Jacqueline Izumi Sakamoto

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  • 7/23/2019 Jacqueline Izumi Sakamoto

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    PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO

    PUC-SP

    JACQUELINE IZUMI SAKAMOTO

    RELIGIO E NIILISMO:

    PAIDIA CRTICA EM OS DEMNIOS

    DE DOSTOIVSKI

    MESTRADO EM CINCIAS DA RELIGIO

    SO PAULO

    2007

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    PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO

    PUC-SP

    JACQUELINE IZUMI SAKAMOTO

    RELIGIO E NIILISMO:

    PAIDIA CRTICA EM OS DEMNIOS

    DE DOSTOIVSKI

    MESTRADO EM CINCIAS DA RELIGIO

    Dissertao apresentada Banca Examinadora

    da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo,como exigncia parcial para obteno do ttulode MESTRE em Cincias da Religio, soba orientao do Prof. Doutor Luiz Felipe Pond.

    SO PAULO

    2007

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    BANCA EXAMINADORA

    __________________________________________

    __________________________________________

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    A meus pais

    Massatoshi e Ayako

    Ao meu filho

    Yannis

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    AGRADECIMENTOS

    Ao Prof. Dr. Luiz Felipe Pond pela orientao, sabedoria e generosidade.

    Aos colegas pesquisadores do NEMES Ncleo de Estudos em Mstica e Santidade

    PUCSP.

    Ao testemunho, disponibilidade, cuidado e partilha dos amigos: Maria Cristina Mariante

    Guarnieri, Maria Anglica Santana, Regina Carielo, Beatriz Curado, Llian Wurzba, Dr.

    Amadeu Amaral de Frana Pereira Jr, Gabriela Bal, Maria Jos Caldeira do Amaral,

    Ceci Baptista Mariani, Ana Cludia Ayres Patitucci, lcio de Gusmo Verosa Filho,

    Marlia Alves Pedrosa Esa.

    Ao apoio incondicional de minha famlia: Massatoshi, Ayako, Paulo Csar, Carmem e

    Dborah.

    A presena luminosa de Yannis, Yves, Emi, Kenzo.

    Aos monges do Mosteiro Trapista Nossa Senhora do Novo Mundo.

    Aos professores Dr. Afonso Maria Ligorio Soares e Dr. Jos J. Queiroz.

    Aos professores Dr. Arlete Orlando Cavalieri (FFLCH-USP), Dr. Bruno Barreto

    Gomide (FFLCH-USP) e Prof Ala Gueogievna Dib (UCPADP) que possibilitaram

    minha iniciao no universo da literatura, cultura, histria e lngua russa.

    A Coordenao, Professores e Andria do Programa de Estudos Ps Graduados em

    Cincias da Religio PUCSP.

    CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico.

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    SAKAMOTO, Jacqueline Izumi

    Religio e Niilismo: Paidia crtica em Os Demniosde Dostoivski

    RESUMO

    Objetivo: Tratar a filosofia da religio em Dostoivski como um testemunho, que nos

    revela no s uma poderosa crtica religiosa aos desdobramentos do atesmo moderno,

    mas ainda, ampliando nosso repertrio, pelo acesso a este pensador religioso como

    forma de conhecer a religio.

    Justificativa: Dostoivski trata em Os Demniosos excessos da secularizao em tica

    e pedagogia e indica que o esquecimento da categoria de santidade, caracterizada

    principalmente pela relao de simetria entre o homem e o transcendente, o atesmo

    como legado antropocntrico do projeto racional moderno, produz miopia moral

    inviabilizando o discernimento em meio ao caos relativista.

    Hiptese: A dinmica do niilismo, caracterizando os movimentos viscerais do ser

    humano em processo de auto-destruio, est enraizado no que Berdiaev definiu como

    liberdade incriada, de onde brota nossa Imago Dei, no passvel s normas, que habita a

    alma humana com o Nada. Procuraremos demonstrar que o atravessamento deste Nada,

    o eixo da pedagogia dostoivskiana que considera a realidade do pecado e do mal,

    constitui uma Paidiacrtica e religiosa.

    Aspectos terico-metodolgicos e resultado obtido: Como procedimento esta

    pesquisa aprofundou a interpretao do sentido da obra, e da dinmica dos personagens,

    pela anlise de seu contedo, em estreita relao e dilogo com os referenciais tericos

    relevantes para a compreenso dos fundamentos teolgicos presentes no pensamento de

    Dostoivski. Neste sentido, o resultado obtido atingiu o objetivo proposto: o

    enfrentamento do atesmo moderno com os instrumentos da filosofia da religio, que

    busca uma compreenso ampliada como repertrio necessrio para o dilogo entre

    educao, religio e moral, constitui uma Paidia crtica, e identificou ainda, a

    atualidade desta obra para o homem no mundo contemporneo.

    Palavras chave: Os Demnios, Dostoivski, Filosofia da Religio, Paidiacrtica.

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    SAKAMOTO, Jacqueline Izumi

    Religion and Nihilism: critical Paideia in The Devilsof Dostoivski

    ABSTRACT

    Objective: To deal with the philosophy of the religion in Dostoivski as a testimony,

    that not only discloses a powerful religious criticism to the modern atheism unfolding,

    but still, extending our repertoire, for the access to this religious thinker as form to

    know the religion.

    Justification: In The Devils, Dostoivski treats the excesses of education and ethics

    secularization indicating the holiness category forgetfulness, characterized mainly by

    the symmetry relation between man and the transcendent, the atheism as an

    anthropocentric legacy of the modern rational project, produces moral myopia rendering

    useless the discernment amid the relativity chaos.

    Hypothesis: The nihilism dynamic, characterizes the visceral movements of human

    being towards self-destruction, is rooted in what Berdiaev defined as an uncreated

    liberty, where sprout our Imago Dei, not subject to the norms, that inhabits human soul

    with the Nothing. We will try to show that the path through Nothing, the reality of the

    sin and the evil is considered the axis of Dostoivskis pedagogy, constitutes a critical

    and religious Paideia.

    Theoretical-methodological aspects and obtained result: As a procedure this

    research deepened the sense of the work interpretation, and the characters dynamic, by

    the analysis of its content a narrow relation and dialogue amongst the prominent

    theoretical yardsticks for the comprehension of the theological foundations presented in

    the thought of Dostoivski. In this sense, the obtained result reached the proposed

    objective: the clash of modern atheism with the instruments of the philosophy of

    religion that seeks an extended comprehension as a necessary repertoire for the dialogue

    between education, religion and moral, a critical Paideia, and still, the up to date depth

    of this work for the contemporary man.

    Keywords: The Devils, Dostoivski, Philosophy of the Religion, critical Paideia.

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    SUMRIO

    INTRODUO 09

    CAPTULO I: A ALMA RUSSA 18

    1.1 O Esprito de Dostoivski 24

    1.2 A Idia Russa: a arquitetura espiritual da alma,

    o pensamento em busca de salvao 27

    1.3 A Intelligentsia Russa: testemunho de uma poca 34

    1.4. O escritor Fidor Mikhilovitch Dostoivski 38

    1.5 Os Demnios: do panfleto ao poema trgico 39

    1.6. Os Demnios: das anotaes ao romance 45

    CAPTULO II: A LIBERDADE 54

    2.1. Liberdade na Personalidade 58

    2.2. Liberdade e Constrangimento 62

    2.3. Coliso de duas Grandes Idias: Cristo e Anticristo 65

    2.4. Da liberdade ilimitada ao despotismo ilimitado:

    o chigaliovismo 71

    2.5. Homem-deus: Kirllov 76

    2.6. Antinomia e penria da alma russa: Chtov 82

    CAPTULO III: O MAL 90

    3.1 Polifonia: marca da Queda e preservao da forma

    humana 96

    3.2. O Mal na Esfera da Liberdade 106

    3.2.1. Os Demnios: parasitismo e dissoluo 108

    CONCLUSO 128

    BIBLIOGRAFIA 133

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    INTRODUO

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    INTRODUO

    Esta pesquisa tem como objeto uma grande obra literria russa do sculo XIX efoi motivada pelas reflexes, dvidas e questionamentos decorrentes primeiro de minha

    experincia pessoal como pedagoga, mas principalmente, pelo impacto causado pela

    leitura da obra que, de certa maneira, acabou se constituindo num desafio pessoal de

    questionamento, em profundidade e extenso, sobre a validao dos critrios de uma

    tica secular determinante das experincias humanas no mundo moderno. Percebemos

    que em Dostoivski a problemtica acerca da autonomia humana est sempre colocada e

    que seu pensamento conta necessariamente com contedos presentes na ortodoxia

    crist. Ao longo desta pesquisa motivao e desafio tornaram-se inseparveis para a

    compreenso de um caminho que considera o testemunho de um autor religioso como

    esclarecedor acerca do problema da liberdade humana. Assim, o primeiro contato com

    Os Demniosde F. M. Dostoivski foi intenso e perturbador. Intenso porque apresenta a

    condio humana sem disfarces que explode nos dilogos polifnicos de seus

    personagens. A busca, ou ausncia, de sentido apresentada no drama de homens e

    mulheres imersos na agonia vivida como existncia trgica. E perturbador, quando

    identifica a tradio do niilismo russo como descrio da desfigurao do mundo em

    dor e despedaamento, e que tem como efeito Os Demniosvivido como experincia

    social.

    Schnaiderman1, em seu prefcio a Memrias do Subsolo, nos indica que toda

    trama presente nas obras de Dostoivski, por mais particulares que nos paream,

    considerando a ligao dos temas aos acontecimentos reais, tem sempre uma amplitude

    de carter geral e elevado. O caso particular, como ocorre freqentemente em

    Dostoivski, traz implcita a referncia a uma problemtica filosfica2. E neste

    sentido que consideramos com Pond3a importncia para as Cincias da Religio, que

    no lugar de definir seus objetos possa infinitamente dar a palavra a essas pessoas

    religiosas, que constituem seu objeto, s sendo capaz de conhec-las medida que

    falem4. Assim, consideramos necessria uma reflexo constituda no dilogo entre

    1Cf. Fidor. Mikhilovitch DOSTOIVSKI,Memrias do Subsolo.2

    Ibid, p. 9.3Cf. Luiz Felipe POND, Crtica e Profecia: A Filosofia da Religio em Dostoivski.4Ibid, p. 161.

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    literatura, religio e filosofia para a ampliao dos estudos crticos j realizados sobre o

    autor. E, neste sentido, esta pesquisa parte da leitura do ensaio de crtica religiosa do

    filsofo Luiz Felipe Pond, Crtica e Profecia: a Filosofia da Religio em Dostoivski,

    que afirma a necessidade da compreenso do pensamento religioso de Dostoivski

    como chave fundamental de apreenso de suas obras.

    Sobre o contexto da obra e a histria do pensamento russo do sculo XIX

    contamos com as obras do principal bigrafo de Dostoivski, Joseph Frank, que

    publicadou uma monumental biografia em 5 volumes, mais o ttulo Pelo Prisma Russo.

