936
Brasil, Mundo e Homem na Atualidade

JAGUARIBE, Helio - Brasil, Mundo e Homen Na Atualidade

Embed Size (px)

Citation preview

  • Brasil, Mundo e Homemna Atualidade

  • MINISTRIO DAS RELAES EXTERIORES

    Ministro de Estado Embaixador Celso Amorim

    Secretrio-Geral Embaixador Samuel Pinheiro Guimares

    FUNDAO ALEXANDRE DE GUSMO

    Presidente Embaixador Jeronimo Moscardo

    Instituto de Pesquisa deRelaes Internacionais

    Diretor Embaixador Carlos Henrique Cardim

    A Fundao Alexandre de Gusmo, instituda em 1971, uma fundao pblica vinculada ao Ministrio dasRelaes Exteriores e tem a finalidade de levar sociedade civil informaes sobre a realidade internacionale sobre aspectos da pauta diplomtica brasileira. Sua misso promover a sensibilizao da opinio pblicanacional para os temas de relaes internacionais e para a poltica externa brasileira.

    Ministrio das Relaes ExterioresEsplanada dos Ministrios, Bloco HAnexo II, Trreo, Sala 170170-900 Braslia, DFTelefones: (61) 3411 6033/6034/6847Fax: (61) 3411 9125Site: www.funag.gov.br

  • Brasil, Mundo e Homemna Atualidade

    Estudos Diversos

    Braslia, 2008

    Helio Jaguaribe

  • Copyright , Fundao Alexandre de Gusmo

    Capa:Enrico Bianco - NUS50 x 73cm - OSD - Ass. CID e Dat. 1966

    Equipe tcnica:Maria Marta Cezar LopesEliane Miranda PaivaCntia Rejane Sousa Arajo Gonalves

    Projeto grfico e diagramao:Juliana Orem e Maria Loureiro

    Direitos de publicao reservados

    Fundao Alexandre de GusmoMinistrio das Relaes ExterioresEsplanada dos Ministrios, Bloco HAnexo II, Trreo70170-900 Braslia DFTelefones: (61) 3411 6033/6034/6847/6028Fax: (61) 3411 9125Site: www.funag.gov.brE-mail: [email protected]

    Depsito Legal na Fundao Biblioteca Nacional conforme Lei n 10.994, de 14.12.2004.

    Jaguaribe, Helio.Brasil, mundo e homem na atualidade : estudos diversos / Helio

    Jaguaribe. Braslia : Fundao Alexandre de Gusmo, 2008.

    936 p.

    ISBN: 978-85-7631-135-5

    1. Poltica Brasil. 2. Poltica externa Brasil. I. Ttulo.CDU 32(81)

    CDU 327(81)

    Impresso no Brasil 2008

  • S U M R I O

    I. PREFCIO ................................................................................... 9EMBAIXADOR CELSO AMORIM, MINISTRO DAS RELAES EXTERIORES

    II. INTRODUO ............................................................................ 15

    III. ESTUDOS SCIO-POLTICOS .................................................. 19

    1. OS CONFLITOS CARDEAIS DE NOSSO TEMPO E A POSIO DOBRASIL (1984) ...................................................................... 21

    2. REGIME DO PODER E DA SOCIEDADE (1987) ............................... 393. A UTOPIA EXEQVEL (1990) .................................................. 494. A DEMOCRACIA E OS PASES PERIFRICOS (1991) ...................... 515. A ESQUERDA COMO PROJETO E COMO MQUINAS (1995) ............. 676. SISTEMA POLTICO E GOVERNABILIDADE DEMOCRTICA (1999) ....... 717. DROGA, CRIME E NARCOIMPERIALISMO (2000) ............................ 978. SOCIAL-DEMOCRACIA E GOVERNABILIDADE (2000) ...................... 1019. O SCULO XX NO MUNDO E NO BRASIL (2002) ....................... 11110. FUNDAMENTALISMO, UNILATERALISMO E AS ALTERNATIVAS

    HISTRICAS DO MUNDO (2003) .............................................. 11911. DECADNCIA OU NOVA EMERGNCIA (2006) ............................. 13912. DEMOCRACIA E GOVERNANA (2007) ....................................... 14313. NAO E NACIONALISMO NO SCULO XXI (2007) ..................... 153

    IV. ESTUDOS SOBRE RELAES INTERNACIONAIS ................ 161

    1. AUTONOMIA E HEGEMONIA NO SISTEMA IMPERIAL AMERICANO(1987) .............................................................................. 163

    2. SIGNIFICAO DE MERCOSUL (1992) ....................................... 2113. O ESTADO NA AMRICA LATINA (1994) .................................... 2274. PAX AMERICANA OU PAX UNIVERSALIS (2000) ...................... 251

  • 5. PORTUGAL-BRASIL: PRESENTE E FUTURO (2000) ...................... 2676. BREVE REFLEXO SOBRE A SITUAO E AS POSSIBILIDADES

    CONTEMPORNEAS DA LATINIDADE (2001) ................................. 2757. GLOBALIZAO, NOVA ORDEM MUNDIAL E CIVILIZAO PLANETRIA

    (2001) .............................................................................. 2838. SUPERPOTNCIA E LEGITIMIDADE (2002) .................................. 2939. ALIANA ARGENTINO-BRASILEIRA (2004) .................................. 29710. BRASIL-ESTADOS UNIDOS (2004) ........................................... 31111. BRASIL-ARGENTINA, A INDISPENSVEL ALIANA (2006) ............... 31512. IBERO-AMRICA COMO PROCESSO HISTRICO-CULTURAL E COMO

    PROJETO POLTICO (2007) .................................................... 325

    V. BRASIL .................................................................................... 335

    1. OITO DCADAS DA REPBLICA - 1901-1980 (1983) ................. 3372. A CONSTITUIO DE 1988 (1988) ......................................... 3833. A REPBLICA, UM SCULO DEPOIS (1989) .............................. 3874. O ARCAICO SISTEMA PARTIDRIO (1990) ............................... 4115. O SUICDIO DE VARGAS (1994) ............................................ 4176. BRASIL E MUNDO NA PERSPECTIVA DO SCULO XXI (2000) ....... 4217. BRASIL, 500 ANOS (2000) ................................................... 4498. PARA UMA NOVA POLTICA DE DEFESA NACIONAL (2000) ........... 4539. O GOVERNO KUBITSCHEK (2001) .......................................... 46310. BRASIL, PRXIMOS ANOS (2002) ........................................... 47711. PERSPECTIVAS DO BRASIL NO SISTEMA INTERNACIONAL (2002) ... 48312. PARA UM NEODESENVOLVIMENTISMO BRASILEIRO, NACIONAL E

    SOCIAL (2003) ................................................................... 50713. DEFESA NACIONAL DESAFIOS E POSSVEIS RESPOSTAS

    DO BRASIL (2004) .............................................................. 51914. O ISEB E O DESENVOLVIMENTO NACIONAL (2004) ................... 54115. VARGAS, O PERMANENTE E O TTICO (2004) ........................... 55316. A PERDA DA AMAZNIA (2007) ............................................. 55717. BRASIL: O QUE FAZER? (2007) ............................................. 561

  • VI. FILOSOFIA .............................................................................. 577

    1. O PROBLEMA TICO NA CONTEMPORNEA SOCIEDADE TECNOLGICADE MASSAS (1988) ............................................................. 579

    2. A RACIONALIDADE ECOLGICA E SEUS REQUISITOS INSTITUCIONAIS(1992) .............................................................................. 591

    3. PODE-SE CRIAR UM NOVO HUMANISMO? (1999) ....................... 6114. TEMPO E HISTRIA (2000) .................................................... 6155. O HUMANISMO NA SOCIEDADE TECNOLGICA DE MASSAS

    (2002) .............................................................................. 6356. TRANSCENDNCIA, HOMEM E MUNDO (2002) ........................... 6617. BREVES REFLEXES SOBRE O CRISTIANISMO (2004) ................. 6738. CULTURA, IDIOMA E EXCELNCIA (2005) .................................. 6939. BREVE ENSAIO SOBRE O HOMEM (2006) ................................. 69710. CRISTO, AL E AGNOSTICISMO (2006) .................................... 71911. O SAGRADO E O RACIONAL (2006) ........................................ 72312. REFLEXES SOBRE AS DUAS VERDADES (2006) ........................ 72713. ATESMO TRANSCENDENTAL (2007) ......................................... 74114. UNIVERSALIDADE E RAZO OCIDENTAL (2007) .......................... 757

    VII. PERSONALIDADES ................................................................. 769

    1. MERQUIOR E O LIBERALISMO (1992) ...................................... 7712. BREVE NOTCIA SOBRE A MINHA OBRA (1998) ........................ 7913. CANDIDO MENDES PERSONALIDADE E

    PENSAMENTO (1998) ........................................................... 8394. IMAGEM DE AFONSO ARINOS (2000) ....................................... 8495. ARAJO CASTRO E A POLTICA EXTERNA (2003) ...................... 8536. SAN TIAGO (2004) .............................................................. 8577. CELSO FURTADO TEORIA E PRTICA DO DESENVOLVIMENTO

    (2005) .............................................................................. 8618. DEPOIMENTO DE HELIO JAGUARIBE RMULO ALMEIDA (2005) .... 8759. ORTEGA Y GASSET VIDA E OBRA (2005) ............................. 88110. DEPOIMENTO SOBRE O ISEB (2006) ...................................... 917

  • I.

    PREFCIO

  • 11

    PREFCIO

    O socilogo e professor Helio Jaguaribe tem dedicado osmelhores de seus esforos tarefa grandiosa de pensar o Brasil. Comofazer avanar o desenvolvimento? Quais os caminhos para transformarem realidade o nosso potencial? Que pas podemos ser? Algumas de suasrespostas para esses desafios esto neste precioso volume, que rene peassignificativas de sua larga produo acadmica, selecionadas pelo prprioautor.

    Ao mesmo tempo em que est profundamente enraizada naperspectiva nacional, a obra de Jaguaribe vai muito alm do Brasil. Suareflexo percorre com a mesma competncia e segurana a evoluohistrica das sociedades humanas, a filosofia, a poltica, a cultura e osgrandes dilemas socioeconmicos do mundo contemporneo. O nacionale o universal encontram em Jaguaribe sua sntese perfeita.

    Com seu olhar crtico, arguto e judicioso, capaz de antever arota certa a seguir em meio poeira levantada pelas polmicas do dia,Jaguaribe mantm-se fiel a suas convices em defesa da autonomianacional e da projeo do Pas. medida que passa o tempo, expande,diversifica e aperfeioa suas anlises com honestidade intelectual mpar.Seus textos mostram, de um lado, a constante evoluo de seu pensamentoe, de outro, a permanncia de um esprito humanista que lhe temacompanhado desde sempre.

    Em uma apresentao curta como esta, no poderia fazer justiaao magnfico conjunto de sua obra sem correr o risco de simplific-la.Assim, gostaria to-somente de registrar um brevssimo comentrio sobrepoltica externa, assunto que me toca diretamente por dever da profissocomo diplomata e por minhas funes atuais como titular do Itamaraty.

