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50 I OSonho do Cart6grafo eternidade. Naturalmente essa essência está além de todo o nosso concebível conhecimento, mas, apesar de tudo, pode- mos senti-Ia. Por que o judeu de Rodes sentiu necessidade de dizer essas coisas? Talvez porque tenha detectado uma seculari- dade em mim que nem eu mesmo percebera. O Evangelho nos separou, disso nós ambos sabíamos, entretanto nossa humanidade tinha conseguido superar o constrangimento. Como os estorninhos acima, parecíamos estar planan- do livremente no ar, enquanto reuníamos as nossas mais íntimas deliberações para podermos fazer aquela longa via- gem para o sul. Quando nos abraçamos no embarcadouro, ocorreu-me que esse cavalheiro idoso, cujo destino defini- tivo nem mesmo uma viagem através dos mares poderia determinar (condenado como estava a uma vida errante), era, realmente, da mais translúcida plumagem. fB ECEBI UMA CARTA, certo dia, de um velho ami- 11I1 go que estava à procura de uma imagem que tinha sido vista pela última vez numa capela ~- ~, em Chipre. Desde a derrota dos Cavaleiros da Ordem dos Hospitaleiros de São João de Jerusalém, em Rodes, Nossa Senhora de Damasco achou-se vagando no Levante nas pegadas do grão-mestre e sua comitiva. Por certo tempo a Ordem viveu perto de Roma, sobrevivendo graças à boa vontade dos outros. Quando o Imperador Charles ofereceu à Ordem um abrigo em Malta, tudo indi- cava que Nossa Senhora também achara um novo e compa- tível lar nessa pedregosa fortaleza. Felizmente para o meu amigo, ele afinal descobriu a imagem numa pequenina igre- ja por ali - construída, parece, para proclamar o supremo dom aos habitantes locais.

James Cowan - O Sonho Do Cartógrafo Págs. 50 a 100

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James Cowan - O Sonho Do Cartógrafo Págs. 50 a 100

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  • 50 I OSonho do Cart6grafo

    eternidade. Naturalmente essa essncia est alm de todo onosso concebvel conhecimento, mas, apesar de tudo, pode-mos senti-Ia.

    Por que o judeu de Rodes sentiu necessidade de dizeressas coisas? Talvez porque tenha detectado uma seculari-dade em mim que nem eu mesmo percebera. O Evangelhonos separou, disso ns ambos sabamos, entretanto nossahumanidade tinha conseguido superar o constrangimento.

    Como os estorninhos acima, parecamos estar planan-do livremente no ar, enquanto reunamos as nossas maisntimas deliberaes para podermos fazer aquela longa via-gem para o sul. Quando nos abraamos no embarcadouro,ocorreu-me que esse cavalheiro idoso, cujo destino defini-tivo nem mesmo uma viagem atravs dos mares poderiadeterminar (condenado como estava a uma vida errante),era, realmente, da mais translcida plumagem. fB ECEBI UMA CARTA, certo dia, de um velho ami-11I1 go que estava procura de uma imagem quetinha sido vista pela ltima vez numa capela~- ~ , em Chipre. Desde a derrota dos Cavaleiros da

    Ordem dos Hospitaleiros de So Joo de Jerusalm, emRodes, Nossa Senhora de Damasco achou-se vagando noLevante nas pegadas do gro-mestre e sua comitiva. Porcerto tempo a Ordem viveu perto de Roma, sobrevivendograas boa vontade dos outros. Quando o ImperadorCharles ofereceu Ordem um abrigo em Malta, tudo indi-cava que Nossa Senhora tambm achara um novo e compa-tvel lar nessa pedregosa fortaleza. Felizmente para o meuamigo, ele afinal descobriu a imagem numa pequenina igre-ja por ali - construda, parece, para proclamar o supremodom aos habitantes locais.

  • 52 / O Sonho do Cartgrafo

    Nunca entendi muito bem porque meu amigo tinhatanto interesse nessa imagem. Tinha sido pintada no estilobizantino e no tinha nenhuma relao com as virgens ele-gantes com as quais estamos familiarizados em Veneza. Pelasua descrio da pintura, conclu que retratava a Santa Me maneira oriental, um estilo que no me agrada pessoal-mente. Talvez fossem suas propriedades milagrosas que oatraam; no sei. A lenda conta que Nossa Senhora deDamasco salvou os Cavaleiros em muitas ocasies duranteo longo e fatdico encontro com os sarracenos.

    Meu amigo me contou como ficara exageradamentefeliz ao descobrir a imagem em Malta. Falou sobre isso emtermos entusisticos. Disse-me, tambm, que o povo deMalta a considerava como sua protetora, pois ela o tinhadefendido obstinadamente na hora da necessidade. "Seusbraos esto bem abertos", foi a maneira como meu amigoa descreveu, esperando que eu, talvez, entendesse o que elequeria dizer.

    Mas a verdadeira descoberta, informou-me, foi a dopadre responsvel pela imagem. O homem vivia sozinhonum quarto ao lado da igreja, rodeado por uma pequena bi-blioteca com raros e preciosos volumes. Nas palavras domeu amigo, o padre tinha" dedicado sua vida a amar todosos homens e no apenas um". Era difcil dizer se essas fo-ram as palavras do padre ou se era a interpretao que meuamigo dava a seu compromisso com a causa dos outros. Dequalquer maneira, meu amigo estava muito impressionadocom esse homem.

    "Padre Vitos v como misso da sua vida tomar contada imagem", meu amigo escreveu. "Ele me informa que a

    .9!s Mufitaes de !FraMamo / 53

    presena de Nossa Senhora de Damasco na sua igreja animaa todos que entram em contato com ela. Ele diz que por-que ela invoca o desejo de saber, e no simplesmente o exer-ccio dos nossos prprios desejos. Ele v essa qualidadecomo intrnseca a ela, como acontece com o ncar da prola,aderida a ela no Levante. Acredito que Padre Vitos tenha seidentificado com a peregrinao martima da imagem. Pois anotvel Nossa Senhora tem uma concha de ostra incrustadana testa. Como a imagem incorporou esse sinal, explicadopela histria atribuda a ela, sugerindo que um pescador fis-gou a imagem em sua rede de pescar com a concha j incrus-tada. Imagine a minha surpresa quando olhei para a NossaSenhora pela primeira vez na igreja de Padre Vitos! Elaolhou-me de volta, a concha da ostra projetando-se de suatesta como um olho de cclope. No de espantar que suapresena seja considerada benfica. Essa Senhora olha paravoc como se olhasse das profundezas do prprio mar."

    Bem, esse o tipo da informao que torna to difcil aelaborao de mapas. Se pretendo incluir tais fatos sobre aNossa Senhora de Damasco, preciso saber onde ela obteveesse enfeite nico e perolado. Que essa imagem tenhasobrevivido a sua passagem pelo mar um milagre em simesmo, e , certamente, digno de ser registrado. No tenhomeios de saber, entretanto, se ela caiu de um navio (ou foiatirada) devido a alguma luta religiosa, ou se o seu mergu-lho foi precipitado pela necessidade de imergir-se no marem emulao do prprio rito batismal.

    Exatido. Ela me pressiona como um pilo, amassandotemperos num almofariz. Estou preso s contingncias decomo, quando e por que as coisas acontecem. Est claro que

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    nem o meu amigo nem o Padre Vitos estavam muito preo-cupados com tais coisas quando contemplaram essaextraordinria imagem, desfigurada como pela concha deum molusco. Como isso pode ter ocorrido - como umaostra pde se incrustar na venervel imagem de NossaSenhora - est alm de nosso saber. Entretanto, ao incorpo-rar esse enfeite, parece, a imagem ganhou em dimenso.No mais uma imagem que talvez tenha sido feita por umobscuro monge srio h muitos anos, mas tornou-se umarepresentao de Nossa Senhora que experimentou vicissi-tudes que ultrapassam a esfera humana.

    Ento, uma concha, um padre dedicado e uma imagemforam reunidos para formar uma tripla venerao. Umobjeto, um homem e a criao de um artista annimo foramreunidos para expressar uma idia que era tanto sublimequanto imanente. Se os habitantes de Malta a consideravamsua protetora e para os Cavaleiros ela havia se tornado o seuponto de apoio, ento, certamente, Nossa Senhora deDamasco tinha adquirido vida prpria. Ela no era mais umsimples objeto de piedade e adorao, mas algum queviveu o tipo de vida a que todos os homens aspiram.

    Digo essas coisas luz de minha prpria confusosobre o assunto. Se o meu amigo no tivesse mencionado aostra e se no tivesse me falado sobre Padre Vitos, eu esta-ria preparado para aceitar a imagem simplesmente pelo seuvalor habitual.

    Mas, agora, no estou mais certo disso. Parece-me quea natureza entrou nesse dilogo? compreendeu minha luta erespondeu com uma voz firme. A ostra proclamou seu pr-prio lugar em nossos coraes. Alm disso, derrubou a bar-

    .9t5 Meitaes de :Fra 9r(auro / 55

    reira entre o artista annimo e sua criao. Sou deixadoagora com algo extra, uma dimenso que lhe foi acrescida -aquela da mais pura reflexo. Percebo que a ostra represen-ta o poder invisvel da criao vinculando-se ao que acredi-tamos solenemente ter sido criado por ns.

    por isso, provavelmente, que o Padre Vitos esteja toempenhado em sua tarefa. Nossa Senhora de Damasco, emtoda a sua estranheza aqutica, personifica, para ele, umapropriedade mstica que ele no pode explicar. Assim, seupapel de guardio estende-se a amar todos os homens atra-vs dela. No admira que o meu amigo tenha ficado toimpressionado depois de t-lo encontrado. O Padre Vitos um daqueles homens raros que so colhidos pelo manto deespiritualidade para serem transformados, eles prprios, emobjetos de venerao. A remota e rochosa fortaleza deMalta tornou-se, em certo sentido, seu relicrio, abrigando-o numa armadura de isolamento. Ele se fez cercar de raros epreciosos volumes, que reforam sua santidade incornumde uma maneira que poucos de ns poderamos entender.

    A cartografia uma arte sublime. Agora mesmo eu jtinha em mos um conhecimento que nenhum mapa tinhaainda registrado. s vezes me sinto como uma placa flu-tuante num astrolbio. Embora todas as minhas extremida-des tenham sido calibradas para ajudar-me a determinaronde estou indo, h momentos em que um convs inclina-do torna isso impossvel. Ser que estou a merc decorren-tes inesperadas, que ameaam desviar-me da rota? Ou serque a imagem de Nossa Senhora com a ostra incrustada natesta conseguiu me atrair para o mesmo insondvel abismoao qual meu amigo se ofereceu como vtima?

