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7/23/2019 Jacqueline Izumi Sakamoto
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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO
PUC-SP
JACQUELINE IZUMI SAKAMOTO
RELIGIO E NIILISMO:
PAIDIA CRTICA EM OS DEMNIOS
DE DOSTOIVSKI
MESTRADO EM CINCIAS DA RELIGIO
SO PAULO
2007
7/23/2019 Jacqueline Izumi Sakamoto
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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO
PUC-SP
JACQUELINE IZUMI SAKAMOTO
RELIGIO E NIILISMO:
PAIDIA CRTICA EM OS DEMNIOS
DE DOSTOIVSKI
MESTRADO EM CINCIAS DA RELIGIO
Dissertao apresentada Banca Examinadora
da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo,como exigncia parcial para obteno do ttulode MESTRE em Cincias da Religio, soba orientao do Prof. Doutor Luiz Felipe Pond.
SO PAULO
2007
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BANCA EXAMINADORA
__________________________________________
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A meus pais
Massatoshi e Ayako
Ao meu filho
Yannis
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AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Dr. Luiz Felipe Pond pela orientao, sabedoria e generosidade.
Aos colegas pesquisadores do NEMES Ncleo de Estudos em Mstica e Santidade
PUCSP.
Ao testemunho, disponibilidade, cuidado e partilha dos amigos: Maria Cristina Mariante
Guarnieri, Maria Anglica Santana, Regina Carielo, Beatriz Curado, Llian Wurzba, Dr.
Amadeu Amaral de Frana Pereira Jr, Gabriela Bal, Maria Jos Caldeira do Amaral,
Ceci Baptista Mariani, Ana Cludia Ayres Patitucci, lcio de Gusmo Verosa Filho,
Marlia Alves Pedrosa Esa.
Ao apoio incondicional de minha famlia: Massatoshi, Ayako, Paulo Csar, Carmem e
Dborah.
A presena luminosa de Yannis, Yves, Emi, Kenzo.
Aos monges do Mosteiro Trapista Nossa Senhora do Novo Mundo.
Aos professores Dr. Afonso Maria Ligorio Soares e Dr. Jos J. Queiroz.
Aos professores Dr. Arlete Orlando Cavalieri (FFLCH-USP), Dr. Bruno Barreto
Gomide (FFLCH-USP) e Prof Ala Gueogievna Dib (UCPADP) que possibilitaram
minha iniciao no universo da literatura, cultura, histria e lngua russa.
A Coordenao, Professores e Andria do Programa de Estudos Ps Graduados em
Cincias da Religio PUCSP.
CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico.
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SAKAMOTO, Jacqueline Izumi
Religio e Niilismo: Paidia crtica em Os Demniosde Dostoivski
RESUMO
Objetivo: Tratar a filosofia da religio em Dostoivski como um testemunho, que nos
revela no s uma poderosa crtica religiosa aos desdobramentos do atesmo moderno,
mas ainda, ampliando nosso repertrio, pelo acesso a este pensador religioso como
forma de conhecer a religio.
Justificativa: Dostoivski trata em Os Demniosos excessos da secularizao em tica
e pedagogia e indica que o esquecimento da categoria de santidade, caracterizada
principalmente pela relao de simetria entre o homem e o transcendente, o atesmo
como legado antropocntrico do projeto racional moderno, produz miopia moral
inviabilizando o discernimento em meio ao caos relativista.
Hiptese: A dinmica do niilismo, caracterizando os movimentos viscerais do ser
humano em processo de auto-destruio, est enraizado no que Berdiaev definiu como
liberdade incriada, de onde brota nossa Imago Dei, no passvel s normas, que habita a
alma humana com o Nada. Procuraremos demonstrar que o atravessamento deste Nada,
o eixo da pedagogia dostoivskiana que considera a realidade do pecado e do mal,
constitui uma Paidiacrtica e religiosa.
Aspectos terico-metodolgicos e resultado obtido: Como procedimento esta
pesquisa aprofundou a interpretao do sentido da obra, e da dinmica dos personagens,
pela anlise de seu contedo, em estreita relao e dilogo com os referenciais tericos
relevantes para a compreenso dos fundamentos teolgicos presentes no pensamento de
Dostoivski. Neste sentido, o resultado obtido atingiu o objetivo proposto: o
enfrentamento do atesmo moderno com os instrumentos da filosofia da religio, que
busca uma compreenso ampliada como repertrio necessrio para o dilogo entre
educao, religio e moral, constitui uma Paidia crtica, e identificou ainda, a
atualidade desta obra para o homem no mundo contemporneo.
Palavras chave: Os Demnios, Dostoivski, Filosofia da Religio, Paidiacrtica.
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SAKAMOTO, Jacqueline Izumi
Religion and Nihilism: critical Paideia in The Devilsof Dostoivski
ABSTRACT
Objective: To deal with the philosophy of the religion in Dostoivski as a testimony,
that not only discloses a powerful religious criticism to the modern atheism unfolding,
but still, extending our repertoire, for the access to this religious thinker as form to
know the religion.
Justification: In The Devils, Dostoivski treats the excesses of education and ethics
secularization indicating the holiness category forgetfulness, characterized mainly by
the symmetry relation between man and the transcendent, the atheism as an
anthropocentric legacy of the modern rational project, produces moral myopia rendering
useless the discernment amid the relativity chaos.
Hypothesis: The nihilism dynamic, characterizes the visceral movements of human
being towards self-destruction, is rooted in what Berdiaev defined as an uncreated
liberty, where sprout our Imago Dei, not subject to the norms, that inhabits human soul
with the Nothing. We will try to show that the path through Nothing, the reality of the
sin and the evil is considered the axis of Dostoivskis pedagogy, constitutes a critical
and religious Paideia.
Theoretical-methodological aspects and obtained result: As a procedure this
research deepened the sense of the work interpretation, and the characters dynamic, by
the analysis of its content a narrow relation and dialogue amongst the prominent
theoretical yardsticks for the comprehension of the theological foundations presented in
the thought of Dostoivski. In this sense, the obtained result reached the proposed
objective: the clash of modern atheism with the instruments of the philosophy of
religion that seeks an extended comprehension as a necessary repertoire for the dialogue
between education, religion and moral, a critical Paideia, and still, the up to date depth
of this work for the contemporary man.
Keywords: The Devils, Dostoivski, Philosophy of the Religion, critical Paideia.
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SUMRIO
INTRODUO 09
CAPTULO I: A ALMA RUSSA 18
1.1 O Esprito de Dostoivski 24
1.2 A Idia Russa: a arquitetura espiritual da alma,
o pensamento em busca de salvao 27
1.3 A Intelligentsia Russa: testemunho de uma poca 34
1.4. O escritor Fidor Mikhilovitch Dostoivski 38
1.5 Os Demnios: do panfleto ao poema trgico 39
1.6. Os Demnios: das anotaes ao romance 45
CAPTULO II: A LIBERDADE 54
2.1. Liberdade na Personalidade 58
2.2. Liberdade e Constrangimento 62
2.3. Coliso de duas Grandes Idias: Cristo e Anticristo 65
2.4. Da liberdade ilimitada ao despotismo ilimitado:
o chigaliovismo 71
2.5. Homem-deus: Kirllov 76
2.6. Antinomia e penria da alma russa: Chtov 82
CAPTULO III: O MAL 90
3.1 Polifonia: marca da Queda e preservao da forma
humana 96
3.2. O Mal na Esfera da Liberdade 106
3.2.1. Os Demnios: parasitismo e dissoluo 108
CONCLUSO 128
BIBLIOGRAFIA 133
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INTRODUO
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INTRODUO
Esta pesquisa tem como objeto uma grande obra literria russa do sculo XIX efoi motivada pelas reflexes, dvidas e questionamentos decorrentes primeiro de minha
experincia pessoal como pedagoga, mas principalmente, pelo impacto causado pela
leitura da obra que, de certa maneira, acabou se constituindo num desafio pessoal de
questionamento, em profundidade e extenso, sobre a validao dos critrios de uma
tica secular determinante das experincias humanas no mundo moderno. Percebemos
que em Dostoivski a problemtica acerca da autonomia humana est sempre colocada e
que seu pensamento conta necessariamente com contedos presentes na ortodoxia
crist. Ao longo desta pesquisa motivao e desafio tornaram-se inseparveis para a
compreenso de um caminho que considera o testemunho de um autor religioso como
esclarecedor acerca do problema da liberdade humana. Assim, o primeiro contato com
Os Demniosde F. M. Dostoivski foi intenso e perturbador. Intenso porque apresenta a
condio humana sem disfarces que explode nos dilogos polifnicos de seus
personagens. A busca, ou ausncia, de sentido apresentada no drama de homens e
mulheres imersos na agonia vivida como existncia trgica. E perturbador, quando
identifica a tradio do niilismo russo como descrio da desfigurao do mundo em
dor e despedaamento, e que tem como efeito Os Demniosvivido como experincia
social.
Schnaiderman1, em seu prefcio a Memrias do Subsolo, nos indica que toda
trama presente nas obras de Dostoivski, por mais particulares que nos paream,
considerando a ligao dos temas aos acontecimentos reais, tem sempre uma amplitude
de carter geral e elevado. O caso particular, como ocorre freqentemente em
Dostoivski, traz implcita a referncia a uma problemtica filosfica2. E neste
sentido que consideramos com Pond3a importncia para as Cincias da Religio, que
no lugar de definir seus objetos possa infinitamente dar a palavra a essas pessoas
religiosas, que constituem seu objeto, s sendo capaz de conhec-las medida que
falem4. Assim, consideramos necessria uma reflexo constituda no dilogo entre
1Cf. Fidor. Mikhilovitch DOSTOIVSKI,Memrias do Subsolo.2
Ibid, p. 9.3Cf. Luiz Felipe POND, Crtica e Profecia: A Filosofia da Religio em Dostoivski.4Ibid, p. 161.
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literatura, religio e filosofia para a ampliao dos estudos crticos j realizados sobre o
autor. E, neste sentido, esta pesquisa parte da leitura do ensaio de crtica religiosa do
filsofo Luiz Felipe Pond, Crtica e Profecia: a Filosofia da Religio em Dostoivski,
que afirma a necessidade da compreenso do pensamento religioso de Dostoivski
como chave fundamental de apreenso de suas obras.
Sobre o contexto da obra e a histria do pensamento russo do sculo XIX
contamos com as obras do principal bigrafo de Dostoivski, Joseph Frank, que
publicadou uma monumental biografia em 5 volumes, mais o ttulo Pelo Prisma Russo.
E sobre a intensa produo russa do sculo XIX, a orientao da intelligentsiano seu
interesse sobre idias vividas enquanto solues para exigncias morais destacamos
Isaiah Berlim em seus ensaios sobre literatura, histria intelectual e comentriosfilosficos, reunidos sob o ttulo Pensadores Russos. Assim como, uma grande
antologia histrica de cartas e documentos (Russian Intelectual History) organizados
por Marc Raeff.
