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 UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS ESCOLA DE BELAS ARTES DEPARTAMENTO DE FOTOGRAFIA, TEATRO E CINEMA BACHARELADO EM INTERPRETAÇÃO TEATRAL PALHAÇO: UNIVERSO DE TRANSGRESSÃO JENNNIFER JACOMINI DE JESUS Belo Horizonte, junho de 2012

JACOMINI, Jennifer. Palhaço - Universo de Transgressão

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Artigo que propõe uma reflexão em relação às implicações políticas, éticas e estéticas da criação artística em palhaço a partir da experiência da montagem do espetáculo Liberdade, ainda que batida, pela Cia. É de Palhaços, apresentado em julho de 2012, no município de Belo Horizonte.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

ESCOLA DE BELAS ARTES

DEPARTAMENTO DE FOTOGRAFIA, TEATRO E CINEMABACHARELADO EM INTERPRETAÇÃO TEATRAL

PALHAÇO: UNIVERSO DE TRANSGRESSÃO

JENNNIFER JACOMINI DE JESUS

Belo Horizonte, junho de 2012

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JENNNIFER JACOMINI DE JESUS

PALHAÇO: UNIVERSO DE TRANSGRESSÃO

Artigo apresentado ao Curso de Graduação em Teatro da Escolade Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais comorequisito parcial para obtenção do título de Bacharelado emInterpretação Teatral.

Orientador: Prof. Ms. Fernando Joaquin Javier Linares

Belo Horizonte, junho de 2012

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Palhaço: universo de transgressão

Jennifer Jacomini de Jesus1 

Resumo: Este artigo propõe uma reflexão em relação às implicações políticas, éticas e

estéticas da criação artística em palhaço a partir da experiência da montagem do espetáculo

 Liberdade, ainda que batida, pela Cia. É de Palhaços, apresentado em julho de 2012, no

município de Belo Horizonte.

Palavras-chave: palhaço, teatro político, transgressão.

O presente estudo irá analisar a montagem do espetáculo teatral  Liberdade, ainda que

batida, levando em consideração que:

Como fenômeno coletivo torna-se difícil surpreender no teatro onde começaou termina o trabalho de criação individual. Falar em termos genéricos deuma montagem é, então, de imediato, reconhecer a existência dessacomplexidade e a infinita inadequação em surpreendê-la em sua plenitude(MOSTAÇO, 1982, p.10).

Referenciada nesse pensamento e ciente da impossibilidade de abordar a totalidade de

questões que fazem parte de um processo criativo, tecerei algumas reflexões acerca da prática

 por mim desenvolvida, buscando compreender alguns de seus aspectos, principalmente no que

tange à dramaturgia, e estabelecer uma relação entre investigação e experimentação artística.

Essa construção cênica teve início a partir de meu desejo de reunir à realização do

trabalho final do Bacharelado em Interpretação Teatral o aprofundamento dos estudos sobre a

arte de palhaços e a retomada do trabalho com parceiros de teatro, com quem tive afinidadeafetiva e artística em criações e relacionamentos anteriores.

Desde o princípio, essa produção foi elaborada coletivamente, com a participação dos

artistas André Ferraz, Jennifer Jacomini, Jéssica Tamietti, Luciene Oliveira e Marcelo Pavão.

Reunimos-nos no princípio do semestre letivo para definir o tema que pretendíamos abordar e

 para congregar sugestões de textos e propostas cênicas. Chegamos ao consenso de que

1 Licenciada em Teatro pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais. Bacharelanda em

Interpretação Teatral pela mesma instituição sob orientação do professor Prof. Ms. Fernando Joaquin JavierLinares.

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queríamos que nosso espetáculo tivesse um caráter de arte engajada e transgressora, pois, a

nosso ver, “[o clown] perdeu a provocação, o empenho moral e político. Noutros tempos, ele

exprimia a sátira à violência, à crueldade, à condenação da hipocrisia e da injustiça” (FO,

1999, p. 304). Pretendíamos retomar em nossa construção dramática essa característica

intrínseca a este personagem cômico. Poderia, portanto, fazer minhas as palavras de Mostaço,

com relação à opção por uma arte política, quando ele enuncia que:

Aventurei-me pelo político, não porque renegue o estético ou tenha dele umavisão de atrelamento ou subjugação, pelo contrário; mas porque numa ordemsuspeita de discurso há que se radicalizar o signo, estourando a linguagem, para evidenciar seus substratos turvados. Exatamente porque, em função daobliteração do estético que marca a trajetória da arte nesta época, pensar o

estético é antes, pensar o político (1982, p.10-11).