  • ERTO DIA, RECEBI a visita do Signore Cristo-foro Loredan, superintendente dos arquivossecretos do Conselho dos Dez em Veneza. Ele

    ~ ~ veio pedir a minha ajuda para traduzir umasrie de folhas de papis estampados com desenhos de ummapa turco que haviam sido descobertas no sto por umde seus empregados.

    Segundo o Signore Loredan, os blocos que haviamimprimido o mapa nas folhas tinham sido descobertos numpequeno armrio de madeira sob uma pilha de papis anti-gos.

    - H diversas gavetas nesse armrio - ele me explicou. -Em cada gaveta, encontramos um certo nmero de blocosgravados com hierglifos, que ningum soube decifrar.Pedimos ao tipgrafo oficial para fazer uma cpia desses

    ~ 'Meditaes de :Jra 'Mauro / 57

    blocos para ver o que havia neles. Quando percebemos quetnhamos descoberto um mapa do mundo, escrito em ln-gua turca, decidimos que essas folhas deviam ser traduzi dasno interesse da segurana do Estado. Sabendo da sua fami-liaridade com as lnguas orientais, o conselho pediu quesolicitasse a sua ajuda.

    Entendi, pelo que me disse, que ele queria que eu confir-masse se o mapa turco continha informaes ameaadoras segurana de Veneza. Concordando em fazer o trabalho,apressei-me em examinar os papis que ele me entregou sobcustdia. Soube logo que o autor desse mapa, cujo ttulo eraPerfeita e Completa Gravao e Descrio do MundoInteiro, era um certo Hadji Ahmed, um cidado de Tnis,que estudou na mesquita da cidade de Fez, no Marrocos,onde aprendeu filosofia, fsica e direito. Ao que tudo indica,esse homem foi capturado quando retomava para sua casaem Tnis, e depois foi trazido para Veneza como escravo.Onde aprendera cartografia e quem havia sido seu patronona cidade, permanece um mistrio at hoje. Pode ter aconte-cido que esse Hadji Ahmed tenha praticado sua arte sozi-nho, a mando de seu patrono annimo ou na esperana deretomar com honra, um dia, a sua terra natal.

    O mapa era desenhado na forma de um corao."Inventado por Johann Wemer, um matemtico de Nurem-

    "Conhecido como projeo cordi-forme, o mapa do mundo era dese-nhado com o contorno do corao.O primeiro mapa desse tipo, abran-gendo uma rea nica do formato deum corao para mostrar o mundo

    todo, foi impresso numa famosa edi-o da Geography de Ptolorneu, edi-o de Veneza de 1510. EmboraBernadus Sylvanus tenha desenhadoessa projeo, Johann Werner con-siderado criador desse projeto, des-

  • 58 / O Sonho do Cartgra!o flIs Meditaes de g:ra Mauro / 59

    11 berg, esse tipo em projeo possibilita ao cartgrafo mos-trar cada hemisfrio quase sem distoro. Significa que omundo pode ser visto de uma grande altura, proporcionan-do ao observador a viso de um pssaro. Pode ser que HadjiAhmed quisesse indicar ao seu patrono a extenso do mun-do ou talvez quisesse, simplesmente, enfatizar a altura queum homem tem de subir para alcanar o domnio sobre simesmo.

    A traduo prosseguia vagarosamente, uma vez quemeus conhecimentos da lngua turca so fortuitos. Almdisso, a caligrafia de Hadji Ahmed era extremamente rebus-cada, me obrigando a analisar cada palavra, com cuidado,antes de traduzi-Ia. O mapa era contornado por uma sriede desenhos retratando hemisfrios celestes que revelavamas principais constelaes conhecidas entre os navegadores.Havia, claro, numerosas referncias infiel religio dosmaometanos, que, a princpio, traduzi com relutncia.

    Todavia, os caminhos da mente de Hadji Ahmed come-aram a me intrigar. Ele era particularmente atrado para oN ovo Mundo das Amricas. Considerava o Peru "um reinoestril". Sobre o Mxico ele nos informava de que a princi-pal exportao era o ouro e a prata. Entre os europeus eleelegia os franceses como um povo "respeitador de seussoberanos e suas artes e cincias, e que vivia na abundnciade riquezas e luxo". Gravou lendas aps lendas em seu

    mapa, na esperana de que todos aqueles que o lessempudessem ficar mais bem informados.

    Eu tinha ante meus olhos a viso de outro homemsobre o mundo e enfrentava percepes completamentediferente das minhas. O mundo, visto por Hadji Ahmed,era uma miscelnea de fatos dirigidos glorificao de Ale supremacia de Suleyman como o padishah dos otoma-nos. O que eu deveria pensar? Seria o homem um impostorou ele possua conhecimentos dos quais eu no fora infor-mado por causa de minha origem? Quanto mais eu traduziasuas palavras, mais acreditava que nenhum de ns tinhahegemonia sobre a verdade.

    Seu mapa me surpreendeu pela complexidade e o alcan-ce das informaes escritas nas margens. Ele tinha localiza-do a Terra do Bacalhau no Labrador e reconhecia a existn-cia de canibais perto da embocadura do Amazonas. No gol-fo que separa a Amrica da sia havia notado a ilha deSimpaga, um lugar que fora mencionado primeiro porMarco Polo. Falava, tambm, sobre a existncia de um con-tinente no sul que descreveu como "encontrado recente-mente, mas no totalmente conhecido". A esse chamou deprovncia de Patal.

    Eu estava sem saber como lidar com todos esses fatos.Hadji Ahmed tinha obtido seus conhecimentos de fontesque nem mesmo eu conhecia. Talvez tivesse encontradomarinheiros nos portos da frica que tinham se aventuradomais longe do que a maioria. Parecia que ele tinha colhidoinformaes da boca de homens que, no seu desespero,tinham lanado sua humanidade no tmulo da natureza.Talvez esses homens tivessem abandonado sua natureza

    c:::;-..=:>~c:::;-..=:>~

    crito em sua obra Libellus de qua-tuor terrarum orbis in plano figura-tionibus ab eoden Joanne Verneronouissime compertis et enarratis(Nuremberg, 1514). Hadji Ahmed

    copiou seu mapa de um mapa cordi-forme desse tipo, impresso numaxilogravura em Paris em 1536 pelomatemtico francs Orontius Fi-aeus. (1494-1555)

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    6(} / o Sonho do Cart6grafo

    humana s suas prprias leis, na nsia de deix-Ia para trs.Tais suposies aumentaram ainda mais o meu interessepelo mapa de Hadji Ahmed. Sentia que esse obscuro escra-vo tunisiano talvez tivesse presenciado acontecimentos eouvido histrias que superavam as minhas.

    Ento aqui estava outro contador de fbulas capaz detestemunhar as perambulaes do corao humano! Eraestranho pensar que em Hadji Ahmed eu tivesse encontra-do minha outra metade - um homem que, como eu, queriadescrever a Terra por meio de desenhos. Com o uso da pa-lavra e vagos contornos litorneos, ns dois tentvamos darforma a algo que no era desse mundo. Tnhamos submer-gido no conhecimento das experincias de outros homens,experincias que fervorosamente espervamos que resistis-sem ao teste do tempo. Estaramos nos iludindo? Podamosabarcar os limites desse mundo usando tcnicas legadas poroutros?

    Foram perguntas que me fiz luz do mapa clandestinode Hadji Ahmed. Ele, que havia trabalhado tanto tempo emsegredo, que tinha se proposto moldar sua viso do mundona forma de um corao, tinha conseguido impor um senti-do a tudo que fez. Sua mo exmia, to perita na arte da cali-grafia e do desenho, no mostrou movimentos para a fren-te nem para trs na rbita da Terra, nem para fora nem paradentro de sua forma territorial; mas, pelo contrrio, mos-trou um esvaziamento de sua forma, como se o mundo queele visse tivesse se tornado imaterial como o resultado desua infinita previso.

    Como poderia existir um mundo como esse?Estaramos descrevendo alguma coisa to totalmente inte-

    ~ '.Meditaes de '}'ra '.Mauro / 61

    rio r que a nica afirmao de sua existncia estaria na pr-pria imaginao? O mapa de Hadji Ahmed tinha poucarelao com aquele no qual eu vinha trabalhando todosesses anos. como se tivssemos nos inspirado em mundosdiferentes. Embora houvesse alguma semelhana, claro, namaneira como assinalvamos certos dados, a verdade quenem eu nem Hadji Ahmed tnhamos interpretado osconhecimentos comuns da mesma maneira. ramos todiferentes em nossas avaliaes como o brilho das luzesrefletido em guas inquietas.

    Comecei a me indagar sobre o que mais estaria enterra-do no sto nos arquivos secretos esperando para serdesenterrado. Um livro em cdigo, talvez, ou o dirio dealgum visionrio que houvesse sido forado a trabalharcomo escravo nas gals enquanto seu talento verdadeirojazia ignorado? Tais pensamentos me fizeram percebercomo frgil nossa base para avaliar a verdade. Meu mapa,como o de Hadji Ahmed, era apenas uma verso da realida-de. A probabilidade de ter qualquer uso para algum per-manecia inteiramente dependente de sua eficcia como umaferramenta para a imaginao. Comecei a compreenderento que o mundo tem de ser considerado como um artif-cio primoroso como uma expresso inigualvel de umavontade sem fim.

    No sei o que o Signore Loredan e os membros daSignoria esperavam quando me deram o encargo de tradu-zir o documento de Hadji Ahmed. Provavelmente espera-vam que eu descobrisse informaes incriminadoras quelhes assegurasse as intenes do Grande Turco com relaoaos interesses de Veneza no Oriente. At ento, minhas pes-

  • 62 / O SonIW do Cartgrafo

    quisas haviam sido decepcionantes. No encontrei nenhu-ma evidncia que sugerisse que Hadji Ahmed quisesse fazertal coisa. Ao contrrio, tive a impresso de que ele decidirano ver nem ao mundo nem a ele mesmo como objetos deconhecimento. Em sua anlise sobre o que ele viu e tocou,ele abarca a plenitude das coisas e, atravs dela, a sua pr-pria. Ele permitiu a sua interioridade integrar-se a seumapa. Nem poderia eu, humilde observador, permaneceralheio a isso.

