento a Violência, ampliando suas ações e atualizando suas discussões e
10
dados sobre a Rede de Atendimento, com a inauguração de Unidades Móveis de Atendimento
às Mulheres em situação de Violência no Campo e na Floresta.
No ano de 2015, mais precisamente em 9 de março, foi aprovada a Lei 13.104, que
tipifica o feminicídio, isto é, o homicídio considerando a dimensão do desprezo ou condição
da mulher. Na prática, o que muda é o reconhecimento do assassinato de mulheres pela
condição de gênero, com isso há a caracterização de crime hediondo e o aumento da pena, o
que significa um avanço importante na luta pela visibilidade e enfrentamento do assassinato
de mulheres vítimas de violência de gênero.
Foi empregada aqui uma tentativa de demonstrar um quadro dos principais avanços
na elaboração de políticas e legislações brasileiras que tenham como foco o reconhecimento
da violência de gênero contra as mulheres. Conforme se demonstrou ao longo deste texto,
existem avanços inegáveis no que tange a temática aqui proposta, contudo para além deste
importante reconhecimento, ainda existem muitos desafios para serem superados nesta
problemática social. Mesmo com aparatos importantes, há a escassez de recursos para a
aplicação dos mesmos, a dificuldade da adesão dos estados e municípios, que embora
pactuem com as normas e regramentos do enfrentamento à violência como política
transversal, na prática não conseguem a articulação necessária entre todas as pastas
envolvidas.
Conclusões
A contribuição da luta dos movimentos pelos direitos das mulheres no Brasil é
inestimável, considerando desde o acesso aos direitos políticos até o direito a vida sem
violência. Entre uma pauta e outra muito aconteceu, sobretudo no Brasil, onde temos um dos
casos mais emblemáticos de violência contra a mulher considerado um caso de litígio
internacional (CLADEM, CEJIL, OEA e ONU), já que Maria da Penha tendo sido vítima de
violência doméstica, precisou recorrer a organismos internacionais de defesa dos direitos
humanos que pressionaram sistematicamente o governo brasileiro para que tomasse
providências acerca da violência estrutural contra as mulheres. Após longa caminhada foi
promulgada a Lei 11.340, a qual reconheceu e regulamentou a violência doméstica e familiar
no Brasil.
O reconhecimento da violência de gênero pelo Estado e a articulação de políticas
que a combatam são fundamentais para o processo, ainda em curso, de deslocamento desse
tema da esfera privada para a esfera pública. De modo que “meter a colher” passa a ser
11
competência de um Estado que deveria se organizar pela transversalidade de gênero e, logo,
pelo enfrentamento a todas as formas de violência contra as mulheres.
É possível concluir que a elaboração de políticas públicas para as mulheres no Brasil
desde a criação da SPM, reconhece a dimensão do gênero e orienta que todas as demais
políticas se guiem pela transversalidade na elaboração e aplicação das políticas. Contudo, no
que tange a legislação, não há clareza da presença da categoria de gênero e sim uma forte
orientação para a violência doméstica e familiar, reduzindo as possibilidades de
enquadramento das diversas formas de violência impostas pela desigualdade e restringindo as
mulheres a esfera da vida privada, doméstica e familiar. Obviamente a violência neste âmbito
ainda é um grave problema a ser enfrentado, mas é preciso refletir sobre legislações mais
amplas que possam dar conta da diversidade de fenômenos advindos da diferenciação e
dominação de gênero.
Mesmo com o reconhecimento dos avanços precisamos apontar os limites, quais
sejam: a inexistência de organismos de políticas para as mulheres em inúmeros governos
estaduais e municipais; o baixo orçamento; parcos recursos humanos e materiais; a
criminalização do aborto; a cultura do estupro; a baixa incorporação da transversalidade de
gênero nas políticas públicas; a ausência de compartilhamento das tarefas do trabalho
doméstico e de cuidados; a fragilidade dos mecanismos institucionais de políticas para as
mulheres existentes; a baixa adesão da educação em gênero, entre outras. O desafio colocado
consiste em ir além das denúncias, medidas legais e jurídicas (fundamentais, mas não
suficientes) e construir dinâmicas de educação e cultura para além da divisão desigual de
gênero. A relação entre violência e poder nos auxilia na compreensão das opressões de
gênero, sendo a violência contra a mulher a expressão mais eficaz dessa relação de
subordinação que enquadra as mulheres em um lugar específico.
Atualmente temos presenciado recuos nas conquistas: a SPM perdeu seu caráter de
Ministério, com perda de recursos em geral e recuos na sua inserção politica; a violência
persiste e avança sistematicamente7; há o fortalecimento de perspectivas conservadoras que,
7 A cada dois minutos cinco mulheres são espancadas no Brasil, sendo o parceiro (marido, namorado,
companheiro) o responsável em mais de 80% dos casos; ocupamos a sétima posição no ranking de países onde
acontecem mais assassinatos de mulheres; uma em cada cinco mulheres já foi espancada pelo marido,
companheiro, namorado ou ex; foram registrados 50.320 estupros no país em 2013, mas o Ipea estima que o
número real seja pelo menos 10 vezes maior.