  • 12

    HELIO JAGUARIBE

    Helio Jaguaribe sempre acompanhou com muito interesse ostemas de relaes internacionais. Ainda jovem, na poca de sua atuao frente do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), escreveu olivro O nacionalismo na atualidade brasileira, publicado em 1958, hexatos cinqenta anos. Suas idias tiveram ampla repercusso no debateque ento se travava sobre a oportunidade e a convenincia de uma polticaexterna independente para o Brasil, que comearia a ser posta em prtica,de forma explcita, a partir de 1961.

    Naquele livro pioneiro, depois de analisar problemas tericosligados ao nacionalismo como fenmeno histrico-social e avaliarcriticamente questes mais concretas, como a explorao do petrleo noBrasil ou o tratamento a ser dado ao capital estrangeiro, Jaguaribe dedicouum captulo considerao da poltica externa. Defendeu a superao dapoltica tradicional de alinhamento por uma postura mais neutralista. Oargumento era simples: longe de ditar sua ao pela clivagem ideolgicaLeste-Oeste, imposta pela lgica rgida da Guerra Fria, o Brasil deveriabuscar o seu prprio caminho na poltica mundial, sem qualquer xenofobia,pautando-se em primeiro lugar pelas necessidades de seu desenvolvimento.Nas suas palavras: Positivamente, o que se tem em vista utilizar damelhor forma as oportunidades do intercmbio internacional, semcompromissos cerceadores, e de valorizar a posio estratgica de umpas como o Brasil, dotando-o de maiores possibilidades de ao.

    Se hoje, com a vantagem da viso retrospectiva, sua proposio vista como de grande lucidez, imperioso constatar como certas idiasencontram resistncias inexplicveis para se afirmarem antes de seremcomprovadas pelos fatos.

    Da mesma forma, no texto Aliana Argentino-Brasileira, de2004, Jaguaribe discorre sobre a necessidade de consolidar uma slida,estvel e confivel aliana entre o Brasil e a Argentina, como eixo dinmicodo Mercosul e, conseqentemente, da integrao sul-americana. UmaAmrica do Sul integrada e satisfatoriamente desenvolvida, prevJaguaribe, pode fazer da nossa regio um dos grandes interlocutores

  • 13

    PREFCIO

    internacionais independentes no mundo do sculo XXI. No improvvelque, passados outros cinqenta anos, o leitor do futuro tenha reaosemelhante de dj vu diante de uma idia que se afirmou, a despeito dosobstculos que se lhe opuseram alguns irreais, outros criados quandoseu verdadeiro alcance no era divisado com igual clareza.

    Como decano emrito do Instituto de Estudos Polticos e Sociais,Jaguaribe tem continuado a produzir trabalhos de alta relevncia nas maisdiversas reas das cincias sociais. Com o mesmo fervor da juventude,tem participado ativamente do debate pblico sobre os rumos de nossoPas, apresentando diagnsticos precisos e sugerindo alternativas, propostase solues.

    motivo de orgulho para o Ministrio das Relaes Exteriorespatrocinar a edio deste importante livro, por intermdio da FundaoAlexandre de Gusmo, prestando assim meritria homenagem a um dosnossos maiores intelectuais e, sem dvida, uma referncia mundial a quemmuito deve o Brasil.

    Celso AmorimMinistro das Relaes Exteriores

  • II.

    INTRODUO

  • 17

    O presente livro contm uma relao de estudos escritos nocurso dos ltimos vinte e cinco anos, a partir de 1983. Tais estudos sedistribuem por quatro reas: (1) estudos scio-polticos, (2) estudos sobrerelaes internacionais, (3) estudos sobre diversas personalidades e (4)estudos filosficos.

    Dada a diversidade da temtica abordada, esses estudos noseguem uma linha comum. Creio, no entanto, ser vlida a designao geralque lhes dei, pois o que neles est em jogo so questes relevantes relativasao Brasil, ao mundo e ao homem, na atualidade.

    Subjacentes a todos esses estudos se encontram minhas convicesbsicas, que designo de monismo transcendente e de humanismotranscendente. Assim, tambm, h neles um enfoque comum: ver o mundona perspectiva do Brasil e o Brasil na perspectiva do mundo.

    INTRODUO

  • III.

    ESTUDOS SCIO-POLTICOS

  • 1. OS CONFLITOS DE NOSSO TEMPO

    DUPLA POLARIDADE

    O mundo contemporneo afetado por inmeros problemase conflitos, como decorrncia dos efeitos conjugados da modernizaode todas as principais culturas e conseqente perda de vigncia dospadres tradicionais que as regulavam e da unificao econmico-tecnolgica do planeta, em condies de marcado desequilbrio entre acentena e meia de Estados nominalmente soberanos, no mbito dos quaisse reparte a populao mundial. Esses conflitos, devidos a mltiplosfatores e ostentando as mais diversas caractersticas, se encontram,entretanto, condicionados por uma dupla polarizao: a Leste-Oeste, porum lado, e a Norte-Sul, por outro.

    Sobrepondo-se nominal igualdade de soberania dos Estadoscontemporneos ocorre, de fato, uma forte polarizao dos pases entredois blocos, que se contrapem sob as respectivas hegemonias da Rssiae dos Estados Unidos, subsistindo, entre eles, um impreciso campo denaes, predominantemente do Terceiro Mundo, que buscam, comdiferentes margens de xito, situar-se fora de um alinhamento automticocom qualquer dos dois blocos. Este o quadro do conflito Leste-Oeste.

    Por outro lado, sem prejuzo da unificao econmico-tecnolgica do mundo contemporneo e na verdade como um dosefeitos dessa unificao as naes contemporneas, notadamente comrelao s que no se encontram enquadradas no sistema sob hegemonia

    21

    1. OS CONFLITOS CARDEAIS DE NOSSO TEMPO E APOSIO DO BRASIL (1984)

  • 22

    HELIO JAGUARIBE

    Russa, se diferenciam entre um pequeno grupo de pases altamentedesenvolvidos, ora ingressando na era post-industrial, a maior parte dosquais situados no hemisfrio Norte e um grande nmero de pasesinsuficientemente desenvolvidos, predominantemente em estgio pr-industrial, a maior parte dos quais situados no hemisfrio Sul. Este oquadro do conflito Norte-Sul.

    Essa dupla polarizao do mundo decorre de causas especficas,para cada uma delas, embora, eventualmente, se entrecruzem fatores eefeitos dos conflitos Leste-Oeste. A especificidade de cada um dessesdois grandes conflitos, entretanto, nitidamente discernvel, em termosempricos e analticos e amplamente reconhecida como tal.

    Isto no obstante, h os que, a partir dos interesses mundiaisdos Estados Unidos, sustentem, como o tem feito o Presidente Bushe alguns de seus partidrios, que o conflito Leste-Oeste omni-abrangente. Os problemas vinculados polarizao Norte-Sul, segundoesse ponto de vista, seriam decorrentes do antagonismo entre os doisgrandes blocos e produzidos, de um modo geral, pela subversivaingerncia da Rssia nos assuntos internos de pases subdesenvolvidos.Opostamente, tambm h os que, a partir de outro sistema deinteresses, como o tem feito o Presidente Fidel Castro e alguns de seuspartidrios sustentem a omni-abrangncia do conflito Norte-Sul. Oque em ltima anlise estaria em jogo seria um conflito entre oimperialismo americano e seus suportes internacionais (Norte) e oempenho emancipatrio dos povos oprimidos (Sul), sob a lideranasupostamente liberadora da Rssia.

    Ante o imperativo de manter a presente discusso nos restritoslimites que me propus, no me parece necessrio dedicar maior atenoaos falaciosos intentos de reduzir uma outra a dupla polaridade queafeta nosso tempo. Como j mencionado, alguns dos fatores e algumasdas conseqncias dos conflitos Leste-Oeste e Norte-Sul eventualmentese entrecruzam, sem prejuzo, entretanto, da irredutibilidade de qualquerdeles ao outro.

  • 23

    OS CONFLITOS CARDEAIS DE NOSSO TEMPO E A POSIO DO BRASIL (1984)

    O CONFLITO LESTE-OESTE

    Por largo tempo o conflito Leste-Oeste foi entendidooriginariamente como decorrendo, predominantemente, da oposioideolgica entre o liberalismo democrtico, tendo seu principal suporteno capitalismo americano e o comunismo marxista-leninista, tendo porbase o autodenominado socialismo da antiga Unio Sovitica. Essa visodas coisas, predominante at os fins dos anos 50, s hoje sustentadapelos advogados das superpotncias. Presentemente, entre os estudiososdas relaes internacionais e a opinio pblica esclarecida, h um consensobsico no sentido de se reconhecer, independentemente da valoraopositiva ou negativa dos regimens imperantes em cada uma dassuperpotncias, que o conflito Leste-Oeste decorre, precisamente daexistncia de ambas essas superpotncias e da condio, prpria e ambas,de tender hegemonia mundial. As superpotncias so conduzidas, porsua prpria condio, disputa da hegemonia mundial, como objetivosupremo e busca, como objetivo mnimo imediato, da preservao dasupremacia no seu respectivo bloco de aliados e satlites, conjuntamentecom a preservao da prpria invulnerabilidade estratgica, entendida estacomo uma invulnerabilidade territorial, no afetvel seno em termos deum mtuo aniquilamento.

    Reduzindo-se ao essencia l a anl ise das pr incipaiscaractersticas das superpotncias observar-se- que elas apresentamtraos bem diferenciados, no que tange ao seu respectivo regime depoder, interno e externo e, por outro lado, aspectos bastanteequivalentes, no que se refere ao relacionamento do centro de cadaum dos blocos com sua respectiva periferia. No sistema americano,interno e externo, o poder tem base consensual, fundado nasolidariedade de interesses existentes entre os setores dirigentes e nacomunidade de valores decorrentes de uma compartida insero na culturaocidental. No antigo sistema sovitico, interno e externo, o poder decorrede uma relao circular fechada entre a ideologia legitimadora e o partido

  • 24

    HELIO JAGUARIBE

    que a exprimia e administrava. O poder, no sistema americano, tem ascaractersticas de um acordo contratual entre grandes acionistas de umacorporao, ligitimado por decises da assemblia geral, sob o efetivocontrole daqueles. O poder, no antigo sistema sovitico, tinha ascaractersticas de um mandato pontificial, conferido por um colgiocardinalcio que operava em nome e sob a legitimao de um sistemareligioso.

    Observados em sua interioridade, entretanto, os blocosamericano e ex-sovitico apresentam marcante equivalncia, no quetange s relaes entre o respectivo centro e sua periferia. Em ambosos casos a relao fortemente assimtrica e envolve graus de maiorou menor dependncia das periferias, relativamente ao respectivocentro.

    Constatada essa bsica equivalncia, no entanto, importaassinalar duas relevantes distines. A primeira diz respeito ao centrode cada um dos blocos. No bloco americano, h um monocentrismoestratgico (Washington) mas um pluricentrismo econmico-cultural,de que participam os principais pases europeus. No antigo blocosovitico Moscou era o centro nico. Mas, e a vem a segundadiferena, o relacionamento centro-periferia, no caso sovitico, eramonolinear. Envolvia, monoliticamente, o conjunto de decises comrelevantes implicaes polticas, mas deixava uma ampla margem, naperiferia, para a especificidade econmica e cultural das sociedadesque a integravam. Diversamente, no caso americano, as relaes decentro com a periferia so flexveis, permitindo variveis graus deautonomia, mas so omnmodas, penetrando em todos os domniossocietais, da economia cultura.