    [IM RARO DOCUMENTO veio ter s minhas mos.Eu o recebi de um viajante recm-chegado doOriente. Ele no tinha viajado at Catai, mas ". acreditava que o documento fosse provenientedaquela regio. Fora dado a ele como pagamento de umpequeno dbito contrado por um homem que negociavacom o Imprio Celestial. O comerciante achava que pode-ria ter algum valor como objeto curioso para ser vendido aum antiqurio em Veneza.

    O documento detalhava a histria dos primeiros mis-sionrios cristos que se aventuraram na China, tal comoestava descrita numa estela achada na provncia de Chen-si.Essa estela tinha sido instituda por um grupo de nestoria-nos para comemorar as maravilhas da religio crist e a sua

  • 64 / O Sonfw do Cart6grafo JIs %eitaes de ;Jra %auro / 65

    grande propagao no Reino Central." Conhecida comoSi-gnan-fu, a estela considerada em certos lugares comosendo, verdadeiramente, a voz da morte.

    Ofereci ao viajante o que considerei ser um preo justopelo documento. Quando sentei para estud-lo, entretanto,vi que estava escrito em caracteres srios e chineses ao mes-mo tempo. Curiosamente, os caracteres srios estavam dis-postos em linhas verticais, provavelmente como uma genti-leza para com seus leitores potenciais. De qualquer manei-ra, a parte chinesa do texto era encimada por uma figura dacruz e o ttulo da estela.

    Finalmente, fui capaz de traduzir o significado: Inscri-es em pedra revelando os primrdios e a propagao dailustre religio de Ta-tsin no Reino Central. Em seguida, hum canto laudatrio de um padre da Igreja de Ta-tsin.Depois da salmodia, seguiam-se vinte e cinco captuloscontendo a profisso da f catlica, uma explicao das ceri-mnias e observncia da Igreja de Nestrio, e uma histriageral do progresso do cristianismo na China.

    O captulo onze descrevia os primrdios do cristianis-mo em detalhes. "Na poca do incomparvel ImperadorTai-tsung, cujo reinado foi to brilhante e to florescente, eque estendeu por toda a parte o imprio da dinastia Tang -na poca desse inspirado monarca, preocupado com a feli-cidade dos homens, apareceu um homem de grandes virtu-des, do reino de Ta-tsin, chamado Alopen, que consultandoas nuvens azul-cobalto do cu, e trazendo as verdadeirasSagradas Escrituras, observou com ateno a ordem dosventos, para que pudesse escapar dos perigos aos quais esta-va exposto. Ele chegou no nono ano de Ching-kaun cida-de de Chang-gnam. O Imperador ordenou ao seu principalministro, o duque Fang-hiuen-ling, que levasse uma escoltamilitar e encontrasse o visitante no lado oeste e o escoltasse cidade. Os livros sagrados, que ele trouxera, foram tradu-zidos num salo do Palcio Imperial, e muitas perguntasforam feitas a respeito da doutrina nos aposentos particula-res do Imperador. A doutrina, tendo sido estudada profun-damente, foi julgada justa e verdadeira. Assim, foi ordena-do que fosse propagada e ensinada ao pblico."

    Levei um certo tempo para descobrir que o citadoAlopen no era outro seno a forma chinesa da palavra sriaallaha-pna, significando "Deus converte". Essa deve ter sidoa palavra usada por Nestrio para "missionrio". Quemquer que fosse esse missionrio annimo, ele havia impres-sionado, certamente, seus anfitries chineses, pois eles aco-lheram em seus coraes seus seguidores e sua doutrina. Elesofreu para ensinar-Ihes que o auto-sacrifcio e a disposiode correr riscos de morte so, precisamente, as qualidadesnas quais a grandeza do esprito humano fundamentada.

    " O nestorianismo era uma seitaoriental do cristianismo fundadapela bispo Nestrio de Cons-tantinopla no sculo V. Sua doutrinaenfatiza Cristo como um "Homemperfeito" que cresceu como os ou-trOS homens em corpo e alma. Suadoutrina sugere que Cristo possuaduas naturezas diferentes, a dohomem e a de Deus. Denunciadocomo herege por Cirilo de Alexan-dria, Nestrio foi exilado para odeserto lbio, onde escreveu umaapologia, O livro de Herclides de

    Damasco, onde sugere que seus crti-cos o interpretaram mal. No livro eleargumenta que Cristo foi um exem-plo de uma unio prospica, proso-pon, significando o aspecto exteriorda manifestao do indivduo. Deus,a Palavra, segundo Nestrio, usou ahumanidade de Cristo para Suamanifestao, e a humanidade, por-tamo, tornou-se parte de seu proso-pon. H seguidores de Nestr iona Sria e Iraque at hoje, ondeso conhecidos como a Igreja doOriente.

  • I

    66 / O Sonfw do Cartgra!o

    Fiquei impressionado com a integridade desse docu-mento. A estela de Si-gnam-fu representa um testamentodo poder dos homens de propagar ideais, particularmentequando eles lidam com outras dimenses do esprito. SeAlopen estava consciente da natureza duradoura de suasaes enquanto estava vivo, ningum pode saber. Ele pas-sou histria, uma figura singular, um srio ao qual seriaimpossvel atribuir uma identidade diferente da que tinha.Em outras palavras, Alopen permaneceria sem nome.

    O anonimato de Alopen me impressionou mais do queestava preparado para admitir. Ele tinha viajado a Cataipara propagar ideais sem intuito pessoal algum, enquantoeu permanecia aqui em San Michele di Murano, seguro den-tro das paredes do mosteiro. Alegar que ele simplesmentepropagou uma f hertica e era, portanto, um inconseqen-te, no seria o suficiente para menosprez-lo como charla-to. Pois esse santo annimo conseguiu propagar valores,uma filosofia e uma crena que transcenderam ele mesmo.

    Seria esse missionrio a personificao de uma novaespcie de homem? Ele tinha viajado aos limites do mundopara divulgar o amor e uma religio interior. Os chinesesforam simpticos a essa viso, pois declararam sua doutrinaboa e verdadeira. Por mais hertico que eu ou a Santa IgrejaCatlica pudssemos achar que fossem seus ensinarnentos,seus seguidores, certamente, os receberam muito bem. Pode-se argumentar que eles no conheciam nada melhor ou queseu nvel de conhecimentos era tal que at mesmo uma dou-trina hertica era melhor do que nenhuma. O que quer queAlopen lhes ensinara apelou para alguma coisa inerente aocarter deles, algo relacionado natureza da verdade.

    5ls :Meitaes e. ;Fra :Mauro / 67

    Se eu tivesse qualquer dvida sobre esse documento, elase basearia em sua ortodoxia doutrinria, e no na necessida-de da humanidade se entregar ao sentimento de alegria. Amensagem de Alopen era clara, quase ingnua, uma vez queele ainda consultava as nuvens e observava a direo do ven-to, embora essas tcnicas de profecias tivessem sido banidas,sculos atrs, pela nossa Santa Igreja. Se li corretamente nasentrelinhas, esse padre nestoriano irradiava uma simplicida-de que a maioria dos povos pagos era capaz de reconhecercomo um valor em si. Era bvio que o Imperador e seussditos tinham aceitado Alopen porque ele representavaalgo diferente. Alm do mais, enquanto ns, apaixonada-mente, discutamos a natureza dessa" nova espcie dehomem" por toda a cristandade e preparvamos dissertaessobre o assunto, algumas das quais nos induziram discr-dia entre cristos, Alopen, o missionrio annimo da Sria,tinha ido a China para afirmar pessoalmente essa diferena.

    Fiquei chocado com esse contraste. Aqueles que con-templam a verdade da segurana do seu sto s vezes per-dem o contato com a sua essncia. Os verdadeiros filsofosso aqueles que embarcam numa viagem ao desconhecido,incertos de seu destino ou at mesmo de uma possvel vol-ta. Eles so como Alopen, o missionrio dos pagos, defen-sor de uma doutrina hertica do tipo que o mundo anseiapor acolher. Ser que importante anotar que pontos ela-borados da lei cannica estejam errados? Tais homens que-rem se transformar. isso que se irradia deles, e no suascrenas dogmticas.

    A estela de Si-gnan-fu, com seus textos paralelos, eraum exemplo perfeito das foras da acomodao e da reno-vao. Essas letras srias verticais eram capazes de espelhar

  • 68 / O Sonho rio Cart6grafo

    novas vises numa lngua estrangeira. Atravs delas fuicapaz de visualizar a estela elevando-se da terra, em algumadistante provncia chinesa, apontando para o mundo comoum obelisco sereno e penetrante. de espantar que o povochins o reverencie como fazemos com uma imagem? Aestela fala a eles de valores transcendentes, de virtudes anti-gas que fizeram uma longa viagem at a corte do Imperadorpara serem recebidas com honras.

    O testamento de Si-gnan-fu foi oferecido a mim para oreembolso de um dbito. Fiquei grato ao viajante por terme escolhido para avaliar o valor do documento, em lugarde outro. O presente de Alopen ao povo chins est emcima da minha mesa, minha frente, uma lembrana doquo importante uma viagem a um lugar distante pode sercomo caminho de descoberta. Nos caminhos da vida traa-dos por ns, geralmente, o que nos desvia do nosso objeti-vo (que ainda no alcanamos) o que nos mostra ondedeveramos estar.

    Provavelmente, Alopen sabia disso, quando empreen-deu sua viagem a Catai. Ele tinha estudado as nuvens eouvido os ventos: cada um tinha dito a ele que o seu desti-no seria alcanado somente quando tivesse se tornado oexemplo supremo de sua f. Num certo sentido, ele fora aestela de Si-gnan-fu. Ele tinha exposto, num texto paralelo,tudo o que sabia, e se transformado numa tocha viva parailuminar a noite. O Imperador deve ter ficado extremamen-te agradecido ao receber esse annimo padre nestoriano,que tinha outorgado a seu povo um pensamento precioso,mais volvel do que palavras, mais volvel at do que asdiscordncias da f.

    liUMORES SOBRE O MEU TRABALHO esto che-18 gando aos cantos mais remotos do mundo.Pessoas que, normalmente, no se comunica-z., riam comigo, fazem-no, agora, com o intuitode compartilhar os seus conhecimentos. Isso para mimmotivo de grande satisfao. Significa que h outros iguaisa mim, vivendo na obscuridade, como eu, que se sentemobrigados a depositar minha frente os frutos de suas pes-quisas, por mais parciais que possam ser. Tornamo-noscomo irmos, cultivando o mesmo solo antes da primavera.