    E sobre a intensa produo russa do sculo XIX, a orientao da intelligentsiano seu

    interesse sobre idias vividas enquanto solues para exigncias morais destacamos

    Isaiah Berlim em seus ensaios sobre literatura, histria intelectual e comentriosfilosficos, reunidos sob o ttulo Pensadores Russos. Assim como, uma grande

    antologia histrica de cartas e documentos (Russian Intelectual History) organizados

    por Marc Raeff.

    A extensa correspondncia de Dostoivski foi editada e traduzida diretamente do

    russo por David Lowe, sendo que, dos cinco volumes publicados destacamos

    principalmente o volume 3, referente aos anos de 1868-1871, perodo em que

    Dostoivski trabalhava em Os Demnios. Joseph Frank e David I. Goldestein tambmeditaram uma seleo da correspondncia do autor que, assim como a edio de Lowe

    encontram-se publicadas em ingls.

    Os longos cadernos de anotaes de Dostoivski para os grandes romances

    foram editados por Edward Wasiolek. Sendo que, a traduo das anotaes de Os

    Demnios foi realizada por Victor Terras e encontra-se publicada em ingls. Nelas

    encontramos as reflexes do prprio autor sobre as questes que se tornariam centrais

    no romance, destacadamente as conseqncias do atesmo e das cincias consideradaspor ele como uma forma de teologia da poca.

    No que se refere histria cultural da Rssia, Solomon Volkov, nos apresenta

    em So Petesburgoa construo, consolidao e converso clandestinidade do mito

    fundado com a cidade de So Petesburgo, cidade de artistas, msicos, poetas e escritores

    que detm o destino espiritual desta metrpole e da prpria Rssia. E ainda no mbito

    de uma teoria cultural, evidenciamos a anlise semitica de Yuri Lotman que parte de

    leituras de textos poticos e literrios em seu Universe of the Mind. Outras obras queexpandem nossa compreenso sobre a histria da Rssia e da Literatura Russa Moderna

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    podem ser acompanhadas com Charles Moser, Nicolas Razhevsky, Paulo

    Chostakowsky, Lionel Kochan e Constantin Grunwald.

    No ncleo desta pesquisa encontraremos a filosofia da religio, teologia e

    antropologia religiosa com Nicolai Berdiaev, Eduard Thurneysen, Serge Bulgakov,Georges Florovski e Paul Evdokimov, Vyacheslav Ivanov, Mikhail Bakhtin e Henry De

    Lubac que devero ser visitados ao longo deste trabalho.

    Na discusso acerca da atualidade da obra de Dostoivski contamos com os

    pensadores contemporneos Zygmunt Bauman e Alain de Finkielkraut. O primeiro na

    sociologia, com forte compreenso filosfica sobre o fenmeno da modernidade, aliada

    a seu vasto conhecimento literrio, e o segundo, filsofo francs, que estabelece grande

    dilogo crtico refletindo sobre o padecimento dos homens e da idia de humanidade nodespotismo de nosso sculo.

    O romance Os Demnios foi considerado a resposta de Dostoivski a um

    assassinato nefasto: em 21 de novembro de 1869 acontece a execuo do estudante

    Ivanov pelos membros da organizao poltica clandestina Justia Sumria do Povo,

    comandada por Nietchiev. Ivanov foi executado porque resolvera afastar-se da

    organizao por divergncias polticas e seu assassinato serviu como prova de lealdade,

    estreitamento e unio dos laos entre os membros da organizao. O processo por crimepoltico envolvendo os integrantes da clula de uma organizao internacional, da qual a

    existncia concreta nunca foi provada, recebeu ampla divulgao e debate pela imprensa

    russa. Dostoivski centra sua ateno nos detalhes da organizao e no perfil de seus

    integrantes, principalmente em Nietchiev que ser o prottipo do grande personagem

    niilista Piotr Stiepnovitch Vierkhovinski. A publicao foi recebida pela crtica como

    um panfleto contrrio ao movimento revolucionrio e isolado deste prprio movimento.

    Mas Dostoivski no v tal ato como isolado e nico. E, na medida em que mergulhacom rara lucidez na realidade concreta do episdio, expande a polmica entre vrios

    segmentos do pensamento poltico, social, filosfico e religioso russo e ocidental.

    Dostoivski trata neste romance dos excessos da secularizao em tica e

    pedagogia e indica que o esquecimento da categoria de santidade, caracterizada

    principalmente pela relao de simetria entre o homem e o transcendente, o atesmo

    como legado antropocntrico do projeto racional moderno, produz miopia moral

    inviabilizando o discernimento em meio ao caos relativista. A consistncia dopensamento religioso de Dostoivski se encontra exatamente na considerao do

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    homem como um enigma experimentado concretamente, onde a capacidade de

    pressentir e manifestar Deus (teofrico) se d na realidade por meio de uma

    transformao concreta na forma de ser, conhecer e agir no mundo. Trata-se do resto

    cognitivo e notico desta experincia, presente na Ortodoxia Crist, que possibilita

    crtica dostoivskiana enfrentar o relativismo, o niilismo e o individualismo presentes

    no projeto dogmtico humanista. O desdobramento na condio humana apartada de sua

    raiz divina aposta no niilismo, compreendida como desfigurao plena do mundo, o ser

    humano descola da realidade na qual vive quando passa a acreditar que pode ser, ele

    mesmo, fonte da imagem criando forma para o mundo, como nos projetos

    revolucionrios sociais ou cientficos racionais. Nesta tentativa de fundao a partir da

    abstrao racional os seres humanos acabam por realizar o Nada. A percepo da dor da

    destruio do mundo compe o universo da literatura russa deste perodo.

    Neste sentido constitui-se como desafio desta pesquisa o enfrentamento do

    atesmo moderno com os instrumentos da filosofia da religio, da esttica teolgica e da

    crtica literria, buscando uma compreenso ampliada como repertrio necessrio para o

    dilogo entre educao, religio e moral, na expectativa de uma Paidia crtica neste

    percurso, considerando ainda, a atualidade desta obra para o homem no mundo

    contemporneo.

    Esta pesquisa tem como objeto o romance Os Demniosde F. M. Dostoivski,

    publicado em 1871, sendo que trabalharemos com a traduo de Paulo Bezerra, Editora

    34, publicada em 2004. Dostoivski denuncia o mal nesta obra em sua forma silenciosa

    e parasita o relativismo - como um discurso travestido de construtivo e lido como

    libertador. As razes que tm incio na gerao dos pais liberais produziram anomia ao

    recusar sistematicamente a experincia antinmica de Deus. Piotr -personagem

    revolucionrio radical e um dos demnios maiores do romance - sabe que estamos

    sempre desconstruindo e no final descobriremos o nada. Assim, sendo todos os critrios

    relativos e autocentrados, conforme lhe foi ensinado, porque no aplicar a mesma lgica

    da desarticulao ao pai e a outros seres humanos?

    Na continuidade do movimento relativista veremos a entrada do homem no

    niilismo epistemolgico, afetivo, poltico, onde a busca de uma sada rpida que alivie a

    dor deste abismo caracterstica do moderno. Em contrapartida, a pedagogia de

    Dostoivski afirma que no possvel conhecer a soluo sem atravessar a dor inteira.

    Sendo assim, ser possvel afirmar que o projeto moderno que busca fundar uma virtude

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    sem Deus numa relao de simetria com Ele, na construo de uma redeno humana,

    terminar sempre em Os Demnios?

    Na ortodoxia a experincia de Deus se d sempre no plano da evidncia e no da

    lgica. A idia de liberdade e transformao identificada por Dostoivski a idia que

    fora de Deus no h verdadeira liberdade e esta est implicada com o mistrio. Quando

    o homem abdica de Deus abdica tambm da verdadeira liberdade. Neste sentido, quais

    seriam as contribuies da experincia do mistrio presente na ortodoxia para a

    compreenso do violento relativismo contemporneo?

    Consideramos que o poder de descriar, de voltar ao nada, prpria da dinmica

    do niilismo, caracterizando os movimentos viscerais do ser humano em processo de

    auto-destruio. Este conceito est enraizado no que Berdiaev definiu como liberdade

    incriada, de onde brota nossa Imago Dei, no passvel s normas, que habita a alma

    humana com o Nada. A negao desta liberdade incriada, divina e intratvel leva o

    homem a buscar frgeis determinismos conceituais, garantindo qualquer esperana de

    progresso sistmico e este acaba por realizar a experincia do nada materializado nas

    relaes objetivas e subjetivas, na dissoluo da ordem da Forma e das relaes.

    Procuraremos demonstrar ainda que o atravessamento deste Nada, o eixo da pedagogia

    dostoivskiana, constitui uma Paidiacrtica e religiosa.

    Assim, como principal objetivo deste trabalho, procuramos tratar a filosofia da

    religio em Dostoivski como um testemunho, que nos revela no s uma poderosa

    crtica religiosa aos desdobramentos do atesmo moderno, mas ainda, ampliando nosso

    repertrio, pelo acesso aos pensadores religiosos como forma de conhecer a religio.

    Isto nos possibilitar aprofundar o conhecimento acerca da dupla dinmica do niilismo

    objetiva e subjetiva em extenso e radicalidade considerando o pensamento religioso

    do autor como chave de apreenso do fenmeno. E, ainda, a identificao do Nada

    como constitutivo da condio humana em sua estreita relao com a liberdade incriadacomo condio necessria da Paidia pedagogia dostoievskiana presente no

    atravessamento deste Nada. E, por fim, apresentar a atualidade e consistncia do

    conhecimento presente na tradio da Ortodoxia russa, e na obra Os Demnios de

    Dostoivski, que considera o mistrio como fundamento para compreenso da condio

    humana.

    Nesta pesquisa tomaremos como base categorias de anlise presentes na filosofia

    da religio, considerando a postura religiosa explcita do autor, como fundamentais

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    apreenso de suas obras, e em especial nOs Demnios, conforme segue: filosofia da

    religio com Luiz Felipe Pond; Liberdade com Nicolai Berdiaev (principalmente),

    Serge Bulgakov e Georges Florovsky; o problema do mal com Paul Evdokimov; e

    liberdade na modernidade lquida com Zigmunt Bauman.

    Como procedimento esta pesquisa pretende aprofundar a interpretao do

    sentido da obra, e da dinmica dos personagens, pela anlise de seu contedo, em

    estreita relao e dilogo com os referenciais tericos relevantes para a compreenso

    dos fundamentos teolgicos presentes no pensamento de Dostoivski em Os Demnios.

    E segue a seguinte diviso dos captulos:

    O Captulo I: A Alma Russa estar centrado na apresentao da alma russa at a

    gnese do romance Os Demnios, privilegiando os comentrios de Nicolai Berdiaev,que nos levar a problemtica principal das obras de Dostoivski: a liberdade inscrita na

    alma como um conceitual interno ao universo cristo. Neste universo a liberdade

    quando constrangida aos referencias humanos, que desconsidera a misericrdia divina,

    degenerar sempre no diablico. Berdiaeff afirma que um grande escritor uma

    manifestao completa do esprito e como tal deve ser tomado em sua unidade 5,

    unidade somente passvel de penetrao seno incorporando-se nela, vivendo-a.