Concordo com essa defesa do autor de que a estética deve estar a serviço do combate

 político e do debate de ideias a fim de se ressaltar o aspecto crítico da arte teatral.

 No Brasil, tínhamos como principais referências de teatro político e social os grupos

Opinião, Arena e Oficina que desempenharam importante papel nos anos 60, 70 e 80. Há que

se considerar, porém, que no período de 1964 a 1984 vivenciamos um obscuro episódio na

história de nosso país: as duas décadas de ditadura militar. Todos os setores culturais ligadas

ao teatro, música, cinema, televisão, literatura, cultura popular, dentre outras artes, foram

considerados por esse regime perigosos inimigos públicos e, sob essa justificativa, sofreram

uma perseguição sem precedentes, sendo vítimas de censura e repressão. De algum modo é

 preciso, como defende Yan Michalski, “reconhecer que foi possível fazer um teatro muito

estimulante nos tempos da ditadura, mas, por outro, sem correr o risco de parecer que

estejamos sequer cogitando supor que a censura e a repressão possam eventualmente

constituir elementos favoráveis à criação” (1985, p.9).

 Nosso maior desafio ao enveredarmo-nos na construção deste trabalho foi tentardescobrir uma forma de enunciação que contrastasse com as encenações que predominam no

contexto atual, nas quais são apresentados conflitos e sentimentos pessoais em vez da

abordagem de processos sociais. Pretendíamos um teatro que tivesse um viés mais crítico, que

subvertesse a ordem e que questionasse o poder dominante em nossa sociedade

contemporânea. Sociedade esta em que o medo e a insegurança já não estão explicitamente

 presentes como no tempo ditatorial, já que a manipulação e a dominação ocorrem de uma

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maneira bem mais sutil - porém não menos cruel. Na atualidade, a privação da liberdade

acontece de forma quase imperceptível e parece, por esta razão, inexistente.

Se, por um lado, pretendíamos a produção de uma obra teatral engajada e consciente

de seu papel transformador, por outro rejeitávamos a ideia de uma criação panfletária ou

 propagandística.

Tendo como subsidio inspirador o texto dramatúrgico  Liberdade, liberdade, de Millôr

Fernandes e Flávio Rangel, pretendíamos fazer uma abordagem do mundo atual a partir de

uma análise das relações de poder. Também era nosso intuito a produção de um espetáculo

teatral de caráter popular, em conformidade com a seguinte ideia expressa por Brecht:

O que ontem era popular, hoje já não é mais, porque o povo já não é hojecomo era ontem. Quem for vítima dos preconceitos formais, sabe que hámuitas maneiras de ocultar a verdade e outras tantas de a dizer. [...] Em teatroa realidade pode apresentar-se de forma objetiva ou fantástica. Os atores podem estar caracterizados ou estarem-no apenas muito levemente, e dar umaimpressão de absoluta naturalidade, representando, no entanto, a puramentira: ou usar máscaras grotescas e dizer a verdade. Sobre este ponto, nãohá discussão: os meios devem ser avaliados em função de seu fim (BRECHTapud MOSTAÇO, 1982, p.63).

Vislumbrávamos a possibilidade de atrelar ao fim crítico pretendido o meio que

desejávamos empregar para atingi-lo: o palhaço. Esse tolo provocador, assumidamente frágile ridículo, que tem autoridade e direito culturalmente concedidos para subverter a ordem e

que é livre de qualquer moral e exigência de perfeição, pareceu-nos a voz ideal para expressar

as contradições e problemáticas que a questão da liberdade envolve.