    Ambos os sistemas imperiais apresentam, atualmente, ummarcante contraste entre o ininterrupto crescimento de seu poder militare econmico-tecnolgico, com o rpido e crescente declnio de sualegitimidade, no respectivo bloco e, tambm em crescente escala, naavaliao ntima de seus respectivos cidados. Essa desproporo cada

  • 25

    OS CONFLITOS CARDEAIS DE NOSSO TEMPO E A POSIO DO BRASIL (1984)

    vez maior entre poder e legitimidade envolve inmeras e gravesconseqncias, a pior das quais a de incrementar a instabilidade dosistema internacional e o risco da guerra. A longo prazo, a histriaparece se encaminhar para a invalidao do projeto hegemnico de cadauma das superpotncias, incrementando a autonomia da periferia deambos os blocos e, no caso americano, de centros alternativos,relativamente a Washington. Em ambos os casos se manifesta, por partedos supremos dirigentes, o propsito de alcanar essa fugida hegemoniamundial antes que desapaream as condies que a possibilitem. Da ocrescente risco de desestabilizao mundial e de guerra, neste final desculo.

    O CONFLITO NORTE-SUL

    Em sua essncia, o conflito Norte-Sul resulta da existnciade uma auto-privilegiante a auto-perpetuante assimetria estruturalentre os pases desenvolvidos do Norte e os subdesenvolvidos doSul. Essa assimetria decorre de condies, nos modos de produode bens e servios e nas relaes de troca, bem como, em regime decausao circular, nas formas de produo e de reproduo dacultura, em virtude das quais a produtividade per capita, no Norte,tende a ser, em mdia, 12 vezes superior do Sul. A tendncia,segundo quase todos os analistas, no sentido de se incrementar eno de se reduzir esse diferencial de produtividade.

    As causas desse fenmeno, todas de carter eminentementehistrico, so vrias. O diferencial de produtividade era praticamenteinexistente, em fins da Idade Mdia, entre os principais europeus eoutras sociedades dotadas de altas culturas, ocidentais ou no, comoas islmicas, as bdicas ou a chinesa. Esse diferencial se configura eavoluma com a revoluo mercantil, mais ainda com a revoluoindustrial e, aceleradissimamente, com a presente revoluo cientfico-tecnolgica.

  • 26

    HELIO JAGUARIBE

    particularmente interessante, no mbito dos pasessubdesenvolvidos do Terceiro Mundo, o caso da Amrica Latina. Ase encontra, de forma quase exclusiva, a combinao de sociedadesde cultura ocidental com estruturas societais do tipo terceiro-mundista.Importa relativamente pouco, para os fins desta discusso, elucidar ascausas histricas dessa situao. Mencione-se, apenas, dois importantesfatores. O primeiro tem a ver com as origens e a forma de que serevestiu a colonizao da Amrica Latina. Com raras excees, comono caso da Argentina, a colonizao da Amrica Latina se caracterizoupor um dualismo estrutural compreendendo uma camada superior,constituda pelo conquistador espanhol ou o colonizador lusitano euma camada inferior, constituda pelo indgena nativo ou o escravoimportado da frica. Esse dualismo estrutural retardou, at o primeirotero deste sculo, a emergncia de uma classe mdia independente emais numerosa e, at nossos dias, a efetiva incorporao das grandesmassas ao processo civilizatrio de seus respectivos pases

    Um segundo importante fator do relativo atraso da AmricaLatina se encontra, precisamente no extraordinrio xito de que serevestiu, at a crise dos anos 30, sua economia primrio-exportadora.Era to vantajoso aquele regime econmico que, em termos deotimizao capitalista, nada havia a fazer seno mant-lo e perpetu-loenquanto o favoreciam as condies internacionais e domsticas. Dao relativo imobilismo econmico, social e cultural, que preserva asestruturas semi-coloniais da Amrica Latina at j avanado o nossosculo.

    2. O INTERESSE BRASILEIRO

    CARACTERSTICAS BSICAS

    O Brasil uma sociedade ocidental latino-americana do TerceiroMundo. Essa dualidade entre a condio ocidental e a de pas do Terceiro

  • 27

    OS CONFLITOS CARDEAIS DE NOSSO TEMPO E A POSIO DO BRASIL (1984)

    Mundo constitui, em termos genricos, a mais bsica caracterstica doBrasil. Vinculada a essa condio se encontram muitos dos principaistraos mais relevantes do pas. Assim, por um lado, sua elite de estiloeuropeu, em que se destacam personalidades de alta qualificaointernacional, em qualquer domnio do saber e da tcnica, contrastando,por outro lado, com a condio quase asitica das grandes massasdesassistidas, que percebem apenas uma frao da renda nacional (12%para os 50% mais pobres) e no tm, praticamente, nenhuma participaonos benefcios da civilizao brasileira.

    Pas extremamente heterogneo, apresenta dados estatsticos que,embora dotados de bastante acuracidade, so pouco expressivos de suarealidade, porque exprimem meras mdia aritmticas, por trs das quais seocultam extraordinrios contrastes. Da o urgente imperativo de um novodesenvolvimento econmico, que surja em estreita correlao com umdesenvolvimento social, apto a converter, com a maior celeridade possvel,as grandes massas marginais em uma populao produtiva e participativa,em todas as dimenses da vida nacional.

    Esse ingente e urgente imperativo de desenvolvimentoeconmico-social contrasta, dramaticamente, com as condies recessivasa que o pas foi conduzido, pela conjuntura internacional dos ltimos anose pela poltica prescrita pelo Fundo Monetrio Internacional. O pasnecessita, prontamente, de enveredar por um novo caminho, que o conduzaa novas formas de desenvolvimento, compatveis com seu crescimentodemogrfico, com as demandas bsicas das grandes massas e com arestaurao e o fortalecimento de sua autonomia interna e externa.

    Defrontando-se com crescente presses internacionais,orquestradas pelas agencias que imprimem unidade aos interesses dos pasescentrais, o Brasil necessita, imediatamente, de elevar sua margem interna eexterna de autonomia, reduzindo, proporcionalmente, sua vulnerabilidadeinternacional. Num mundo de liberalismo de mo nica, em que pasesinternacionalmente competentes esto protegidos ou por sua condiode superpotncia, ou por engenhosas concertaes regionais, o Brasil se

  • 28

    HELIO JAGUARIBE

    encontra indefeso, esmagado pelo peso de sua dvida externa e inibido,domesticamente, pelos aliados objetivos, dentro de nossa prpria cidadania,do imperialismo e do neocolonialismo dos pases centrais, de adotar aspolticas defensivas de que imediatamente carece.

    Acrescente-se, por outro lado, que a particular situao do Brasil,como pas j amplamente industrializado, mas de forma, todavia, aindaincompleta, que carrega em seu bojo gigantescas manchas de atraso epobreza, faz de nosso pas um caso bastante singular, no cenriointernacional. Esto nos sendo impostos os custos de um desenvolvimentoque ainda no ultimamos e nos esto privando dos benefcios de umsubdesenvolvimento que ainda no logramos superar.

    Uma das mais caractersticas conseqncias dessa ambguadualidade da condio brasileira o fato de que nos encontramos, hoje,portadores de interesses de ordem universal, que transcendem oparoquialismo domstico e o prprio paroquialismo regional, sem,entretanto, dispormos de recursos apropriados para a defesa universaldesses interesses

    O BRASIL E O CONFLITO LESTE-OESTE

    O Brasil um pas de cultura e de estilo de vida ocidentais,profunda e irreversivelmente vinculado aos valores da tradio helnico-crist. Somos e queremos ser uma sociedade aberta, fundada no princpioda liberdade e da racionalidade, aspirando a instituir uma igualdade bsicaentre todos os homens e a nos organizarmos, politicamente, sob a gidede uma democracia social, preservadora dos direitos individuais e zelosada proteo dos interesses sociais.

    Confrontados com o conflito Leste-Oeste, temos antes detudo, de proceder a uma judiciosa desagregao de valores e interesses,que preserve nosso compromisso com a ocidentalidade sem nos envolverem qualquer satelitismo, que contribua para a manuteno da paz e deum equilbrio estratgico que evite o incontrolvel predomnio de

  • 29

    OS CONFLITOS CARDEAIS DE NOSSO TEMPO E A POSIO DO BRASIL (1984)

    qualquer das superpotncias, sem perigosamente enfraquecer o campoocidental.

    Confrontados com imensas presses externas, decorrentesde nosso excess ivo endiv idamento e de nossa cont inuadadependncia de importao de petrleo a ser decisivamentesuperada com as grandes , temos de reduzir, significativamente,nossa vulnerabilidade internacional, se quisermos preservar e ampliarnossa autonomia interna e externa. Mas temos de exercitar, comlucidez e deter minao, a margem de autonomia de que jdispomos, se desejarmos ampli-la e reduzir nossa vulnerabilidadeinternacional.

    O BRASIL E O CONFLITO NORTE-SUL

    Pas ocidental do Terceiro Mundo, somos profundamentesolidrios com o conjunto de pases que integram a este, notadamente osde nossa prpria regio, a Amrica Latina. Isto no significa que nossosesforos de desenvolvimento s possam ser empreendidos emprocedimentos conjuntos com os dos restantes pases do Terceiro Mundoou da prpria Amrica Latina. Sem prejuzo das vantagens de ummultilateralismo bem entendido, como parmetro defensivo dos interessesgerais do Terceiro Mundo e, mais restritamente, da Amrica Latina, oBrasil pode e deve ter iniciativa autnoma e prpria para a promoo deseu desenvolvimento, adotando as polticas apropriadas para a consecuode tal objetivo.

    O que decorre de nossa consciente condio de pas do TerceiroMundo a compreenso de que nossos interesses devem ser formuladose defendidos em termos que, em princpio, convenham, igualmente, aosdemais pases do Terceiro Mundo e da Amrica Latina, que disponhamde condies semelhantes s nossas. E isto no por razes de uma ticaabstrata, mas por motivos de lcida compreenso de nossa prpriarealidade.

  • 30

    HELIO JAGUARIBE

    No se trata, por outro lado, de esperar pelos demais oudeles depender. Trata-se, apenas, de no ceder falcia de composiessupostamente astutas com pases centrais, que se faam ao preo detrair os interesses gerais do Terceiro Mundo ou da Amrica Latina,como se no fossemos estruturalmente membros desses mesmosuniversos. certo que o Terceiro Mundo uma condio e no umdesiderato final. Uma condio que, ostentando embora ascaractersticas positivas das sociedades que o integram, , comocondio genrica, algo a ser superado, precisamente pelas formasgenunas de desenvolvimento. Mas estas requerem o realismo da prpriacondio e o pleno entendimento de que a superao dosubdesenvolvimento no se logra por ardilosos transbordos, oumudanas de vesturio, mas por estruturais modificaes das relaesprodutivas, domstica e internacionalmente.

    Essa nossa condio de pas do Terceiro Mundo nos deve,por isso, entre outras conseqncias, conduzir a uma ativa contribuiono sentido de preservar e ampliar a margem de autonomia internacionale de no alinhamento automtico com qualquer das superpotncias.No importa, para o caso se, como sociedade ocidental, nossa avaliaodos dois blocos em confronto favorvel, scio-culturalmente, aobloco ocidental. No est em jogo, para esses efeitos, nossoscompromissos com os valores do Ocidente e o estilo de vida delesdecorrentes. O que est em jogo, sob esse aspecto, uma mecnicainternacional do poder onde, independentemente de nossas prefernciasculturais, temos de compreender, lucidamente, que nossa margem deautonomia depende da medida em que persista um bsico equilbriointernacional entre as superpotncias, e s em tais condies pode seexpandir.