    Considerando Dostoivski como homem de gnio, alto fenmeno espiritual, deve-seantes segui-lo pelo caminho dos crentes, mergulhando em suas idias dinmicas. Em

    sua unidade, Dostoivski especificamente russo, e sua obra uma interpretao russa do

    universo. Ele reflete todas as contradies e antinomias do povo russo, sendo que, a

    arquitetura espiritual da alma russa pode ser seguida e estudada em sua obra. E eis aqui

    a causa de tanto interesse e estranhamento que provoca nos ocidentais: procuram nele

    uma revelao de ordem geral com base nas questes to enigmticas do mundo

    Oriental russo. Compreender Dostoivski assimilar parte essencial da alma russa, do

    segredo da Rssia.

    No Captulo II: A Liberdade, mostraremos que Dostoivski estuda o homem a

    partir de sua maior problemtica, ou seja, a partir de sua liberdade, de onde dado a ele

    decidir, escolher, aceitar, rejeitar, e principalmente: a liberdade de aprisionar-se a si

    mesmo, e a de livrar-se a si mesmo da escravido. A liberdade por ele compreendida

    no diz respeito quela meramente objetiva, mas antes, que esta liberdade est inscrita

    no homem, inscrita como uma problemtica. Toda a significao do homem reside

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    justamente nesta liberdade: liberdade da vontade, ou vontade de ser si mesmo que deve

    passar justamente pela renncia deste si mesmo. E mais: que esta vontade de ser si

    mesmo pode degenerar em autodestruio (Mt 10, 37-39). Este um dos temas mais

    ntimos e caros a Dostoivski. Ele representa uma manifestao criadora sem

    precedentes, o homem tomado em toda profundidade e tem todos os abismos

    espirituais descobertos. Nele toda literatura russa atinge o mais alto grau de tenso:

    expondo os abismos como uma ferida torna o destino humano doloroso. Mas neste

    destino humano doloroso o homem est vivo e volta a ser com ele uma criatura

    religiosa.

    E, no Captulo III: O Mal, consideramos de incio a epgrafe do romance quando

    Cristo pergunta ao homem: Qual o teu nome?, a resposta dada no singular e noplural: Legio porque muitos demnios haviam entrado nele. O problema da Legio

    constitui um dos mais impenetrveis mistrios do Mal. E sua presena demonaca, que

    responde como eu e como ns, um fenmeno que nos confronta atualmente. O

    tipo de cooperao que encontramos nela concebvel somente quando assume formas

    de uma organizao mecnica, uma acumulao de tomos produzidos por uma fora

    diablica que acaba no p. E este poder deve ser to diablico que sua prpria e inerente

    discrdia levar inevitavelmente a perda de sua unidade, quebrada numa tal

    multiplicidade, que acabar por explorar todo tipo de coeso natural para gerao de

    uma vida mecnica em suas partes disparatadas, procurando com isso dar-lhe uma

    aparncia de vida. Estas partculas que constituem este aparente todo no so mnadas

    vivas, mas almas mortas, a tempestade de p do inferno.6

    Dostoivski no menciona os demnios com objetivo de persuadir nossos

    contemporneos ilustrados sobre a presena espectral do poder do mal em nossa

    cientificamente bem estabelecida e investigada civilizao: seu propsito

    simplesmente mostr-los [em ao].7De Lubac8afirma que sua reflexo, sustentada no

    cristianismo, o leva das profundezas de seu corao a percepo que no plano da razo

    no existe resposta: Cristo no veio ao mundo para explicar o sofrimento ou resolver o

    problema do mal: ele toma o mal em seus prprios ombros para lev-lo de ns.

    5Nicolai BERDIAEFF, O Esprito de Dostoivski, p.12.6

    Cf. Vyacheslav IVANOV, Freedom and Tragic Life:a study in Dostoevsky, pp. 140-141.7Ibid, pp. 120-121.8Henri DE LUBAC, The Drama of Atheist Humanism, p. 291.

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    Sem uma realidade superior a vontade humana trancada em si mesma percebe-se

    sem objeto, sem direo precisa, sem finalidade. E conduz o homem a uma vacuidade

    transformando sua alma num deserto. Porm, o humanismo no deve ser considerado

    como derrota pura, isto seria um ponto de vista esttico. O homem deve passar pela

    liberdade e na liberdade aceitar Deus. Nisto reside o sentido do humanismo. E chega um

    tempo em que os homens devero propor a si mesmos um questionamento, saber se o

    progresso foi realmente progresso, ou se foi uma reao contra as bases autnticas da

    vida.9

    9Cf. Nicolau BERDIAEFF, Uma Nova Idade Mdia: reflexes sobre o destino da Rssia e da Europa, p.98.

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    The exiled Demon, Spirit of Despair,

    Was flying oer earths sinful climes;

    While in his weary brain rose, dark and bare,

    Remembrances of happier times, -

    When, pure and holy, in the realms of light

    He shone amid Gods cherubim;

    When, coursing in its golden tracks at night,

    The fleeting Comet ever would delight

    To interchange a smile with him;

    When, through the circling ethers vast extent,

    Thirsting some knowledge to achieve,

    He watchd the movements of the firmament,

    And all its wonders could perceive;

    When he could love and still believe,

    First of creation, happy and devout,

    Guiltless of sin and ignorant of doubt;

    Nor had his tranquil mind beset

    A range of fruitless century past in ill

    His brain could hold no more and yet

    The past, the lost came crowding still!

    Long homeless and irresolute

    Roamd oer the desert earth the proud outcast,

    While, as a minute tracks a minute,

    So rolld the ceaseless centuries past,

    Unvarying in their endless stream.

    Oer the vile earth he ruled supreme,

    Sowing in apathy sins fatal seeds;

    No being there could check his whim,

    Or bid defiance to his wicked deeds; -

    And sin began to weary him.

    Lermontov10

    10Mikhail Irevitch LERMONTOV, The Demon: A Poem, 1875.

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    CAPTULO I

    A ALMA RUSSA

    Em nossa poca atuam foras inumanas, espritos de elementosdesencadeados, esmagando o homem, obnubilando-lhe a imagem. No mais o homem que hoje liberto, mas os elementos inumanos queele desencadeou, e cujas vagas de todos os lados o flagelam. Ohomem tinha recebido sua forma e sua identidade sob a ao dosprincpios e das energias religiosas. O caos em que perecia suaimagem no podia ser superado por foras puramente humanas. Eratambm funo das foras divinas a elaborao de um universohumano. Tendo-se , para o fim, desprendido da potncia de Deus erenegado seu apoio, o homem da histria moderna tomba outra vez nocaos, compromete-se sua imagem e suas formas vacilam. A energiacriadora do homem no se concentra mais, pulveriza-se. Aconstituio de um reservatrio de energia criadora supe aconservao das formas da identidade humana, supe os limites quedistinguem o homem dos estdios informes e, pois, inferiores. Estereservatrio se fendeu e a energia humana dispersou-se. O homemperde suas formas, suas delimitaes, no mais protegido contra omal infinito do mundo catico.11

    A primeira impresso que se tem na leitura de Os Demnios de incongruncia,desarmonia e desfigurao. Tudo o que no deveria ser. Intelectuais no so

    intelectuais, governadores no governam, e as relaes familiares so desemaranhadas:

    filhos zombam dos pais, a afeio considerada um insulto, e o respeito que um marido

    tem por sua esposa aumenta quando ela encontra um amante. Assassinato considerado

    fidelidade; feira, beleza; blasfmia, religio; erro, verdade; e um milho de cabeas

    reunidas num agitado aglomerado a viso do milenarismo social.

    Algum tipo de medida foi perdido; a proporo imperceptvel; e a dignidade eidentidade pessoal esquecida. Todos e tudo esto de alguma maneira mutilados. O

    mundo se abre numa pequena e desconhecida provncia onde monstros pequenos,

    grotescos, cmicos, srios, e impotentes correm e trazem os demnios tona. Os

    11Nicolas BERDIAEFF, Uma Nova Idade Mdia: reflexes sobre o destino da Rssia e da Europa, pp.70-71. Berdiaeff (1874-1948) considerado e reconhecido mundialmente como um dos mais importantes

    filsofos russos do sculo XX. Iniciou carreira ligado a filosofia marxista afastando-se dela na criao deum sistema prprio e original de pensamento. Expulso da Rssia em 1922 passa a viver e publicar noOcidente.

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    Demnios fala sobre homens que esqueceram quem so e por que so. Isto fato e

    profecia.

    O corpo poltico est doente, e a doena tem paralisado a ao das pessoas,

    corrodo suas relaes sociais, deformando seus corpos, embotando pensamentos, econfundindo sentimentos. No existe comunho de idias, sentimentos ou almas; e a

    prpria linguagem alimentada por fontes espirituais envenenadas comea a

    desintegrar. No existem dilogos, somente silncio e rudo, manifestaes histricas, e

    pessoas falando consigo mesmas. Stiepan Trofimovitch Vierkhovinski nada comunica

    quando declama ao seu crculo reunido em torno do piano de Limchin; Varvara

    Stavrguina comanda e no conversa; Chtov comunga somente com ele mesmo; a fala

    de Kirllov vem do engano, de um russo mutilado; Piotr fala e fala e diz nada; eStavrguin no fala.

    Homens so colocados uns contra os outros e contra si mesmos. As intenes

    no alcanam as aes: a vontade colocada contra a ao, o pensamento contra o fato

    e a f contra as palavras. Virguinski pensa que um marido liberal que respeita o fato

    de sua esposa ter preferido um amante, e na verdade somente um marido ciumento.

    Liptin acredita ser um socialista dedicado ao avano das idias de Fourrier, quando na

    verdade um miservel, tirano e indecente. Chtov baseia sua viso do mundo e dahistria em Deus, mas ele mesmo incapaz de acreditar em Deus. Kirllov funda a

    liberdade do homem matando-se. E Chigaliv prope estabelecer a liberdade dos

    homens reduzindo noventa por cento da humanidade condio de bestas.

    Palavras so destacadas das coisas, idias da substncia e o homem do mundo.

    Se algum escutar atentamente o rudo e a comoo, a retrica e a confuso, escutar ao

    final somente o silncio espectral do mundo. A retrica de Stiepan Trofmovitch no

    tem substncia, e a torrente de palavras de Piotr soa silncio, assim como, suas aesprovocativas que levam ao nada. Piotr expe planos e procedimentos de um programa

    fantasma, ele preenche todo o pas com uma rede de quintetos que sequer existe; e ao

    final, ele mesmo desaparece como se nunca tivesse existido. No centro deste mundo

    est Stavrguin fixo num silncio e numa calma glacial. O silncio flui dele e para ele

    infectando e provocando a aderncia de homens com crenas deformadas que sero em

    seguida descartados. Ele segue buscando e rejeitando, acreditando e desacreditando, at

    onde nada mais resta a no ser o vazio de sua alma. Para sempre a coragem, a vontade, e

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    a violenta honestidade das questes de Stavrguin levaro ao vazio e aniquilao.

    Sozinho Stavrguin real, e irreal.