A origem desse personagem milenar, de acordo com Mikhail Bakhtin (1996), remonta

à Idade Média, época em que uma legião de figuras cômicas da cultura popular tomava as

ruas, principalmente nas festas carnavalescas. Nessas ocasiões, as hierarquias deixavam de

existir em substituição a uma exaltação alegórica à vida e à morte. Não apenas as ruas, mas também os palácios dos nobres foram tomados pelos

 palhaços. Eles eram encarregados de divertir e alegrar os poderosos, como explica Alice

Viveiros de Castro: “onde houvesse um senhor, um poderoso, fosse ele um conde, barão,

 bispo, abade, príncipe ou rei, haveria um bobo. Uma corte que se prezasse deveria ter pelo

menos um bobo para divertir o senhor e seus convidados” (2005, p. 32).

Verificamos, portanto, a partir dessas elucidações, que o palhaço tem procedência

 popular. Talvez seja também em razão dessa genealogia que o público se identifica tanto com

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esse personagem, pois distingue nele comportamentos e condutas de sua vida cotidiana. A

visão paradoxal daquilo que tão bem é sabido e reconhecido, esse novo ponto de vista sobre

aquilo que se acreditava já conhecer provoca o efeito transgressor que se manifesta através do

riso.

 Nós estávamos convencidos pela ideia de que o principal objetivo de um teatro que se

 pretende direcionado ao povo deveria ser a clareza na transmissão de sua mensagem e, por

isso, desejávamos descobrir formas de atingir diretamente nosso espectador, tanto na sua

sensibilidade, como na sua inteligência. Assim, ao aprofundar nosso estudo sobre as origens

do palhaço reconhecemos nesse arquétipo uma eficiente forma de estabelecer relação com

nosso público. Mas que público seria este?

 Não é por ser erudito ou popular, metafísico ou panfletário, que o teatro atraiesta ou aquela espécie de público. Antes pelo contrário; a composição do público é determinada por fatores de ordem social preexistentes ao próprioteatro como espetáculo e é o tipo de composição do público que acabará pordeterminar o próprio conteúdo do teatro [...] É em função de um públicovirtual, ainda que não existente, mas que seja capaz de se dar sem reservas aoespetáculo [...] que devem ser organizados os projetos artísticos das novasgerações (SALINAS FORTES apud MOSTAÇO, 1982, p.71).

Embora não tivéssemos desde o início de nossa investigação a consciência explicitada

 por Fortes, pretendíamos, muito convictamente, alcançar com nosso discurso cênico, o maior

número de pessoas possível - sem distinção de classe social, faixa etária, nível econômico ou

região demográfica. Se o gênero cômico presente no jogo do palhaço já nos facilitava esse

alcance, a rua era fisicamente o espaço propício para nossa criação. Estava então definida a

nossa busca estética e tínhamos seu protagonista: o palhaço de rua.

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A TRANSGRESSÃO ONTEM E HOJE

O Brasil vivenciou até a década de cinquenta um teatro cosmopolita e alienado dos

 problemas políticos e sociais e teve nos períodos dos anos de chumbo sua mais fértil produção

em termos de uma radical politização, na qual o teatro foi utilizado como arma na luta por

grandes transformações.

O inconformismo dos artistas em face de uma realidade de repressão - em que foi

abolido qualquer tipo de consulta popular e na qual imperavam um estrito controle e a

imposição de valores morais - resultou em uma reação anárquica às circunstâncias a que

estavam submetidos.

Vitimas de perseguições, por vezes disfarçadas de legalidade, mas, em sua maioria,

arbitrárias, os artistas enfrentaram entre 1964 e 1984 uma atmosfera de verdadeiro terrorismo.

Quando sobreviviam, eram obrigados a conviver com o medo e a constante ameaça de tortura,

 prisão e exílio.

Paradoxalmente, foram justamente essas motivações indesejadas e condições

desfavoráveis, aliadas à sensação de impotência em face da tirania, que geraram uma tomada

de consciência coletiva e um desejo inabalável de manifestação da indignação para com as

 pressões, abusos e excessos das autoridades. A arte teatral tornara-se, assim, uma expressãolegitima dessa insatisfação e apontava perspectivas de mudanças, tendo em vista que:

Quando a tensão entre as metas e a realidade, entre a verdade e a retórica,entre a necessidade de transformações e a manutenção do status quo, entre aurgência da ação e o conformismo geral se torna demasiadamente dolorosa, éinevitável a ira recalcada: a violência das manifestações artísticas(ROSENFELD apud MICHALSKI, 1985, p.35).