A extensa correspondncia de Dostoivski foi editada e traduzida diretamente do
russo por David Lowe, sendo que, dos cinco volumes publicados destacamos
principalmente o volume 3, referente aos anos de 1868-1871, perodo em que
Dostoivski trabalhava em Os Demnios. Joseph Frank e David I. Goldestein tambmeditaram uma seleo da correspondncia do autor que, assim como a edio de Lowe
encontram-se publicadas em ingls.
Os longos cadernos de anotaes de Dostoivski para os grandes romances
foram editados por Edward Wasiolek. Sendo que, a traduo das anotaes de Os
Demnios foi realizada por Victor Terras e encontra-se publicada em ingls. Nelas
encontramos as reflexes do prprio autor sobre as questes que se tornariam centrais
no romance, destacadamente as conseqncias do atesmo e das cincias consideradaspor ele como uma forma de teologia da poca.
No que se refere histria cultural da Rssia, Solomon Volkov, nos apresenta
em So Petesburgoa construo, consolidao e converso clandestinidade do mito
fundado com a cidade de So Petesburgo, cidade de artistas, msicos, poetas e escritores
que detm o destino espiritual desta metrpole e da prpria Rssia. E ainda no mbito
de uma teoria cultural, evidenciamos a anlise semitica de Yuri Lotman que parte de
leituras de textos poticos e literrios em seu Universe of the Mind. Outras obras queexpandem nossa compreenso sobre a histria da Rssia e da Literatura Russa Moderna
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podem ser acompanhadas com Charles Moser, Nicolas Razhevsky, Paulo
Chostakowsky, Lionel Kochan e Constantin Grunwald.
No ncleo desta pesquisa encontraremos a filosofia da religio, teologia e
antropologia religiosa com Nicolai Berdiaev, Eduard Thurneysen, Serge Bulgakov,Georges Florovski e Paul Evdokimov, Vyacheslav Ivanov, Mikhail Bakhtin e Henry De
Lubac que devero ser visitados ao longo deste trabalho.
Na discusso acerca da atualidade da obra de Dostoivski contamos com os
pensadores contemporneos Zygmunt Bauman e Alain de Finkielkraut. O primeiro na
sociologia, com forte compreenso filosfica sobre o fenmeno da modernidade, aliada
a seu vasto conhecimento literrio, e o segundo, filsofo francs, que estabelece grande
dilogo crtico refletindo sobre o padecimento dos homens e da idia de humanidade nodespotismo de nosso sculo.
O romance Os Demnios foi considerado a resposta de Dostoivski a um
assassinato nefasto: em 21 de novembro de 1869 acontece a execuo do estudante
Ivanov pelos membros da organizao poltica clandestina Justia Sumria do Povo,
comandada por Nietchiev. Ivanov foi executado porque resolvera afastar-se da
organizao por divergncias polticas e seu assassinato serviu como prova de lealdade,
estreitamento e unio dos laos entre os membros da organizao. O processo por crimepoltico envolvendo os integrantes da clula de uma organizao internacional, da qual a
existncia concreta nunca foi provada, recebeu ampla divulgao e debate pela imprensa
russa. Dostoivski centra sua ateno nos detalhes da organizao e no perfil de seus
integrantes, principalmente em Nietchiev que ser o prottipo do grande personagem
niilista Piotr Stiepnovitch Vierkhovinski. A publicao foi recebida pela crtica como
um panfleto contrrio ao movimento revolucionrio e isolado deste prprio movimento.
Mas Dostoivski no v tal ato como isolado e nico. E, na medida em que mergulhacom rara lucidez na realidade concreta do episdio, expande a polmica entre vrios
segmentos do pensamento poltico, social, filosfico e religioso russo e ocidental.
Dostoivski trata neste romance dos excessos da secularizao em tica e
pedagogia e indica que o esquecimento da categoria de santidade, caracterizada
principalmente pela relao de simetria entre o homem e o transcendente, o atesmo
como legado antropocntrico do projeto racional moderno, produz miopia moral
inviabilizando o discernimento em meio ao caos relativista. A consistncia dopensamento religioso de Dostoivski se encontra exatamente na considerao do
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homem como um enigma experimentado concretamente, onde a capacidade de
pressentir e manifestar Deus (teofrico) se d na realidade por meio de uma
transformao concreta na forma de ser, conhecer e agir no mundo. Trata-se do resto
cognitivo e notico desta experincia, presente na Ortodoxia Crist, que possibilita
crtica dostoivskiana enfrentar o relativismo, o niilismo e o individualismo presentes
no projeto dogmtico humanista. O desdobramento na condio humana apartada de sua
raiz divina aposta no niilismo, compreendida como desfigurao plena do mundo, o ser
humano descola da realidade na qual vive quando passa a acreditar que pode ser, ele
mesmo, fonte da imagem criando forma para o mundo, como nos projetos
revolucionrios sociais ou cientficos racionais. Nesta tentativa de fundao a partir da
abstrao racional os seres humanos acabam por realizar o Nada. A percepo da dor da
destruio do mundo compe o universo da literatura russa deste perodo.
Neste sentido constitui-se como desafio desta pesquisa o enfrentamento do
atesmo moderno com os instrumentos da filosofia da religio, da esttica teolgica e da
crtica literria, buscando uma compreenso ampliada como repertrio necessrio para o
dilogo entre educao, religio e moral, na expectativa de uma Paidia crtica neste
percurso, considerando ainda, a atualidade desta obra para o homem no mundo
contemporneo.
Esta pesquisa tem como objeto o romance Os Demniosde F. M. Dostoivski,
publicado em 1871, sendo que trabalharemos com a traduo de Paulo Bezerra, Editora
34, publicada em 2004. Dostoivski denuncia o mal nesta obra em sua forma silenciosa
e parasita o relativismo - como um discurso travestido de construtivo e lido como
libertador. As razes que tm incio na gerao dos pais liberais produziram anomia ao
recusar sistematicamente a experincia antinmica de Deus. Piotr -personagem
revolucionrio radical e um dos demnios maiores do romance - sabe que estamos
sempre desconstruindo e no final descobriremos o nada. Assim, sendo todos os critrios
relativos e autocentrados, conforme lhe foi ensinado, porque no aplicar a mesma lgica
da desarticulao ao pai e a outros seres humanos?
Na continuidade do movimento relativista veremos a entrada do homem no
niilismo epistemolgico, afetivo, poltico, onde a busca de uma sada rpida que alivie a
dor deste abismo caracterstica do moderno. Em contrapartida, a pedagogia de
Dostoivski afirma que no possvel conhecer a soluo sem atravessar a dor inteira.
Sendo assim, ser possvel afirmar que o projeto moderno que busca fundar uma virtude
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sem Deus numa relao de simetria com Ele, na construo de uma redeno humana,
terminar sempre em Os Demnios?
Na ortodoxia a experincia de Deus se d sempre no plano da evidncia e no da
lgica. A idia de liberdade e transformao identificada por Dostoivski a idia que
fora de Deus no h verdadeira liberdade e esta est implicada com o mistrio. Quando
o homem abdica de Deus abdica tambm da verdadeira liberdade. Neste sentido, quais
seriam as contribuies da experincia do mistrio presente na ortodoxia para a
compreenso do violento relativismo contemporneo?
Consideramos que o poder de descriar, de voltar ao nada, prpria da dinmica
do niilismo, caracterizando os movimentos viscerais do ser humano em processo de
auto-destruio. Este conceito est enraizado no que Berdiaev definiu como liberdade
incriada, de onde brota nossa Imago Dei, no passvel s normas, que habita a alma
humana com o Nada. A negao desta liberdade incriada, divina e intratvel leva o
homem a buscar frgeis determinismos conceituais, garantindo qualquer esperana de
progresso sistmico e este acaba por realizar a experincia do nada materializado nas
relaes objetivas e subjetivas, na dissoluo da ordem da Forma e das relaes.
Procuraremos demonstrar ainda que o atravessamento deste Nada, o eixo da pedagogia
dostoivskiana, constitui uma Paidiacrtica e religiosa.
Assim, como principal objetivo deste trabalho, procuramos tratar a filosofia da
religio em Dostoivski como um testemunho, que nos revela no s uma poderosa
crtica religiosa aos desdobramentos do atesmo moderno, mas ainda, ampliando nosso
repertrio, pelo acesso aos pensadores religiosos como forma de conhecer a religio.
Isto nos possibilitar aprofundar o conhecimento acerca da dupla dinmica do niilismo
objetiva e subjetiva em extenso e radicalidade considerando o pensamento religioso
do autor como chave de apreenso do fenmeno. E, ainda, a identificao do Nada
como constitutivo da condio humana em sua estreita relao com a liberdade incriadacomo condio necessria da Paidia pedagogia dostoievskiana presente no
atravessamento deste Nada. E, por fim, apresentar a atualidade e consistncia do
conhecimento presente na tradio da Ortodoxia russa, e na obra Os Demnios de
Dostoivski, que considera o mistrio como fundamento para compreenso da condio
humana.
Nesta pesquisa tomaremos como base categorias de anlise presentes na filosofia
da religio, considerando a postura religiosa explcita do autor, como fundamentais
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apreenso de suas obras, e em especial nOs Demnios, conforme segue: filosofia da
religio com Luiz Felipe Pond; Liberdade com Nicolai Berdiaev (principalmente),
Serge Bulgakov e Georges Florovsky; o problema do mal com Paul Evdokimov; e
liberdade na modernidade lquida com Zigmunt Bauman.
Como procedimento esta pesquisa pretende aprofundar a interpretao do
sentido da obra, e da dinmica dos personagens, pela anlise de seu contedo, em
estreita relao e dilogo com os referenciais tericos relevantes para a compreenso
dos fundamentos teolgicos presentes no pensamento de Dostoivski em Os Demnios.
E segue a seguinte diviso dos captulos:
O Captulo I: A Alma Russa estar centrado na apresentao da alma russa at a
gnese do romance Os Demnios, privilegiando os comentrios de Nicolai Berdiaev,que nos levar a problemtica principal das obras de Dostoivski: a liberdade inscrita na
alma como um conceitual interno ao universo cristo. Neste universo a liberdade
quando constrangida aos referencias humanos, que desconsidera a misericrdia divina,
degenerar sempre no diablico. Berdiaeff afirma que um grande escritor uma
manifestao completa do esprito e como tal deve ser tomado em sua unidade 5,
unidade somente passvel de penetrao seno incorporando-se nela, vivendo-a.
Considerando Dostoivski como homem de gnio, alto fenmeno espiritual, deve-seantes segui-lo pelo caminho dos crentes, mergulhando em suas idias dinmicas. Em
sua unidade, Dostoivski especificamente russo, e sua obra uma interpretao russa do
universo. Ele reflete todas as contradies e antinomias do povo russo, sendo que, a
arquitetura espiritual da alma russa pode ser seguida e estudada em sua obra. E eis aqui
a causa de tanto interesse e estranhamento que provoca nos ocidentais: procuram nele
uma revelao de ordem geral com base nas questes to enigmticas do mundo
Oriental russo. Compreender Dostoivski assimilar parte essencial da alma russa, do
segredo da Rssia.