    Os Demnios um romance difcil e magnfico, um romance proftico sobre o

    destino da Rssia e sobre o sculo XX. A negatividade devastadora de Stavrguin ePiotr no so expresses de um mal abstrato e metafsico, ao contrrio, so expresses

    vvidas e concretas ao longo do romance da perfeita liberdade da vontade humana. Na

    plenitude de tal liberdade a personalidade humana destruda, a solido se instala, a

    ligao entre os homens cortada e as bases sociais abaladas. Dostoivski nos apresenta

    um brilhante insight do estado de declnio e inadequao da alma mutilada e

    espiritualmente impotente. Deslocado o centro da gravidade para a liberdade da vontade

    humana, emancipado das potncias de Deus, os homens passam a voar pelo espao:

    [...] se for destruda no homem a f em sua imortalidade, no somenteo amor secar nele, mas tambm a fora de continuar no mundo. Maisainda, no haver ento nada de imoral, tudo ser autorizado, atmesmo a antropofagia. No tudo: [...] para cada indivduo nsagora, por exemplo que no acredita em Deus, nem em suaimortalidade, a lei moral da natureza devia imediatamente tornar-se oinverso absoluto da precedente lei religiosa; que o egosmo, mesmolevado at a perversidade, devia no somente ser autorizado, mas

    reconhecido como sada necessria, a mais razovel e quase a maisnobre.12

    O objetivo da arte no , como comumente se imagina, expor idias, difundir

    concepes ou servir de exemplo. O objetivo da arte preparar uma pessoa para a

    morte, arar e cultivar sua alma, tornando-a capaz de voltar-se para o bem13. Percurso

    que para Dostoivski pressupe o reconhecimento do mal dentro de ns mesmos. Em

    Os Demniosele no usa descries, mas, participa ele prprio de sua criao, e coloca

    em relevo a desfigurao plena do mundo: quando os seres humanos, descolados da

    realidade, passam a acreditar que podem ser fonte da imagem do mundo, como nos

    projetos revolucionrios sociais ou cientficos racionais acabam por realizar o Nada. O

    efeito deste conhecimento expresso como choque, onde a percepo da dor da

    destruio do mundo compe o universo da literatura russa do sculo XIX. E neste

    sentido, a imagem artstica revelada por Dostoivski em Os Demnios mantm a

    12Fidor Mikhilovitch DOSTOIVSKI,Irmos Karamzov, p. 80.13Andreaei Arsensevich TARKOVSKIAEI, Esculpir o Tempo: Tarkovski, p. 49.

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    conscincia do infinito, est ligada a uma verdade espiritual absoluta, e poderamos

    ainda dizer que em Dostoivski a Arte uma Homilia14.

    Schnaiderman15, em seu prefcio a Memrias do Subsolo, nos indica que toda

    trama presente nas obras de Dostoivski, por mais particulares que nos paream,considerando a ligao dos temas aos acontecimentos reais, tem sempre uma amplitude

    de carter geral e elevado. O caso particular, como ocorre freqentemente em

    Dostoivski, traz implcita a referncia a uma problemtica filosfica16. E neste

    sentido que consideramos com Pond17, a importncia para as Cincias da Religio, que

    no lugar de definir seus objetos possa infinitamente dar a palavra a essas pessoas

    religiosas, que constituem seu objeto, s sendo capaz de conhec-las medida que

    falem

    18

    . Assim, neste trabalho, procuramos tratar a filosofia da religio em Dostoivskicomo um testemunho, que nos revela no s uma poderosa crtica religiosa aos

    desdobramentos do atesmo moderno, mas ainda, ampliando nosso repertrio num

    dilogo consistente entre religio, educao e moral. Optamos ainda, por um percurso

    que neste captulo estar centrado na apresentao da alma russa at a gnese do

    romance Os Demnios, privilegiando os comentrios de Nicolai Berdiaev19, porque nos

    levar a problemtica principal das obras de Dostoivski: a liberdade inscrita na alma

    como um conceitual interno ao universo cristo. Neste universo a liberdade quando

    constrangida aos referencias humanos, que desconsidera a misericrdia divina,

    degenerar sempre no diablico20. 21

    14Afirmao de Nicolai Vassielevich Gogol (1809-1852) em carta a Vassili Zhukovski (1783-1852) apudAndreaei Arsensevich TARKOVSKIAEI, Esculpir o Tempo: Tarkovski, p. 55.15Cf. Fidor. Mikhilovitch DOSTOIVSKI,Memrias do Subsolo.16Ibid, p. 9.17Este trabalho tomou como ponto de partida as reflexes e os referenciais presentes em Luiz FelipePOND,Crtica e Profecia: a filosofia da religio em Dostoivski.18Ibid, p. 161.19 As transliteraes dos nomes russos vm, ocasionalmente, diferenciadas nas diversas publicaes,principalmente nas edies antigas e de traduo indireta. Neste trabalho optamos por manter os nomesdos autores de acordo com a obra referenciada.20

    Cf. Nikolai BERDYAEV, Slavery and Freedom, p.10.21As tradues de citaes diretas e indiretas neste trabalho so, salvo excees indicadas em notas, deresponsabilidade da autora.

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    1.1 O Esprito de Dostoivski

    Em seu ensaio O Esprito de Dostoivski22, que rene lies de seminrio

    consagradas ao autor, Nicolai Berdiaeff declara o papel decisivo que Dostoivski

    exerceu em sua vida espiritual. Compartilhamos com ele a posio: Desde sempre,

    dividiram-se para mim os homens entre os dostoievskianose aqueles a quem o esprito

    de Dostoivski era estranho23. E as perguntas que se colocam provocando nossa

    conscincia aps a leitura de suas obras passam a ter, certamente, relao com suas

    malditas questes eternas24.

    Dostoivski no foi somente um grande artista, ele , se no o maior, o mais

    poderoso escritor do sculo XIX e XX. Pois, sua obra constitui um marco entre dois

    sculos de literatura. Literariamente, tudo o que pr-dostoievskiano pr-histrico;

    ningum escapa sua influncia subjugadora, nem sequer os mais contrrios25.

    Carpeaux, neste mesmo ensaio, ainda afirma que em sua obra nada de arte pela arte,

    Dostoivski nos arrasta at as ltimas conseqncias. Como aceitar um poeta cujo

    pensamento nos abala?26.

    As exploses da humanidade reveladas por Dostoivski tm algo profundamente

    vivo e dinmico. Ele mergulha-nos todos os sentidos na sua atmosfera ardente; obriga-

    nos, anelantes, presos da vertigem, a costear o abismo da alma27. E tudo se d por

    baixo do vu de uma existncia trivial e cinzenta tornando ainda mais incrveis as faces

    de uma obscura condio humana. O encontro com os personagens de Dostoivski tem

    o impacto da vertigem caracterstica que nos captura quando nos aproximamos demais

    de um trem que segue na mesma direo. Somos atravessados por um sentimento de

    estranheza e grandeza, proximidade e rejeio, e por maior que seja nossa resistncia,

    no conseguimos seguir adiante como antes. No confronto com o enigma destes

    personagens somos confrontados com o enigma de nossas prprias vidas. Afinal, com

    quem nos deparamos? Esta a questo de Dostoivski.28Que nos abala e nos arrasta at

    as ltimas conseqncias.

    22Cf. Nicolai BERDIAEFF, O Esprito de Dostoivski.23Ibid, p. 5.24Fidor Mikhilovitch DOSTOIVSKI,Irmos Karamzov.25Otto Maria CARPEAUX, Ensaios Reunidos: 1942 1978, p. 167.26

    Ibid, p. 168.27Stefan ZWEIG, Trs Mestres:Balzac, Dickens e Dostoiewsky, p. 189.28Cf: Eduard THURNEYSEN,Dostoevsky: a Theological Study, pp. 7-14.

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    O aspecto espiritual da obra de Dostoivski nos mostra um verdadeiro Banquete

    do Pensamento, e aquele que permanece numa atitude ctica sobre a eficcia de todo

    pensamento condenado a uma existncia espiritualmente morna e reduzida. Ele

    descobre novos mundos onde somente os destinos humanos so inteligveis. E o acesso

    a eles no se d pela reduo formal a categorias congeladas, nem pela elaborao sobre

    conceitos esfriados. A sustentao de seu pensamento traz o sopro do esprito, luz que

    penetra os fundamentos do mundo, onde as idias impregnam-lhe a arte. As idias

    ocupam em sua obra um papel importante, e por sua extraordinria dialtica, que as

    idias vivem nele uma existncia em altssimo grau dinmica: oposio e combate, fogo

    e movimento. Toda idia em Dostoivski est ligada ao destino do homem, do mundo e

    de Deus. Determina estes destinos e traz oculta em si mesma a energia destruidora de

    sua prpria dinmica. E no se trata de um sistema abstrato, mas antes, de uma intuio

    artstica, um problema filosfico e intelectual, e principalmente, uma questo

    religiosa.29

    Florovsky30compreende que Dostoivski concentra em suas obras a grande crise

    religiosa de sua poca. Sua experincia pessoal e sua penetrao artstica compem um

    encontro ntimo que se traduz em trabalho criador. Ele foi capaz de exprimir todo

    mistrio de sua poca diagnosticando uma angstia religiosa ainda no identificada:

    diante do atesmo em processo ele penetra e compreende os desdobramentos religiosos

    que se dariam nos prximos anos e alcana assim, em profundidade e extenso, a

    experincia contempornea russa em sua totalidade. Dostoivski se prope uma busca

    interminvel sobre o destino ltimo dos homens, e toma como base sua observao

    contnua dos fatos concretos, das tramas cotidianas e banais, aparentemente ordinrias e

    estreis. Ele estuda a personalidade humana, para alm das caractersticas empricas e

    de suas interaes causais, visveis nos seus efeitos, mas analisa antes, as nuances

    perceptveis do esprito, ou melhor, as correntes misteriosas da vida primordial.

    Dostoivski estuda o homem a partir de sua maior problemtica, ou seja, a partir

    de sua liberdade, de onde dado a ele decidir, escolher, aceitar, rejeitar, e

    principalmente: a liberdade de aprisionar-se a si mesmo, e a de livrar-se a si mesmo da

    escravido. Importante enfatizar aqui, conforme nos alerta Florovsky, que a liberdade

    por ele compreendida no diz respeito quela meramente objetiva, mas antes, que esta

    29Cf. Nicolai BERDIAEFF, O Esprito de Dostoivski, pp. 7-11.30Cf. Georges FLOROVSKY,Ls Voies de la Theologie Russe, p. 288.

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    liberdade est inscrita no homem, inscrita como uma problemtica. Desde o incio de

    sua carreira suas obras perseguem a revelao desta misteriosa antinomia da liberdade

    humana. Toda a significao do homem reside justamente nesta liberdade: liberdade da

    vontade, ou vontade de ser si mesmo que deve passar justamente pela renncia deste si

    mesmo31. E mais: que esta vontade de ser si mesmo pode degenerar em autodestruio.

    Este um dos temas mais ntimos e caros a Dostoivski. Ele representa uma

    manifestao criadora sem precedentes, o homem tomado em toda profundidade e tem

    todos os abismos espirituais descobertos. Nele toda literatura russa atinge o mais alto

    grau de tenso: expondo os abismos como uma ferida torna o destino humano doloroso.

    Mas neste destino humano doloroso o homem est vivo e volta a ser com ele uma

    criatura religiosa.