    Na verdade, num mundo marcado pela capacidade de recprocaaniquilao de que esto revestidas as duas superpotncias, somente aemergncia e o fortalecimento de um terceiro grupo de pases,genuinamente interessados na preservao da paz e na instaurao de uma

  • 31

    OS CONFLITOS CARDEAIS DE NOSSO TEMPO E A POSIO DO BRASIL (1984)

    ordem mundial mais equnime, poder salvar o mundo de suaautodestruio e conduzi-lo a uma ordenao pacfica e consensual,optimizante para todos os povos.

    3. A POSIO DO BRASIL

    REDUO DA VULNERABILIDADE

    A atual posio internacional do Brasil est marcada, como foiprecedentemente indicado, por alta e inaceitvel taxa de vulnerabilidade.Dependemos, em regime de causao circular, de nossos credores, para arotao de uma dvida da ordem de US$100 bilhes, que sufoca a nossaeconomia e a nossa sociedade, mas com a rotao da qual mantemosnossa capacidade de importar a elevada parcela de petrleo exigida peloconsumo domstico.

    evidente a necessidade de modificarmos esse estado de coisas,tanto no sentido de uma renegociao da dvida que a compatibilize comnossos bsicos requisitos econmico-sociais, como no sentido dereduzirmos nossa dependncia de um petrleo de provenincia externa,pagvel em moedas duras.

    A experincia do Brasil e de outros pases, no passado recente,indica que a margem de reduo dos nus da dvida externa susceptvelde ser alcanado por vias convencionais de negociao extremamentereduzida. Tal circunstncia no decorre de qualquer malevolncia porparte de nossos credores, mas simplesmente do fato de que os EstadosUnidos, em virtude de condies que lhes so prprias, foram levados singular posio de serem, ao mesmo tempo nossos principaiscredores e os determinantes, unilateralmente, da taxa de juros. Noexiste, certamente, de parte das autoridades americanas, o maliciosopropsito de incrementar a taxa de juros, para maximizar a nossascustas ganhos bancrios. O que existe uma del iberao,completamente indiferente suas repercusses internacionais, de conter

  • 32

    HELIO JAGUARIBE

    a inflao americana em nveis extremamente baixos e de induzir umafluxo positivo de recursos lquidos para o dlar, de sorte a compensaro dficit americano do balano de pagamento e do tesouro nacional.Tais objetivos vm sendo exitosamente obtidos mediante a manutenode uma elevada taxa de juros e tudo indica que assim continuaro a serperseguidos, no futuro previsvel.

    Ante tal perspectiva, evidente que o Brasil, para reduzir suavulnerabilidade internacional, necessita adotar medidas que no as quesimplesmente decorram da boa vontade de nossos credores. A chavepara essas medidas a formao, na Amrica Latina, de um polgonoestratgico de resistncia, compreendendo, mediante apropriadaconcertao, juntamente com o nosso, pases como a Argentina, oMxico, a Venezuela e a Colmbia, para citar os mais bvios.Necessitamos urgentemente de estudar a possibilidade de um acordode cooperao e assistncia recproca, entre um limitado nmero depases apropriados da Amrica Latina, de sorte a que, trazendo umimportante volume de trocas para um regime de convenio, entre taispases, logremos importante margem de substituio regional deinsumos e produtos que vm sendo importados em dlares. Istosignifica ampliar nossas disponibilidades lquidas para importaesestratgicas e, consequentemente, reduzir, de forma correspondente,nossa dependncia de novos crditos e de uma ortodoxa rotao dadvida. Como decorrncia de tal s i tuao, reduziremos,significativamente, nossa vulnerabilidade internacional e, portanto,elevaremos, de forma correspondente, nossa capacidade de negociaoexterna.

    Acrescente-se , como em seu tempo luc idamente ocompreendeu o Baro do Rio Branco, que todo esforo de reduode vulnerabilidade internacional deve ser acompanhado, dentro deuma realista avaliao das condies internas e externas, de umcorrespondente esforo de modernizao de nossas Foras Armadas.Na verdade, uma das importantes conseqncias do processo de

  • 33

    OS CONFLITOS CARDEAIS DE NOSSO TEMPO E A POSIO DO BRASIL (1984)

    democratizao, que felizmente estamos em vias de consolidar,consistir em devolver nossas Foras Armadas a seu precpuoobjetivo, que a defesa externa do pas.

    Um dos calamitosos efeitos das ditaduras militares ,paradoxalmente, o enfraquecimento das Foras Armadas, como agnciasde defesa externa. Indevidamente imiscudas em problemas daordenao interna da sociedade, adquirem um sentido policial que asdesmoraliza e perdem seu verdadeiro sentido militar, o que as debilita.Do sentido policial devemos livrar-nos de uma vez por todas, masprecisamos muito do sentido efetivamente militar de nossas ForasArmadas. Precisamos de um Exrcito moderno, capaz de inviabilizarqualquer propsito de ocupao externa do pas. Precisamos de umaAeronutica e de uma Marinha altamente eficientes, capazes de dissuadirpotencias estrangeiras de repetirem o que, recentemente, ocorreu noarquiplago das Malvinas. Na hora das negociaes duras no bastaacumular saldos de comrcio exterior e dispor de fontes alternativaspara o suprimento de insumos e produtos essenciais. preciso, tambm,inviabilizar a ameaa ou a prtica de experimentos corsrios, quepoderiam, a baixos custos militares ou com emprego de aventureirosinternacionais, nos fazer perder, pela fora, o que estivssemos em viasde ganhar, pela negociao.

    UNIVERSALIDADE SELETIVA

    O Brasil, como j foi referido, se encontra num estgio final desua transio para o pleno desenvolvimento que, entre outras conseqncias,o conduz a ter interesses universais antes de dispor dos recursosapropriados para os administrar e defender. Essa situao particular denosso pas exige uma soluo adequada, que nem consiste numa maltuseanarestrio de nossos interesses, coibindo nosso crescimento, nem numajactanciosa onipresena internacional, que superaria nossos meios edilapidaria recursos escassos.

  • 34

    HELIO JAGUARIBE

    Na verdade nossa poltica exterior, que vem sendo tocompetentemente conduzida pelo Itamaraty, seguindo a linha de pragmticalucidez inaugurada pelo saudoso mestre e amigo San Tiago Dantas, j delineouo encaminhamento a ser dado a essa questo. Eu denominaria esteencaminhamento com o de uma universalidade seletiva. No podemos terem todas as partes do mundo uma presena extremamente dinmica. Maspodemos optar, como j o estamos fazendo, por uma seletiva atuaouniversal. Essa universalidade seletiva privilegiar a Amrica Latina, comoregio e nesta nos levar a uma concertao particularmente estreita com aArgentina e um certo nmero de pases, com os quais formaremos umpolgono estratgico de cooperao e assistncia recproca. Essa mesma polticade universalidade seletiva nos levar a manter relaes particularmente estreitascom a Alemanha Federal e os pases latinos da Europa. Nos levar a umagrande colaborao com a Nigria e os pases lusfonos da frica. Adesenvolver um grande intercambio com a Repblica Popular da China. Ater interlocutores mais prximos de ns no Norte da frica e no GolfoPrsico.

    PLURALISMO COM OS ESTADOS UNIDOS

    Concluindo estas consideraes desejaria assinalar quenenhuma ilustrao vlida de como possam ser apropriadamenteencaminhados os interesses nacionais brasileiros, no atual cenriointernacional poderia dispensar uma referncia, ainda que breve, nossas relaes com os Estados Unidos. O que empresta particularrelevncia a essa questo no apenas o fato bvio de os EstadosUnidos serem a potencia dirigente do sistema ocidental e, a fortiori,do sistema interamericano. O que imprime particular relevncia anosso atual relacionamento com os Estados Unidos o fato de oster mos desse relacionamento se terem modif icado clere eprofundamente, nestes ltimos anos, sem que tenha havido, de partea parte, suficiente tomada de conscincia das novas realidades.

  • 35

    OS CONFLITOS CARDEAIS DE NOSSO TEMPO E A POSIO DO BRASIL (1984)

    Para exprimir, em sntese, o que me parece caracterizar,presentemente, o novo modo de relacionamento do Brasil com osEstados Unidos, diria que se caracteriza pelo fato de que nossosinteresses profundos se tornaram muito mais importantes e maisefetivamente comuns, enquanto a administrao de nossos interessescorrentes se tornou menos coincidentes e, frequentemente conflitante,embora no estruturalmente antagnica.

    Nossos interesses profundos se tornaram mais importantese mais efet ivamente comuns porque o Bras i l consol idou,definitivamente, sua opo scio-econmica por um modeloocidental , dentro de um capital ismo encaminhado para umasociedade aberta, sob o controle regulador de um Estado social-democrtico. O Brasil se encontra, como a Espanha h um par deanos, no vestbulo de ingresso a uma modernidade ocidental,consensualista mas habitada por um profundo propsito de equidadesocial. Isto faz do Brasil no apenas uma sociedade de culturaocidental mas, tambm, uma sociedade com modos ocidentais deproduo e de intercmbio. E a se encontram os interesses profundosque partilhamos com os Estados Unidos, independentemente daquesto, de carter aleatrio e passageira, da retrica governamentalque ocasionalmente prevalea em cada um dos dois pases.

    Deixou o Brasil, por outro lado, de ser uma sociedadeagrria e apenas reativa, no cenrio internacional, para se tornar adespeito de suas amplas e lamentveis manchas de atraso umasociedade industrial, ativamente relacionada com os mercadosmundiais, expandindo e diversificando sua capacidade de exportao,cada vez mais orientada para manufaturas e servios de elevadatecnologia. Tal circunstncia, torna o Brasil um concorrente dosEstados Unidos em muitas linhas e em muitos mercados, inclusiveno prprio mercado americano, e, dadas as dimenses do pas, fazemsua concorrncia ser mais sentida e ressentida do que a de muitospases europeus. Os Estados Unidos ainda no ajustaram sua imagem

  • 36

    HELIO JAGUARIBE

    do Brasil nova realidade do pas e tendem, por isso, a reagir,frequentemente, apenas, sob o imprio de irritaes ou interessesconjunturais. Importa, entretanto, que se dm conta da necessidadede abrir para o Brasil um espao suficientemente amplo, de sorte apermitir uma inteligente administrao mtua de conflitos, que noafete a compatibilidade dos profundos interesses comuns.

    Situado ante essas novas e complexas modalidades derelacionamento com os Estados Unidos cabe ao Brasil tomar, deseu lado, as iniciativas que compatibilizem os conflitos conjunturaiscom a preservao dos mais profundos interesses comuns. Essasiniciativas envolvem, evidentemente, um novo relacionamentodiplomtico, que ponha em evidncia as realidades precedentementemencionadas. Mas, na verdade, envolvem muito mais do que umrelacionamento diplomtico. Isto porque o que efetivamente estem jogo a existncia de uma mult ipl icidade de planos derelacionamento que no podem nem devem ser reduzidos ao merore lac ionamento d ip lomt ico, por mui to que es te se ja opredominante. Tal ocorre, notadamente, com relao a umasociedade, como a americana, caracterizada por uma elevadssimataxa de autonomia de seus subsistemas.