    Hesito em usar a palavra llluminati para nos descrever,mas um termo que me foi sugerido por um de meus cor-respondentes da Mesopotmia. Ele o descobriu num textoencontrado na biblioteca de um mosteiro fora da cidade deNneve. Foi escrito por um monge persa chamado Simo de

  • .9Is 'Meditaes de '.Fra 'Mauro I 7170 I O Sonfw do Cartgrafo

    Seus detratores, com inveja de sua fama, atribuam seusucesso magia. Galeno confessou sua dvida para comHipcrates pelos seus conhecimentos mdicos. Escreveumais de duzentos volumes, a maior parte queimada noTemplo da Paz, em Roma. O que restou foi publicado emcinco volumes na Basilia, em 1538.

    Segundo o tradutor do texto, Simo era consideradocomo o "chefe dos tericos" e um filsofo espiritual de reno-me considervel. Meu correspondente, ao que parece, consi-derava nosso trabalho intimamente ligado ao dele, da a pala-vra Illuminati para nos descrever em nossas diligncias.

    O trabalho de Simo era difcil de ser entendido, curio-sa mistura de viso mstica com observao cientfica. Era aprimeira vez que eu lia um texto que juntava o estilo retri-co antigo com uma espcie de iluminao espiritual tofamiliar a todos ns. A perspectiva de Simo era singular.Tinha permitido que as pedras quentes do deserto persa fer-mentassem seus pensamentos, como acontece com aspedras que esto no forno de um acampamento para fazercrescer o po. Parecia que o territrio que Simo escolherapara investigar no estava constrito aos limites de seussentidos.

    De acordo com o meu correspondente da Mesopo-trnia, o tratado de Simo podia me ajudar a preencher aslacunas dos meus conhecimentos sobre a regio da Caldiae Babilnia. Ele afirmava que as descobertas de Simo eramprodutos daquele lugar e, assim, precisavam ser levadas emconsiderao se eu fosse desenhar, no meu mapa, os aspec-tos fsicos de tal regio. Ele argumentava que os conheci-mentos s podiam ser adquiridos atravs da combinao

    Taibuteh, um dos ltimos seguidores de Hipcrates eGaleno."

    Hipcrates foi um famoso fsico de Cs. Ele estudoumedicina com o seu av, Nebrus, e se aperfeioou lendo asplacas penduradas nos templos dos deuses, onde cada pes-soa escrevia a doena de que era portador e os meios pelosquais tinha sido curado. Excelente profissional, admitiaabertamente como curava as doenas, ao mesmo tempo emque reconhecia os seus erros. Certa vez confessou que dosquarenta e dois pacientes entregues aos seus cuidados ape-nas dezessete tinham sido curados! Devotado ao seu pas,recusou-se a servir sob as ordens do persa Artaxerxes, queo convidara para a sua corte. Morreu aos noventa e oitoanos, em 361 a.c., sem qualquer doena do corpo ou damente. O juramento de Hipcrates a base da tica damedicina moderna.

    Conhecido como Claudius Galenus, Galeno foi ummdico famoso na poca de Marco Antnio e MarcoAurlio. Nascido em Prgamo, aplicou-se no estudo dafilosofia, matemtica e fsica. No incio de sua carreira, visi-tou os mais famosos seminrios na Grcia e no Egito. EmRoma, tornou-se famoso por suas curas extraordinrias.

    . .seus ensmamentos exerceram in-fluncia direta no desenvolvimentodo Sufismo islmico. O epteto"Taibuteh" significa "da Sua graa".Foi dado ao autor porque ele enati-zou, em seu trabalho, a importnciada graa de Deus e o fato de que tudoque havia obtido tinha sido pela gra-a de Deus.

    * Simo de Taibuteh foi um escritorda Sria Oriental que viveu na pocado Patriarca Henanisho. Pouco sesabe a respeito do homem, exceroque ele morreu por volta de 680 d.e.,que era mdico e mstico. Suas afir-maes eram bem consideradas pe-los autores msticos que o seguiram(Isaac de Nneve, por exemplo), e

  • 72 I O Sonho o Cartgrafo

    dos sentidos do corpo com as faculdades da alma. Eu tinhade captar isto no tratado desse filsofo do Oriente, casofosse continuar com o meu trabalho.

    Trabalhei muitas noites tentando compreender o pen-samento de Simo. Aqui estava um homem que valorizavauma relao equilibrada entre corpo e mente. "Assim comouma fruta protegida pelas folhas (uma vez que uma preci-sa da outra), o corpo precisa da alma e a alma do corpo."Esta uma declarao pertinente que encontrei em seu tex-to, e que serviu para elucidar, aos meus olhos, sua maneirade pensar. Alm disso, continua ele, "no pedimos que nos-sas paixes sejam anuladas, apenas que possamos ser liber-tados delas". Tais citaes fizeram-me ver o homem sobnova luz. Ele exaltava o fisicalismo do mundo, mesmoquando reconhecia suas limitaes.

    Tive em mente este fato quando li seus pensamentossobre o valor da experincia como importante guia em nos-sa busca. "Um homem s conhece a verdade quando eleprprio fez tentativas nesse sentido e no quando ela foiadquirida por meio de tradio e leituras." Ele estava suge-rindo que os erros so importantes se desejamos alcanarqualquer grau de conhecimento. Compreensivelmente, elequeria que aceitssemos que cada erro cometido um tijo-lo a mais colocado no forno da graa.

    Para ele, o verdadeiro conhecimento era uma liberdadevoluntria despida de todo medo. A tal condio Simochamou de "no-conhecimento", por meio do qual tudo oque a pessoa assume como sendo verdade, ou que a pessoapensa que sabe, participa de uma essncia que incom-preensvel. O conhecimento repele a si prprio, tal como

    .9ls%eitaes de j"ra %auro I 73

    dois ms se repelem quando aproximamos duas bssolasuma da outra.

    Eu me fascinei tanto quanto rejeitei sua crena do no-conhecimento. Se ele estava correto, ento, ele estava advo-gando o abandono de cada fato que eu acreditava ser verifi-cvel pelos meus sentidos. Foi somente depois de ler seutratado vrias vezes que percebi que ele talvez estivessequerendo dizer algo inteiramente diferente. "O conheci-mento de uma teoria implantado na natureza", li em certotrecho, "e dividido de acordo com o carter das coisas queele abrange."

    E mais adiante: "Parte desse conhecimento reveladopelo raciocnio e pela construo de sentenas lgicas, eparte apreendida, no por meio das palavras, mas atravsdo silncio interior da mente. Uma parte do conhecimentoabrange coisas visveis e a outra parte se dirige para coisasque esto acima da viso natural."

    Simo de Taibuteh traou uma tnue linha entre o espi-ritual e o corpreo, entre o corpo e a mente. Em momentoalgum ele quis colocar um acima do outro. Ele via cada umde ns como o elo de toda a criao, capaz de inclinar a cabe-a em adorao, sabendo que quando o fazemos toda a cria-o inclina a cabea conosco. Estabelecendo como estamosintegrados natureza em nossos atos, Simo queria quereconhecssemos a importncia dessa associao na formade sacramento. Natureza e homem, animal e ser humano -segundo ele, tudo isso participava do que ele chamou de"rejuvenescimento do corao". Oh! homem perspicaz! Suaviso interior foi iluminada por essa misteriosa intelignciaque voc atribuiu ao silncio interior de sua mente.

  • 74 / O Sonfw do Cart6grafo

    Para Simo, no havia diferena entre o que ele chamoude "a imagem oculta e sua imagem conceitual na mente" eimagem conceitual e a imagem de seu Criador. Havia umaconexo entre a inteligncia natural e o que chamou de "ainteligncia do Um". Tais idias indicam a sua crena numaespcie de dupla viso - um olhar interior e um olhar exte-rior. Voltei a seu pensamento sobre o tema posteriormente,quando ele escreveu: "Atravs da teoria espiritual ele verem sua mente, espiritualmente, todas as coisas visveis queso observadas materialmente pelos outros."

    O homem sbio, ele insistia, v materialmente, enquan-to se esfora para investigar espiritualmente, usando o queele chamou de "teoria espiritual". Ele j no observa plan-tas como um agricultor, ou razes medicinais como ummdico, mas, em vez disso, o que v fisicamente ele con-templa no silncio de sua mente empregando a teoria espi-ritual. Essa nova forma de ver as coisas o ensina a abando-nar a perplexidade em favor do discernirnento.

    Quando tentei imaginar que tipo de homem Simodevia ter sido, defrontei, pela primeira vez, com minhasprprias deficincias. Aqui estava um homem que haviaimplementado uma nova idia de liberdade interior a partirde si mesmo, enquanto eu me dava por satisfeito em con-templar, de longe, essa transio. Meu trabalho de criadorde mapas tinha me afastado do combate. Eu permitira queos contornos litorneos e os continentes me distanciassemdo que eu estava, intimamente, relutante em experimentar.Nem tivera a coragem de encetar qualquer batalha comigomesmo, uma vez que a liberdade que eu experimentava notinha sido conquistada com a subjugao de minha venta-

    .9!s Meitaes de 'Jra Mauro / 75

    de. Ao contrrio do bom Simo, tudo indicava que eu ain-da era escravo da paixo.

    N a minha cela debruada sobre a laguna, aqui em SanMichele, eu me sentia como um pssaro com medo de dei-xar o ninho. Alm dessas guas cercadas, seguras contra afria das tempestades do Adritico, um mundo de fervor esofrimento continuava a existir. Homens como Simo deTaibuteh ainda viviam naquelas ridas regies do coraoonde se empenhavam numa espcie de guerra espiritual qual poucos entre ns poderamos sobreviver, sequer con-templar. Eu estava satisfeito de olhar essa terra de longe, emvez de adot-Ia. De alguma maneira eu havia estabelecidoque a proximidade com a vida era suficiente. Tais questesme preocuparam muito mais do que gostaria de admitirenquanto examinava o trabalho desse padre do deserto,enviado a mim pelo meu correspondente da Mesopotmia.

    Eis o que eu me perguntava, entretanto: Meu amigotivera a inteno deliberada de interromper meus esforoscartogrficos me presenteando com o trabalho desse ho-mem primitivo? Eu era realista o bastante para perceberque os meus conhecimentos sobre o Oriente teriam que serconsideravelmente revistos luz dos estudos de Simo deTaibuteh. Eu teria que introduzir novas anotaes nas mar-gens. Teria que apagar muitas coisas. Como poderia, porexemplo, ser capaz de transmitir a idia da alma como umcacho de frutas? Ou descrever em detalhes a doutrina dosTrs Altares?"