No Captulo II: A Liberdade, mostraremos que Dostoivski estuda o homem a
partir de sua maior problemtica, ou seja, a partir de sua liberdade, de onde dado a ele
decidir, escolher, aceitar, rejeitar, e principalmente: a liberdade de aprisionar-se a si
mesmo, e a de livrar-se a si mesmo da escravido. A liberdade por ele compreendida
no diz respeito quela meramente objetiva, mas antes, que esta liberdade est inscrita
no homem, inscrita como uma problemtica. Toda a significao do homem reside
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justamente nesta liberdade: liberdade da vontade, ou vontade de ser si mesmo que deve
passar justamente pela renncia deste si mesmo. E mais: que esta vontade de ser si
mesmo pode degenerar em autodestruio (Mt 10, 37-39). Este um dos temas mais
ntimos e caros a Dostoivski. Ele representa uma manifestao criadora sem
precedentes, o homem tomado em toda profundidade e tem todos os abismos
espirituais descobertos. Nele toda literatura russa atinge o mais alto grau de tenso:
expondo os abismos como uma ferida torna o destino humano doloroso. Mas neste
destino humano doloroso o homem est vivo e volta a ser com ele uma criatura
religiosa.
E, no Captulo III: O Mal, consideramos de incio a epgrafe do romance quando
Cristo pergunta ao homem: Qual o teu nome?, a resposta dada no singular e noplural: Legio porque muitos demnios haviam entrado nele. O problema da Legio
constitui um dos mais impenetrveis mistrios do Mal. E sua presena demonaca, que
responde como eu e como ns, um fenmeno que nos confronta atualmente. O
tipo de cooperao que encontramos nela concebvel somente quando assume formas
de uma organizao mecnica, uma acumulao de tomos produzidos por uma fora
diablica que acaba no p. E este poder deve ser to diablico que sua prpria e inerente
discrdia levar inevitavelmente a perda de sua unidade, quebrada numa tal
multiplicidade, que acabar por explorar todo tipo de coeso natural para gerao de
uma vida mecnica em suas partes disparatadas, procurando com isso dar-lhe uma
aparncia de vida. Estas partculas que constituem este aparente todo no so mnadas
vivas, mas almas mortas, a tempestade de p do inferno.6
Dostoivski no menciona os demnios com objetivo de persuadir nossos
contemporneos ilustrados sobre a presena espectral do poder do mal em nossa
cientificamente bem estabelecida e investigada civilizao: seu propsito
simplesmente mostr-los [em ao].7De Lubac8afirma que sua reflexo, sustentada no
cristianismo, o leva das profundezas de seu corao a percepo que no plano da razo
no existe resposta: Cristo no veio ao mundo para explicar o sofrimento ou resolver o
problema do mal: ele toma o mal em seus prprios ombros para lev-lo de ns.
5Nicolai BERDIAEFF, O Esprito de Dostoivski, p.12.6
Cf. Vyacheslav IVANOV, Freedom and Tragic Life:a study in Dostoevsky, pp. 140-141.7Ibid, pp. 120-121.8Henri DE LUBAC, The Drama of Atheist Humanism, p. 291.
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Sem uma realidade superior a vontade humana trancada em si mesma percebe-se
sem objeto, sem direo precisa, sem finalidade. E conduz o homem a uma vacuidade
transformando sua alma num deserto. Porm, o humanismo no deve ser considerado
como derrota pura, isto seria um ponto de vista esttico. O homem deve passar pela
liberdade e na liberdade aceitar Deus. Nisto reside o sentido do humanismo. E chega um
tempo em que os homens devero propor a si mesmos um questionamento, saber se o
progresso foi realmente progresso, ou se foi uma reao contra as bases autnticas da
vida.9
9Cf. Nicolau BERDIAEFF, Uma Nova Idade Mdia: reflexes sobre o destino da Rssia e da Europa, p.98.
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CAPTULO I
A ALMA RUSSA
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The exiled Demon, Spirit of Despair,
Was flying oer earths sinful climes;
While in his weary brain rose, dark and bare,
Remembrances of happier times, -
When, pure and holy, in the realms of light
He shone amid Gods cherubim;
When, coursing in its golden tracks at night,
The fleeting Comet ever would delight
To interchange a smile with him;
When, through the circling ethers vast extent,
Thirsting some knowledge to achieve,
He watchd the movements of the firmament,
And all its wonders could perceive;
When he could love and still believe,
First of creation, happy and devout,
Guiltless of sin and ignorant of doubt;
Nor had his tranquil mind beset
A range of fruitless century past in ill
His brain could hold no more and yet
The past, the lost came crowding still!
Long homeless and irresolute
Roamd oer the desert earth the proud outcast,
While, as a minute tracks a minute,
So rolld the ceaseless centuries past,
Unvarying in their endless stream.
Oer the vile earth he ruled supreme,
Sowing in apathy sins fatal seeds;
No being there could check his whim,
Or bid defiance to his wicked deeds; -
And sin began to weary him.
Lermontov10
10Mikhail Irevitch LERMONTOV, The Demon: A Poem, 1875.
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CAPTULO I
A ALMA RUSSA
Em nossa poca atuam foras inumanas, espritos de elementosdesencadeados, esmagando o homem, obnubilando-lhe a imagem. No mais o homem que hoje liberto, mas os elementos inumanos queele desencadeou, e cujas vagas de todos os lados o flagelam. Ohomem tinha recebido sua forma e sua identidade sob a ao dosprincpios e das energias religiosas. O caos em que perecia suaimagem no podia ser superado por foras puramente humanas. Eratambm funo das foras divinas a elaborao de um universohumano. Tendo-se , para o fim, desprendido da potncia de Deus erenegado seu apoio, o homem da histria moderna tomba outra vez nocaos, compromete-se sua imagem e suas formas vacilam. A energiacriadora do homem no se concentra mais, pulveriza-se. Aconstituio de um reservatrio de energia criadora supe aconservao das formas da identidade humana, supe os limites quedistinguem o homem dos estdios informes e, pois, inferiores. Estereservatrio se fendeu e a energia humana dispersou-se. O homemperde suas formas, suas delimitaes, no mais protegido contra omal infinito do mundo catico.11
A primeira impresso que se tem na leitura de Os Demnios de incongruncia,desarmonia e desfigurao. Tudo o que no deveria ser. Intelectuais no so
intelectuais, governadores no governam, e as relaes familiares so desemaranhadas:
filhos zombam dos pais, a afeio considerada um insulto, e o respeito que um marido
tem por sua esposa aumenta quando ela encontra um amante. Assassinato considerado
fidelidade; feira, beleza; blasfmia, religio; erro, verdade; e um milho de cabeas
reunidas num agitado aglomerado a viso do milenarismo social.
Algum tipo de medida foi perdido; a proporo imperceptvel; e a dignidade eidentidade pessoal esquecida. Todos e tudo esto de alguma maneira mutilados. O
mundo se abre numa pequena e desconhecida provncia onde monstros pequenos,
grotescos, cmicos, srios, e impotentes correm e trazem os demnios tona. Os
11Nicolas BERDIAEFF, Uma Nova Idade Mdia: reflexes sobre o destino da Rssia e da Europa, pp.70-71. Berdiaeff (1874-1948) considerado e reconhecido mundialmente como um dos mais importantes
filsofos russos do sculo XX. Iniciou carreira ligado a filosofia marxista afastando-se dela na criao deum sistema prprio e original de pensamento. Expulso da Rssia em 1922 passa a viver e publicar noOcidente.
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Demnios fala sobre homens que esqueceram quem so e por que so. Isto fato e
profecia.
O corpo poltico est doente, e a doena tem paralisado a ao das pessoas,
corrodo suas relaes sociais, deformando seus corpos, embotando pensamentos, econfundindo sentimentos. No existe comunho de idias, sentimentos ou almas; e a
prpria linguagem alimentada por fontes espirituais envenenadas comea a
desintegrar. No existem dilogos, somente silncio e rudo, manifestaes histricas, e
pessoas falando consigo mesmas. Stiepan Trofimovitch Vierkhovinski nada comunica
quando declama ao seu crculo reunido em torno do piano de Limchin; Varvara
Stavrguina comanda e no conversa; Chtov comunga somente com ele mesmo; a fala
de Kirllov vem do engano, de um russo mutilado; Piotr fala e fala e diz nada; eStavrguin no fala.
Homens so colocados uns contra os outros e contra si mesmos. As intenes
no alcanam as aes: a vontade colocada contra a ao, o pensamento contra o fato
e a f contra as palavras. Virguinski pensa que um marido liberal que respeita o fato
de sua esposa ter preferido um amante, e na verdade somente um marido ciumento.
Liptin acredita ser um socialista dedicado ao avano das idias de Fourrier, quando na
verdade um miservel, tirano e indecente. Chtov baseia sua viso do mundo e dahistria em Deus, mas ele mesmo incapaz de acreditar em Deus. Kirllov funda a
liberdade do homem matando-se. E Chigaliv prope estabelecer a liberdade dos
homens reduzindo noventa por cento da humanidade condio de bestas.
Palavras so destacadas das coisas, idias da substncia e o homem do mundo.
Se algum escutar atentamente o rudo e a comoo, a retrica e a confuso, escutar ao
final somente o silncio espectral do mundo. A retrica de Stiepan Trofmovitch no
tem substncia, e a torrente de palavras de Piotr soa silncio, assim como, suas aesprovocativas que levam ao nada. Piotr expe planos e procedimentos de um programa
fantasma, ele preenche todo o pas com uma rede de quintetos que sequer existe; e ao
final, ele mesmo desaparece como se nunca tivesse existido. No centro deste mundo
est Stavrguin fixo num silncio e numa calma glacial. O silncio flui dele e para ele
infectando e provocando a aderncia de homens com crenas deformadas que sero em
seguida descartados. Ele segue buscando e rejeitando, acreditando e desacreditando, at
onde nada mais resta a no ser o vazio de sua alma. Para sempre a coragem, a vontade, e
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a violenta honestidade das questes de Stavrguin levaro ao vazio e aniquilao.
Sozinho Stavrguin real, e irreal.