    Sem introduzir um detalhamento que no se ajustaria bitola da presente anlise, indicarei, apenas, a necessidade de selevar em conta, alm do diplomtico, trs outros importantes planosde relacionamento com os Estados Unidos, a serem conduzidospor diferentes protagonistas brasileiros. O relacionamento com acomunidade de negcios, que situe as transaes comerciais efinanceiras no mbito despolitizado da contratao privada. Orelacionamento com a comunidade cientfica, que situe o intercmbioc ient f i co- tecnolg ico no mbi to despol i t i zado e nocomercializado das relaes inter-acadmicas. E, finalmente, orelacionamento com as foras progressistas dos Estados Unidos,portadores de uma das mais altas tradies liberais do mundo, que

  • 37

    OS CONFLITOS CARDEAIS DE NOSSO TEMPO E A POSIO DO BRASIL (1984)

    assegure um amplo espao de dilogo e de cooperao, entrebrasileiros e americanos, no mediatizado pelo Estado, nem pelosnegcios, nem pelas instituies acadmicas, mas habitado por umprojeto social-humanista de escopo mundial, de cuja vignciadepende, em ltima anlise a paz internacional e a salvao domundo.

  • 3939

    1. O PROBLEMA DO REGIME DE GOVERNO

    COLOCAES USUAIS

    As discusses sobre o regime de governo tm sido historicamenteencaminhadas segundo duas principais colocaes: a do modelo ideal e ada exemplaridade histrica.

    A discusso dos regimes de governo em funo de um modeloideal, configurado segundo determinados valores, considerados supremos, a mais antiga forma de anlise dessa questo. Remonta ao pensamentogrego, desde Herdoto, at as especulaes de Plato e de Aristteles.

    A obra poltica de Plato, nos trs principais dilogos que dedicou matria (A Repblica, O Poltico e As Leis) consiste, essencialmente, nabusca das caractersticas ideais de que se deveria revestir o Estado paraassegurar a Justia, na Polis e a harmonia virtuosa, na alma dos homens.Aristteles busca, igualmente, em sua obra poltica, determinar ascaractersticas ideais do Estado. Diferentemente de Plato, entretanto, oEstagirita, por um lado, subordina seu modelo ideal a consideraes queno so exclusivamente ticas, mas que tambm levam em conta ascondies necessrias para assegurar o equilbrio social, nas relaes entrericos e pobres, patrcios e plebeus. Por outro lado, a pesquisa aristotlicano procede apenas, como a platnica, a partir de uma especulao sobreos requisitos de compatibilizao da Justia, entre os homens, com a virtude,na conduta de cada qual. Aristteles, ademais de consideraes ticas deordem abstrata, leva em conta a experincia constitucional dascidades gregas, comparando-as, entre si. Nesse sentido, caberia dizer

    2. REGIME DO PODER E DA SOCIEDADE (1987)

  • 40

    HELIO JAGUARIBE

    que em Aristteles aponta, pela primeira vez, a formulao do outromodelo, o da exemplaridade histrica, numa tentativa de operarcom ambos. Outra exceo nessa direo, na antiguidade clssica, o pensamento de Polbio.

    As discusses de regimes de governo, na Idade Mdia, comJoo de Salisbury, Santo Tomas, Egidio Colonna, ou, nos sculos XVI eXVII, com Mariana, Suarez, Joo Bodin, ou finalmente, no sculo XVIII,com os enciclopedistas e Rousseau, tambm se desenvolvem no mbitoda busca de um modelo ideal. A grande exceo ser a perspectivafuncionalista adotada, no Renascimento, por Maquiavel e, no sculo XVII,por Hobbes.

    A perspectiva da exemplaridade histrica, exploradapioneiramente por Aristteles, se tornara a predominante a partir dosculo XIX, com os estudos de Savigny e da escola histrica. Com aespecificidade que lhes advm de uma viso dialtica da realidade social,filiam-se a essa perspectiva o pensamento de Hegel e, com outrosingredientes (materialismo histrico) , o de Marx.

    Dentro da perspectiva do modelo ideal, as discusses doregime de governo so conduzidas a privilegiar aquela ou estamodalidade, conforme se a considere, em funo dos valores em vista,mais ou menos democrtica, mais ou menos eficiente, etc. Dentro daperspectiva da exemplaridade histrica, a discusso de regimes vinculadaa experincias consideradas como paradigmticas ou particularmenteexitosas.

    No caso brasileiro, a controvrsia tpica entre opresidencialismo e o parlamentarismo tem sido, quase exclusivamenteconduzida em funo de uma dessas duas perspectivas. usual, porisso, na perspectiva do modelo ideal, salientar-se a excelncia doparlamentarismo, porque seria o regime de governo mais democrticoe representativo. Ou privilegiar-se o presidencialismo, por sua maioreficincia. Da mesma forma, na perspectiva da exemplaridade histrica,os admiradores da tradio constitucional europia que influenciou a

  • 41

    REGIME DO PODER E DA SOCIEDADE (1987)

    Constituio de 1824 se inclinam pelo parlamentarismo. Osadmiradores da prtica constitucional americana que influenciou aConstituio de 1891 e as seguintes se inclinam pelo presidencialismo.

    A PERSPECTIVA FUNCIONALISTA

    Sem prejuzo da relativa relevncia das duas perspectivasprecedentemente mencionadas, importa reconhecer que a opo porum regime de governo, para uma dada sociedade, em determinadoperodo de sua evoluo histrico-social, tem que atender,predominantemente, a consideraes de carter funcional. Consideraesque otimizem o ajustamento de uma ordenao social equnime (dondeum mnimo de presena do modelo ideal), observadamente vivel(donde um mnimo de presena do modelo histrico) s principaisexigncias poltico-sociais, com que se defronte tal sociedade. Maquiavelbuscou, em seu pensamento poltico, responder s demandas funcionaisda Itlia renascente. Hobbes, realisticamente, s condies da Inglaterrade meados do sculo XVII.

    O esforo constitucional contemporneo se orienta, claramente,nessa direo. a partir de uma perspectiva funcionalista (levada emconta a personalidade de De Gaulle) que se configurou a atualConstituio francesa. Um funcionalismo ajustado restauraomonrquica presidiu a elaborao da atual Constituio espanhola. Eum funcionalismo liberado de compromissos personalistas ouinstitucionais comandou a fatura da atual Constituio portuguesa.

    AS EXIGNCIAS BRASILEIRAS

    Vista em suas grandes linhas, a sociedade brasileira, desde aIndependncia, passou por trs grandes fases, de desigual durao. OBrasil, de princpios do sculo XIX s primeiras dcadas do XX, umasociedade agrria, controlada por um patriciado rural e uma burguesia

  • 42

    HELIO JAGUARIBE

    mercantil, regido por urna democracia de notveis. O pas governado,em nome do povo mas sem a audincia deste nem, predominantemente,no seu interesse, por uma oligarquia latifndio-mercantilista, no mbitoda qual e para o atendimento dos interesses da qual, operam oparlamentarismo do Imprio e o presidencialismo da Velha Repblica.

    Depois da Revoluo de 1930 e do curto perodo de vignciada Constituio de 1934, consolida-se, com a Constituio de 1946, umademocracia da classe mdia, combinando, sob a gide da burguesia e opeso poltico da classe medida, os interesses daquela com muitas dasaspiraes desta. Trata-se de um perodo de transio, em que a antigasociedade agrria se industrializa e se urbaniza. Da a crescente emergnciade demandas da massa, que se fazem particularmente sentir no curso dosegundo governo Vargas e no governo Goulart e, em ambos casos,conduziro, em 1954 e em 1964, a golpes conservadores de carterpreventivo. O que se buscava evitar, em nome de princpios morais contra o comunismo ateu era a emergncia de uma democracia socialde massas.

    Durante os dois decnios de autoritarismo militar completou-se, independentemente da vontade dos dirigentes, a transformaoeconmico-social do Brasil. De uma sociedade agrria e rural o pas seconverteu em uma sociedade industrial e urbana, embora carregando, deseu passado remoto e prximo, imensas manchas de atraso e de pobreza.Essa nova sociedade brasileira s pode ser regulada por uma democraciasocial de massas. Precisamente o tipo de democracia que os golpes de1954 e de 1964 independentemente de outros aspectos contextuais,prprios a cada uma desses momentos tentaram evitar.

    Ocorre com o Brasil, entretanto, diferentemente do que sepassou na Europa e nos Estados Unidos, que sua emergncia para umademocracia social de massas se processo numa fase mais incipiente dodesenvolvimento econmico do pas. Quando se inicia o welfare stateamericano, com o segundo Roosevelt e se iniciam os movimentos sociaiseuropeus, com Mac Donald, na Inglaterra e o Front Populaire, na Frana,

  • 43

    REGIME DO PODER E DA SOCIEDADE (1987)

    esses pases j contavam com um desenvolvimento industrial muitoadiantado. Quando o welfare state se estabelece de forma definitiva eestvel na Europa de aps a segunda guerra mundial e nos Estados Unidosde Johnson, os pases em questo dispunham de um patamar de riquezaextremamente elevado e de uma alta produtividade econmica. No Brasil,a democracia social desponta quase concomitantemente com a conversodo pas, no curso da ltima dcada, em uma sociedade predominantementeindustrial. E ocorre em seqncia severa recesso da primeira metade dadcada de 90, que empobreceu dramaticamente o pas.

    As ilaes a extrair das presentes condies brasileiras so,predominantemente, no sentido de que se impe ao Brasil um duplo esforode compatibilizao. Por um lado, uma compatibilizao entre umaindispensvel estabilidade institucional de que depende uma modernasociedade industrial com uma no menos indispensvel acelerao nosprocessos de mudana requerida para que se ultime nossodesenvolvimento econmico-social. Por outro lado, uma compatibilizaoentre a expanso da riqueza e o acelerado prosseguimento da modernizaotecnolgica, com uma significativa e rpida elevao do padro de vida, decapacitao e de participao das grandes massas. Importa ao pas, assim,assegurar-se as condies institucionais mais apropriadas para essa duplacompatibilizao: (1) estabilidade com mudana e (2) crescimento emodernizao da capacidade produtiva com uma muito mais eqitativadistribuio social das oportunidades e do excedente.

    2. UM MODELO PARA O BRASIL

    DUPLO REQUISITO

    O que est fundamentalmente em jogo, nas presentes condiesbrasileiras, que tendero a prevalecer por este comeo de sculo, anecessidade de compatibilizar estabilidade com mudana, por um lado e,por outro, desenvolvimento econmico com desenvolvimento social.

  • 44

    HELIO JAGUARIBE

    A experincia brasileira, no curso da segunda metade do sculoXX, foi particularmente desfavorvel, no tocante a essa dupla exigncia.Com efeito, observa-se, no que diz respeito ao regime de governo, que oexacerbado presidencialismo, herdado da Primeira Repblica, no se temrevelado apto a compatibilizar a estabilidade institucional com a mudanasocial. Os presidentes mudancistas, como Vargas e Goulart, terminaramderrubados por golpes de Estado, com incalculveis prejuzos para aestabilidade e a respeitabilidade das instituies. Contrariamente, ospresidentes militares, a partir de 1964, asseguraram a estabilidadeinstitucional s custas do repressivo congelamento da mudana social,agravando, de forma extremamente perigosa e socialmente inaceitvel, acrise social brasileira. evidente, portanto, a necessidade de se diversificaras responsabilidades pela estabilidade e pela mudana social, atribuindo-se, cada uma, a um diferente magistrado. O magistrado incumbido daestabilidade institucional no pode estar envolvido no processo da mudanasocial. E ao magistrado a que incumba a direo do processo de mudanasocial no se pode demandar que responda, tambm, pela estabilidadeinstitucional.