  • 76 / O Sonho do Cartgrafo Jls Mtitaes e ;rra Mauro / 77

    Meu amigo da Mesopotmia, finalmente, me deu umapista quando pedi seu conselho. Contou-me a seguinte his-tria:

    "Conheci, certa vez, em Nneve, um homem rico,obcecado pelo desejo de obter almscar", ele me escreveu." procura do artigo genuno, atravessou montanhas,navegou mares e andou por terras, at que chegou a Catai,onde ofertou presentes ao Imperador na esperana de rece-ber uma grande quantidade de almscar. O Imperador ficouto impressionado com aquela atitude que permitiu aohomem cortar o almscar com suas prprias mos. No devi-do tempo, o homem voltou a Nneve e passou tudo paraseus filhos. Eles o adulteraram, antes de pass-Io a seus des-cendentes. Agora o almscar perdeu todo o seu perfume,como voc pode imaginar.

    "Do mesmo modo", meu correspondente da Meso-potmia explicou, "os antigos padres buscavam a verdade,caminharam pela vida e pela morte, experimentaram todasas atribulaes, suportaram todas as provas, sacrificaram asi prprios e, com o tempo, acharam-se merecedores dopresente da graa. a isto que Simo de Taibuteh chama de'teoria espiritual'", "Infelizmente", continuou meu rnissi-vista, "o conhecimento desse mistrio comeou a deterio-rar-se quando foi passado adiante, at que tudo o que res-

    tou carecia da substncia inicial. Tinha perdido seu perfumeno prprio ato da transmisso."

    "Talvez voc deseje traar, em seu mapa, a viagem des-se homem rico de Nneve", meu amigo sugeriu. "Mas, antesque o faa, considere o tratado de Simo como o almscarno-adulterado que ele recebeu depois da visita aoImperador. Se voc transcrever, corretamente, os contornosda mensagem dele, ento h a esperana de se reter a essn-cia para que outros a experimentem. Espero que esta suges-to o ajude em seus esforos", ele concluiu.

    Fiquei grato pelo conselho do meu amigo. Ele tambm,conclu, deve ter sido profundamente afetado pelos pensa-mentos de Simo de Taibuteh. Talvez tenha sido ele o ricoviajante que visitou a corte do Imperador em Catai. Quemsabe? Disfarar a sua identidade pode ter sido uma maneirade enfatizar sua mensagem.

    Comecei a perceber um ponto importante: comoIlluminati, meu amigo e eu estvamos profundamenteempenhados em traar os caminhos de viajantes comoSimo de Taibuteh. Suas viagens a regies alm do que eraconhecido podiam ser comparadas quelas dos homensricos que se apresentaram na corte de imperadores na espe-rana de receber o almscar do no-conhecimento. No foiisso, afinal de contas, que Simo quis dizer quando falou dainteligncia do Um?

    ~~~~desempenho dos mandamentos. Osegundo altar o conhecimento dateoria, que uma forma de exercciomental. O terceiro altar o conhe-cimento da esperana. neste altar

    que o homem sacrifica, glorifica elouva, sempre em todas as horas.Atravs dele vive, se movimenta, sealimenta, dorme e ora sem inter-rupo.

  • .fuMe.ditaes de. Tr Mauro / 79

    preso ao perceber que suas observaes no eram, absoluta-mente, isentas. Elas eram afetadas por sentimentos que cadaum julgava serem expresses de si prprio. Ou seja, o mun-do que eles me ofereciam era um reflexo deles mesmos.

    Isso me proporcionava uma dvida recorrente sobre seestava conseguindo obter uma viso correta do mundo.Ser que no poderia acontecer de eu estar sendo mal infor-mado? Talvez o mundo fosse diferente daquele que eu tinhacomeado a perceber. Todo homem que j viveu tornou-seum colaborador da evoluo do mundo, uma vez que suasobservaes tomaram parte nesse crescimento. O mundoera, assim, um lugar inteiramente constitudo de pensamen-tos sempre em mutao, se renovando constantemente atra-vs do processo de meditao empreendido pela humanida-de, tendo sua realidade como objeto.

    Ocorreu-me a idia de fazer um mapa que desafiariaqualquer categoria e gnero. Esse mapa conteria todos osmapas, um mapa difcil de ser definido; devido a essa faltade definio, no entanto, esse mapa seria em si uma defini-o mais precisa. No se destinaria a advogar qualquer pol-tica ou convico particular. Ao contrrio, queria que omeu mapa mostrasse a terra no cu e o cu na terra; ummapa que fosse o prottipo de todos os mapas espalhadosno espao e no tempo. Seria um projeto pelo qual o mundopoderia entregar-se, em fragmentos, ao olhar aberto einquisitivo de todos. Eu tinha muita esperana de que talmapa pudesse dar origem a outro mapa, e outro ainda, almdele.

    Todo o meu trabalho anterior tinha sido apenas umapreparao; cada detalhe que me chamou ateno foi o

    11ELABORAO DO MEU MAPA assumiu umai dimenso que no fazia parte das minhas con-sideraes iniciais, embora eu tivesse uma. "expectativa de que as informaes que recebes-se pudessem ser, s vezes, contraditrias. Isso normalquando algum est colhendo dados impossveis de seremverificados. Mas eu no esperava receber tanto conhecimen-to que induzisse meditao. Meus correspondentes, porseu turno, desejavam transmitir, apenas, o que eles achavamque era importante para a concluso do meu trabalho.

    A idia de que o conhecimento pode abrigar sentimen-tos, tanto quanto observaes, certamente me deixou per-plexo. Sempre que abria missivas que me eram enviadas delonge, ou ouvia as reflexes pessoais dos mercadores eaventureiros que me visitavam em San Michele, ficava sur-

  • 80 I O Son/w ia cartgrafo

    comeo de um processo de reconhecimento. Embora euestivesse vendo o mundo atravs do olhar dos outros, dealguma maneira acreditava que tambm vira o mundo queeles tinham visto. Ao registrar suas experincias, eu estavatraduzindo o que para eles havia sido indecifrvel. As coisasque tinham observado eram, apenas, fenmenos; o que euprocurei inscrever no meu mapa era a transformao dasobservaes naquela ordem graciosa que encontramos emtodas as relaes da vida.

    Meu mapa transformara-se em uma espcie de catecis-mo. Perguntas e respostas espalhavam-se pelo grande espa-o livre que era o mundo. O interior da frica, habitadopor homnculos e homens de corpos peludos, prope,antes de mais nada, um enigma sobre o que deve ser consi-derado normal. Saber que talvez existam aves enormes e deimensa fora arrebatando elefantes em suas garras foi o bas-tante para me convencer de que no havia coerncia ouregras na maneira de como a terra se expressar.

    Embora tenha me arvorado em seu cartgrafo no-ofi-cial, no havia meios de saber se eu estava refletindo no meumapa a existncia do mundo ou a minha prpria existncia.Comecei a suspeitar que o mundo e eu estvamos vivendo,de certa maneira, vidas desordenadas. Quando acontecianos encontrarmos numa atitude de reconhecimento mtuo,era como se estivssemos nos encontrando pela primeiravez. Somente ento minha sensibilidade podia se compati-bilizar com outra. Percebi, finalmente, que no vivo sozi-nho, mas no mago do que me gerou.

    claro que esperava poder alcanar um nvel de clare-za nas minhas atividades. Queria ver as coisas de maneira

    .9IsMeitaes de 'Jra Mauro I 81

    diferente. Queria que cada anotao no meu mapa repre-sentasse a reconstruo de um mundo individual mais com-pleto. Tanto as aves imensas quanto os seus fardos eramverses de mim. Eu tambm voei para alm das fronteirasdo meu mundo, carregando o peso de um antigo desgosto.Entretanto, de alguma maneira, tal como a ave imensa, con-segui permanecer no ar. A incongruncia daquilo a que eume agarrava (isto , o elefante) no tinha me arrastado paraa terra. Eu ainda podia voar, apesar do que considerava serum fardo incomparvel.

    Esse o mundo que escolhi descrever: uma terra antigahabitada por estranhas maravilhas e criaturas misteriosas.Quando vejo o barco aportar ao cais l embaixo, comeo aimaginar quem vem terra para me oferecer o que testemu-nhou em suas andanas. A vida me faz desvendar suas ori-gens no momento em que ele desce na praia e ajeita suacapa. Sob ela, uma medida da verdade jaz oculta, como umaespada.

    Pacincia. Preciso de tanta quanto puder concentrar. Omundo parece estar minha porta (ser que um emissriodo Vaticano que vejo descer na praia com um embrulhodebaixo do brao ?), mas isso tambm deve ser uma iluso.Devo ter cuidado para no achar que tudo que ouo , exa-tamente, o que acontece l fora, nos confins de algumacadeia de montanhas ou na praia de um longnquo porto.

    Os erros de compreenso caminham de mos dadascom o reconhecimento: sei que esse tanto verdade. Cadahomem me traz impresses do seu mundo acreditando queo possui com exclusividade. Quando encontra um poosagrado onde santos se banham, deseja ansiosamente me

  • 82 I O Sonho do Cart6grafo

    informar da singularidade do fato. Ser que devo alert-loque tal detalhe j foi observado em outras partes do mundopor outros homens? Naturalmente que no. No possoquebrar o encanto da descoberta, porque ele seu sustent-culo sempre que precisa.

    De certa maneira, ento, continuo prisioneiro na soli-do dourada de San Michele, incerto quanto a meus pr-prios motivos, enquanto, para alm deles, o mundo conti-nua a existir como mera inveno, uma sombra de si mes-mo. Os homens podem v-lo, com certeza, e acreditar queo viram em sua totalidade, mas esto, inevitavelmente,enganados. O que eles vem , em ltima anlise, determi-nado pelo que limita sua viso da totalidade. O nvel de suapercepo os impede de reconhecer a invisibilidade de suasubstncia.

    Tudo isso me deixa perplexo. Tornei-me um prisionei-ro do conhecimento, tendo sido inundado por fatos emdemasia. As pessoas esto imprimindo em mim o quesabem, sem perceber o quanto suas experincias esto meafetando. como se eu tivesse me tornado uma vtima deseu desejo de afirmar a singularidade de suas vises. Quemeu sou tornou-se desimportante no despontar de sua neces-sidade de dar uma explicao satisfatria para suas prpriascontribuies ao princpio da surpresa. Pergunto-me se assim que o mundo muda, como se transforma, sempre -no como um planeta errante no cu, mas como uma con-juno de pensamentos no espao.