    Suas reflexes o levam a considerar que inegavelmente a unidade inicial entre

    Verdade, Bem, e Beleza haviam cado e que os princpios que governam conhecimento,

    tica e esttica somente so integrados nos princpios religiosos. Quando cada rea da

    atividade humana se torna autnoma manifesta assim sua ambigidade. Se por um lado

    o corao humano encontra beleza at no ideal de Sodoma32que compartilhado pela

    imensa maioria das pessoas, por outro, o senso de incomensurabilidade e infinito so

    necessrios aos homens.

    Muitas coisas esto ocultas de ns neste mundo; em compensao,temos a sensao misteriosa do liame vivo que nos prende ao mundoceleste e superior, as razes de nossos sentimentos e de nossas idiasno esto aqui, mas em outra parte [...] quando esse sentimento seenfraquece ou desaparece, o que havia brotado em ns perece.Tornamo-nos indiferentes vida, sentimos mesmo averso por ela.33

    Sem a imortalidade e a sensao misteriosa do liame vivo que nos prende aomundo celeste o crculo fechado da condio humana no pode ser ultrapassado. Se

    nada existe acima do homem, o homem tampouco existe. Atormentado por sua solido,

    num mundo hostil e aparentemente absurdo o homem demite-se e busca a evaso por

    searas mais consoladoras. Numa ambincia onde o atesmo tomado como ponto de

    partida a inquietao diante da morte nada mais diz aos homens. Simplificado e aliviado

    31

    Cf. Mt 10, 37-39. BBLIA DE JERUSALM. 7 Impresso. So Paulo: Paulus, 1995.32Cf. Fidor Mikhilovitch DOSTOIVSKI,Irmos Karamzov, p. 123.33Ibid, p. 328.

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    de toda investigao ele deixa de sentir a necessidade de Deus. E se v em dificuldade

    diante da tica, da experincia de auto-conhecimento que pressupe uma correlao

    entre ele e o mundo, porque foge do tormento pelo anseio de atingir algo que est fora

    dele mesmo. A intangibilidade de fuso, percebida como insuficincia do prprio eu, se

    mostra como fonte perptua de dor e insatisfao humanas.

    A Rssia no se pode pela razo entend-la,

    Nem medi-la por um comum estalo:

    Tem ela sua prpria configurao

    A Rssia, s pela f se pode apreend-la.34

    Berdiaeff afirma que um grande escritor uma manifestao completa do

    esprito e como tal deve ser tomado em sua unidade35, unidade somente passvel de

    penetrao seno incorporando-se nela, vivendo-a. Considerando Dostoivski como

    homem de gnio, alto fenmeno espiritual, no se deve ceder a inclinao de trat-lo

    com um bisturi, suspeitando nele alguma anomalia oculta. Deve-se antes seguir

    Dostoivski pelo caminho dos crentes, mergulhando em suas idias dinmicas. Em sua

    unidade, Dostoivski especificamente russo, e sua obra uma interpretao russa douniverso. Ele reflete todas as contradies e antinomias do povo russo, sendo que, a

    arquitetura espiritual da alma russa pode ser seguida e estudada em sua obra. E eis aqui

    a causa de tanto interesse e estranhamento que provoca nos ocidentais: procuram nele

    uma revelao de ordem geral com base nas questes to enigmticas do mundo

    Oriental russo. Compreender Dostoivski assimilar parte essencial da alma russa, do

    segredo da Rssia.

    1.2 A Idia Russa: a arquitetura espiritual da alma, o pensamento em busca

    de salvao

    A imagem da idia Russa fala de uma viso de mundo muito estranha para ns e,

    difere ainda das vrias maneiras que a histria recente nos levou a imagin-la. Ela

    34Titchev, apud Joseph FRANK,Dostoivski: os anos milagrosos, 1865-1871, p. 26.35Nicolai BERDIAEFF, O Esprito de Dostoivski, p. 12.

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    intensamente espiritual, apocalptica e escatolgica36. E, ao mesmo tempo,

    profundamente pessoal, de uma personalidade mergulhada na experincia, que fala por

    uma nica voz de um corao a outro. As vozes da Rssia so compreendidas pela idia

    de Sobornost37, unio/ comunho/ conciliao, de uma maneira tambm que no nos

    usual, pois considera todos os seres humanos no como entidades materiais, naturais,

    mas antes, imagens espirituais do divino. E neste sentido, Florovsky38 afirma que

    Dostoivski entra para histria da filosofia russa no por construir um sistema, mas por

    ter ampliado e aprofundado a experincia metafsica em si mesma. Sobre a realidade da

    Ortodoxia sustentada sua pesquisa acerca de uma realidade viva. A realidade da

    Sobornostse encontra particularmente patente sobre a dialtica de sua imagem viva, que

    mais que pura idia. Ele revela com excepcional potncia a profundidade ltima dos

    temas religiosos e da problemtica espiritual de cada aspecto da vida humana. E suas

    revelaes vm particularmente ao ponto que as circunstncias agitadas presentes na

    Rssia dos anos 1870.

    36Apocalptico derivado de Apocalpse, a palavra grega para Revelao e o nome do ltimo livro daBblia. Neste sentido, Apocalptico se refere ao complexo de idias associadas ao fim iminente da histria

    e aos eventos catastrficos que isto acarreta comportando ainda nfases diferenciadas. Pode serreconhecido como apocalptico porque relata o fim da histria, assim como, na medida em que descreveuma revelao ou atividade sobrenatural de poder anglico ou demonaco. Apocalptico, numa conceposcholar moderno, est tambm em correlao com outros termos (milenarismo, messianismo),especialmente Escatologia(eschaton, literalmente doutrina da coisa ltima) que trata do cumprimentoda histria e da criao nos termos da salvao. No s no sentido de acabamento, mas antes, departicipao na vida eterna. (Cf. John J. COLLINS (Ed.), The Origins of Apocalypticism in Judaism andChristianity.) Os dois termos podem ter sentido intercambivel e com uso onde as nuances precisas sodadas de acordo com a inferncia dos autores e do contexto. Neste sentido, este trabalho mantm osparmetros da terminologia encontrados nos textos dos comentadores especialistas na ortodoxia russa eem Dostoivski e sero mais bem esclarecidas ao longo do texto. Sobre a Escatologia ortodoxa, nosomente russa, encontramos em John Mcguckin uma preciosa indicao sobre uma tradio que vai almdos textos bblicos e tem na figura de Cristo o Pantocrator (figura que organiza o mundo): [...] A

    teologia ltima aquela do Julgamento quintessencial onde o carter imponente profundamenteconhecido no mistrio da piedade de Deus. A piedade de Deus em si imponente. A experincia desteabismo da piedade faz a alma arder para a pessoa viva que estuda o evangelho vivo de Cristo, etambm, nos ensinamentos da Igreja sobre sua iconografia, e ser para os mortos em seu julgamento. Apiedade de Deus arde e fere, mas tambm purifica os coraes egostas das criaturas. Escatologia assim a esperana por nossa cura, e nossa reconciliao em comunho. (Apud. Carl E. BRAATEN;Robert W. JENSON (Ed.), The Last Things: biblical and theological perspectives on eschatology, pp.124-125.)37Os Orientais expressam de maneira peculiar a dimenso catlico-sobornajaeucarstica e eclesiolgica.A igreja definida menos por suas relaes jurdicas e mais pelo mistrio da comunho que tem naTrindade a fonte, forma e meta. A dimenso desta catolicidade da Igreja foi especialmente desenvolvidapelos filsofos religiosos russos, principalmente Khomiakov, que a partir do conceito de sobornostcompreendida como unanimidade espontnea no amor buscaram um modo particular de sua realizao.

    (Cf. Volodemer KOUBETCH, Da Criao Parusia: Linhas Mestras da Teologia Crist Oriental, pp.115-116)38Cf. Georges FLOROVSKY,Ls Voies de la Theologie Russe, p. 292.

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    A histria lendria da Cidade Invisvel de Kitzh uma metfora que sugere

    bem esta imagem da idia Russa. Quase esquecida, a histria comea com Prncipe Yuri

    Vsevolod, que subiu ao trono da Rssia kievana em 1163:

    O Prncipe Yuri Vsevolod vai at o Prncipe MichaelChernikovski solicitar permisso para construir igrejas em todas ascidades da Rssia. Com a permisso concedida viajou pelas terras deNovgorod, Pskov, Moscow, Rostov, fundando fortificaes e casas deDeus. Finalmente chega a Jaroslav, e desce o Volga at a Floresta deMurom chegando a cidade da Pequena Kitzh, onde tambm fundouuma igreja. Da Pequena Kitzh, o Prncipe Yuri Vsevolod realizouuma jornada cruzando quatro rios, at o Lago Svetlojar, onde diantede uma floresta de carvalhos sagrados, ordenou que fosse ali levantadauma magnfica cidade, a Grande Kitzh. A construo desta perfeita

    cidade-comunidade, onde as virtudes da hospitalidade e concrdiaeram primordiais, terminou em 30 de setembro de 1168. Mas, apseste perodo aconteceu a invaso selvagem dos Trtaros, sob ocomando de Khan Batu, neto de Genghis Khan. Isto foi em 1239. OsRussos bateram em retirada de volta a Pequena Kitzh. Mas ocaminho a Grande Kitzh foi descoberto. O Prncipe Yuri Vsevolodfoi morto. Os Trtaros avanaram. De acordo com alguns relatos adestruio da brilhante cidade de Kitzh se viu refletida na claridadedo lago. Mas de acordo com outros relatos, a cidade e todos os seushabitantes desapareceram superfcie abaixo do Lago Svetlojar ouascenderam s alturas celestiais. A cidade, a comunidade da GrandeKitzh foi ento suspensa e protegida pela mo de Deus algunsdizem que foi coberta pelo manto da Me de Deus. Tornou-seinvisvel, mas voltar a ser visvel novamente, como a NovaJerusalm, quando Cristo retornar.39

    A idia Russa, a arquitetura espiritual de sua alma, a busca pela Grande Kitzh

    invisvel. Seu sofrimento e medo, sua compaixo e amor, complexidade e unidade so

    guiadas pela necessidade profunda de visitar a cidade e torn-la visvel. Na histria dos

    grandes pensadores russos do sculo XIX e XX podemos escutar em ecos distantes

    como caminhar em direo a uma verdadeira comunidade de corpo, alma e esprito. E

    so nos grandes romances de Dostoivski que, de acordo com Florovsky40, encontramos

    consagrada esta idia do retorno f. Ele foi um observador muito sensvel da alma

    humana permanecendo sempre num otimismo cristianamente orgnico. Sua percepo e

    esperana por uma fraternidade orgnica dificilmente poderia ser arrancada de uma

    frmula. E certo que Dostoivski jamais sucumbiu a uma tentao organicista, a uma

    39Nikolai BERDYAEV, The Russian Idea, p. 11.40Cf. Georges FLOROVSKY,Ls Voies de la Theologie Russe, p. 191.