Os Demnios um romance difcil e magnfico, um romance proftico sobre o
destino da Rssia e sobre o sculo XX. A negatividade devastadora de Stavrguin ePiotr no so expresses de um mal abstrato e metafsico, ao contrrio, so expresses
vvidas e concretas ao longo do romance da perfeita liberdade da vontade humana. Na
plenitude de tal liberdade a personalidade humana destruda, a solido se instala, a
ligao entre os homens cortada e as bases sociais abaladas. Dostoivski nos apresenta
um brilhante insight do estado de declnio e inadequao da alma mutilada e
espiritualmente impotente. Deslocado o centro da gravidade para a liberdade da vontade
humana, emancipado das potncias de Deus, os homens passam a voar pelo espao:
[...] se for destruda no homem a f em sua imortalidade, no somenteo amor secar nele, mas tambm a fora de continuar no mundo. Maisainda, no haver ento nada de imoral, tudo ser autorizado, atmesmo a antropofagia. No tudo: [...] para cada indivduo nsagora, por exemplo que no acredita em Deus, nem em suaimortalidade, a lei moral da natureza devia imediatamente tornar-se oinverso absoluto da precedente lei religiosa; que o egosmo, mesmolevado at a perversidade, devia no somente ser autorizado, mas
reconhecido como sada necessria, a mais razovel e quase a maisnobre.12
O objetivo da arte no , como comumente se imagina, expor idias, difundir
concepes ou servir de exemplo. O objetivo da arte preparar uma pessoa para a
morte, arar e cultivar sua alma, tornando-a capaz de voltar-se para o bem13. Percurso
que para Dostoivski pressupe o reconhecimento do mal dentro de ns mesmos. Em
Os Demniosele no usa descries, mas, participa ele prprio de sua criao, e coloca
em relevo a desfigurao plena do mundo: quando os seres humanos, descolados da
realidade, passam a acreditar que podem ser fonte da imagem do mundo, como nos
projetos revolucionrios sociais ou cientficos racionais acabam por realizar o Nada. O
efeito deste conhecimento expresso como choque, onde a percepo da dor da
destruio do mundo compe o universo da literatura russa do sculo XIX. E neste
sentido, a imagem artstica revelada por Dostoivski em Os Demnios mantm a
12Fidor Mikhilovitch DOSTOIVSKI,Irmos Karamzov, p. 80.13Andreaei Arsensevich TARKOVSKIAEI, Esculpir o Tempo: Tarkovski, p. 49.
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conscincia do infinito, est ligada a uma verdade espiritual absoluta, e poderamos
ainda dizer que em Dostoivski a Arte uma Homilia14.
Schnaiderman15, em seu prefcio a Memrias do Subsolo, nos indica que toda
trama presente nas obras de Dostoivski, por mais particulares que nos paream,considerando a ligao dos temas aos acontecimentos reais, tem sempre uma amplitude
de carter geral e elevado. O caso particular, como ocorre freqentemente em
Dostoivski, traz implcita a referncia a uma problemtica filosfica16. E neste
sentido que consideramos com Pond17, a importncia para as Cincias da Religio, que
no lugar de definir seus objetos possa infinitamente dar a palavra a essas pessoas
religiosas, que constituem seu objeto, s sendo capaz de conhec-las medida que
falem
18
. Assim, neste trabalho, procuramos tratar a filosofia da religio em Dostoivskicomo um testemunho, que nos revela no s uma poderosa crtica religiosa aos
desdobramentos do atesmo moderno, mas ainda, ampliando nosso repertrio num
dilogo consistente entre religio, educao e moral. Optamos ainda, por um percurso
que neste captulo estar centrado na apresentao da alma russa at a gnese do
romance Os Demnios, privilegiando os comentrios de Nicolai Berdiaev19, porque nos
levar a problemtica principal das obras de Dostoivski: a liberdade inscrita na alma
como um conceitual interno ao universo cristo. Neste universo a liberdade quando
constrangida aos referencias humanos, que desconsidera a misericrdia divina,
degenerar sempre no diablico20. 21
14Afirmao de Nicolai Vassielevich Gogol (1809-1852) em carta a Vassili Zhukovski (1783-1852) apudAndreaei Arsensevich TARKOVSKIAEI, Esculpir o Tempo: Tarkovski, p. 55.15Cf. Fidor. Mikhilovitch DOSTOIVSKI,Memrias do Subsolo.16Ibid, p. 9.17Este trabalho tomou como ponto de partida as reflexes e os referenciais presentes em Luiz FelipePOND,Crtica e Profecia: a filosofia da religio em Dostoivski.18Ibid, p. 161.19 As transliteraes dos nomes russos vm, ocasionalmente, diferenciadas nas diversas publicaes,principalmente nas edies antigas e de traduo indireta. Neste trabalho optamos por manter os nomesdos autores de acordo com a obra referenciada.20
Cf. Nikolai BERDYAEV, Slavery and Freedom, p.10.21As tradues de citaes diretas e indiretas neste trabalho so, salvo excees indicadas em notas, deresponsabilidade da autora.
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1.1 O Esprito de Dostoivski
Em seu ensaio O Esprito de Dostoivski22, que rene lies de seminrio
consagradas ao autor, Nicolai Berdiaeff declara o papel decisivo que Dostoivski
exerceu em sua vida espiritual. Compartilhamos com ele a posio: Desde sempre,
dividiram-se para mim os homens entre os dostoievskianose aqueles a quem o esprito
de Dostoivski era estranho23. E as perguntas que se colocam provocando nossa
conscincia aps a leitura de suas obras passam a ter, certamente, relao com suas
malditas questes eternas24.
Dostoivski no foi somente um grande artista, ele , se no o maior, o mais
poderoso escritor do sculo XIX e XX. Pois, sua obra constitui um marco entre dois
sculos de literatura. Literariamente, tudo o que pr-dostoievskiano pr-histrico;
ningum escapa sua influncia subjugadora, nem sequer os mais contrrios25.
Carpeaux, neste mesmo ensaio, ainda afirma que em sua obra nada de arte pela arte,
Dostoivski nos arrasta at as ltimas conseqncias. Como aceitar um poeta cujo
pensamento nos abala?26.
As exploses da humanidade reveladas por Dostoivski tm algo profundamente
vivo e dinmico. Ele mergulha-nos todos os sentidos na sua atmosfera ardente; obriga-
nos, anelantes, presos da vertigem, a costear o abismo da alma27. E tudo se d por
baixo do vu de uma existncia trivial e cinzenta tornando ainda mais incrveis as faces
de uma obscura condio humana. O encontro com os personagens de Dostoivski tem
o impacto da vertigem caracterstica que nos captura quando nos aproximamos demais
de um trem que segue na mesma direo. Somos atravessados por um sentimento de
estranheza e grandeza, proximidade e rejeio, e por maior que seja nossa resistncia,
no conseguimos seguir adiante como antes. No confronto com o enigma destes
personagens somos confrontados com o enigma de nossas prprias vidas. Afinal, com
quem nos deparamos? Esta a questo de Dostoivski.28Que nos abala e nos arrasta at
as ltimas conseqncias.
22Cf. Nicolai BERDIAEFF, O Esprito de Dostoivski.23Ibid, p. 5.24Fidor Mikhilovitch DOSTOIVSKI,Irmos Karamzov.25Otto Maria CARPEAUX, Ensaios Reunidos: 1942 1978, p. 167.26
Ibid, p. 168.27Stefan ZWEIG, Trs Mestres:Balzac, Dickens e Dostoiewsky, p. 189.28Cf: Eduard THURNEYSEN,Dostoevsky: a Theological Study, pp. 7-14.
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O aspecto espiritual da obra de Dostoivski nos mostra um verdadeiro Banquete
do Pensamento, e aquele que permanece numa atitude ctica sobre a eficcia de todo
pensamento condenado a uma existncia espiritualmente morna e reduzida. Ele
descobre novos mundos onde somente os destinos humanos so inteligveis. E o acesso
a eles no se d pela reduo formal a categorias congeladas, nem pela elaborao sobre
conceitos esfriados. A sustentao de seu pensamento traz o sopro do esprito, luz que
penetra os fundamentos do mundo, onde as idias impregnam-lhe a arte. As idias
ocupam em sua obra um papel importante, e por sua extraordinria dialtica, que as
idias vivem nele uma existncia em altssimo grau dinmica: oposio e combate, fogo
e movimento. Toda idia em Dostoivski est ligada ao destino do homem, do mundo e
de Deus. Determina estes destinos e traz oculta em si mesma a energia destruidora de
sua prpria dinmica. E no se trata de um sistema abstrato, mas antes, de uma intuio
artstica, um problema filosfico e intelectual, e principalmente, uma questo
religiosa.29
Florovsky30compreende que Dostoivski concentra em suas obras a grande crise
religiosa de sua poca. Sua experincia pessoal e sua penetrao artstica compem um
encontro ntimo que se traduz em trabalho criador. Ele foi capaz de exprimir todo
mistrio de sua poca diagnosticando uma angstia religiosa ainda no identificada:
diante do atesmo em processo ele penetra e compreende os desdobramentos religiosos
que se dariam nos prximos anos e alcana assim, em profundidade e extenso, a
experincia contempornea russa em sua totalidade. Dostoivski se prope uma busca
interminvel sobre o destino ltimo dos homens, e toma como base sua observao
contnua dos fatos concretos, das tramas cotidianas e banais, aparentemente ordinrias e
estreis. Ele estuda a personalidade humana, para alm das caractersticas empricas e
de suas interaes causais, visveis nos seus efeitos, mas analisa antes, as nuances
perceptveis do esprito, ou melhor, as correntes misteriosas da vida primordial.
Dostoivski estuda o homem a partir de sua maior problemtica, ou seja, a partir
de sua liberdade, de onde dado a ele decidir, escolher, aceitar, rejeitar, e
principalmente: a liberdade de aprisionar-se a si mesmo, e a de livrar-se a si mesmo da
escravido. Importante enfatizar aqui, conforme nos alerta Florovsky, que a liberdade
por ele compreendida no diz respeito quela meramente objetiva, mas antes, que esta
29Cf. Nicolai BERDIAEFF, O Esprito de Dostoivski, pp. 7-11.30Cf. Georges FLOROVSKY,Ls Voies de la Theologie Russe, p. 288.
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liberdade est inscrita no homem, inscrita como uma problemtica. Desde o incio de
sua carreira suas obras perseguem a revelao desta misteriosa antinomia da liberdade
humana. Toda a significao do homem reside justamente nesta liberdade: liberdade da
vontade, ou vontade de ser si mesmo que deve passar justamente pela renncia deste si
mesmo31. E mais: que esta vontade de ser si mesmo pode degenerar em autodestruio.
Este um dos temas mais ntimos e caros a Dostoivski. Ele representa uma
manifestao criadora sem precedentes, o homem tomado em toda profundidade e tem
todos os abismos espirituais descobertos. Nele toda literatura russa atinge o mais alto
grau de tenso: expondo os abismos como uma ferida torna o destino humano doloroso.
Mas neste destino humano doloroso o homem est vivo e volta a ser com ele uma
criatura religiosa.