    [IONFORME SUSPEITEI, um emissrio do Vati-cano veio conversar comigo. A notcia sobre omeu projeto havia chegado a Sua Santidade, o~ ~. Papa, e ele havia instrudo seu arquivista para

    me entregar certos documentos que julgava valiosos para aminha pesquisa.

    Tendo recebido visitas de numerosos enviados estran-geiros atravs de sculos, era inevitvel que o Vaticano fos-se repositrio de suas distantes observaes. Quer fosse umrelatrio das viagens dos trs prncipes de Serendip, ou daviagem de Raban Sawma de Argon';' pleiteando ajuda dos

    ".Raban Sawma era o enviado de umrei do remoto Oriente, conhecidocomo Argon. Em 1285, ele visitouNpoles, Roma, Paris e Bordeaux,

    tentando persuadir os monarcas eu-ropeus a juntar-se a Argon e tomar] erusalm dos sarracenos.

  • europeus para recuperar Jerusalm, os arquivos do Vati-cano tm um rico tesouro de informaes sobre o mundo.

    Um dos itens que o emissrio do Vaticano me entregoue que logo me interessou foi o relatrio de um monge fran-ciscano, Johannes de Plano Carpini, detalhando os aconte-cimentos de sua viagem ao pas dos trtaros." Suas observa-es sobre esse povo remoto e hostil provaram ser de valorincalculvel. Atravs de seus olhos, pude conhecer as ruasde Karakorum, capital de Gngis Khan, e partilhar com eleo primeiro gole de cosmos.

    No vou fingir que tal bebida no me intrigou. Segun-do Fra J ohannes, o cosmos era feito de leite de gua, da

    84 / O Sonho do Cartgrafo

    * Giovanni da Pian del Carpini foium monge franciscano enviado peloPapa Inocncia IV a viajar cortedos mongis, numa tentativa de con-quistar sua amizade. Tinha sessentaanos quando partiu e chegou emKarakorum no vero de 1246, a tem-po de assistir coroao do GrandeC Guiuk. Ele descreveu essa fanta-sia oriental de tendas e pavilhes,chefes de cls e embaixadores rica-mente vestidos, em seu famoso LiberTartarorurn, uma das jias da litera-tura medieval. Embora ele no tenhaconvertido o c ao cristianismo, con-seguiu encontrar-se com ele cercadopelo "barulho da msica, saudado ereverenciado com lindos cetros, quetinham l prpura no topo". Odocumento do Papa que ele apresen-tou ao c um interessante exercciode arrogncia cultural. "Voc devevir na frente de todos os seus reis eprovar para ns sua vassalagem e

    Jls 'Meditaes de ;Fra 'Mauro / 85

    su bmisso. E, se voc desprezar ocomando de Deus e desobedecernossas instrues, ns o considerare-mos nosso inimigo." A resposta dogrande c reflete amplamente a cons-ternao dos mongis ante intole-rncia do Papa Inocncio: "Vocs,habitantes das terras ocidentais, con-sideram-se os nicos cristos e nosdesprezam. Como, ento, vocssabem quem merecedor, aos olhosde Deus, de partilhar de Sua miseri-crdia? Quando vocs dizem para simesmos 'sou um cristo, rezo aDeus, sirvo-o e odeio os outros',como vocs sabem a quem Deusconsidera certo e a quem Ele tratarcom misericrdia?" Em sua viagemde volta, Giovanni chegou a Kiev emjunho de 1247, sete anos antes deMarco Paio nascer, completando,assim, a primeira viagem de umeuropeu corte dos mongis de quese tem registro.

    seguinte maneira: uma corda era firmemente amarrada adois postes enterrados no cho. Os potros das guas esco-lhidas para serem ordenhadas eram amarrados corda, paraque as guas ficassem junto de suas crias. Um homem per-

    o

    mitma que a cna mamasse por um momento, para emseguida retirar o animal e ordenhar a gua sem que ela per-cebesse.

    Depois, o leite era colocado em grandes bexigas ousacolas, que eram sovadas com um taco oco, cuja pontaparecia com a cabea de um homem. Com o tempo o leitecomeava a fermentar como vinho novo e o gosto se torna-va cido. Quando o gosto estava to aguado que raspava alngua e o lquido estava coagulado como manteiga, eraconsiderado perfeito. Aqueles que provaram o cosmosdiziam ter sabor de amndoa. "Uma bebida incrivelmentedoce e saudvel", descreveu-a Fra Johannes, "que alivia aincontinncia urinria."

    Mas estou divagando. FraJohannes e seu companheiro,um polons chamado Benedito, tinham sido enviados, peloPapa Inocncio, corte dos trtaros a fim de exort-Ios adesistirem do massacre da humanidade e aceitarem a f cris-t. Eles viajaram a cavalo de Lyons, depois pelo Dnieper epela Rssia, chegando ao pas dos quirguizes atravs deTashkent e das Montanhas Altai. Atravessaram desertos evadearam rios. No caminho, encontraram guerreiros e ban-didos. Tempestades de vero e nevascas, no inverno, atrasa-ram o progresso da viagem. Somente uma crena firme noseu propsito permitiu que alcanassem a terra dos trta-ros, onde apresentaram a petio do Papa ao prprioGrande Co

  • 86 I O Sonho do Cart6grafo .9ls'Mufitaes de 'Fra 'Mauro I 87

    Fra Johannes escreveu:"Esse povo tem estranhas crenas. Uma enfiar uma

    faca no fogo ou cortar com a machadinha perto do fogo.Eles acreditam assim captar o poder do fogo. Uma outra inclinar-se sobre o aoite antes de bater nos cavalos, e tocaras flechas com o aoite antes de lan-Ias ao inimigo."

    "O fogo ao que parece", acrescentou o bom monge,"faz parte de todas as atividades. Os homens que desejamentrar nos tabernculos devem passar por duas fogueiras,assim como qualquer presente enviado por prncipe ouembaixador. Este ato de purificao purga todas as coisas deveneno e outras maldades."

    Eu estava impressionado com a calma com que FraJohannes fazia suas observaes. Senti nele a convico deque o mundo tinha ordem, apesar das coisas estranhas quehavia presenciado. Era como se ele estivesse vendo as coisasde longe, talvez enlevado pela potncia do cosmos, que eleto claramente apreciara enquanto estava entre os trtaros.Essa bebida, que torna ntimo o universo, certamente fezcom que ele ficasse impressionado com coisas que outros,talvez, julgassem insignificantes.

    De que outra maneira pode-se julgar seu pronuncia-mento sobre certo povo que vivia embaixo da terra porqueno podia suportar o barulho do nascer do sol? SegundoFra Johannes, esse povo tinha emergido da terra para atacarGngis Khan e seus companheiros. Teriam exterminado oshomens de Gngis Khan no fosse o pavor que tinham dosom do sol. To alto era o som, que eles eram forados apermanecer com um ouvido no cho e outro coberto com amo, com medo de morrer. O barulho do nascer do sol per-

    mitiu que os homens de Gngis Khan exterminassem seusatacantes antes que eles tivessem tempo de se recuperar.

    Ou consideremos os monstros de um olho que elesencontraram em lugares desertos, os cclopes. Com um bra-o e uma mo projetando-se do trax e possuindo apenasum p, esses homens costumavam atirar flechas em srie.Mais rpidos do que um cavalo, tanto podiam se mover aospulos quanto fazer estrelas, dependendo da sua vontade.

    Ele falou, tambm, do povo de Buritabeth, que pareciaser constitudo, em sua maioria, por mulheres. Quandoperguntou onde os homens estavam, foi informado por elasque tinham sido exilados para a outra margem do rio devi-do a sua aparncia. Pareciam-se mais com ces do que comhomens, tendo adquirido essa caracterstica pelo hbito denadar durante o inverno e depois chafurdar-se na terra. Apele gelada formava uma crosta grossa com a lama, fazendocom que parecessem animais. Essa proteo defendia-os,com sucesso, contra as lanas e as flechas dos inimigos.Quando atacavam os trtaros, eles os feriam com os dentes.Os prprios trtaros falavam com freqncia de algumirmo ou pai que fora "morto por cachorros".

    Todas essas informaes despertaram a minha curiosi-dade. Os olhos tranqilos de Fra Johannes tornavam realum mundo de povos que davam pouca importncia aoshbitos dos homens civilizados. Sofisticao, luxo, ceticis-mo e fadiga do esprito no tinham posto razes entre as ri-das estepes da sia ou entre as tendas dos nmades que eleencontrou. Beber o Universo (sob a aparncia de leite degua) era ainda uma poo estonteante para esses povos sel-vagens e livres.

  • 88 / OSonho do CaTtgrafo .9IsMeditaes de 'FTaMauTo / 89

    "Nem ladres nem gatunos, os trtaros no almejamalcanar grandes riquezas", Fra Johannes escreveu. "Tran-cas e barras nas janelas so desconhecidas. Se um animal seperde do rebanho, a pessoa que o encontrou, invariavel-mente, o devolve a seu dono." Cortesia misturada comcrueldade parece ser uma caracterstica deles. Cavalgando,so capazes de suportar frio ou calor intensos. Para eles, osuprfluo escraviza e esto sempre alertas contra a embria-guez e a insolncia. de surpreender que eles tenham setornado um flagelo para os povos da Europa, que os tememcomo a peste? Quando batem nossa porta sabemos quevieram para nos aliviar de nossos excessos.

    O relatrio de Fra Johannes, embora datado, celebra omomento que vivo. No mundo dele, eu seria uma dessaspessoas que no se preocupam com o conforto da vida dacidade. Para elas, os desertos e lugares selvagens represen-tam no a morte, mas um teste de sobrevivncia. ele quelhes d fora para lutar contra a militncia da morte. Taispessoas no sucumbem necessidade de garantir qualquertipo de sofisticao. Ao contrrio, procuram o perigo naesperana de que ele intensifique sua luta pela vida.

    O relatrio de Fra Johannes sobre o pas dos trtarossugere que o mundo to polifnico quanto a msica deuma missa solene. Todos os ecos das aspiraes dos homensesto em contraponto. Quer seja o cosmos que bebamos ouo som do sol, que nos assiste, cada sensao faz com quenos conheamos melhor. A sabedoria que adquiridadurante o curso da vida o resultado da ternura da mentepara com o corao.