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    utopia que persistia na idia de uma soluo histrica das contradies da vida. A

    histria se revelava a ele como um apocalipse ininterrupto, ou melhor, como uma

    questo que encontraria soluo no Cristo. Reencontro com Cristo pela f: a verdade do

    Deus-homem. Verdade que acabaria antes por revelar um sonho, o homem-deus. A

    histria que interessava a Dostoivski dizia respeito a um pressentimento por uma

    catstrofe iminente que persistia como ansiedade humana, um alarme particular na

    angstia dos descrentes.

    Berdyaev afirma que a questo da definio do tipo nacional russo, e da

    individualidade deste povo, uma questo de extrema dificuldade. Dificuldade, pois

    impossvel de ser realizada num sentido cientfico estrito. Para ele, e para Dostoivski, o

    mistrio desta individualidade somente revelado no amor, e em ltima instnciaexistir sempre algo incompreensvel (invisvel) no final. Berdyaev vai alm e coloca

    como questo central, que o interessa na obra e que seguiremos nesta parte da

    pesquisa41, uma investigao sobre os acontecimentos da Rssia. Mas uma investigao

    pouco interessada numa perspectiva meramente emprica. A ele interessa mais uma

    outra questo: qual foi o plano do Criador para a Rssia, e como chegar a uma pintura

    do povo russo tomada desta idia. Na poesia de Tyutchev42 esta questo j est

    colocada: a Rssia no se pode apreender por processos intelectuais, no se pode medi-

    la com um metro ordinrio, ela tem estatura e forma prpria. S se pode acreditarna

    Rssia. Faz-se necessrio trazer a luz suas virtudes teolgicas e de f, de esperana e

    caridade, se quisermos compreend-la.

    Os russos so um povo polarizado no mais alto grau, so um conglomerado de

    contradies que nos levam a ser por eles seduzidos ou desiludidos. O inesperado

    sempre o que deve ser deles esperado e so capazes de inspirar tanto o amor intenso

    como o dio violento. Enquanto povo, os russos causam um efeito perturbador sobre os

    povos ocidentais. Em relao a esta polarizao e inconsistncia s encontra paralelo

    com os judeus, e no mero acaso que encontramos precisamente nestes dois povos

    uma vigorosa conscincia messinica. A inconsistncia e complexidade da alma russa

    pode ser ainda atribuda sobreposio e influncia mtua de dois extremos do mundo

    41 Sobre a idia russa acompanharemos a obra: Nikolai BERDYAEV, The Russian Idea, pp. 7-50.Embora um pequeno trecho desta obra encontra-se traduzido por Jos Verssimo Mata e Elena Vssina,com reviso de No Silva, optamos pelas tradues de nossa responsabilidade.(Cf. REVISTA DE

    ESTUDOS ORIENTAIS. So Paulo, n 4, ago. 2003. Departamento de Letras Orientais da Faculdade deFilosofia, Letras e Cincias Humanas. USP, pp. 213-222).42Fidor Ivanovitch Tittchev (18031873), grande poeta da noite elemental.

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    percebendo a si mesmas no mundo, e apesar da ausncia de liberdade exterior, a

    liberdade interior e de pensamento grande entre elas. Outra particularidade expressiva

    a falta prolongada do Iluminismo na Rssia, a ausncia de ligaes orgnicas com as

    grandes culturas do passado antes de Pedro o Grande46. Devemos levar em considerao

    em sua histria que a fora, e resistncia, caracterstica da Rssia permaneceu durante

    longo tempo como uma condio em potencial e no em estado de realizao. O povo

    russo viu suas foras esmagadas na medida em que o Estado as requeria para defesa de

    suas expanses e conquistas. Os pensadores russos do sculo XIX, que refletiam sobre o

    destino da Rssia e sua vocao, sempre levaram em considerao esta potencialidade e

    sua falta de expresso, esta falha na atualizao das foras de seu povo como uma

    promessa de grandioso futuro. Eles acreditaram que no decorrer do tempo a Rssia

    colocaria suas palavras para o mundo revelando-se a si mesma.

    O atraso provocado pela dominao Trtara argumento aceito de maneira

    generalizada. Mas a subjugao Bizantina, ao mesmo tempo, trouxe a Rssia um carter

    tradicional e conservador. O dinamismo explosivo e extraordinrio das camadas

    intelectuais do povo russo somente foi revelado aps o contato com o Ocidente

    promovido pelas reformas de Pedro o Grande47. Herzen48 disse que o povo russo

    respondeu s reformas de Pedro com o aparecimento de Pchkin49. Berdyaev

    46Piotr Alexeievitch Romanov (1672-1725); Tsar Pedro I da Rssia que reinou no perodo de 1682-1725.47 A Rssia esteve em guerra na maior parte do tempo que durou o reinado (1672-1725) de Pedro oGrande, fato que determinou amplamente a natureza, o alcance e o xito das atividades do tsar comoreformador movido pela questo fundamental - desde sempre - na histria do esprito russo: a relaoOriente e Ocidente. Pedro imps transformaes que visavam secularizao do Estado e da sociedadenos moldes Ocidentais concentrando esforos no somente numa aproximao, mas antes, com o objetivode colocar a Rssia em posio de competio com o Ocidente. As reformas abrangeram todas as reas daorganizao do Estado e da cultura em geral (poltica, industrial, econmica, tributria, educacional,militar, artstica, de instituio do novo Quadro de Hierarquias e das relaes com a Ortodoxia).

    Inaugurando uma nova disciplina de modernizao que tinha poucas conexes com a tradio russa,Pedro foi um ocidentalista e, como marco desta nova orientao fundou So Petersburgo em 1703, a novacapital do imprio, onde Cismava ele:/ [...] Rasgar aqui uma janela/ Para a Europa, os ps fincar(Aleksandr Sergueievitch PCHKIN, O Cavaleiro de Bronze e outros Poemas, p. 35). Todas asmodificaes empreendidas em seu reinado constituem terreno frtil para questionamentos realizados nosculo XIX, onde o paralelismo Ocidente Oriente foi acentuado e percebido em termos absolutos nasrelaes entre Ocidentalistas e Eslavfilos. Cf. Lionel KOCHAN,A Formao da Rssia Moderna.48Aleksandr Ivanovich Herzen (1812-1870). Escritor poltico russo que desenvolveu fundamentalmentedurante sua vida a tese do poder terrvel das abstraes ideolgicas sobre as vidas humanas. Afirma quequalquer tentativa de explicar a conduta de seres humanos, ou coloc-los a servio de abstraes,terminam sempre num mutilamento humano, e ainda, na vivisseco poltica em escala crescente. Cf.Isaiah BERLIN, Pensadores Russos, p. 199.49Aleksandr Sergueievitch Pchkin (1799-1837), poeta, prosador, dramaturgo, considerado o fundador da

    literatura russa moderna. Em vrias obras Puchkin mantm aberta a ambigidade da figura e dos feitos dotsar Pedro. O enigma acerca do destino em que fora lanada a Rssia pode ser acompanhada no poema OCavaleiro de Bronze: Conto de Petersburgo (1833): , alto Csar do destino!/ No foste tu que sobre o

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    complementa dizendo que no somente com Pchkin, mas tambm com o aparecimento

    dos Eslavfilos e de Dostoivski50, e de todos aqueles que buscavam a verdade.

    Respondeu com o nascimento do pensamento russo original. Os grandes escritores

    russos do sculo XIX no realizaram suas obras no seio de uma abundncia criativa,

    mas antes, de uma sede de salvao de seu povo, da humanidade e de todo o mundo;

    sobre o sofrimento, a injustia e a escravido do homem. Os temas que seguem a

    literatura e o pensamento deste perodo so cristos, mesmo que os prprios escritores

    rejeitem o cristianismo. Dizem respeito criao no de uma cultura perfeita, mas sim,

    a criao de uma nova vida. A literatura russa assume um carter moral e religioso, mais

    que qualquer outra literatura no mundo.

    1.3 AIntelligentsiaRussa: testemunho de uma poca

    No bojo reativo que se seguiu ao fracasso da revoluo de 182551uma diminuta,

    porm influente, elite intelectual canaliza seu idealismo social para uma busca

    religiosamente devotada da verdade. Buscavam compreender o caos que os rodeavam

    levando idias e conceitos at suas concluses mais extremas e mesmo absurdas. Uma

    busca por absolutos que se inicia por uma recusa radical de absolutos, num processo de

    sofrimento e despojamento, que visava libertao interior de todas as reconfortantes

    iluses que justificavam o sufocamento moral e social. Este movimento levou a uma

    abismo,/ Nas alturas com rdeas de ferro,/ Fizeste a Rssia empinar-se?. (Aleksandr SergueievitchPCHKIN, O Cavaleiro de Bronze e outros Poemas, p. 69).A inscrio histrica e literria que o Projeto So Petersburgo inaugurou para a vida moderna pode serencontrado em: Marshall BERMAN, Tudo que Slido Desmancha no Ar: a aventura da Modernidade,pp. 197-319. E tambm em: Solomon VOLKOV, So Petersburgo: uma histria cultural.50

    clebre a aluso de Dostoivski, ou melhor, de seu anti-heri do subsolo, sobre a cidade de SoPetersburgo: [...] a cidade mais abstrata e meditativa de todo globo terrestre. (Fidor. MikhilovitchDOSTOIVSKI,Memrias do subsolo, p. 18). E nas anotaes do romance Os Demnios: Somos umaconseqncia de Pedro o Grande (Fyodor DOSTOEVSKY, The Notebooks for The Possessed, p. 357).51Episdio que teve seu pice em 14 de dezembro de 1825, uma insurreio de So Petesburgo, que ficouconhecido como levante Decembrista. Foi uma tentativa frustrada de derrubar o tsar Nicolau I que ecoaatravs de toda historiografia russa e da literatura. Esta conspirao contou com o envolvimento direto decerca de trezentas pessoas, a maior parte composta de oficiais de menores patentes das Guardas e danobreza inferior. Mas a quantidade de simpatizantes foi considervel. Dostoivski relata tambm esteepisdio emRecordao da Casa dos Mortos: [...] Os exilados de outros tempos (melhor dizendo, noeles mas suas mulheres) cuidaram de ns como se fssemos de suas famlias. (Fidor. MikhilovitchDOSTOIVSKI,Recordao da Casa dos Mortos, p. 319). Aleksander Herzen apontou a moral destaprimeira tentativa de revoluo como inspiradora das convices posteriores porque, segundo Charques:

    O destino dos decembristas ao enfrentar a autocracia, criou um martirolgico popular e uma mensagemde ao para os movimentos revolucionrios que se lhe seguiram. (Richard Denis CHARQUES,Pequena Histria da Rssia, p. 197)

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    assentado de acordo com as categorias de ortodoxia e heresia. A atrao por Hegel tinha

    caractersticas de influncia religiosa e assumiu tamanha proporo que se esperava dela

    a resoluo das questes de f da Igreja Ortodoxa.

    Cismas, apostasias, vagabundagem ou andarilhos de So Petersburgo,impossibilidade de reconciliao com a realidade que se apresentava, a busca por um

    futuro em direo a uma vida melhor e acertada, estas so questes caractersticas deste

    perodo. A Intelligentsia foi recrutada de vrias camadas sociais ao longo de vrios

    estgios de existncia: os suprfluos, nobres arrependidos e revolucionrios de ao.