As proposições cênicas e dramatúrgicas deste período trazem o homem brasileiro para

o centro das atenções e apresentam uma investigação profunda de temas políticos e sociais.

Era preciso, porém, acuidade para driblar a censura e, para tanto, fazia-se necessário

expressar-se por meio de linguagem metafórica. Surgem então iniciativas inteligentes,

inspiradas e poéticas. Aparecem grandes nomes na dramaturgia nacional e grupos como

Arena, Opinião e Oficina despontam como referências de um teatro de contestação.

É neste contexto e em meio ao clima de protesto vivido no período que a montagem da

 peça Liberdade, liberdade pela associação entre os grupos Arena e Opinião traz à cena uma

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obra de caráter artístico que é, ao mesmo tempo, um ato político.

Yan Michalski ao referir-se à encenação de  Liberdade, liberdade, que teve sua estreia

no dia 21 de abril de 1965, define o espetáculo como pioneiro do “teatro de resistência” e

afirma que o mesmo “captava com sensibilidade e coragem o espírito de inconformismo que a

nação vinha assumindo em relação às cada vez mais duras medidas de arbítrio e repressão que

o regime vinha multiplicando” (1985, p.22).

O texto, aparentemente datado e circunstancial, tornou-se um clássico da dramaturgia

nacional. A narrativa consiste em uma colagem de citações de textos, discursos, canções,

 piadas, poemas, etc. de importantes autores da Literatura Universal e versa sobre a luta pela

liberdade em diferentes momentos da História.

Os autores no prefácio do livro comentam sobre a peça: Flávio Rangel a define como“um espetáculo que pretende reclamar, denunciar, protestar –  mas sobretudo alertar” e Millôr

Fernandes afirma que diante de um panorama no qual a palavra de ordem é “retroagir (...),

não queremos retroagir senão para a frente” (RANGEL; MILLÔR, 2002, p.4-6).

Essa obra possuía um caráter conceitual e muito condizente com o momento histórico

que perpassava o país. Rapidamente tornou-se um sucesso entre a crítica e o público que

viram refletidos em cena os próprios conflitos que sofriam e a efetivação de uma denúncia. A

 pertinência da peça ao contexto garantiram o êxito do espetáculo, como podemos perceber pelo comentário de Edelcio Mostaço: “Mito consumado,  Liberdade, liberdade, primava por

tergiversar sobre um conceito basilar, escamoteando todo o tempo uma definição apropriada

ao tempo em que se vivia, ao teatro que se fazia, aos compromissos ideológicos em trânsito”

(1982, p.81). A peça foi, em certa medida, o grito de protesto que estava abafado pelas

circunstâncias políticas de repressão e censura que os brasileiros enfrentavam naquela década.

Evidentemente, a encenação do texto da peça  Liberdade, liberdade no contexto atual,

não teria o mesmo efeito e caráter revolucionário que aquele que representava no período desua escritura. Por outro lado, é inegável que a temática abordada traz em si um caráter

universal que independe de época e lugar, como defendem os críticos Yan Michalski e

Fernando Peixoto:

O próprio tema coloca fatalmente o conflito num terreno político, mas, ao mesmotempo, cria a possibilidade de transcender a política para atingir o humano, e pareceu-nos que os autores aproveitaram corretamente essa possibilidade, dandouma clara ênfase à continuidade da luta pela liberdade no tempo e no espaço,caracterizando assim, a liberdade como uma alta aspiração do gênero humano,colocada acima dos regimes, das ideologias e das teorias políticas (2004, p.41).

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Se pensássemos em montar esse texto hoje, nos depararíamos com o desafio de

contextualizá-lo para a geração (de artistas e público) atual, que é herdeira de um período de

muitas hesitações e indefinições.

Após a ditadura, no período de transição à democracia, durante as décadas de oitenta e

noventa, nosso país apresentava um panorama político indeciso e incerto que repercutiu

diretamente no campo artístico. Artistas e público estavam perdidos e esse desencontro

refletiu em uma produção teatral desligada dos problemas sociais e políticos. Quando o algoz

deixa de ser um alvo claro, qual o caminho crítico a adotar?