    Por outro lado, o regime econmico-social do pas se revelou,igualmente, inadequado para dar atendimento a suas exigncias . Odesenvolvimento econmico do Brasil, notadamente nos ltimos vinte ecinco anos, se fez s expensas de seu desenvolvimento social, agravando abrecha abissal que separa as grandes massas dos estratos superiores dapopulao. Importa introduzir uma decisiva modificao nesse regime.Mas importa faz-lo em termos que no reduzam mas, ao contrrio,dinamizem, a capacidade produtiva do pas e seu processo demodernizao tecnolgica.

    PRESIDENCIALISMO CAMERAL

    A resposta ao primeiro desafio, o da compatibilizao entrea estabilidade institucional e a mudana social, se encontra na adoo

  • 45

    REGIME DO PODER E DA SOCIEDADE (1987)

    de um regime distinto do ultra-presidencialismo da tradiorepublicana, sem reincidir nas bem constatadas limitaes doparlamentarismo imperial (poder pessoal), nem levar o pas a umaftil imitao do parlamentarismo britnico. Do parlamentarismoimperial diga-se, apenas, que dele nos separam, ademais de umasociedade completamente diferente da sociedade agrria dos temposde Pedro II, as consolidadas conquistas do republicanismo e dofederalismo. Do parlamentarismo britnico tambm se diga, apenas,que dele nos separam as profundas diferenas de cultura poltica,entre os dois pases e a condio econmico-social de cada um deles.

    A forma pela qual, nas condies brasileiras, se possacompatibilizar, de forma duradoura e responsvel, a necessidade deestabilidade institucional com a necessidade de mudana social, consistenum presidencialismo cameral.

    Implica tal regime em duas principais caractersticas. Por umlado, na figura de um Presidente eleito por maioria absoluta, mediantesufrgio universal e secreto, responsvel pela estabilidade das instituies,que atue como um moderador do funcionamento do Estado e detenhao comando supremo das Foras Armadas. Por outro lado, um PrimeiroMinistro, designvel pelo Presidente mas sujeito confiana da Cmarados Deputados, que organize um programa de governo como base desua gesto, nomeie e demita seus Ministros e opere dentro de um sistemaque lhe permita dar atendimento s demandas populares em condiesde razovel estabilidade para o Governo.

    Tal estabilidade,conforme o sistema que tem sido adotadopelas Constituies mais recentes, pode ser assegurada atravs da exignciade uma maioria absoluta para as moes de desconfiana, com a exignciada concomitante indicao de um novo Primeiro Ministro. Acrescente-se, por outro lado, que o Presidente da Repblica, atuando comomediador do regime poder, com apoio em parecer do Conselho deEstado, opor-se a manobras caprichosas da Cmara de Deputados,que no correspondam a efetivas demandas da opinio publica, punindo

  • 46

    HELIO JAGUARIBE

    tais manobras com a dissoluo da Cmara, a designao de um governointerino e a convocao de novas eleies.

    Registre-se, como observao lateral, que no se pretende aquidesenvolver, o fato de que, na presente verso de um presidencialismocameral, se restringe a relao de confiana poltica do Primeiro Ministropara com a Cmara de Deputados. O Senado Federal, integrante doCongresso para todos os efeitos legislativos, no intervm na aprovaoou desaprovao do Primeiro Ministro e, por essa razo, tampoucopassivo de dissoluo presidencial. A esse Senado se reserva, comofuno privativa, o papel de supervisor dos negcios da Unio, naqualidade de instituio representativa da Federao.

    Os atuais regimes francs, espanhol e portugus, particularmenteeste, se enquadram, em suas linhas gerais, dentro da modalidade aquiproposta. Mencione-se, ainda, atendendo as caractersticas federaisbrasileiras, que no regime aqui preconizado se preservaria a atual estruturaadministrativa dos Estados e Municpios, com a introduo da clusulade maioria absoluta ou segundo escrutnio, para as eleies de Governadore Prefeito.

    ECONOMIA DE MERCADO SOCIALMENTE REGULADA

    A segunda exigncia precedentemente referida concernente necessidade de se compatibilizar o desenvolvimento econmico como social, requer, para seu apropriado tratamento institucional, ainstaurao de um regime de mercado socialmente regulado. Esteregime, em ltima anlise, constitui o ncleo do xito dos experimentossocial-democratas.

    Nas condies do sculo XIX e de princpios do XX a regulaosocial da economia s parecia possvel atravs da socializao dos meiosde produo. As experincias do socialismo tal, entretanto, como secomprova ao longo da histria dos pases da Europa Oriental, foiduplamente desastrosa. Por um lado, a concentrao de todos os poderes

  • 47

    REGIME DO PODER E DA SOCIEDADE (1987)

    no Estado conduziu a regimes totalitrios, destitudos de liberdade polticae privada. Por outro lado, a eficincia econmica do socialismo estatal serevelou modesta. De certa forma, observou-se que tal regime tinha como ocorreu paradigmaticamente no caso da Unio Sovitica marcadacapacidade para vencer as etapas iniciais da industrializao mas,posteriormente, declinante capacidade para administrar uma economiacomplexa e mant-la na vanguarda do progresso tecnolgico.

    Contrariamente, os experimentos social-democratasdemonstraram a perfeita factibilidade, para o Estado contemporneo, deregular o mercado em funo dos interesses sociais e nacionais, corrigindo,compensando e evitando as distores anti-sociais e anti-nacionais quetendem a decorrer do puro jogo do mercado, mas preservando a agilidadee a eficincia da empresa privada. E compatibilizando a regulao social enacional da economia com a manuteno da mais completa liberdadepblica e privada.

    Importa, assim, nas condies brasileiras, subordinar a economiade mercado a um planejamento democrtico, com apropriada supervisopblica, de sorte a acelerar o desenvolvimento econmico e ultimar oesforo de modernizao de nossa sociedade, concomitantemente comum grande programa de desenvolvimento social, que conduza, com apossvel celeridade, erradicao da misria e supresso das formas maisextremas do atraso e da pobreza.

    Estudos em vias de ultimao, no Instituto de Estudos Polticose Sociais conduzem, com srio apoio factual e analtico, concluso deque, mediante uma apropriada combinao do desenvolvimentoeconmico com o social, o Brasil poder ser encaminhado a nveis sociaisque se aproximem dos presentemente existentes no Sul da Europa, mascom uma estrutura econmica bastante mais poderosa. Com isto, sesuperaria, definitivamente, o subdesenvolvimento brasileiro e, no mesmopasso, se converteria o pas em uma grande, moderna e equnime sociedadeindustrial, que poderia situar-se, nas primeiras dcadas deste sculo, entreas cinco mais importantes do mundo.

  • 49

    As utopias clssicas, como as de Toms Morus e Campanella,ou a prpria Repblica de Plato, no pretendiam ser projetos exeqveispara uma nova sociedade, mas ilustraes de como se poderia submetera organizao da sociedade aos ditames da razo. Marx, diversamente,embora se furtando a desenhar os planos da sociedade socialista, concebiao trnsito para o socialismo como algo de historicamente inevitvel,indicando, embora mais por via negativa do que assertiva, algumas dascaractersticas de uma sociedade que superasse a apropriao privada dosmeios de produo e a alienao decorrente das classes sociais.

    As experincias do sculo XX trouxeram uma contribuiodecisiva ao esclarecimento do problema de organizao da sociedade.Em sntese, duas coisas ficaram perfeitamente ntidas: (1) aindispensabilidade econmica do mercado, baseado na livre empresa e(2) a indispensabilidade de uma prudente interveno reguladora doEstado, dentro de uma orientao democrtico-social. No subsistiramas puras economias de mercado. O Estado precisa intervir na economia,para evitar as crises cclicas. E preciso intervir na sociedade, para evitarexcessivas desigualdades sociais, para assegurar nveis mnimos de proteoaos setores carentes e para assegurar servios culturais destitudos delucratividade. Tampouco subsistiram os experimentos socialistas fundadosna estatizao da economia e na burocratizao da sociedade, como orevela o colapso do comunismo na Europa e na URSS. O exemplo deCuba ilustrativo. Funcionam bem os sistemas de sade e de educao.Mas a economia no funciona.

    O final do sculo XX apontou na direo do que se poderiadesignar de utopias razoveis e exeqveis. Em ltima anlise, uma social-

    3. A UTOPIA EXEQVEL (1990)

  • 50

    HELIO JAGUARIBE

    democracia universal. Um sistema de economia de mercado, socialmenteregulado. Os pases escandinavos e a Holanda so exemplos dessa utopiaexeqvel. A Repblica Federal da Alemanha, ainda que sob um governomoderamente conservador, aponta nessa direo.

    O que permanece em aberto, nessa perspectiva de utopiasrazoveis e exeqveis, de que se aproximam as sociedades mais avanadas, o destino do homem e de sua inerente transcendncia, numa era marcada,precisamente em tais sociedades, pelo esvaziamento das crenas religiosas.

  • 51

    NORMA E PROCESSO

    O grande problema poltico com que presentemente sedefrontam os pases perifricos o de combinar legitimidade democrtica,mediante a efetiva operao de democracias representativas e de Estadosde direito, com a racionalidade da atuao do sistema pblico.

    A partir do principio bsico de que o consentimento dosdirigidos a condio fundamental da legitimidade dos dirigentes,desenvolveu-se, universalmente, a conscincia de que a democracia orequisito necessrio de qualquer regime legitimo de poder. Essaconscincia, que constitui um legado da cultura grega, se expandiu,gradualmente, na Europa do sculo XVIII e se universalizou, na segundametade do sculo XX.

    O problema que decorre da universalizao da conscinciademocrtica, entretanto, consiste no fato de a democracia, per se, noconduzir, necessariamente, a nveis satisfatrios de racionalidade pblica.Esse problema j fora teoricamente antecipado por Aristteles, em suaPoltica e experimentalmente vivido pela prpria Atenas. Enquanto aliderana das foras populares foi exercida por Pricles, este logroucombinar, em sua pessoa, a maior representatividade popular com a maisalta racionalidade operacional e tica. A partir do momento em que, mortoPricles, a democracia ateniense passou a ser dirigida por lderes populares demagogos, em sentido etimolgico, sentido esse que se carregou deoutras conotaes a democracia grega perdeu a conexo entre o populare o racional. Donde as sucessivas crises da democracia ateniense inclusiveo trgico episdio da morte de Scrates e seu final colapso.

    4. A DEMOCRACIA E OS PASES PERIFRICOS (1991)

  • 52

    HELIO JAGUARIBE

    O problema de uma estvel compatibilidade entre democraciae racionalidade pblica s veio a ser resolvido muito recentemente, pelospases europeus. Historicamente, essa compatibilizao s foi alcanada,ou de modo ocasional, pela emergncia de personalidades extraordinrias,como Pricles, ou atravs de expedientes institucionais. Tais expedientesreduziram a participao pblica a setores restritos da populao, gerandodemocracias de notveis, na Europa e nas Amricas do sculo XVIII, oudemocracias de classe mdia, at princpios do sculo XX.