    Iluminismo, pensamentos utpicos, niilismo e o esprito revolucionrio esto presentes

    na histria deste despertar da conscincia. Histria que no somente tradicional ou

    conservadora; a falta de base sob os ps constitui em si um tipo de base, e a revoluofaz parte do curso desta histria. Quando na segunda metade do sculo XIX a esquerda

    da Intelligentsia tomou sua forma final, a tomou sob caractersticas de uma ordem

    monstica e, neste processo, as razes Ortodoxas firmemente presentes na alma russa

    vieram luz: sada do mundo, ascetismo, capacidade para o sacrifcio e a resistncia ao

    sofrimento. E foi nesta forma que se apresentou em conflito com o imprio e com o

    poder do Estado.

    O pensamento russo esteve sempre voltado para a transformao, a recogniosobre o que vir e que passando por vrias mos modificada no percurso. A

    criatividade dos russos busca uma vida ideal, no uma vida perfeita. uma aspirao

    que parte da reprovao sobre a vida atual e no meramente uma rejeio. Os prprios

    russos se classificam em apocalpticos e niilistas54, uma mesma tendncia excessiva de

    levar as coisas at seu termo. Tal disposio de alma embaraa o trabalho histrico de

    um povo e a elaborao de valores culturais. Na Rssia no h cultura mdia, nem

    quase tradies culturais, ao contrrio, quase todos os russos so niilistas. Porque para

    54 Niilismo: Termo de semntica instvel largamente usado na poca de Dostoivski. Descreveprincipalmente as aes radicais da gerao de 1860 que pretendiam realizar a transformao do mundotendo como base o materialismo, o utilitarismo e o cientificismo. Se por um lado, o sentido literal dapalavra presume a ausncia de todo valor ou sentido, em sua manifestao russa pela gerao de 1860toma corpo com base numa enorme f no poder da cincia. As questes humanas eram compreendidas damesma maneira que qualquer outra questo relativa natureza com base nas cincias naturais. O homempassa a ser compreendido como organismo natural e no possuidor de nenhuma outra natureza que serevela por si mesma. Alexander Herzen descreveu os niilistas como sendo aqueles que aplicam osmtodos de laboratrio na vida. A atitude niilista buscava ainda a emancipao pessoal, sendo que, todasas instituies vistas como barreiras realizao de todo potencial individual deveriam ser destrudas.Dostoivski no via o niilismo como um fenmeno meramente histrico, mas antes, como uma questomoral e religiosa. Nela a experincia da liberdade deve justamente passar pela semelhana com o Nada,

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    eles a cultura no resolve os problemas finais, a evaso para fora sim, fortifica o meio

    humano. Na organizao da humanidade segundo o estatuto buscado pelos pensadores e

    escritores deste perodo, a cultura representa mais um obstculo ao movimento de

    desfecho. Contrariamente aos ocidentais que se esforam na organizao formal do

    mundo, os russos num salto, procuram imediatamente a concluso. Porque a eles a

    forma pressupe medida, estabelece limites, que rejeitado tanto por apocalpticos

    como por niilistas.

    Dostoivski levou at o fundo o estudo desta dupla tendncia, denunciando este

    pendor excessivo. Levou ainda adiante o estudo das faculdades revolucionrias de

    reao e o destino histrico da Rssia justificou sua profecia: a revoluo se realizou em

    larga medida segundo Dostoivski. Mesmo destruidora e assassina, nem por isso deveser considerada menos russa e nacional. A autodestruio e a autoconsumao so na

    Rssia traos nacionais.55 E neste sentido, h de se indagar em que medida sua arte

    original pode ser considerada realista56. Ele mesmo considerava seu realismo como

    prprio da vida e no no sentido que toma a crtica oficial. Consideramos com

    Berdyaev57, que toda arte original exprime uma realidade profunda, que ultrapassa a

    realidade emprica, sem dela nada perder. Dostoivski mergulha na realidade profunda,

    no universo espiritual, porque para ele, as formas exteriores da vida no so realidades

    ltimas. A realidade ltima so as relaes do homem com Deus, do homem com o

    diabo, onde os seres comungam por liames misteriosos, determinados desde toda a

    eternidade. Todos os conflitos que encontramos em seus personagens exprimem no

    uma realidade meramente objetiva, mas antes, a realidade interna, o destino interior dos

    humanos. E, neste sentido, consideraremos o realismo de Dostoivski como um

    realismo religioso.58

    onde a projeo de uma idia de homem e de humanidade que nega a realidade do mal e do pecado leva aexperincia da prpria decomposio. (Cf. Kenneth LANTZ, The Dostoevsky Encyclopedia, pp. 279-282)55Cf. Nicolai BERDIAEFF, O Esprito de Dostoivski, pp. 16-17.56 A literatura russa realista considerada notvel pela sua viso especial que apresenta acerca daemancipao moral e intelectual antecipando as experincias do sculo XX. Perodo indicado entre 1855-1880 que inclui Dostoivski. Cf. Charles A. MOSER, Cambridge History of Russian Literature, pp. 248-332.Encontramos ainda uma antologia que rene um vasto estudo compreendendo histria, literatura, artes earquitetura em: Nicholas RZHEVSY, The Cambridge Companion to Modern Russian Culture.57Cf. Nicolai BERDIAEFF, O Esprito de Dostoivski, pp. 23-30.58Na virada do sculo XIX para o sculo XX surgiu no idioma russo uma nova palavra: dostoivschina.

    Este vocbulo caracteriza um estado complicadssimo da alma humana, um caso de conscincia semsoluo aparente para paixes, vcios, virtudes e abnegaes. Chostakvski afirma que se a pronnciafosse mais fcil acabaria por ganhar uso universal porque Dostoivski, e os problemas que se apresentam

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    revoluo. Ele o homem do apocalipse, encarna o destino do nmade que considerava

    to caracterstico de sua terra. Difere dos Ocidentalistas e dos Eslavfilos por suas

    idias sobre a Rssia em geral. Ele um escritor de seu pas, literato que vive do seu

    trabalho, fora da literatura ele no concebe nada. Seu destino melanclico encarna o

    destino dos escritores da Rssia.

    Seu grande romance Os Demnios foi escrito num perodo identificado por

    Frank62como Os Anos Milagrosos: 1865-1871. Se por um lado foi um perodo pacfico

    e pouco excitante, comparado a poca anterior de sua vida, quando foi detido por

    conspirao poltica e exilado na Sibria, por outro, quando conhecemos as condies

    em que viveu nos parece incrvel o fato de ter sido capaz de produzir tantas obras

    primas a uma tal velocidade. Neste perodo ele enfrentou uma pobreza insuportvel,mudanas de residncia e foi acometido por vrias crises epilticas63que o deixavam

    incapacitado para o trabalho por vrios dias. Foi ainda o perodo em que se casou pela

    segunda vez com Anna Grigorievna, fevereiro de 1867, e saiu da Rssia em seguida

    fugindo de credores e familiares gananciosos, vivendo obscuramente na Alemanha e

    Sua at 1871 quando retornou a Rssia.

    1.5 Os Demnios: do panfleto ao poema trgico

    O ltimo perodo de residncia no exlio europeu do casal Dostoivski foi em

    Dresden, meados de 1869, marcado por uma intensa saudade da Rssia, da mesma

    maneira que por uma insuportvel dificuldade financeira. O que tornava a possibilidade

    de retorno um fantasma fugidio. A distncia da Rssia ainda prejudicava a conduo

    dos negcios literrios que estavam entregues a intermedirios, nem sempre confiveis,

    62Joseph Frank, professor emrito das Universidades de Pinceton e Stanford em Literatura Comparada eLiteratura em Lngua Eslava. Publicou uma monumental biografia de Dostoivski em cinco volumes,sendo que, quatro deles encontram-se traduzidos em portugus e publicados pela Edusp63A maior parte das crises aconteciam a cada trs semanas de intervalo, mas durante o perodo em quetrabalhava em Os Demniosa freqncia aumentou incrivelmente. Assim como, os efeitos posteriores dores de cabea, pensamento embotado, nervos abalados, fraqueza, tremores, permanncia num estadoquase contemplativo que duravam pelo menos seis dias. Nestes perodos Dostoivski no conseguiatrabalhar e sua misria era por ele percebida como pessoal e geral. A temperatura climtica elevada, suasade, o trabalho e a guerra Paris estava sob domnio prussiano contribuam para manter Dostoivski

    sob domnio da penria, onde sua sade se encontrava em estado to desesperador quanto suas finanas.Encontramos nos cadernos de notas do perodo vrias anotaes sobre as crises epilticas de Dostoivski.Cf. Fyodor DOSTOEVSKY, The Notebooks for The Possessed, pp. 2-4, 28-34.

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    Ivnov por um grupo de revolucionrios secretos liderado por Serguiei Nietchiev. Os

    motivos de tal acontecimento continuam at hoje em discusso. Mas o fato foi tomando

    os estudos de Dostoivski e encontramos em suas anotaes rascunhos escritos

    anteriormente ao acontecimento, mas que passam a apresentar novos esboos onde

    discernimos claramente traos de Stiepan Trofmovitch Vierkhovinski, Mria

    Lebidkina, um Professor e o Prncipe. Estes dois ltimos marcados por traos morais

    diferenciados, suscitando inveja e morte, j levantam a questo do conflito de geraes.

    O cenrio tambm j est demarcado: uma sociedade provinciana, tranqila, atrasada e

    pacfica que ser infiltrada por ideais niilistas. O aparecimento da figura de Nietchiev

    em seus esboos foi tomada da leitura assdua e nostlgica da imprensa russa.

    Dostoivski identificava ainda que em ltima instncia a gerao de 1840 eraresponsvel pela perverso da juventude russa, capaz agora dos crimes mais atrozes

    pelo bem da revoluo. Gerao do prprio Dostoivski, Bielinski, Herzen, Baknin,

    Turguniev e Granvski72. Este tipo russo, Dostoivski acolhe e retrata como sendo

    liberais idealistas, superficiais, sem objetivo, incapazes de esforo genuno, impotentes,

    mas que acreditam que devem ser colocados num pedestal. A gerao niilista de 1860

    uma conseqncia direta destes puros de corao, que se recusam a reconhecer a

    prole, pois recusam as responsabilidades decorrentes do culto prestado ao Ocidente. O

    conflito de geraes est aqui delimitado e o personagem Stiepan Trofmovitch no

    sofre maiores alteraes. O Prncipe tambm vai ganhando contornos decisivos, deve

    aparecer como um novo homem, personagem enigmtico, talvez louco. E trgico, que

    diante da incapacidade de acreditar em seu renascimento promove sua prpria

    destruio. Um homem entediado, produto do sculo russo, sabe como ser ele mesmo e

    organizao poltica clandestina chamadaJustia Sumria do Povo que dirigiu com mo de ferro. Autorde um catecismo revolucionrio, que no exerccio de poderes ditatoriais sobre os membros do pequeno

    grupo que lidera, forjou um instrumento clssico de conspirao e terror, de onde derivou uma tcnicaaperfeioada na implicao de grupos, ou pessoas, numa culpa comum. Em 1869 conhece e ganha asimpatia de Bakunin, e usa e abusa desta estreita ligao. Em 21 de novembro de 1869, como resultadode atritos que provoca com vrios dos membros de sua organizao, executa Ivanov com a ajuda de seuscompanheiros. Estes so presos, a organizao dissolvida e Nietchiev foge para o estrangeiro. Oacontecimento causa grande comoo na Rssia e fortes discusses em amplos crculos daintelectualidade local e europia. A imprensa russa d larga cobertura ao acontecimento e ao processo queocorreu em 1871, sendo ainda, o primeiro processo por crime poltico por ela debatido. (Cf: RichardDenis CHARQUES, Pequena Histria da Rssia, p. 242). E ainda, posfcio de Paulo Bezerra em: Fidor.Mikhilovitch DOSTOIVSKI, Os Demnios, pp. 689-691.72Vissarion Grigrievitch Bielinski (1811-1848), crtico literrio, iniciador da corrente da Escola Natural.Aleksandr Ivanovitch Herzen (1812-1870), escritor poltico, pai do socialismo russo.Mikhail Aleksandrovitch Bakunin (1814-1876), idelogo do anarquismo.