Essas dúvidas deixaram muitas lacunas e se refletiram no século que se seguiu. Hoje já

não se faz necessário nem é conveniente um discurso de resistência. Precisamos descobrir

uma linguagem condizente com os novos tempos. Tempos de um Brasil em que já não existeuma ideia clara de um plano ideológico, existencial ou estético e onde impera o

individualismo exacerbado e a falta de um verdadeiro espírito coletivo.

É nessas circunstâncias e diante desse panorama da arte teatral que nos atrevemos, em

 pleno século XXI, a repensar o nosso papel político enquanto atores, refletindo sobre a nossa

época e desenhando o nosso próprio discurso sobre a liberdade (ou a falta dela) nos dias de

hoje, inspirados por um texto de um período em a liberdade fez-se quase inexistente.

Queremos fazer desabrochar esta consciência política e reestabelecer um elo com umaidentidade artística que se perdeu na ordem neoliberalista. 

Confiamos no poder do teatro de transformar a realidade por meio da expressão e

reflexão crítica, social e cultural. Foi essa convicção que nos motivou realizar o espetáculo

 Liberdade, ainda que batida, da Cia. É de Palhaços, cujo processo de criação e composição

dramatúrgica será detalhado a seguir.

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A CRIAÇÃO DE LI BERDADE AINDA QUE BATIDA

 Nossa primeira impressão ao ler  Liberdade, liberdade,  texto que utilizamos como

subsídio inspirador para nossa criação, foi a de que apresentava um discurso visivelmente

direcionado e com uma clara tomada de posição que a nós, artistas e palhaços, causava

estranheza e desconforto. Desejávamos sim, tratar do tema liberdade, porém de uma outra

maneira, tendo em vista que não temos hoje, um único inimigo declarado como nos tempos da

ditadura, a quem proclamar o nosso desejo de emancipação.

Preocupados em utilizar o texto como referência e pensando-o mais como um estímulo

ao nosso pensamento e atividade criadora do que como roteiro dramatúrgico, começamos a

 pesquisar outros materiais que pudessem nos inspirar. Assim, em princípio, cada um dos

cinco criadores envolvidos no processo trouxe contribuições bibliográficas de textos, músicas,

imagens, vídeos e filmes que tratavam da liberdade e das relações de poder. Durante esse

 primeiro mês de trabalho, dedicamo-nos à tarefa de submergirmo-nos em ideias, sons e

imagens, sem ter ainda a preocupação de encontrar um caminho definitivo a seguir.

  Percebemos logo a necessidade de criarmos o nosso próprio texto fundamentado no

que havíamos pesquisado. Assim, no segundo mês de ensaio, fizemos a tentativa de selecionar

temáticas baseados no que havíamos debatido até então e com a finalidade de iniciar uma

composição dramatúrgica. Decidimos, assim, explorar a questão das relações de poder em

diversos aspectos da vida social: religião, trabalho, governo, legislação, mídia, família,

gênero, classe, território, dentre outros. Surgiram vários improvisos de cenas, que foram

sendo gradativamente elaboradas e trabalhadas durante os ensaios.

Após semanas improvisando livremente sobre as relações de poder, foi solicitado pelo

diretor, André Ferraz, que cada um dos atores trouxesse uma canção que expressasse a sua

visão individual sobre o significado de liberdade. A partir desse brainstorm  de canções,chegamos à definição de quatro temas: liberdade econômica, liberdade de expressão;

liberdade de ser o que se quer ser e liberdade individual versus liberdade coletiva. Esses temas

foram divididos entre os atores e cada um apresentou um monólogo a partir do tema

escolhido. Experimentando essa proposta, porém, notamos que a estrutura monologal não

favorecia o jogo dramático entre os palhaços. Por essa razão, os textos individuais sofreram

adaptações e foram transformados em diálogos. Ao passar da estrutura individual para a

coletiva, esses textos ganharam mais força dramática. Dois deles, porém, - liberdade

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individual versus liberdade coletiva e liberdade de ser o que se quer ser - foram suprimidos,

 porque na realização cênica de ambos predominaram questões subjetivas, particulares e

individuais que os afastava das questões universais das relações de poder da sociedade, que

 pretendíamos contemplar.

Uma vez que as músicas pesquisadas não poderiam ser utilizadas no espetáculo - pois

não possuíamos condições de arcar com os custos de direito autoral em futuras apresentações

- decidimos compor nossas próprias canções. Essas canções versam sobre o tema das cenas e

objetivam criar o efeito de estranhamento2 no espectador.