Suas reflexes o levam a considerar que inegavelmente a unidade inicial entre
Verdade, Bem, e Beleza haviam cado e que os princpios que governam conhecimento,
tica e esttica somente so integrados nos princpios religiosos. Quando cada rea da
atividade humana se torna autnoma manifesta assim sua ambigidade. Se por um lado
o corao humano encontra beleza at no ideal de Sodoma32que compartilhado pela
imensa maioria das pessoas, por outro, o senso de incomensurabilidade e infinito so
necessrios aos homens.
Muitas coisas esto ocultas de ns neste mundo; em compensao,temos a sensao misteriosa do liame vivo que nos prende ao mundoceleste e superior, as razes de nossos sentimentos e de nossas idiasno esto aqui, mas em outra parte [...] quando esse sentimento seenfraquece ou desaparece, o que havia brotado em ns perece.Tornamo-nos indiferentes vida, sentimos mesmo averso por ela.33
Sem a imortalidade e a sensao misteriosa do liame vivo que nos prende aomundo celeste o crculo fechado da condio humana no pode ser ultrapassado. Se
nada existe acima do homem, o homem tampouco existe. Atormentado por sua solido,
num mundo hostil e aparentemente absurdo o homem demite-se e busca a evaso por
searas mais consoladoras. Numa ambincia onde o atesmo tomado como ponto de
partida a inquietao diante da morte nada mais diz aos homens. Simplificado e aliviado
31
Cf. Mt 10, 37-39. BBLIA DE JERUSALM. 7 Impresso. So Paulo: Paulus, 1995.32Cf. Fidor Mikhilovitch DOSTOIVSKI,Irmos Karamzov, p. 123.33Ibid, p. 328.
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de toda investigao ele deixa de sentir a necessidade de Deus. E se v em dificuldade
diante da tica, da experincia de auto-conhecimento que pressupe uma correlao
entre ele e o mundo, porque foge do tormento pelo anseio de atingir algo que est fora
dele mesmo. A intangibilidade de fuso, percebida como insuficincia do prprio eu, se
mostra como fonte perptua de dor e insatisfao humanas.
A Rssia no se pode pela razo entend-la,
Nem medi-la por um comum estalo:
Tem ela sua prpria configurao
A Rssia, s pela f se pode apreend-la.34
Berdiaeff afirma que um grande escritor uma manifestao completa do
esprito e como tal deve ser tomado em sua unidade35, unidade somente passvel de
penetrao seno incorporando-se nela, vivendo-a. Considerando Dostoivski como
homem de gnio, alto fenmeno espiritual, no se deve ceder a inclinao de trat-lo
com um bisturi, suspeitando nele alguma anomalia oculta. Deve-se antes seguir
Dostoivski pelo caminho dos crentes, mergulhando em suas idias dinmicas. Em sua
unidade, Dostoivski especificamente russo, e sua obra uma interpretao russa douniverso. Ele reflete todas as contradies e antinomias do povo russo, sendo que, a
arquitetura espiritual da alma russa pode ser seguida e estudada em sua obra. E eis aqui
a causa de tanto interesse e estranhamento que provoca nos ocidentais: procuram nele
uma revelao de ordem geral com base nas questes to enigmticas do mundo
Oriental russo. Compreender Dostoivski assimilar parte essencial da alma russa, do
segredo da Rssia.
1.2 A Idia Russa: a arquitetura espiritual da alma, o pensamento em busca
de salvao
A imagem da idia Russa fala de uma viso de mundo muito estranha para ns e,
difere ainda das vrias maneiras que a histria recente nos levou a imagin-la. Ela
34Titchev, apud Joseph FRANK,Dostoivski: os anos milagrosos, 1865-1871, p. 26.35Nicolai BERDIAEFF, O Esprito de Dostoivski, p. 12.
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intensamente espiritual, apocalptica e escatolgica36. E, ao mesmo tempo,
profundamente pessoal, de uma personalidade mergulhada na experincia, que fala por
uma nica voz de um corao a outro. As vozes da Rssia so compreendidas pela idia
de Sobornost37, unio/ comunho/ conciliao, de uma maneira tambm que no nos
usual, pois considera todos os seres humanos no como entidades materiais, naturais,
mas antes, imagens espirituais do divino. E neste sentido, Florovsky38 afirma que
Dostoivski entra para histria da filosofia russa no por construir um sistema, mas por
ter ampliado e aprofundado a experincia metafsica em si mesma. Sobre a realidade da
Ortodoxia sustentada sua pesquisa acerca de uma realidade viva. A realidade da
Sobornostse encontra particularmente patente sobre a dialtica de sua imagem viva, que
mais que pura idia. Ele revela com excepcional potncia a profundidade ltima dos
temas religiosos e da problemtica espiritual de cada aspecto da vida humana. E suas
revelaes vm particularmente ao ponto que as circunstncias agitadas presentes na
Rssia dos anos 1870.
36Apocalptico derivado de Apocalpse, a palavra grega para Revelao e o nome do ltimo livro daBblia. Neste sentido, Apocalptico se refere ao complexo de idias associadas ao fim iminente da histria
e aos eventos catastrficos que isto acarreta comportando ainda nfases diferenciadas. Pode serreconhecido como apocalptico porque relata o fim da histria, assim como, na medida em que descreveuma revelao ou atividade sobrenatural de poder anglico ou demonaco. Apocalptico, numa conceposcholar moderno, est tambm em correlao com outros termos (milenarismo, messianismo),especialmente Escatologia(eschaton, literalmente doutrina da coisa ltima) que trata do cumprimentoda histria e da criao nos termos da salvao. No s no sentido de acabamento, mas antes, departicipao na vida eterna. (Cf. John J. COLLINS (Ed.), The Origins of Apocalypticism in Judaism andChristianity.) Os dois termos podem ter sentido intercambivel e com uso onde as nuances precisas sodadas de acordo com a inferncia dos autores e do contexto. Neste sentido, este trabalho mantm osparmetros da terminologia encontrados nos textos dos comentadores especialistas na ortodoxia russa eem Dostoivski e sero mais bem esclarecidas ao longo do texto. Sobre a Escatologia ortodoxa, nosomente russa, encontramos em John Mcguckin uma preciosa indicao sobre uma tradio que vai almdos textos bblicos e tem na figura de Cristo o Pantocrator (figura que organiza o mundo): [...] A
teologia ltima aquela do Julgamento quintessencial onde o carter imponente profundamenteconhecido no mistrio da piedade de Deus. A piedade de Deus em si imponente. A experincia desteabismo da piedade faz a alma arder para a pessoa viva que estuda o evangelho vivo de Cristo, etambm, nos ensinamentos da Igreja sobre sua iconografia, e ser para os mortos em seu julgamento. Apiedade de Deus arde e fere, mas tambm purifica os coraes egostas das criaturas. Escatologia assim a esperana por nossa cura, e nossa reconciliao em comunho. (Apud. Carl E. BRAATEN;Robert W. JENSON (Ed.), The Last Things: biblical and theological perspectives on eschatology, pp.124-125.)37Os Orientais expressam de maneira peculiar a dimenso catlico-sobornajaeucarstica e eclesiolgica.A igreja definida menos por suas relaes jurdicas e mais pelo mistrio da comunho que tem naTrindade a fonte, forma e meta. A dimenso desta catolicidade da Igreja foi especialmente desenvolvidapelos filsofos religiosos russos, principalmente Khomiakov, que a partir do conceito de sobornostcompreendida como unanimidade espontnea no amor buscaram um modo particular de sua realizao.
(Cf. Volodemer KOUBETCH, Da Criao Parusia: Linhas Mestras da Teologia Crist Oriental, pp.115-116)38Cf. Georges FLOROVSKY,Ls Voies de la Theologie Russe, p. 292.
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A histria lendria da Cidade Invisvel de Kitzh uma metfora que sugere
bem esta imagem da idia Russa. Quase esquecida, a histria comea com Prncipe Yuri
Vsevolod, que subiu ao trono da Rssia kievana em 1163:
O Prncipe Yuri Vsevolod vai at o Prncipe MichaelChernikovski solicitar permisso para construir igrejas em todas ascidades da Rssia. Com a permisso concedida viajou pelas terras deNovgorod, Pskov, Moscow, Rostov, fundando fortificaes e casas deDeus. Finalmente chega a Jaroslav, e desce o Volga at a Floresta deMurom chegando a cidade da Pequena Kitzh, onde tambm fundouuma igreja. Da Pequena Kitzh, o Prncipe Yuri Vsevolod realizouuma jornada cruzando quatro rios, at o Lago Svetlojar, onde diantede uma floresta de carvalhos sagrados, ordenou que fosse ali levantadauma magnfica cidade, a Grande Kitzh. A construo desta perfeita
cidade-comunidade, onde as virtudes da hospitalidade e concrdiaeram primordiais, terminou em 30 de setembro de 1168. Mas, apseste perodo aconteceu a invaso selvagem dos Trtaros, sob ocomando de Khan Batu, neto de Genghis Khan. Isto foi em 1239. OsRussos bateram em retirada de volta a Pequena Kitzh. Mas ocaminho a Grande Kitzh foi descoberto. O Prncipe Yuri Vsevolodfoi morto. Os Trtaros avanaram. De acordo com alguns relatos adestruio da brilhante cidade de Kitzh se viu refletida na claridadedo lago. Mas de acordo com outros relatos, a cidade e todos os seushabitantes desapareceram superfcie abaixo do Lago Svetlojar ouascenderam s alturas celestiais. A cidade, a comunidade da GrandeKitzh foi ento suspensa e protegida pela mo de Deus algunsdizem que foi coberta pelo manto da Me de Deus. Tornou-seinvisvel, mas voltar a ser visvel novamente, como a NovaJerusalm, quando Cristo retornar.39
A idia Russa, a arquitetura espiritual de sua alma, a busca pela Grande Kitzh
invisvel. Seu sofrimento e medo, sua compaixo e amor, complexidade e unidade so
guiadas pela necessidade profunda de visitar a cidade e torn-la visvel. Na histria dos
grandes pensadores russos do sculo XIX e XX podemos escutar em ecos distantes
como caminhar em direo a uma verdadeira comunidade de corpo, alma e esprito. E
so nos grandes romances de Dostoivski que, de acordo com Florovsky40, encontramos
consagrada esta idia do retorno f. Ele foi um observador muito sensvel da alma
humana permanecendo sempre num otimismo cristianamente orgnico. Sua percepo e
esperana por uma fraternidade orgnica dificilmente poderia ser arrancada de uma
frmula. E certo que Dostoivski jamais sucumbiu a uma tentao organicista, a uma
39Nikolai BERDYAEV, The Russian Idea, p. 11.40Cf. Georges FLOROVSKY,Ls Voies de la Theologie Russe, p. 191.
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utopia que persistia na idia de uma soluo histrica das contradies da vida. A
histria se revelava a ele como um apocalipse ininterrupto, ou melhor, como uma
questo que encontraria soluo no Cristo. Reencontro com Cristo pela f: a verdade do
Deus-homem. Verdade que acabaria antes por revelar um sonho, o homem-deus. A
histria que interessava a Dostoivski dizia respeito a um pressentimento por uma
catstrofe iminente que persistia como ansiedade humana, um alarme particular na
angstia dos descrentes.