    Ivan Sergueievitch Turguniev (1818-1883), escritor, autor de Pais e Filhos.

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    na literatura. Eu tomo Tkhon Zadonski como este carter ideal. Ele tambm bispo

    que viveu em retiro no mosteiro. Comparo o heri de meu romance com ele e os coloco

    em contato por um tempo79. Como Stavrguin cresceu em estatura Piotr deve ser

    recolocado como impostor insinuante, de fala rpida e falaz, um canalha perigoso e

    meio cmico que tambm gravita em torno de Stavrguin.

    Os Demniosadquire ento caractersticas de um poema trgico sobre os males

    morais e espirituais que chegam ao clmax com o aparecimento de Nietchiev e seus

    cmplices. Explicando como via seu romance que estava comeando a reescrever,

    Dostoivski fornece uma indicao valiosa pela qual Stavrguin ser relacionado com

    as outras personagens do romance, indicao que aparecer na epgrafe do grande

    romance:

    Jesus perguntou-lhe: Qual o teu nome? Legio, respondeu,porque muitos demnios haviam entrado nele. E rogavam-lhe que noos mandasse ir para o abismo.Ora, havia ali, pastando na montanha, uma numerosa manada deporcos. Os demnios rogavam que Jesus lhes permitisse entrar nosporcos. E ele o permitiu. Os demnios ento saram do homem,entraram nos porcos e a manada se arrojou pelo precipcio, dentro dolago, e se afogou.

    Vendo o acontecido, os que apascentavam os porcos fugiram,contando o fato na cidade e pelos campos. As pessoas ento sarampara ver o que acontecera. Foram at Jesus e encontraram o homem,do qual haviam sado os demnios, sentado aos ps de Jesus, vestido eem so juzo. E ficaram com medo. As testemunhas ento contaram-lhes como fora salvo o endemoniado. E toda a populao do territriodos gerasenos pediu que Jesus se retirasse, porque estavam com muitomedo. E ele, tomando o barco voltou.

    Lc: 8, 30-3780

    Dostoivski em carta a Mikov81

    , afirma que os fatos provaram que a doenaque acometeu os russos instrudos de sua gerao era muito mais virulenta que

    imaginavam. E que o que acontecia naquele momento foi atestado por So Lucas. Ele

    queria muito que a Rssia fosse curada da mesma maneira, mas sabia que a esperana

    era uma possibilidade remota, somente visvel, quando muito, aos olhos de profetas

    como Mikov e ele prprio. O que ele viu por toda parte, e que seria apresentado em seu

    romance, era a infeco e auto destruio, e no a purificao. Os demnios saram do

    79Fyodor DOSTOEVSKY, Fyodor Dostoevsky: Complete Letters 1868-1871, p. 276.80BBLIA DE JERUSALM. 7 Impresso. So Paulo: Paulus, 1995.

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    Enfermeira/ Dacha como serva submissa e obediente ao Prncipe; e a Liza com seu

    amor e dio apaixonado pelo Prncipe. Na maior parte das anotaes Dostoivski

    trabalha na intriga romntica, ao final em Kirllov. Stavrguin concebido com muito

    esforo de sua parte e Granovski com facilidade.

    Assim como no romance, Stiepan aparece nas anotaes como poeta liberal que

    cultua idias e beleza a uma distncia nada segura da luxria; intelectual e moralmente

    frouxo indolente, parasita, e tolo. Quando o centro da influncia intelectual passa do

    pai para o filho no romance, algo muda em Stiepan. Ao contrrio de sua benfeitora

    Varvara, de Virguinski e de Liptin, ao contrrio de quase toda a cidade ele se recusa a

    passar para o lado de Piotr. Quando maltratado por seu filho, por sua benfeitora, e por

    seus velhos camaradas algo sufoca suas reaes e abafa sua vontade. Continua a falar asmesmas frases, mas, uma sombra de conscincia e responsabilidade cruza sua frente.

    Ele no sbio, mas firme. Maltratado e sem amigos, mal compreendido e mal

    compreendendo, ele d incio sua ltima jornada quixotesca na ignorncia e esperana.

    Ele permanece tolo e autocentrado, mas, uma fasca de recognio e arrependimento

    tremulam debilmente em sua alma. Seria muito, porm, dizer que absolutamente

    redimido ao final, mas, talvez, ele volta a nascer para a responsabilidade antes da morte.

    Nas anotaes de Dostoivski no existe quase nada indicando que ele pretendiamostrar Stiepan como um homem melhor do que aparece no romance. Ele sempre o

    tolo e nunca o heri. Tanto nas anotaes como no romance Granovski/ Stiepan

    reconhece a si mesmo e a sua gerao como pais espirituais da gerao de Nietchiev.

    Mas, mesmo quando existe recognio, e at mesmo assombro, no existe nenhum

    aprendizado no sofrimento. Granovski era verdadeiramente puro, e desejava

    ardentemente fazer o bem, mesmo que no final, ele no servisse mais para o jogo e

    tornou-se assim um falastro87. E, como se isso no fosse o suficiente, ele passa a

    perseguir as idias da moda, e depois, Granovski cai doente e morre. Ele se esfora

    para compreender tudo que aconteceu e pelo que eles (os socialistas e todos os

    seguidores) poderiam estar batalhando para alcanar, mas no consegue.

    Desentendimentos entre ele e a mulher. No permitido a ele sair da cidade 88. Logo

    adiante: Granovski no um ideal genuno. Ele ultrapassado, autodestrutivo,

    87Fyodor DOSTOEVSKY, The Notebooks for The Possessed, p. 96.88Ibid, p. 80.

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    Lebidkina perturba as convices sociais covardes de Varvara Stavrguina. E a

    confisso finca na trama questes que vo alm da humilhao de Liza.

    Se j difcil entender o Prncipe como amante passional ainda mais difcil

    entend-lo como defensor apaixonado da Rssia contra o Ocidente, da Ortodoxia contrao atesmo, e de Cristo contra os descrentes. Em longos monlogos e dilogos o Prncipe

    expe sua viso sobre a idia russa e sobre a graa redentora da Ortodoxia. No incio ele

    o expositor e aparentemente o expoente destas idias, depois o examinador, e no final

    aquele que as rejeita. Ele fascinado pelas idias de Chtov e depois por Nietchiev.

    Nietchiev oferece a ele o instrumento e Chtov as idias de humildade e

    autoconsuno, alm de Deus e do Reino dos Cus que esto conosco, em

    autoconsuno, onde a liberdade est tambm.

    100

    Primeiro ele permanece entre eles,depois eles sem Stavrguin, e finalmente Stavrguim vai alm dos dois.

    A defesa apaixonada da Ortodoxia e da Rssia de Dostoivski. Marcam

    presena constante nas anotaes. O Prncipe diz:

    A Terra nunca viu tamanha idia gigantesca que est tomandoforma aqui no Oriente, e que se move para tomar lugar nas massaseuropias [...] para regenerar o mundo. Ortodoxia, a verdade gloriosa,f eterna no Cristo e total regenerao moral em Seu nome. Estamosdando ao mundo o primeiro paraso do milnio.101

    E logo adiante: [...] Como Sanso em campanha. Saindo de Petersburgo e

    fixando a si mesma em Skvorichniki102.103 Dostoivski pode dar suas idias ao

    Prncipe, e o Prncipe pode recit-las apaixonadamente, mas uma linha depois o suicida

    nega o que disse. Dostoivski pode acreditar no que o Prncipe diz, mas o prprio

    Prncipe no. Chtov pode acreditar neles, mas Chtov uma criatura desajustada quese alimenta de Stavrguin, sua vida espiritual est amarrada nas suas relaes sociais. O

    Prncipe no pode dar corpo s idias crists de Dostoivski sobre a Rssia e Deus, e

    Dostoivski sabe que ele no pode.104

    100Fyodor DOSTOEVSKY, The Notebooks for The Possessed, p. 174.101Ibid, p. 226.102

    Skvorichniki: nome da fazenda da famlia Stavrguin no romance.103Fyodor DOSTOEVSKY, The Notebooks for The Possessed, p. 226.104Ibid, p. 185.

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    Dostoivski aparentemente mantm a idia sobre a regenerao do prncipe pelo

    amor e pela f. Questo presente na Vida de um Grande Pecador. Ao longo das

    anotaes existem referncias s faanhas morais que o Prncipe deseja realizar. Em

    algumas verses o casamento com a Enfermeira/ Dacha. Em outras a trajetria de

    Chtov e o monastrio: regenerao pela penitncia religiosa ou pelo amor. Mas as

    referncias regenerao moral por amor (ou pela penitncia religiosa) esto sempre

    seguidas a referncias do Prncipe tirando a prpria vida: Durante sua ltima visita [...]

    ele diz, em arrebatamento, que s amava a ela, que ela seria sua salvao, e uma hora

    depois ele se mata.105Dostoivski no pode dar a regenerao do Prncipe por amor,

    nem pela f na Rssia e na Ortodoxia.

    Dostoivski chega personalidade de Stavrguim por passos tortuosos. Eleresiste ao verdadeiro Stavrguin por evases, sobreposies, e passos falsos. Ele d ao

    Prncipe as palavras erradas, aes erradas, amores errados, e os sentimentos errados.

    Ainda at o final Stavrguin se explica demais e seu tom todo equivocado tagarela,

    superior, autojustificativo. Nas notas finais para a carta que ele escreveu a Dacha, diz

    assim:

    Diferentemente de toda nossa gerao, eu no posso ser bemvindo no reino da mediocridade, da igualdade invejosa, da estupidezacoplada na ausncia de individualidade, da rejeio a todo tipo dedever ou honra, de toda obrigao. No posso acolher a rejeio demeu pas, da mesma maneira que no posso acolher aqueles cujonico objetivo seja a destruio, e aqueles que cinicamente rejeitamqualquer princpio que possa reconcili-los aps a realizao doobjetivo de destruio total, quando a profanao e o despojo de tudotomar a conduo do momento onde no ser possvel continuar avida por muito tempo mesmo com o pequeno suprimento de produtose restos deixados intacto para trs pela destruio geral da velhaordem. El