    Fra Johannes encontrou-se com homens que despreza-

    vam todo senso de ordem. Homens que, submetendo seuscorpos ao rigor dos rios gelados e chafurdando na terra paraficarem parecidos com cachorros, obviamente viam anima-lidade e ascetismo do mesmo modo. Homens selvagens exi-lados por suas mulheres revestem-se de uma aura de inven-cibilidade quando vo para uma guerra desigual. Podemderrotar at mesmo os homens mais cruis, no importan-do quo corts o inimigo tenha se revelado uma vez ououtra. A discrdia governa os seus atos. Animalidade eascetismo, crueldade e cortesia. Essas condies se friccio-nam e provocam uma fasca que inflama seus corpos numato de rebelio, com o qual eles aceitam estar em desacordocom eles mesmos, como a verdadeira dimenso de sua liber-dade.

    Os cclopes, aparentemente, tambm sabiam dissoquando transformavam sua incapacidade fsica em fora.Curvar-se como animais ou dar saltos mortais significavaque eles eram capazes de transformar sua desigualdade emunio, tirando partido de sua bvia desvantagem. A moque se projetava do trax parecia apontar em direo aoinfinito em vez de se constituir em visvel limitao.

    Enquanto medito sobre essas coisas, ouo, atravs dagua, os dobres dos sinos da torre de Veneza. Eles me fazemlembrar de que em nenhum momento nos distanciamosverdadeiramente de ns mesmos. Ouvindo os sinos, sei queesto me fazendo recuar do precipcio. Entretanto, sinto-me constrangido. s vezes quisera ter coragem de viajarpara alm de mim, viajar, como Fra Johannes, por regiesdesertas de estranhas criaturas com uma petio dirigida aoGrande Co Como resultado de sua aventura, Fra Johannes

  • 90 / O Sonho do Cart6grafo

    foi capaz de beber cosmos e experimentar uma transforma-o genuna, que jamais experimentara antes.

    Ah, esta uma condio a que aspiro. Eu, que fiz desselugar seguro a minha fortaleza. Ao contrrio dos cclopes,nunca sai do meu peito um gesto sequer para abarcar o queest alm desse mundo e abraar o imaginrio. No possofazer estrelas no espao. Ao contrrio, estou imobilizadopelo medo dessas coisas que no se coadunam com o meusenso de ordem. verdade, nunca ouvi o som do sol ecoan-do em meus ouvidos, nem uma vez.

    O que est errado? No sou do mesmo mundo daque-les guerreiros que chafurdam na lama? J no senti as farpasdo exlio? Talvez precise passar entre duas fogueiras e serpurificado. Entretanto, toda esta solido, este teste de vida,me perturba com sua intensidade. H tantas coisas a quedevo abdicar se quiser escutar, outra vez, o chamado daprofunda voz ancestral da alma.

    L fora, vejo a ltima luz do dia esmaecendo sobre alaguna. As pedras na minha cela parecem sofrer, quando ocalor comea a se dissipar. Ouo meus companheiros fradesarrastando os ps pelos corredores para o servio da noite,enquanto, em minha mesa, esto as palavras de algum iguala mim, peregrino dos quatro cantos do mundo. Esta noite,na capela, devo oferecer uma prece em Seu nome, pedindoa Ele que me d, tambm, o dom da coragem. As observa-es de Fra Johannes j me alertaram para o prazer quepode se extrair do sabor acre da amndoa, um sabor deriva-do no somente do leite de gua, mas do gosto do ascetismomisturado com a desordem.

    [INTRE os PAPIS que me foram legados peloenviado do Papa, estava o dirio de um outrofrade itinerante, William de Rubrouck. Elez., ~ , tambm havia feito uma viagem terra dostrtaros a pedido do Rei Lus, da Frana, Sua misso eraprocurar o lendrio Preste Joo, que diziam viver entre ospovos keriat. Durante sculos, houve o desejo de encontraresse fabuloso prncipe cristo do Oriente, na esperana deformar uma aliana. Conquistar os sarracenos e retomarJerusalm, segundo diziam, era um sonho de Preste Joo,assim como do Rei Lus."

    " Lus IX foi um dos primeirospatronos do movimento das cruza-das. Segundo Walter Map, ele era umhomem de sublime humildade e sua-

    ve autoconfiana, eptome da Franadurante a Idade Mdia. Refletindosobre as diferentes espcies de rique-zas possudas por vrios mandat-

  • 92 / OSonho rio Cartgrafo .% :Meditaes de ;rra :Mauro / 93

    at s Trs ndias, e se estende ndia mais distante, ondedescansa o corpo de So Tom, o Apstolo. Passa atravsdo deserto, em direo ao sol nascente, e continua pelo valeda rida Babilnia, perto da Torre de BabeI.

    "Em nossos territrios so encontrados elefantes,camelos e quase todas as outras espcies de animais que hsob o cu. O mel corre em nossas terras e o leite abunda emtodos os lugares. Em um de nossos territrios, o venenono faz mal, e sapos barulhentos no coaxam, no h escor-pies e as cobras no se arrastam na grama.

    "Numa das provncias dos pagos corre um rio chama-do Fson, que, vindo do Paraso, desliza atravs de toda aprovncia. Nele so encontradas esmeraldas, safiras, grana-das, topzios, nix, berilos, sardnix e muitas outras pedraspreClOsas.

    "Em uma de nossas provncias, h lagartos que em nos-sa lngua chamamos de salarnandras." Esses lagartos s

    A viagem de William pode ter sido feita em resposta auma carta recebida pelo ento Imperador dos bizantinos,Manuel Comneno, que, posteriormente, fez a ronda maioria das cortes europias, tal foi a curiosidade que des-pertou." Na carta, Preste Joo reconhecia sua fidelidade aoSenhor Jesus Cristo, enquanto apresentava suas saudaesao Imperador. Sugeria, tambm, que qualquer missoenviada a seu reino seria recebida com a cordialidade e o. .respeito que merecia,

    "Se o senhor desejar vir ao nosso reino", disse PresteJoo, "ser-lhe- oferecida a posio mais alta e mais digna denossa cidadela, e poder usufruir, livremente, de tudo quepossumos. Quando quiser retornar, voltar carregado detesouros. Se, realmente, quiser saber em que consiste o nos-so grande poder, ento acredite sem duvidar que eu, PresteJoo, que reino absoluto, supero em riquezas, virtudes epoder qualquer criatura que vive sob o cu. Fiz um voto devisitar o sepulcro de Nosso Senhor com um exrcito muitogrande, como convm glria de Nossa Majestade.

    "Alm disso", o rei acrescentou, "nosso domnio vai

    ~~~~

    rios, ele disse: "Poucos homens po-dem ter tudo. Os Reis da ndia soricos em pedras preciosas e animaisraros; o Imperador de Bizncio e oRei da Siclia so ricos em ouro eseda; o Imperador da Alemanha notem ouro nem seda, nem outras coi-sas luxuosas. O seu senhor, o Rei daInglaterra, tem tudo - homens, cava-los, ouro, sedas, pedras preciosas,animais selvagens - tudo. Ns, na

    Frana, no temos nada: s po, vi-nho e alegria de viver.".' Manuel I Comneno (1122-80)comandou as Cruzadas dos cristosdo Oriente. Brilhante soberano, sol-dado e diplomata, foi finalmente ani-quilado pelos turcos Seljuq, na siaMenor, que, por sua vez, prepararamo caminho para a ocupao da capitalbizantina pelos latinos em 1204.

    .' No bestirio medieval popular asalamandra simbolizava o fogo, paraos alquimistas. Acreditava-se serdela a natureza do fogo, uma essn-cia gnea conhecida como" essnciasalamandrina". Segundo Paracelso,Salamandrini era um homem ouesprito do fogo, um ser gneo.Porque provou ser incorruptvel aofogo, tal criatura desfru tou uma vidaparticularmente longa. A salamandraera conhecida como "enxofre incor-ruptvel", e que, segundo consta,provocava condies espirituais es-peciais no alquimista. Nicolas Fla-mel, um alquimista francs do sculoXIV, comparava a salamandra ao

    vaso hermtico no qual os alquimis-tas preparavam sua poo espiritual,o elixir da vida eterna. Ele observou:"Quantas vezes eu os vi (os alqui-mistas) vibrar de alegria com a minhacompreenso, afetuosamente mebeijar ao ver que o verdadeiro senti-do das ambigidades de seus ensina-mentos paradoxais me vinha mentecom facidade. Quantas vezes eles sedeliciaram com as magnficas desco-bertas que fiz sobre as recnditasdoutrinas dos antigos, fazendo comque revelassem ante meus olhos ededos o vaso hermtico, a salaman-dra, a lua cheia e o sol nascente."

  • 94 I O Sonho do Cartgrafo .9Is Mtitaes de ;rra Mauro I 95

    podem viver no fogo e formam uma pele em volta de simesmos, como faz o bicho da seda. A pele cuidadosamen-te transformada em fios pelas damas do palcio, que tecemas vestimentas comuns. Quando queremos lavar as roupasconfeccionadas com esse tecido, colocamo-Ias no fogo, eelas ficam limpas e novas.

    "Possumos, tambm, uma pedra de grande virtudemedicinal, capaz de curar cristos e futuros cristos. Napedra h uma cavidade em formato de concha gigante naqual a gua est sempre a uma profundidade de quatropolegadas. A gua sagrada tratada por dois homens san-tos. Eles perguntam a todos que vo visitar a pedra se socristos ou no, antes de consentirem que tirem a roupa eentrem na concha. Quando j fizeram isso trs vezes, agua, invariavelmente, volta sua altura normal. Todos queentram na gua saem completamente curados.

    "A lisonja no encontra guarida em nossa terra, nem hmentiras. No h rivalidade entre ns. Nosso povo temabundncia de riquezas. Nossos cavalos, entretanto, sopoucos e pssimos. Acredito que no haja ningum que seiguale a ns em riqueza e nmero de pessoas.

    "O palcio onde a nossa sublimidade vive cpia doprdio erigido para o Rei Gundafor pelo Apstolo Torn."

    O teto de bano e no danificado pelo fogo. Nas suasextremidades, acima dos oites, h duas grandes mas nasquais esto fixadas duas pedras preciosas, assim, o ouro bri-lha de dia e as pedras brilham noite. As maiores portas dopalcio so de sardnix impregnado no chifre da serpenteconhecida como cerastes; assim, ningum cruzar osumbrais com veneno. As refeies, em nossa corte, so ser-vidas em mesas feitas de ouro e arnetista apoiadas em colu-nas de marfim.