Berdyaev afirma que a questo da definio do tipo nacional russo, e da
individualidade deste povo, uma questo de extrema dificuldade. Dificuldade, pois
impossvel de ser realizada num sentido cientfico estrito. Para ele, e para Dostoivski, o
mistrio desta individualidade somente revelado no amor, e em ltima instnciaexistir sempre algo incompreensvel (invisvel) no final. Berdyaev vai alm e coloca
como questo central, que o interessa na obra e que seguiremos nesta parte da
pesquisa41, uma investigao sobre os acontecimentos da Rssia. Mas uma investigao
pouco interessada numa perspectiva meramente emprica. A ele interessa mais uma
outra questo: qual foi o plano do Criador para a Rssia, e como chegar a uma pintura
do povo russo tomada desta idia. Na poesia de Tyutchev42 esta questo j est
colocada: a Rssia no se pode apreender por processos intelectuais, no se pode medi-
la com um metro ordinrio, ela tem estatura e forma prpria. S se pode acreditarna
Rssia. Faz-se necessrio trazer a luz suas virtudes teolgicas e de f, de esperana e
caridade, se quisermos compreend-la.
Os russos so um povo polarizado no mais alto grau, so um conglomerado de
contradies que nos levam a ser por eles seduzidos ou desiludidos. O inesperado
sempre o que deve ser deles esperado e so capazes de inspirar tanto o amor intenso
como o dio violento. Enquanto povo, os russos causam um efeito perturbador sobre os
povos ocidentais. Em relao a esta polarizao e inconsistncia s encontra paralelo
com os judeus, e no mero acaso que encontramos precisamente nestes dois povos
uma vigorosa conscincia messinica. A inconsistncia e complexidade da alma russa
pode ser ainda atribuda sobreposio e influncia mtua de dois extremos do mundo
41 Sobre a idia russa acompanharemos a obra: Nikolai BERDYAEV, The Russian Idea, pp. 7-50.Embora um pequeno trecho desta obra encontra-se traduzido por Jos Verssimo Mata e Elena Vssina,com reviso de No Silva, optamos pelas tradues de nossa responsabilidade.(Cf. REVISTA DE
ESTUDOS ORIENTAIS. So Paulo, n 4, ago. 2003. Departamento de Letras Orientais da Faculdade deFilosofia, Letras e Cincias Humanas. USP, pp. 213-222).42Fidor Ivanovitch Tittchev (18031873), grande poeta da noite elemental.
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percebendo a si mesmas no mundo, e apesar da ausncia de liberdade exterior, a
liberdade interior e de pensamento grande entre elas. Outra particularidade expressiva
a falta prolongada do Iluminismo na Rssia, a ausncia de ligaes orgnicas com as
grandes culturas do passado antes de Pedro o Grande46. Devemos levar em considerao
em sua histria que a fora, e resistncia, caracterstica da Rssia permaneceu durante
longo tempo como uma condio em potencial e no em estado de realizao. O povo
russo viu suas foras esmagadas na medida em que o Estado as requeria para defesa de
suas expanses e conquistas. Os pensadores russos do sculo XIX, que refletiam sobre o
destino da Rssia e sua vocao, sempre levaram em considerao esta potencialidade e
sua falta de expresso, esta falha na atualizao das foras de seu povo como uma
promessa de grandioso futuro. Eles acreditaram que no decorrer do tempo a Rssia
colocaria suas palavras para o mundo revelando-se a si mesma.
O atraso provocado pela dominao Trtara argumento aceito de maneira
generalizada. Mas a subjugao Bizantina, ao mesmo tempo, trouxe a Rssia um carter
tradicional e conservador. O dinamismo explosivo e extraordinrio das camadas
intelectuais do povo russo somente foi revelado aps o contato com o Ocidente
promovido pelas reformas de Pedro o Grande47. Herzen48 disse que o povo russo
respondeu s reformas de Pedro com o aparecimento de Pchkin49. Berdyaev
46Piotr Alexeievitch Romanov (1672-1725); Tsar Pedro I da Rssia que reinou no perodo de 1682-1725.47 A Rssia esteve em guerra na maior parte do tempo que durou o reinado (1672-1725) de Pedro oGrande, fato que determinou amplamente a natureza, o alcance e o xito das atividades do tsar comoreformador movido pela questo fundamental - desde sempre - na histria do esprito russo: a relaoOriente e Ocidente. Pedro imps transformaes que visavam secularizao do Estado e da sociedadenos moldes Ocidentais concentrando esforos no somente numa aproximao, mas antes, com o objetivode colocar a Rssia em posio de competio com o Ocidente. As reformas abrangeram todas as reas daorganizao do Estado e da cultura em geral (poltica, industrial, econmica, tributria, educacional,militar, artstica, de instituio do novo Quadro de Hierarquias e das relaes com a Ortodoxia).
Inaugurando uma nova disciplina de modernizao que tinha poucas conexes com a tradio russa,Pedro foi um ocidentalista e, como marco desta nova orientao fundou So Petersburgo em 1703, a novacapital do imprio, onde Cismava ele:/ [...] Rasgar aqui uma janela/ Para a Europa, os ps fincar(Aleksandr Sergueievitch PCHKIN, O Cavaleiro de Bronze e outros Poemas, p. 35). Todas asmodificaes empreendidas em seu reinado constituem terreno frtil para questionamentos realizados nosculo XIX, onde o paralelismo Ocidente Oriente foi acentuado e percebido em termos absolutos nasrelaes entre Ocidentalistas e Eslavfilos. Cf. Lionel KOCHAN,A Formao da Rssia Moderna.48Aleksandr Ivanovich Herzen (1812-1870). Escritor poltico russo que desenvolveu fundamentalmentedurante sua vida a tese do poder terrvel das abstraes ideolgicas sobre as vidas humanas. Afirma quequalquer tentativa de explicar a conduta de seres humanos, ou coloc-los a servio de abstraes,terminam sempre num mutilamento humano, e ainda, na vivisseco poltica em escala crescente. Cf.Isaiah BERLIN, Pensadores Russos, p. 199.49Aleksandr Sergueievitch Pchkin (1799-1837), poeta, prosador, dramaturgo, considerado o fundador da
literatura russa moderna. Em vrias obras Puchkin mantm aberta a ambigidade da figura e dos feitos dotsar Pedro. O enigma acerca do destino em que fora lanada a Rssia pode ser acompanhada no poema OCavaleiro de Bronze: Conto de Petersburgo (1833): , alto Csar do destino!/ No foste tu que sobre o
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complementa dizendo que no somente com Pchkin, mas tambm com o aparecimento
dos Eslavfilos e de Dostoivski50, e de todos aqueles que buscavam a verdade.
Respondeu com o nascimento do pensamento russo original. Os grandes escritores
russos do sculo XIX no realizaram suas obras no seio de uma abundncia criativa,
mas antes, de uma sede de salvao de seu povo, da humanidade e de todo o mundo;
sobre o sofrimento, a injustia e a escravido do homem. Os temas que seguem a
literatura e o pensamento deste perodo so cristos, mesmo que os prprios escritores
rejeitem o cristianismo. Dizem respeito criao no de uma cultura perfeita, mas sim,
a criao de uma nova vida. A literatura russa assume um carter moral e religioso, mais
que qualquer outra literatura no mundo.
1.3 AIntelligentsiaRussa: testemunho de uma poca
No bojo reativo que se seguiu ao fracasso da revoluo de 182551uma diminuta,
porm influente, elite intelectual canaliza seu idealismo social para uma busca
religiosamente devotada da verdade. Buscavam compreender o caos que os rodeavam
levando idias e conceitos at suas concluses mais extremas e mesmo absurdas. Uma
busca por absolutos que se inicia por uma recusa radical de absolutos, num processo de
sofrimento e despojamento, que visava libertao interior de todas as reconfortantes
iluses que justificavam o sufocamento moral e social. Este movimento levou a uma
abismo,/ Nas alturas com rdeas de ferro,/ Fizeste a Rssia empinar-se?. (Aleksandr SergueievitchPCHKIN, O Cavaleiro de Bronze e outros Poemas, p. 69).A inscrio histrica e literria que o Projeto So Petersburgo inaugurou para a vida moderna pode serencontrado em: Marshall BERMAN, Tudo que Slido Desmancha no Ar: a aventura da Modernidade,pp. 197-319. E tambm em: Solomon VOLKOV, So Petersburgo: uma histria cultural.50
clebre a aluso de Dostoivski, ou melhor, de seu anti-heri do subsolo, sobre a cidade de SoPetersburgo: [...] a cidade mais abstrata e meditativa de todo globo terrestre. (Fidor. MikhilovitchDOSTOIVSKI,Memrias do subsolo, p. 18). E nas anotaes do romance Os Demnios: Somos umaconseqncia de Pedro o Grande (Fyodor DOSTOEVSKY, The Notebooks for The Possessed, p. 357).51Episdio que teve seu pice em 14 de dezembro de 1825, uma insurreio de So Petesburgo, que ficouconhecido como levante Decembrista. Foi uma tentativa frustrada de derrubar o tsar Nicolau I que ecoaatravs de toda historiografia russa e da literatura. Esta conspirao contou com o envolvimento direto decerca de trezentas pessoas, a maior parte composta de oficiais de menores patentes das Guardas e danobreza inferior. Mas a quantidade de simpatizantes foi considervel. Dostoivski relata tambm esteepisdio emRecordao da Casa dos Mortos: [...] Os exilados de outros tempos (melhor dizendo, noeles mas suas mulheres) cuidaram de ns como se fssemos de suas famlias. (Fidor. MikhilovitchDOSTOIVSKI,Recordao da Casa dos Mortos, p. 319). Aleksander Herzen apontou a moral destaprimeira tentativa de revoluo como inspiradora das convices posteriores porque, segundo Charques:
O destino dos decembristas ao enfrentar a autocracia, criou um martirolgico popular e uma mensagemde ao para os movimentos revolucionrios que se lhe seguiram. (Richard Denis CHARQUES,Pequena Histria da Rssia, p. 197)
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assentado de acordo com as categorias de ortodoxia e heresia. A atrao por Hegel tinha
caractersticas de influncia religiosa e assumiu tamanha proporo que se esperava dela
a resoluo das questes de f da Igreja Ortodoxa.
Cismas, apostasias, vagabundagem ou andarilhos de So Petersburgo,impossibilidade de reconciliao com a realidade que se apresentava, a busca por um
futuro em direo a uma vida melhor e acertada, estas so questes caractersticas deste
perodo. A Intelligentsia foi recrutada de vrias camadas sociais ao longo de vrios
estgios de existncia: os suprfluos, nobres arrependidos e revolucionrios de ao.