    A compatibilizao, em condies estruturalmente estveis, dedemocracias de massa, universalmente abrangentes, com elevados nveisde racionalidade pblica, constitui uma recente conquista dos paseseuropeus, depois da 2 guerra mundial. Esse resultado se tornou possvela partir do momento em que a universalizao da conscincia democrtica,no nvel da cultura poltica, foi acompanhada, no mbito da sociedade,por um elevado nvel de educao popular, uma economia de altssimaprodutividade, cujos benefcios foram, em termos razoavelmenteeqitativos, distribudos por todos os estratos da populao e um amploe geral reconhecimento de que o interesse de todas as classes e grupossociais era solidrio, nacional e internacionalmente, com uma racional ecompetente gesto da economia e da sociedade.

    Os pases latino-americanos, como outras sociedades perifricas,se encontram, presentemente, imbudos da conscincia de que a democracia o nico regime poltico legtimo, sem que, concomitantemente, severifiquem, nessas sociedades, as condies econmico-culturais queasseguram, na Europa, uma estruturalmente estvel compatibilizao entredemocracia e racionalidade pblica .

    Com excees notadamente nos casos de Argentina, CostaRica e Uruguai os pases latino-americanos esto intentando regular,democraticamente, sociedades em que a maioria da populao extremamente ignorante e pobre. Os pases que constituem exceoa essa condio no logram, assim mesmo, reunir os requisitossuficientes para uma estvel compatibilizao entre democracia e

  • 53

    A DEMOCRACIA E OS PASES PERIFRICOS (1991)

    racionalidade pblica, basicamente por deficincias de produtividadeeconmica.

    Verifica-se, assim, nos pases latino-americanos, uma grandebrecha entre a democracia, como norma e a democracia, como processo.Como norma, a democracia comanda universal aceitao. Como processo,ela se reveste das mais srias limitaes. Por um lado, so muito grandes etendencialmente crescentes as contradies entre as manifestaes davontade popular e as exigncias mnimas da racionalidade pblica. Poroutro lado, e como conseqncia de tais contradies, o prprio processode exerccio da democracia, no voto popular e nas decises dosrepresentantes do povo, afetado por elevado grau de corrupo.

    A REPRESENTAO PBLICA

    As democracias modernas so representativas, ainda que abrindomaior ou menor espao para formas diretas de manifestao da vontadepopular, como o plebiscito e so preservadoras dos direitos individuais edos interesses legtimos das minorias. Opem-se, assim, a diversos aspectosda democracia grega, que se exercia pela manifestao direta dos cidados,reunidos na Ecclesia, e lhe conferia poderes totalitrios, inclusive comefeito retroativo.

    A representao poltica, base da democracia moderna, envolvetrs aspectos fundamentais, que se referem (1) a sua origem, (2) ao seuobjetivo e (3) modalidade de seu exerccio.

    No que se refere origem da representao poltica, o processodemocrtico evoluiu no sentido de alcanar a mxima abrangncia e amais efetiva representatividade. Todas as democracias se iniciam,historicamente, como democracias de notveis, restritas a um pequenocrculo de vares de elite. Na medida em que o processo democrtico seconsolida, tende, por reajustamentos reformsticos e por rupturasrevolucionrias, a ampliar as bases da representao, incluindo os setoresmdios e, finalmente, a totalidade dos cidados adultos, inclusive as

  • 54

    HELIO JAGUARIBE

    mulheres. Da mesma forma, o regime de representao tende a se tornarmais escrupuloso, garantindo a efetiva liberdade do voto e a efetivapossibilidade de que o disputem, em igualdade de condies, todas ascorrentes polticas do pas.

    O problema dos objetivos da representao poltica maiscomplexo. Rousseau, o primeiro grande terico da democracia moderna,postulava a necessidade, para a validade da democracia, de que estaconduzisse manifestao da volont gnrale. A vontade geral, paraRousseau, no a soma das vontades particulares, resultado este que eleconsiderava faccioso e detrimental para o bem comum. A vontade geral a que resulta de manifestaes individuais que sejam, cada qual, formuladasna perspectiva do interesse coletivo.

    Tal entendimento da vontade geral, embora teoricamente correto,postula requisitos que dificilmente podem ocorrer, na prtica e cujacomprovao resultaria impossvel. ante essa dificuldade que asdemocracias contemporneas operam em funo de outro critrio, muitobem formulado por Schumpeter: o da disputa da preferncia popularpor personalidades que se candidatam a ser representativas de determinadastendncias ou caractersticas.

    Independentemente do que disponha a legislao pertinente edeclarem os protagonistas ou analistas do processo eleitoral, o que ocorre,nas democracias representativas contemporneas, , precisamente, o regimedescrito por Schumpeter. Esse regime, que se pode exercer atravs dediversas modalidades eleitorais, implica na escolha, pela cidadania, de umaclasse poltica dirigente. O nvel de idoneidade e de capacidade dessa classepoltica determinar o terceiro aspecto da representao polticaprecedentemente referido: a modalidade de seu exerccio.

    O exerccio da representao pode ser feito com maior ou menorracionalidade, relativamente aos problemas com que se defronte umasociedade. E pode ser desempenhado com maior ou menor idoneidade,no que diz respeito relao entre os interesses pessoais dos representantesdo povo e o que estes genuinamente entendam, por um lado, como

  • 55

    A DEMOCRACIA E OS PASES PERIFRICOS (1991)

    interesses de seus constituintes e, por outro lado, como interesses coletivosda sociedade.

    A anlise sociolgico-poltica do processo de representaopoltica, nas democracias contemporneas, revela duas importantescorrelaes, que se manifestam entre o nvel de desenvolvimentoeconmico-cultural de uma sociedade e a qualidade da classe poltica queela gera. Quanto mais alto aquele, tanto melhor resulta o nvel de idoneidadee de capacidade dos representantes polticos. Quanto mais primitivo onvel econmico-cultural de uma sociedade, quanto menos idnea ecapacitada ser a classe poltica que ela gera. Esta a razo bsica pela qualas democracias europias geram uma classe poltica significativamentesuperior dos Estados Unidos e mais ainda, em relao grande maioriados pases subdesenvolvidos.

    A segunda importante correlao diz respeito ao regime eleitoral.A democracia representativa pode ser exercida atravs de diversos regimenspara a escolha de seus representantes polticos. Esses regimens correspondem,de forma pura ou combinada, a trs modelos bsicos. Estes so: o regimeproporcional, o do voto distrital e o do escrutnio de lista.

    Pelo regime do voto proporcional um pais dividido em umcerto nmero de reas eleitorais, relativamente amplas, cada qual comdireito a um certo nmero de representantes legislativos. Os candidatos,geralmente designados pelos partidos polticos e, segundo algumaslegislaes, tambm por iniciativa de um determina do nmero de cidados,disputam a preferncia dos eleitores e aqueles que tiverem mais votos soeleitos, dentro dos limites numricos da representao poltica de cadarea eleitoral.

    Pelo regime distrital, o pas dividido em reas eleitorais,relativamente pequenas e cada rea tem direito a eleger um representantelegislativo. Os candidatos disputam, ento, essa vaga e, por maioria simplesou absoluta, o mais votado a conquista.

    Pelo regime de lista, os partidos organizam suas listas eleitorais,classificando por ordem de preferncia seus candidatos. Os eleitores votam

  • 56

    HELIO JAGUARIBE

    a favor de uma s lista. Quanto mais votos uma lista obtenha, maior sero nmero de candidatos nela inscritos que, pela ordem de preferncia queocupem, venham a ser eleitos, dentro dos limites numricos darepresentao poltica de cada rea eleitoral.

    ampla a discusso terica a respeito dos mritos e demritosde cada um desses regimes eleitorais e, particularmente, de determinadasformas combinatrias, como, notadamente, no caso do voto distritalcombinado com o escrutnio de lista. No importa, para os fins destebreve estudo, entrar no mrito dessa discusso. O que importa ressaltarseus dois principais aspectos.

    O primeiro aspecto diz respeito ao fato de que, quanto maiselevado for o nvel econmico-cultural de uma sociedade, menosimportante ser o regime eleitoral que adote. Numa sociedade de altssimonvel econmico-cultural, qualquer dos regimens conduzir formaode uma classe poltica de alta idoneidade e capacidade. O regime eleitoral,por isso mesmo, passa a se revestir de fundamental importncia para associedades de baixo nvel econmico-cultural.

    Relativamente a estas, o problema que se apresenta consiste naadoo de um regime eleitoral que, ao menos potencialmente, seja o maisadequado para maximizar, nas condies de uma determinada sociedade,a idoneidade e a capacidade de sua classe poltica. Trata-se, em suma, dedispor de tal sorte que a idoneidade e a racionalidade pblicas da classepoltica sejam significativamente superiores s da mdia da mesmasociedade.

    A anlise comparativa dos resultados eleitorais, nos pasescontemporneos, revela que o regime proporcional puro, como o vigentenum pas como o Brasil, tende a formar uma classe poltica com asmesmas limitaes da respectiva sociedade. Se h 90% de ignorantes,no eleitorado, tender a haver 90% de representantes incapazes. Se baixa a taxa de idoneidade, entre os cidados, ser igualmente baixa,entre seus representantes polticos. Diversamente, o escrutnio de lista,particularmente quando combinado com o voto distrital no

  • 57

    A DEMOCRACIA E OS PASES PERIFRICOS (1991)

    denominado regime alemo tende a gerar uma classe poltica comnvel de idoneidade e capacidade superior ao da mdia da mesmasociedade.

    O FENMENO DO POPULISMO

    Nos pases de baixo nvel econmico-cultural usualmente muitoampla a faixa de extrema pobreza e de misria, combinada com nveiseducacionais extremamente modestos, em que vasto o nmero deanalfabetos adultos e somente pequena percentagem destes completoutodos os anos de instruo do primeiro grau. Num pas como o Brasil,para mencionar um exemplo tpico, 65% da populao tem uma rendaper capita igual ou inferior a um salrio mnimo, ou seja, cerca de US$60,00mensais. Mais de 20% dos adultos so analfabetos e menos de 10%completaram os oito anos do primeiro grau.

    Essas condies econmico-sociais geram, em tais pases, fortetendncia ao populismo. O populismo consiste, nas condies desses pases,numa proposta scio-poltica caracterizada pelo projeto de elevao dossalrios nominais, por deciso governamental, a nveis significativamentesuperiores aos da produtividade. Concomitantemente, a propostapopulista frequentemente por genuna e honesta preocupao social confere amplssimos direitos sociais a todos os trabalhadores, porconta dos respectivos empregadores, pblicos e privados, sem apreocupao de ajustar a massa de encargos das empresas a nveiscompatveis com sua competitividade. Finalmente, a proposta populistapreconiza diversas modalidades de distr ibuio da r iqueza,independentemente de consideraes quanto manuteno de umataxa de poupana e de inverses que assegure apropriada reproduoe ampliao do capital. Os efeitos da implementao de tais propostasso a desestabil izao da economia, gerando forte inf lao,combinadamente com o estancamento econmico, por falta deinverses e o afugentamento do capital e das capacidades empresariais,

  • 58

    HELIO JAGUARIBE

    gerenciais e tcnicas, que buscam ambientes scio-polticos maisfavorveis.