Como produzimos muito material criativo, sentimos a necessidade de realizar uma

síntese a fim de reunir e apresentar aquilo que era o mais importante em termos discursivo e

interessante em termos de jogo cênico. Assim, algumas cenas foram condensadas, mantendo aessência de sua proposição inicial e outras, que não nos agradavam ao ponto de querermos

investir em uma melhoria estética e discursiva, foram descartadas.

Comentarei brevemente o percurso trilhado por nós no desenvolvimento das três cenas

que compõem a versão atual do espetáculo:

A primeira proposição cênica funcionou desde o início, tanto ideológica como

dramaticamente e realizava uma crítica à situação da legislação no país. Foi inspirada em um

fato real ocorrido no município de Belo Horizonte: a proibição da permanência de pipoqueirosnas praças e logradouros da cidade. Esse acontecimento instigou-nos o desejo de manifestar-

nos contrariamente às decisões arbitrárias adotadas pelo então prefeito que instaurou uma

série de decretos e leis proibindo a livre utilização do espaço público3. Por meio de uma cena

que satiriza as relações de poder entre a autoridade policial –  que representa o poder público -

e o trabalhador da rua –  que representa a massa popular –  resgatamos as máscaras antagônicas

dos palhaços que ilustram bem nossa sociedade classista e hierárquica: o palhaço branco

(opressor) e o palhaço augusto (oprimido). A eterna luta entre quem domina e quem é

2  De acordo com Patrice Pavis (2005) o efeito de estranhamento ou efeito de distanciamento é um termo brechtiano que se refere a um procedimento estético e político que consiste em modificar a percepção do públicosobre a cena. Pretende romper com a ilusão e evidenciar os artifícios da construção dramática com a finalidadede transformar a atitude aprovadora do espectador, baseada na identificação, numa atitude crítica.

3 No período de 2008-2012, Márcio Lacerda (PSB) assumiu a administração do município de Belo Horizonte eem sua gestão sancionou leis que cerceavam a utilização de espaços públicos  –  praças, parques, ruas e jardins -da capital. Insatisfeitos com o despotismo do prefeito, os cidadãos belo-horizontinos criaram movimentos decontestação como “Praia da Estação”, “Fora Lacerda” que tiveram como principais objetivos denunciar e

questionar as atitudes autoritárias do governante e reivindicar maior participação popular nas decisões relativas àvida política da cidade.

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dominado, entre o submisso e o opressor, revela, no jogo cômico, que as relações de poder

não passam de uma questão circunstancial e que bem pode o poderoso perder razão e cair no

ridículo quando abusa de sua autoridade.

Outra cena sobre a qual também trabalhamos fazia uma crítica ao poder exercido pelo

Estado. Foi inspirada no personagem Reizinho Mandão, do livro O pequeno príncipe, de

Antoine de Saint Exupéry. Na história, o monarca, para conservar-se no poder, dita a seus

súditos sempre ordens plausíveis que eles desejariam realizar espontaneamente. Parodiamos a

relação entre governante e população, explorando aspectos da diferença de  status, porém

durante os improvisos muitas outras questões que permeiam esse universo vieram à tona:

economia, autoritarismo, corrupção, eleição. Sentíamos que estávamos perdendo o mote

 principal, pois a abordagem literal de assuntos sérios e atuais estava dificultando o prazer darelação entre os palhaços, conduzindo-nos por outros caminhos diferentes daquele que

almejávamos. Chegamos a desistir de trabalhar essa cena, mas posteriormente conseguimos

recuperá-la por meio da utilização de metáforas que criaram um paralelo com a vida real e

que apresentavam essa relação entre liderança e subordinados de uma maneira mais universal:

uma corrupta palhaça assume o poder de maneira bastante absurda e questionável e passa a ter

o domínio sobre a boca de todas as pessoas do público. Essa liderança começa a ser

questionada por outro palhaço que pretende tomar o seu lugar, mas para não perder agovernabilidade ela estabelece aliança com seu opositor. É justamente esse absurdo das

relações humanas abordado de maneira escancarada e exagerada na ficção do palhaço que

gera a comicidade e o distanciamento crítico, motivando no público uma postura reflexiva

sobre a própria realidade.