12
fortemente organizadas, confrontam os avanços ainda escassos, tais como a inclusão da
educação em gênero nos planos de educação básica. Também é necessário garantir o espaço
de fala das mulheres que vivem cotidianamente uma das maiores perversidades do machismo:
a violência atravessada pela desigualdade de gênero. Essa forma de violência foi silenciada ao
longo da história, e suas vítimas precisam de um espaço de memória para a elaboração e
registro de uma narrativa de gênero (PATAI, 2010). A aplicação e operacionalização das
políticas de prevenção e enfrentamento são indispensáveis para que as mulheres possam viver
sem violência (GROSSI, TAVARES e OLIVEIRA 2009, p.220).
A focalização é outro elemento central na reformulação da agenda, referindo-se a
questão de gênero, tendo em vista que as mulheres, especialmente as pobres, têm sido
apontadas como um dos grupos mais vulneráveis, justificando, assim, a realização de políticas
“focalizadas” (FARAH, 2004). Diversas pesquisas têm apontado para a feminização da
pobreza na América Latina, o que tem se verificado também no Brasil, onde os dados
demonstram que as mulheres mais afetadas pela violência ainda são as pobres e negras, as
quais combinam uma rotina de racismo, sexismo e vulnerabilidade social. Portanto, as
políticas deverão ir além do gênero, considerando também raça e classe social. Reforçar a
articulação de políticas públicas amplas de emprego, educação, habitação, saúde, segurança,
entre tantas outras, que precisam atuar em conjunto na superação da violência estrutural de
gênero.
Este trabalho abre possibilidades para diversas discussões sobre a temática proposta, e
finaliza com a sugestão de uma reflexão acerca do processo de generificação do Estado
(SAGOT, 2009, p.20), ou seja, a elaboração de novas masculinidades e feminilidades
baseadas em relações equitativas mais horizontais e pautadas pelo respeito, em todas as
esferas de atuação dos governos, estendendo-se aos demais espaços de socialização.
13
Referências
a) Livros:
AVELAR, Lúcia. Mulher na elite Política brasileira. São Paulo: UNESP, 2001.
PATAI, Daphne. História oral, feminismo e política. São Paulo: Letra e Voz, 2010.
b) Artigos em coletâneas:
ALVAREZ, Sonia E. Politizando as relações de gênero e engendrando a democracia. In:
STEFAN, Alfred. Democratizando o Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas na justiça na era pós-
socialista. In: SOUZA, Jessé. Democracia hoje: novos desafios para a teoria democrática
contemporânea. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001.
GROSSI, Patrícia K., TAVARES, Fabrício A., OLIVEIRA, Simone B. A rede de proteção à
mulher em situação de violência doméstica: avanços e desafios. In: MENEGHEL, Stela
Nazareth. Rotas Críticas II: ferramentas para trabalhar com a violência de gênero. Santa
Cruz do Sul: EDUNISC, 2009.
MENEGHEL, Stela Nazareth. O que precisamos fazer para enfrentar as violências contra as
mulheres? In: MENEGHEL, Stela Nazareth. Rotas Críticas II: ferramentas para trabalhar
com a violência de gênero. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2009.
SAGOT, Montserrat. Estratégias para enfrentar la violencia contra las mujeres: reflexiones
feministas desde América Latina. In: MENEGHEL, Stela Nazareth. Rotas Críticas II:
ferramentas para trabalhar com a violência de gênero. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2009.
SOARES, Vera. Muitas faces do feminismo no Brasil. In: GODINHO, Tatau. Mulher e
política – gênero e feminismo no Partido dos Trabalhadores. São Paulo: Perseu Abramo,
1998.
c) Artigos em periódicos:
BOHN, Simone R. Feminismo estatal sob a presidência Lula: o caso da secretaria de políticas
para as mulheres. Revista Debates. V.4, nº.2, Porto Alegre, julho-dezembro-2010.
FARAH, Marta. Gênero e políticas públicas. Revista Estudos Feministas. V. 12, nº. 1,
Florianópolis, 2004.
d) Páginas da Internet:
I PNPM. I Plano Nacional de Políticas Públicas para as Mulheres. Brasília: Presidência da
República, Secretaria Especial de Políticas para Mulheres, 2004. Disponível em:
http://www.spm.gov.br/assuntos/pnpm/plano-nacional-politicas-mulheres.pdf. Vários acessos
em abril e maio de 2015.
II PNPM. II Plano Nacional de Políticas Públicas para as Mulheres. Brasília: Presidência da
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http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/planonacional_politicamulheres.pdf. Vários acessos
em abril e maio de 2015.
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