Iluminismo, pensamentos utpicos, niilismo e o esprito revolucionrio esto presentes
na histria deste despertar da conscincia. Histria que no somente tradicional ou
conservadora; a falta de base sob os ps constitui em si um tipo de base, e a revoluofaz parte do curso desta histria. Quando na segunda metade do sculo XIX a esquerda
da Intelligentsia tomou sua forma final, a tomou sob caractersticas de uma ordem
monstica e, neste processo, as razes Ortodoxas firmemente presentes na alma russa
vieram luz: sada do mundo, ascetismo, capacidade para o sacrifcio e a resistncia ao
sofrimento. E foi nesta forma que se apresentou em conflito com o imprio e com o
poder do Estado.
O pensamento russo esteve sempre voltado para a transformao, a recogniosobre o que vir e que passando por vrias mos modificada no percurso. A
criatividade dos russos busca uma vida ideal, no uma vida perfeita. uma aspirao
que parte da reprovao sobre a vida atual e no meramente uma rejeio. Os prprios
russos se classificam em apocalpticos e niilistas54, uma mesma tendncia excessiva de
levar as coisas at seu termo. Tal disposio de alma embaraa o trabalho histrico de
um povo e a elaborao de valores culturais. Na Rssia no h cultura mdia, nem
quase tradies culturais, ao contrrio, quase todos os russos so niilistas. Porque para
54 Niilismo: Termo de semntica instvel largamente usado na poca de Dostoivski. Descreveprincipalmente as aes radicais da gerao de 1860 que pretendiam realizar a transformao do mundotendo como base o materialismo, o utilitarismo e o cientificismo. Se por um lado, o sentido literal dapalavra presume a ausncia de todo valor ou sentido, em sua manifestao russa pela gerao de 1860toma corpo com base numa enorme f no poder da cincia. As questes humanas eram compreendidas damesma maneira que qualquer outra questo relativa natureza com base nas cincias naturais. O homempassa a ser compreendido como organismo natural e no possuidor de nenhuma outra natureza que serevela por si mesma. Alexander Herzen descreveu os niilistas como sendo aqueles que aplicam osmtodos de laboratrio na vida. A atitude niilista buscava ainda a emancipao pessoal, sendo que, todasas instituies vistas como barreiras realizao de todo potencial individual deveriam ser destrudas.Dostoivski no via o niilismo como um fenmeno meramente histrico, mas antes, como uma questomoral e religiosa. Nela a experincia da liberdade deve justamente passar pela semelhana com o Nada,
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eles a cultura no resolve os problemas finais, a evaso para fora sim, fortifica o meio
humano. Na organizao da humanidade segundo o estatuto buscado pelos pensadores e
escritores deste perodo, a cultura representa mais um obstculo ao movimento de
desfecho. Contrariamente aos ocidentais que se esforam na organizao formal do
mundo, os russos num salto, procuram imediatamente a concluso. Porque a eles a
forma pressupe medida, estabelece limites, que rejeitado tanto por apocalpticos
como por niilistas.
Dostoivski levou at o fundo o estudo desta dupla tendncia, denunciando este
pendor excessivo. Levou ainda adiante o estudo das faculdades revolucionrias de
reao e o destino histrico da Rssia justificou sua profecia: a revoluo se realizou em
larga medida segundo Dostoivski. Mesmo destruidora e assassina, nem por isso deveser considerada menos russa e nacional. A autodestruio e a autoconsumao so na
Rssia traos nacionais.55 E neste sentido, h de se indagar em que medida sua arte
original pode ser considerada realista56. Ele mesmo considerava seu realismo como
prprio da vida e no no sentido que toma a crtica oficial. Consideramos com
Berdyaev57, que toda arte original exprime uma realidade profunda, que ultrapassa a
realidade emprica, sem dela nada perder. Dostoivski mergulha na realidade profunda,
no universo espiritual, porque para ele, as formas exteriores da vida no so realidades
ltimas. A realidade ltima so as relaes do homem com Deus, do homem com o
diabo, onde os seres comungam por liames misteriosos, determinados desde toda a
eternidade. Todos os conflitos que encontramos em seus personagens exprimem no
uma realidade meramente objetiva, mas antes, a realidade interna, o destino interior dos
humanos. E, neste sentido, consideraremos o realismo de Dostoivski como um
realismo religioso.58
onde a projeo de uma idia de homem e de humanidade que nega a realidade do mal e do pecado leva aexperincia da prpria decomposio. (Cf. Kenneth LANTZ, The Dostoevsky Encyclopedia, pp. 279-282)55Cf. Nicolai BERDIAEFF, O Esprito de Dostoivski, pp. 16-17.56 A literatura russa realista considerada notvel pela sua viso especial que apresenta acerca daemancipao moral e intelectual antecipando as experincias do sculo XX. Perodo indicado entre 1855-1880 que inclui Dostoivski. Cf. Charles A. MOSER, Cambridge History of Russian Literature, pp. 248-332.Encontramos ainda uma antologia que rene um vasto estudo compreendendo histria, literatura, artes earquitetura em: Nicholas RZHEVSY, The Cambridge Companion to Modern Russian Culture.57Cf. Nicolai BERDIAEFF, O Esprito de Dostoivski, pp. 23-30.58Na virada do sculo XIX para o sculo XX surgiu no idioma russo uma nova palavra: dostoivschina.
Este vocbulo caracteriza um estado complicadssimo da alma humana, um caso de conscincia semsoluo aparente para paixes, vcios, virtudes e abnegaes. Chostakvski afirma que se a pronnciafosse mais fcil acabaria por ganhar uso universal porque Dostoivski, e os problemas que se apresentam
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revoluo. Ele o homem do apocalipse, encarna o destino do nmade que considerava
to caracterstico de sua terra. Difere dos Ocidentalistas e dos Eslavfilos por suas
idias sobre a Rssia em geral. Ele um escritor de seu pas, literato que vive do seu
trabalho, fora da literatura ele no concebe nada. Seu destino melanclico encarna o
destino dos escritores da Rssia.
Seu grande romance Os Demnios foi escrito num perodo identificado por
Frank62como Os Anos Milagrosos: 1865-1871. Se por um lado foi um perodo pacfico
e pouco excitante, comparado a poca anterior de sua vida, quando foi detido por
conspirao poltica e exilado na Sibria, por outro, quando conhecemos as condies
em que viveu nos parece incrvel o fato de ter sido capaz de produzir tantas obras
primas a uma tal velocidade. Neste perodo ele enfrentou uma pobreza insuportvel,mudanas de residncia e foi acometido por vrias crises epilticas63que o deixavam
incapacitado para o trabalho por vrios dias. Foi ainda o perodo em que se casou pela
segunda vez com Anna Grigorievna, fevereiro de 1867, e saiu da Rssia em seguida
fugindo de credores e familiares gananciosos, vivendo obscuramente na Alemanha e
Sua at 1871 quando retornou a Rssia.
1.5 Os Demnios: do panfleto ao poema trgico
O ltimo perodo de residncia no exlio europeu do casal Dostoivski foi em
Dresden, meados de 1869, marcado por uma intensa saudade da Rssia, da mesma
maneira que por uma insuportvel dificuldade financeira. O que tornava a possibilidade
de retorno um fantasma fugidio. A distncia da Rssia ainda prejudicava a conduo
dos negcios literrios que estavam entregues a intermedirios, nem sempre confiveis,
62Joseph Frank, professor emrito das Universidades de Pinceton e Stanford em Literatura Comparada eLiteratura em Lngua Eslava. Publicou uma monumental biografia de Dostoivski em cinco volumes,sendo que, quatro deles encontram-se traduzidos em portugus e publicados pela Edusp63A maior parte das crises aconteciam a cada trs semanas de intervalo, mas durante o perodo em quetrabalhava em Os Demniosa freqncia aumentou incrivelmente. Assim como, os efeitos posteriores dores de cabea, pensamento embotado, nervos abalados, fraqueza, tremores, permanncia num estadoquase contemplativo que duravam pelo menos seis dias. Nestes perodos Dostoivski no conseguiatrabalhar e sua misria era por ele percebida como pessoal e geral. A temperatura climtica elevada, suasade, o trabalho e a guerra Paris estava sob domnio prussiano contribuam para manter Dostoivski
sob domnio da penria, onde sua sade se encontrava em estado to desesperador quanto suas finanas.Encontramos nos cadernos de notas do perodo vrias anotaes sobre as crises epilticas de Dostoivski.Cf. Fyodor DOSTOEVSKY, The Notebooks for The Possessed, pp. 2-4, 28-34.
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Ivnov por um grupo de revolucionrios secretos liderado por Serguiei Nietchiev. Os
motivos de tal acontecimento continuam at hoje em discusso. Mas o fato foi tomando
os estudos de Dostoivski e encontramos em suas anotaes rascunhos escritos
anteriormente ao acontecimento, mas que passam a apresentar novos esboos onde
discernimos claramente traos de Stiepan Trofmovitch Vierkhovinski, Mria
Lebidkina, um Professor e o Prncipe. Estes dois ltimos marcados por traos morais
diferenciados, suscitando inveja e morte, j levantam a questo do conflito de geraes.
O cenrio tambm j est demarcado: uma sociedade provinciana, tranqila, atrasada e
pacfica que ser infiltrada por ideais niilistas. O aparecimento da figura de Nietchiev
em seus esboos foi tomada da leitura assdua e nostlgica da imprensa russa.
Dostoivski identificava ainda que em ltima instncia a gerao de 1840 eraresponsvel pela perverso da juventude russa, capaz agora dos crimes mais atrozes
pelo bem da revoluo. Gerao do prprio Dostoivski, Bielinski, Herzen, Baknin,
Turguniev e Granvski72. Este tipo russo, Dostoivski acolhe e retrata como sendo
liberais idealistas, superficiais, sem objetivo, incapazes de esforo genuno, impotentes,
mas que acreditam que devem ser colocados num pedestal. A gerao niilista de 1860
uma conseqncia direta destes puros de corao, que se recusam a reconhecer a
prole, pois recusam as responsabilidades decorrentes do culto prestado ao Ocidente. O
conflito de geraes est aqui delimitado e o personagem Stiepan Trofmovitch no
sofre maiores alteraes. O Prncipe tambm vai ganhando contornos decisivos, deve
aparecer como um novo homem, personagem enigmtico, talvez louco. E trgico, que
diante da incapacidade de acreditar em seu renascimento promove sua prpria
destruio. Um homem entediado, produto do sculo russo, sabe como ser ele mesmo e
organizao poltica clandestina chamadaJustia Sumria do Povo que dirigiu com mo de ferro. Autorde um catecismo revolucionrio, que no exerccio de poderes ditatoriais sobre os membros do pequeno
grupo que lidera, forjou um instrumento clssico de conspirao e terror, de onde derivou uma tcnicaaperfeioada na implicao de grupos, ou pessoas, numa culpa comum. Em 1869 conhece e ganha asimpatia de Bakunin, e usa e abusa desta estreita ligao. Em 21 de novembro de 1869, como resultadode atritos que provoca com vrios dos membros de sua organizao, executa Ivanov com a ajuda de seuscompanheiros. Estes so presos, a organizao dissolvida e Nietchiev foge para o estrangeiro. Oacontecimento causa grande comoo na Rssia e fortes discusses em amplos crculos daintelectualidade local e europia. A imprensa russa d larga cobertura ao acontecimento e ao processo queocorreu em 1871, sendo ainda, o primeiro processo por crime poltico por ela debatido. (Cf: RichardDenis CHARQUES, Pequena Histria da Rssia, p. 242). E ainda, posfcio de Paulo Bezerra em: Fidor.Mikhilovitch DOSTOIVSKI, Os Demnios, pp. 689-691.72Vissarion Grigrievitch Bielinski (1811-1848), crtico literrio, iniciador da corrente da Escola Natural.Aleksandr Ivanovitch Herzen (1812-1870), escritor poltico, pai do socialismo russo.Mikhail Aleksandrovitch Bakunin (1814-1876), idelogo do anarquismo.