    O populismo decorre da impresso, que predomina entre ossetores mais ignorantes e pobres de tais sociedades, que nelas sofortemente majoritrios, de que suas precrias condies de vida decorrem,em ltima anlise, da perversidade das minorias educadas e afluentes eque tais condies podero ser rapidamente melhoradas se forem levadosao poder lideres populistas, que implementem as polticas precedentementereferidas. Como esses setores tendem a ser fortemente majoritrios, nospases de baixo nvel econmico-cultural, a proposta populista se torna,dentro de um regime efetivamente democrtico, facilmente vitoriosa. Aaplicao das polticas populistas, pelos lderes eleitos por tais maiorias,aumenta significativamente o grau de pobreza e de ignorncia da populao.Isto gera, nesses setores majoritrios, a convico de que o remdiopopulista, por obstrues domsticas e externas, no foi administrado nadose e na extenso suficientes, o que os leva a apoiar formas mais radicaisde populismo.

    Esse processo de viciosa causalidade circular, se no vier aser tempestivamente interrompido, em regime democrtico, pelaformao de coalizes majoritrias de tendncia oposta o quedificilmente tende a ocorrer termina inviabilizando o prprio regimedemocrtico. Um desenlace freqente, em pases com essascaractersticas como ocorre na Amrica Latina o deintervenes militares, que suspendem os procedimentos e as garantiasdemocrticas, para instaurar regimens autoritrios, alegadamentecomprometidos com a adoo de formas racionais de gesto da coisapblica. Um outro tipo de desenlace, observvel em pases com taiscaractersticas como ocorre em diversos pases africanos aconverso do populismo em socialismos de Estado, centralizadores eautoritrios, que eliminam a economia de mercado e a substituem, emcondies de crescente empobrecimento, por uma economia pblicade racionamentos e cupons.

  • 59

    A DEMOCRACIA E OS PASES PERIFRICOS (1991)

    SEDIMENTAO GRADUAL E REESTRUTURAO ACELERADA

    Os problemas com que se defronta a democracia, em pases demuito baixo nvel econmico-cultural, so de soluo extremamente difcil.A questo se torna praticamente insolvel, em prazos previsveis, para ospases no dotados de condies endgenas para seu desenvolvimento.

    Para aqueles, dentre os pases de baixo nvel econmico-cultural,que estejam dotados de condies para seu desenvolvimento, o problemada compatibilizao da legitimidade democrtica com a racionalidadepblica depende, essencialmente, de uma determinada correlao entreprazos e modelos de aquisio de racionalidade pblica.

    H dois modelos tpicos para a elevao da racionalidade pblica,em pases auto-desenvolvveis de baixo nvel econmico-cultural: o modeloda sedimentao gradual e o modelo da reestruturao acelerada.

    O modelo de sedimentao gradual o que se encontra implcitonos processos de desenvolvimento gradual, no curso de um longo prazo.Os pases de baixo nvel econmico-cultural que sejam dotados decondies endgenas de desenvolvimento tendem, embora de forma nolinear, nem automtica, a uma gradual elevao de sua produtividade e desua educao. As crises geradas pelos populismos tendem a ser parcialmentecorrigidas por intervenes militares, que buscam substituir a falta delegitimidade de seu poder por sua convalidao pela via do bomdesempenho. Tais regimens, entretanto, por inevitvel decorrncia de suanatureza, incorrem, por sua vez, em outros tipos de erros, de arbitrariedadese de vcios, terminando por serem compelidos a restaurar a democracia.Esta, a seu turno, tende a ser novamente conduzida a novos experimentospopulistas. E assim prossegue o processo, com suas alternncias dialticas,tendendo, entretanto, a uma gradual elevao econmico-cultural dasociedade, que, a partir de certo momento, se torna apta a gerar umaclasse poltica suficientemente idnea e capaz para uma gesto democrticae racional da coisa pblica. A Espanha, no curso de um longo processoque vem do sculo XIX logrou, depois de seu ltimo experimento

  • 60

    HELIO JAGUARIBE

    autoritrio, com o Franquismo, atingir um nvel de auto-sustentvelmaturidade.

    O problema com o modelo de sedimentao gradual, o longotempo que requer para alcanar resultados razoveis. Um pas como oBrasil, para citar um exemplo significativo, poder requerer, dentro dessemodelo, prazos de at cinqenta anos para alcanar condiesestruturalmente estveis de compatibilizao da democracia com aracionalidade pblica.

    Prazos to longos geram outros tipos de problemas. Por umlado, a inconformidade das elites em se submeterem a to demoradoprocesso de maturao, nelas suscitando a propenso por solues nodemocrticas, que imponham rpidas modalidades de desenvolvimento.Por outro lado, esses longos prazos, nas condies contemporneas,marcadas por extraordinria acelerao da histria, geram intolerveisbrechas de retardamento e expem o pas a perigosas intervenes externas.

    O modelo da reestruturao acelerada o que busca, a partir deuma razovel oportunidade democrtica, reunir condies que conduzam,mediante o exerccio amplo e profundo da racionalidade pblica, introduo de transformaes fundamentais e irreversveis na sociedade eno Estado, permitindo que se alcance em prazo relativamente curto, umgrande nvel de desenvolvimento. O exemplo do Brasil pode sernovamente utilizado, no caso do governo Kubitschek, que se orgulhava,com plena procedncia, de haver, em cinco anos, realizado uma tarefa decinqenta.

    Assim como, no caso do modelo de sedimentao gradual, oprincipal problema com que se defronta o dos prazos excessivamentelongos que requer, no caso do modelo de reestruturao acelerada, oproblema com que se defronta o do aparecimento da oportunidadedemocrtica que permita a sua aplicao. A relao perversa, dentro doregime democrtico, entre baixo nvel econmico-cultural e formao deuma classe poltica de baixa idoneidade e competncia, tende a tornarraras as oportunidades em que seja vivel, por via eleitoral, constituir um

  • 61

    A DEMOCRACIA E OS PASES PERIFRICOS (1991)

    governo que tenha a vontade e a capacidade de aplicar o modelo dereestruturao acelerada.

    No caso do Brasil, para se o mencionar novamente, para finsilustrativos, a eleio de 1989, do Presidente Fernando Collor, levou parao poder, surpreendentemente, um candidato que logrou arregimentar,contra o populismo, a maioria absoluta de votos. Tanto como candidatocomo na condio de Presidente, Collor se props, em seuspronunciamentos pblicos, a proceder a uma acelerada reestruturao daeconomia, do Estado e da sociedade.

    Os primeiros dezoito meses do governo Collor, entretanto,apresentam resultados predominantemente negativos. O presidenteiniciou seu mandato enfrentando a absoluta iminncia, a prazoextremamente curto, de uma explosiva hiperinflao. Mediante umconjunto de medidas extraordinariamente drsticas, tendo como fulcroo congelamento, por dezoito meses, de 80% dos ativos privados, algono valor da ordem de US$100 bilhes, esterilizou o excesso de liquideze eliminou o risco de hiperinflao. A estratgia adotada pelo governoCollor foi muito criticada. Os juristas salientaram os aspectos ilegais damedida, enquanto diversos economistas contestaram a boa procednciaeconmica dessa poltica.

    Importa reconhecer, sem entrar no mrito da questo, que aconteno de uma hiperinflao, na vspera de sua exploso, tornavaindispensvel, entre outras medidas, a esterilizao do excesso de liquidezem poder do pblico. O essencial, entretanto, no , propriamente, adiscusso retrospectiva do Plano Collor, mas a constatao de que ogoverno Collor, uma vez contido o risco de hiperinflao, em maro de1990; no teve a capacidade de formular e implementar uma polticaeconmica que eliminasse os fatores primrios de alimentao da inflaoe, assim, lograsse estabilizar a moeda. Passados os efeitos iniciais do choquedo congelamento, a inflao retornou a taxas elevadas, forando a adoode novo expediente congelatrio, o Plano Collor II, em princpios de1991, com xito ainda menor. Em fins de 1991 h manifestos indcios de

  • 62

    HELIO JAGUARIBE

    que se caminha para uma nova conjuntura superinflacionria, que tende areconstituir o risco de outra explosiva hiperinflao.

    Desgastado por uma poltica econmica ineficaz, por imensasreas de incompetncia, que vm caracterizando seu governo e,recentemente, por amplos indcios de corrupo, nos escales superioresdo Executivo, o Presidente Collor tenta recuperar condies degovernabilidade propondo um acordo em torno de algumas relevantesmudanas constitucionais e em torno de um projeto consensual de governo.As perspectivas de xito, para tais propostas, parecem bastante modestas,tornando perigosamente elevadas as possibilidades de que o pas venha amergulhar, a relativamente curto prazo, numa imensa crise econmica,social e institucional, de imprevisveis conseqncias.

    Esse quadro do Brasil e do governo Collor, em fins de 1991,contrasta agudamente com os manifestos xitos que esto sendo obtidospor outros pases e governos latino-americanos, como nos casos doMxico, do Chile e da Argentina.

    CONSIDERAES FINAIS

    O grande problema da democracia contempornea o fatode que a exigncia da norma democrtica penetrou, irreversivelmente,na conscincia moderna universal, enquanto as condies econmico-culturais suficientes para gerar a formao de classes pblicas idneas ecapazes ainda so muito restritas, s se apresentando, de formaestruturalmente estvel, nos pases da Europa Ocidental ou nos a elesassemelhados, como o Canad e, em menor escala, os Estados Unidose o Japo.

    Por outro lado, como se observou no presente estudo, somenteum relativamente reduzido nmero de pases dotados de condies dedesenvolvimento pode, em prazos previsveis mas tendencialmentelongos se encaminhar no sentido de imprimir, estavelmente, suficienteracionalidade pblica ao exerccio de suas democracias.

  • 63

    A DEMOCRACIA E OS PASES PERIFRICOS (1991)

    Nesse quadro se abre, em determinadas circunstncias, deocorrncia relativamente rara, a possibilidade do equivalente a um curto-circuito histrico, mediante a adoo e implementao, numa democraciasubdesenvolvida, do modelo da reestruturao acelerada. Esse modelopermite que se proceda, muito rapidamente, a um conjunto de reformas,no Estado, na economia e na sociedade, em geral, que elevemsignificativamente, dentro de um regime democrtico, as possibilidades eo efetivo exerccio da racionalidade pblica. Os bons efeitos dai decorrentestendem a retro-alimentar o processo da racionalidade pblica, conduzindoo pas a elevados nveis econmico-culturais, a partir dos quais se atingemcondies estruturalmente estveis de compatibilizao da democracia coma racionalidade pblica.

    Como j foi mencionado, se o problema do modelo desedimentao gradual que tende probabilisticamente a se verificar nocaso dos pases auto-desenvolvveis o de que seus resultados s advmdepois de um longo prazo, o problema do modelo de reestruturaoacelerada o de que so relativamente raras as oportunidades para queseja aplicvel, em democracias subdesenvolvidas. As enervantes delongasdo modelo de sedimentao gradual, com suas marchas e contramarchas,e a raridade de oportunidades para a adoo democrtica do modelo dereestruturao acelerada, incitam as elites dos pases de baixo nveleconmico-cultural a introduzir este ltimo por via autoritria.

    A introduo, por via autoritr