Uma terceira proposta que havíamos elaborado foi uma cena na qual defendíamos a

cirurgia plástica como forma de exercer a liberdade de poder ser o que se quer ser. Todo o

quiproquó

4

 que a cena propunha, no entanto, apresentava uma crítica implícita de que a opção por uma intervenção cirúrgica para modificar a aparência estética só existe porque há uma

imposição externa de padrões de beleza socialmente valorizados e, portanto, desejáveis.

Padrões esses que são modificados conforme a moda, e esta, por sua vez, é regida por

interesses muito bem determinados, sobretudo econômicos. Insistimos nessa cena durante

algum tempo, mas após algumas repetições no decurso dos ensaios, concluímos que não

4 No livro O Riso, Henri Bergson define quiproquó como “uma situação que apresenta ao mesmo tempo dois

sentidos diferentes, um simplesmente possível: o que os atores lhe atribuem, e o outro real: o que o público lhedá” (2001, p.48). 

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estávamos satisfeitos com o que havíamos produzido. A defesa do conceito de uma aparente

liberdade que está condicionada a possibilidades de escolhas determinadas e delimitadas,

transformou-se em uma cena em que reproduzimos um programa de televisão sensacionalista

que vende a seus espectadores a sensação de liberdade, pois admite a inexistência da liberdade

 plena.

A partir da descrição do nosso procedimento de criação dramatúrgica é possível

 perceber que um processo de construção artística compartilhado é extremamente complexo,

 pois envolve uma imensa variedade de pontos de vista que precisam ser articulados,

encadeados e convergidos em prol de um sentido narrativo comum.

Foi apenas nas etapas finais do processo de criação que identificamos que

conseguimos reunir em nossa encenação a estruturação de três diferentes concepçõesdramatúrgicas: a primeira cena está pautada por um texto fixo, a segunda apresenta um roteiro

sucinto que se edifica a partir da interação com a plateia e a terceira cena é totalmente

improvisada. Percebemos, portanto, a riqueza que representa um projeto artístico coletivizado.

Compartir a elaboração de um espetáculo é também partilhar descobertas, ideias,

contradições, sentimentos e atitudes. Todas essas questões transbordam quando trabalhamos

na estética clownesca, porque esse personagem reflete a busca e a descoberta do ridículo que

há em cada um de nós. A comunhão, em nosso processo criativo, envolveu uma intersecçãoentre palhaço, artista e público e a compreensão da complexidade dessas relações não é

inteligível se mediado exclusivamente pela razão.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O processo de construção artística em grupo implica, invariavelmente, em descobertas

e desafios. O reencontro com artistas com quem já havia trabalhado anteriormente nessa

criação foi-me ao mesmo tempo um presente e uma provocação. A despeito dos obstáculos

encontrados, tais como o curto prazo para desenvolvimento do produto artístico, as

discordâncias criativas e os conflitos afetivos que permearam nosso processo, estávamos

convencidos pela ideia de que é do caos que nasce uma estrela e nos propusemos a gestar a

nossa.

Tivemos a audácia de trilhar um caminho totalmente desconhecido e arriscado,

 partindo apenas do nosso sincero desejo de construir juntos um espetáculo que refletisse a um

só tempo nossa identidade artística e nossa condição social no mundo. Se ambicionamos uma

realização artística excessivamente ousada foi porque para nós uma forma de existência sem

transgredir as “verdades” instituídas já não nos parecia possível.

Trazer para a cena questões políticas, criar um espetáculo de rua, trabalhar na estética

cômica do palhaço e priorizar a atuação coletiva em vez da individual certamente rompem

com o padrão até então adotado pelos Trabalhos de Conclusão de Curso que foram

apresentados anteriormente nesta Escola.Corroboramos com a afirmação de Zamboni de que “Em arte, a conclusão de uma

 pesquisa assume feição diferente. A apresentação dos resultados não é verbalizada, mas faz

 parte da própria obra de arte realizada” (2006, p.69). Por isso, acreditamos que lograr executar

até o fim esse projeto dentro de uma estrutura acadêmica para nós já pode ser considerado

uma vitória. Sua concretização em si é uma ação política, no sentido de que conseguimos