Ivan Sergueievitch Turguniev (1818-1883), escritor, autor de Pais e Filhos.
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na literatura. Eu tomo Tkhon Zadonski como este carter ideal. Ele tambm bispo
que viveu em retiro no mosteiro. Comparo o heri de meu romance com ele e os coloco
em contato por um tempo79. Como Stavrguin cresceu em estatura Piotr deve ser
recolocado como impostor insinuante, de fala rpida e falaz, um canalha perigoso e
meio cmico que tambm gravita em torno de Stavrguin.
Os Demniosadquire ento caractersticas de um poema trgico sobre os males
morais e espirituais que chegam ao clmax com o aparecimento de Nietchiev e seus
cmplices. Explicando como via seu romance que estava comeando a reescrever,
Dostoivski fornece uma indicao valiosa pela qual Stavrguin ser relacionado com
as outras personagens do romance, indicao que aparecer na epgrafe do grande
romance:
Jesus perguntou-lhe: Qual o teu nome? Legio, respondeu,porque muitos demnios haviam entrado nele. E rogavam-lhe que noos mandasse ir para o abismo.Ora, havia ali, pastando na montanha, uma numerosa manada deporcos. Os demnios rogavam que Jesus lhes permitisse entrar nosporcos. E ele o permitiu. Os demnios ento saram do homem,entraram nos porcos e a manada se arrojou pelo precipcio, dentro dolago, e se afogou.
Vendo o acontecido, os que apascentavam os porcos fugiram,contando o fato na cidade e pelos campos. As pessoas ento sarampara ver o que acontecera. Foram at Jesus e encontraram o homem,do qual haviam sado os demnios, sentado aos ps de Jesus, vestido eem so juzo. E ficaram com medo. As testemunhas ento contaram-lhes como fora salvo o endemoniado. E toda a populao do territriodos gerasenos pediu que Jesus se retirasse, porque estavam com muitomedo. E ele, tomando o barco voltou.
Lc: 8, 30-3780
Dostoivski em carta a Mikov81
, afirma que os fatos provaram que a doenaque acometeu os russos instrudos de sua gerao era muito mais virulenta que
imaginavam. E que o que acontecia naquele momento foi atestado por So Lucas. Ele
queria muito que a Rssia fosse curada da mesma maneira, mas sabia que a esperana
era uma possibilidade remota, somente visvel, quando muito, aos olhos de profetas
como Mikov e ele prprio. O que ele viu por toda parte, e que seria apresentado em seu
romance, era a infeco e auto destruio, e no a purificao. Os demnios saram do
79Fyodor DOSTOEVSKY, Fyodor Dostoevsky: Complete Letters 1868-1871, p. 276.80BBLIA DE JERUSALM. 7 Impresso. So Paulo: Paulus, 1995.
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Enfermeira/ Dacha como serva submissa e obediente ao Prncipe; e a Liza com seu
amor e dio apaixonado pelo Prncipe. Na maior parte das anotaes Dostoivski
trabalha na intriga romntica, ao final em Kirllov. Stavrguin concebido com muito
esforo de sua parte e Granovski com facilidade.
Assim como no romance, Stiepan aparece nas anotaes como poeta liberal que
cultua idias e beleza a uma distncia nada segura da luxria; intelectual e moralmente
frouxo indolente, parasita, e tolo. Quando o centro da influncia intelectual passa do
pai para o filho no romance, algo muda em Stiepan. Ao contrrio de sua benfeitora
Varvara, de Virguinski e de Liptin, ao contrrio de quase toda a cidade ele se recusa a
passar para o lado de Piotr. Quando maltratado por seu filho, por sua benfeitora, e por
seus velhos camaradas algo sufoca suas reaes e abafa sua vontade. Continua a falar asmesmas frases, mas, uma sombra de conscincia e responsabilidade cruza sua frente.
Ele no sbio, mas firme. Maltratado e sem amigos, mal compreendido e mal
compreendendo, ele d incio sua ltima jornada quixotesca na ignorncia e esperana.
Ele permanece tolo e autocentrado, mas, uma fasca de recognio e arrependimento
tremulam debilmente em sua alma. Seria muito, porm, dizer que absolutamente
redimido ao final, mas, talvez, ele volta a nascer para a responsabilidade antes da morte.
Nas anotaes de Dostoivski no existe quase nada indicando que ele pretendiamostrar Stiepan como um homem melhor do que aparece no romance. Ele sempre o
tolo e nunca o heri. Tanto nas anotaes como no romance Granovski/ Stiepan
reconhece a si mesmo e a sua gerao como pais espirituais da gerao de Nietchiev.
Mas, mesmo quando existe recognio, e at mesmo assombro, no existe nenhum
aprendizado no sofrimento. Granovski era verdadeiramente puro, e desejava
ardentemente fazer o bem, mesmo que no final, ele no servisse mais para o jogo e
tornou-se assim um falastro87. E, como se isso no fosse o suficiente, ele passa a
perseguir as idias da moda, e depois, Granovski cai doente e morre. Ele se esfora
para compreender tudo que aconteceu e pelo que eles (os socialistas e todos os
seguidores) poderiam estar batalhando para alcanar, mas no consegue.
Desentendimentos entre ele e a mulher. No permitido a ele sair da cidade 88. Logo
adiante: Granovski no um ideal genuno. Ele ultrapassado, autodestrutivo,
87Fyodor DOSTOEVSKY, The Notebooks for The Possessed, p. 96.88Ibid, p. 80.
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Lebidkina perturba as convices sociais covardes de Varvara Stavrguina. E a
confisso finca na trama questes que vo alm da humilhao de Liza.
Se j difcil entender o Prncipe como amante passional ainda mais difcil
entend-lo como defensor apaixonado da Rssia contra o Ocidente, da Ortodoxia contrao atesmo, e de Cristo contra os descrentes. Em longos monlogos e dilogos o Prncipe
expe sua viso sobre a idia russa e sobre a graa redentora da Ortodoxia. No incio ele
o expositor e aparentemente o expoente destas idias, depois o examinador, e no final
aquele que as rejeita. Ele fascinado pelas idias de Chtov e depois por Nietchiev.
Nietchiev oferece a ele o instrumento e Chtov as idias de humildade e
autoconsuno, alm de Deus e do Reino dos Cus que esto conosco, em
autoconsuno, onde a liberdade est tambm.
100
Primeiro ele permanece entre eles,depois eles sem Stavrguin, e finalmente Stavrguim vai alm dos dois.
A defesa apaixonada da Ortodoxia e da Rssia de Dostoivski. Marcam
presena constante nas anotaes. O Prncipe diz:
A Terra nunca viu tamanha idia gigantesca que est tomandoforma aqui no Oriente, e que se move para tomar lugar nas massaseuropias [...] para regenerar o mundo. Ortodoxia, a verdade gloriosa,f eterna no Cristo e total regenerao moral em Seu nome. Estamosdando ao mundo o primeiro paraso do milnio.101
E logo adiante: [...] Como Sanso em campanha. Saindo de Petersburgo e
fixando a si mesma em Skvorichniki102.103 Dostoivski pode dar suas idias ao
Prncipe, e o Prncipe pode recit-las apaixonadamente, mas uma linha depois o suicida
nega o que disse. Dostoivski pode acreditar no que o Prncipe diz, mas o prprio
Prncipe no. Chtov pode acreditar neles, mas Chtov uma criatura desajustada quese alimenta de Stavrguin, sua vida espiritual est amarrada nas suas relaes sociais. O
Prncipe no pode dar corpo s idias crists de Dostoivski sobre a Rssia e Deus, e
Dostoivski sabe que ele no pode.104
100Fyodor DOSTOEVSKY, The Notebooks for The Possessed, p. 174.101Ibid, p. 226.102
Skvorichniki: nome da fazenda da famlia Stavrguin no romance.103Fyodor DOSTOEVSKY, The Notebooks for The Possessed, p. 226.104Ibid, p. 185.
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Dostoivski aparentemente mantm a idia sobre a regenerao do prncipe pelo
amor e pela f. Questo presente na Vida de um Grande Pecador. Ao longo das
anotaes existem referncias s faanhas morais que o Prncipe deseja realizar. Em
algumas verses o casamento com a Enfermeira/ Dacha. Em outras a trajetria de
Chtov e o monastrio: regenerao pela penitncia religiosa ou pelo amor. Mas as
referncias regenerao moral por amor (ou pela penitncia religiosa) esto sempre
seguidas a referncias do Prncipe tirando a prpria vida: Durante sua ltima visita [...]
ele diz, em arrebatamento, que s amava a ela, que ela seria sua salvao, e uma hora
depois ele se mata.105Dostoivski no pode dar a regenerao do Prncipe por amor,
nem pela f na Rssia e na Ortodoxia.
Dostoivski chega personalidade de Stavrguim por passos tortuosos. Eleresiste ao verdadeiro Stavrguin por evases, sobreposies, e passos falsos. Ele d ao
Prncipe as palavras erradas, aes erradas, amores errados, e os sentimentos errados.
Ainda at o final Stavrguin se explica demais e seu tom todo equivocado tagarela,
superior, autojustificativo. Nas notas finais para a carta que ele escreveu a Dacha, diz
assim:
Diferentemente de toda nossa gerao, eu no posso ser bemvindo no reino da mediocridade, da igualdade invejosa, da estupidezacoplada na ausncia de individualidade, da rejeio a todo tipo dedever ou honra, de toda obrigao. No posso acolher a rejeio demeu pas, da mesma maneira que no posso acolher aqueles cujonico objetivo seja a destruio, e aqueles que cinicamente rejeitamqualquer princpio que possa reconcili-los aps a realizao doobjetivo de destruio total, quando a profanao e o despojo de tudotomar a conduo do momento onde no ser possvel continuar avida por muito tempo mesmo com o pequeno suprimento de produtose restos deixados intacto para trs pela destruio geral da velhaordem. El