espaço em uma instituição escolar que não prioriza uma formação atoral voltada para um

teatro popular. Nós, atores, identificamo-nos com a figura do palhaço porque, como ele, nós também

estamos à margem, excluídos do processo. E somente quem não tem nada mais a perder é que

 pode arriscar-se desempenhar fielmente o papel de tolo. É aí então que "o palhaço (...) deixa

de ser o estranho, o intruso, o sem-lugar, para ocupar um posto na espetacularidade social,

como se o processo da dominação, escamoteando suas próprias características de exclusão,

absorvesse os deserdados. Se o problema não se resolve no social, ele está absorvido e

anulado no espetáculo" (BOLOGNESI, p.38, 2006).

7/17/2019 JACOMINI, Jennifer. Palhaço - Universo de Transgressão

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Quisemos abordar a questão da liberdade nos dias de hoje, mas essa reflexão esbarra

inevitavelmente no reconhecimento de nós mesmos como cidadãos enclausurados. Os

questionamentos que nos propusemos acerca das relações de poder de nossa sociedade

evidenciaram que “(...) não somos livres. E o céu pode desabar sobre nossas cabeças. E o

teatro é feito para, antes de mais nada, mostrar-nos isso” (ARTAUD, 1999, p.89).

Se antes, porém, que o céu desabe, conseguirmos com nosso teatro a satisfação de

fazer chegar ao público nossa mensagem, nosso dever estará cumprido e nosso atrevimento

terá valido a pena. Essa pesquisa, portanto, só se completa no encontro com a plateia, nesse

contato ao mesmo tempo reflexivo e sensível com o espectador.

 Nossa responsabilidade é grande e o trabalho que aqui apenas teve seu início, será

ainda árduo e está longe de terminar. Refletir sobre as questões sociais, recriá-las teatralmentee coletivamente em tons cômicos e satíricos foi um desafio que nos propusemos. O medo de

sermos medíocres ou mal compreendidos não nos impediu de tentar, pois aprendemos com

nossos palhaços a extrair o lado positivo de tudo que nos acontece, mesmo diante dos maiores

fracassos.

Concluímos, portanto, este artigo sem, contudo, esgotar essa pesquisa, com um

cancioneiro popular que nos inspira a continuar o caminho da investigação da transgressão e

da crítica política por meio do arquétipo do palhaço, pois “O que dá pra rir, dá pra chorar/Questão só de peso e medida/ Problema de hora e lugar/ Mas tudo são coisas da vida"

(BLANCO, 2000).

7/17/2019 JACOMINI, Jennifer. Palhaço - Universo de Transgressão

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no renascimento. Brasília: Hucitec,1996.

BENTLEY, Eric. O teatro engajado. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1969.

BERGSON, Henri. O riso. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

BLANCO, Billy. Canto chorado. In: A música brasileira por seus autores e intérpretes Vol.2.São Paulo: Sesc SP & Fundação Padre Anchieta, 2000. 1 CD (40 min). Faixa2.

BOLOGNESI, Mário Fernando. O clown e a dramaturgia. In: RABETTI, Maria de Lourdes.Congresso Brasileiro de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas. Rio de Janeiro: 7Letras,2006.

CASTRO, Alice Viveiros de. O elogio da bobagem: palhaços no Brasil e no mundo. Rio deJaneiro: Família Bastos, 2007.

FO, Dario. Manual mínimo do ator . São Paulo: SENAC, 1999.

MICHALSKI, Yan. O teatro sob pressão: uma frente de resistência. Rio de Janeiro: JorgeZahar Editor, 1985.

 _____; PEIXOTO, Fernando (org).  Reflexões sobre o teatro brasileiro no século XX . Rio deJaneiro: Funarte, 2004.

MOSTAÇO, Edelcio. Teatro e política: Arena, Oficina e Opinião. São Paulo: PropostaEditorial Ltda., 1982.

7/17/2019 JACOMINI, Jennifer. Palhaço - Universo de Transgressão

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PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 2005.

RANGEL, Flávio; MILLÔR, Fernandes. Liberdade, liberdade. Porto Alegre: L&PM, 2002.

ZAMBIONI, Silvio. A pesquisa em arte: um paralelo entre arte e ciência. Campinas: AutoresAssociados, 2006.