    "Na frente do palcio, h uma praa onde assistimos ajulgamentos por combate. A praa pavimentada com nixpara que a coragem dos combatentes seja intensificada pelasvirtudes da pedra. Nenhuma luz brilha em nosso palciosem que seja alimentada por blsamo. A cmara onde nossasublimidade repousa maravilhosamente decorada comouro e todos os tipos de pedras preciosas. Mas, sempre queo nix usado como um ornamento, quatro cornalinas soinstaladas perto para temperar as ms virtudes do nix.Nossa cama de safira, de acordo com a virtude da castida-de, que essa pedra tem em abundncia. Temos as mulheresmais belas, mas elas se aproximam de ns apenas quatrovezes por ano e unicamente para a procriao dos filhos.

    "Se voc me perguntar como que o Criador de todas

    ~~~~,- So Tom, o apstolo que duvidouda ressurreio de Cristo, foi o fun-dador do cristianismo indiano. Suacarreira ressaltada no apcrifo Atosde Tom, que foi provavelmenteescrito na cidade de Edessa no sculoterceiro. Em sua chegada ndia,Tom -Ioi convidado pelo Rei

    Gundafor a construir para ele umnovo palcio. Tom doou o dinheirocom o qual iria fazer o palcio paraos pobres e necessitados, incorren-do, assim, na ira do Rei. O irmo deGundafor, Gad, atormentado com aao de Tom, recolheu-se ao leito emorreu de humilhao. Na sua via-

    seu irmo sobre o esplndido palcioque o esperava no reino dos cus. Opedido foi atendido e depois de terouvido a histria de Gad sobre opalcio celestial, Gundafor rogou aTorn para aceit-lo como cristo.

    gem para o cu ele viu um palciomagnfico e perguntou o nome deseu dono. Foi informado de que opalcio pertencia ao seu irmo e queo arquiteto no era outro senoTom. Gad pediu permisso pararetor nar ao mundo para informar

  • 96 / O Sonho do Cartgrafo

    as coisas", Preste conclui, "tendo nos feito o mais supremoe mais glorioso de todos os mortais, no nos deu um ttulomais alto do que presbtero ou padre, no fique surpresopor isso, porque h uma razo. Na nossa corte temos mui-tos ministros que tm uma posio mais elevada do que anossa na Igreja e de maior prestgio no ofcio divino. Almdisso, na nossa famlia um empregado pode ser um patriar-ca ou um rei, um mordomo pode ser um arcebispo e um rei,um camareiro pode ser um bispo e um rei, um marechalpode ser um rei e um arcebispo, nosso cozinheiro, um rei eum abade. No parece prprio que Nossa Majestade assu-ma tais nomes, ou seja distinguido por esses ttulos queexistem em abundncia em nosso palcio. Assim, para mos-trar a nossa grande humildade, escolhemos ser chamadospor um nome menos importante e assumir um posto infe-rior. Se voc puder contar as estrelas no cu e a areia dapraia, ser capaz de julgar por si mesmo a vastido e poderdo nosso reino."

    Tal carta deve ter despertado uma grande curiosidadenas cortes da Europa logo que surgiu. A viagem de Williama pedido do Rei Lus deve ter sido confirmada assim comose esse reino ideal realmente existia. A idia de que PresteJoo possa ter governado cus e terras, somadas as suas safi-ras, virtudes e ttulos invertidos, deve ter sido uma perspec-tiva tentadora para homens h tanto tempo nas garras decontrovrsias e constantes guerras. Nenhum homem devalor poderia deixar passar a oportunidade de sentar-se aosps de um governante perfeito, fosse ele rei ou padre.

    William continuou a viagem para o pas dos trtarospor uma rota ligeiramente diferente da de seu predecessor,

    .9Is%eitaes e :Fra%auro / 97

    Johannes de Plano Carpini. Ele navegou do Acre, na TerraSanta, at o porto de Kaffa, no mar Negro. De l ele viajoupor terra atravs das estepes, e, ento, rumou para o nordes-te, no Lago Balkhash, onde atravessou as montanhas Altaina regio dos povos de N aiman.

    Seu dirio traz observaes do que ele viu no caminho.Ao comentar uma bebida servida numa taa em forma deum chifre curvo de um animal conhecido como artak ousobre os falces nos desfiladeiros da Prsia, William nuncase exime de esclarecer seus leitores. Seu mundo tal quecada incidente nos apaixona ao ponto de comearmos a nosperguntar se isso pode ter o ressaibo de mentiras.

    No sei porque digo isso, mas acredito que as viagensde William tenham sido feitas como reao a uma viso. Oreino de Preste Joo feito de campos de batalha em nixpressagiou-lhe uma utopia que ele achou difcil descontar.Parece que ele se subjugou a uma expectativa difcil dealcanar, pois percebeu, na maneira incomum de PresteJoo abordar um governo, um senso progressivo de dimi-nuio, aumentando, como em camadas, durante todo ocaminho, at o cume. Quem seno um potentado orientalpoderia erguer com as pedras ressecadas do deserto umenclave to magnfico para o seu povo?

    A carta de Preste Joo ao Imperador de Bizncio excitacom suas extravagantes declaraes. Nossa sublimidadecom sua liberalidade domina no apenas as Trs ndias, mastambm o que territrio interior. Pois o rei-padre que nov necessidade de um ttulo vive em estado elevado, prefi-gurando uma renovada confiana no valor de ser humano.Embora adore pedras preciosas, elas permanecem distantes

  • 98 / OSonha do Cart6grafo Yls %eitaes e ~ra %auro / 99

    de sua presena, pois seu objetivo alcanar um puro esta-do de independncia. Preste Joo movido mais por umsenso generoso de vida do que por aqueles tesouros que oatraem por suas qualidades ilusrias.

    No h reino mais repleto de angstia do que aqueleque confia na fidelidade a ideais inferiores. Preste Joo vivenum sonho. Imagina um estado perfeito sobre o qual reina.Sua cama forrada com castidade e suas esposas geram ape-nas filhos virtuosos. Toda doena transitria frente aoshomens santos e com a auto-irnerso nas conchas gigantes.Por toda a parte h uma espcie de inocente autoperpetua-o que capaz de silenciar os sapos e assegurar um cont-nuo fluxo de leite e mel.

    Na verdade, alguns princpios de excelncia funcionamem seu reino, e transcendem as decises do poder real. Eleno seu perpetrado r, mas seu criado. Da o seu desejo deser chamado pelo humilde ttulo de presbtero, em vez deum ttulo que sugira seu direito de ordenar a realidade deacordo com sua vontade.

    No so essas, declaraes descabidas de quem est sobo efeito de algum tipo de emanao delirante? Fra Mauro,s vezes me recrimino, este mapa est debilitando sua men-te. Voc tornou-se viciado nas observaes dos homens.Voc no mais voc mesmo, mas um composto de outroshomens. Voc permite que eles zombem de voc com top-zios, acreditando que essas pedras so a chave para uma ricavida interior. Como William de Rubrouck, voc caminhapenosamente por pases desconhecidos, procurando not-cias de algum reino mstico de que outros ouviram falar,mas, at agora, no visitaram. Convence-se que, em algum

    lugar, possvel a experincia de um reino de bern-avenru-ranas, embora seja difcil determinar sua forma. Alm domais, voc argumenta que a descrio de Preste Joo ,obviamente, uma completa inveno criada para perpetuaruma mentira. Pois homem nenhum, voc diz a si mesmo,poderia usar roupas tecidas com a pele de salamandras esobreviver prova do fogo.

    Ainda assim, reluto em denunciar Preste Joo comouma fraude. De acordo com o relatrio de William, certodia ele encontrou um pastor em Catai que contou a elesobre um rei cristo reinando sobre o povo de N aiman."Eles o chamam Rei Joo, e contaram dez vezes mais coisassobre ele do que corresponde a verdade", William escreveu."Seu povo se encarrega de espalhar rumores, mas nadainforma." No que diz respeito a William, a histria do pas-tor confirmou o que ele suspeitava: a lenda de Preste Jooganhou estatura quanto mais para o Ocidente ela foi sendodivulgada.

    A presena de sua carta nos arquivos do Vaticano ser-via, apenas, para enfatizar a existncia de um reino imagin-rio. Que ele tivesse continuado a viver na mente doshomens por tantos sculos confirma pelo menos algumacoisa sobre as aspiraes humanas, que o povo anseia porum reino de Deus. Eu no era tolo em acreditar na toalmejada utopia. O Rei Lus tinha acreditado nela, e, tam-bm, William, quando partiu para sua viagem. Entre eles,rei e frade tinham feito um pacto de distncia e vicissitudesna esperana de descobrir o prottipo do prncipe ideal.Eles queriam saber se era possvel para algum, prncipe oupobre, elevar-se acima do fluxo normal da existncia.

  • III1

    100 / O Sonfw tio Cart6grafo

    o reino de Preste Joo fica numa rota desconhecida dosmercadores. Ou melhor, ele estabeleceu seu reino na mentede viajantes e peregrinos. Esses homens so iguais a mim. Oque eu conclu a partir de documentos e confinado ao meuestdio, eles escolheram buscar nos confins da terra. Noocorreu a eles que boa parte desse mundo era fruto de suaimaginao. A perspectiva de se depararem com mesas deouro incrustadas com pedras preciosas era mais do quesuficiente para mant-Ios a caminho. Se Preste Joo notivesse informado que Ihes daria a mais alta posio, teriameles ido visit-Io? Eles ansiavam tornar-se sditos de seusexcessos, que ele prodigalizava com certa indiferena. Elesansiavam tornar-se seus escravos.

    Preste Joo reinou sobre um mundo invisvel. Vivianum palcio que estava em toda a parte e em parte algumaao mesmo tempo. Quem quer que o visitasse ficava exalta-do com a possibilidade de manter a lenda viva. Meu prpriodesejo era transcrever a localizao de seu reino no meumapa. Sabia que seria impossvel. Esse homem, que se ves-tia com pele de salamandra para permanecer imune ao fogo,sabia como erguer-se das prprias cinzas. Ele era um serdivino, absolutamente incorruptvel, seguindo o rio da vidaenquanto percorria provncia aps provncia oferecendo atodas a ddiva do conhecimento.

    Foi suficiente para William e para mim maravilharmo-nos com a fora da histria. No fim, era invisvel presenade Preste Joo que ns devamos, afinal, prestar nossahomenagem, cientes de que seu palcio fora construdocom muito mais do que mas douradas e pedras preciosas.Fora construdo de sonhos.

    tilERTA TARDE, RECEBI a visita de um mercadorque havia voltado da Prsia recentemente.Digo mercador porque ele me informou que~ ~ . . .~ ~ comprava e vendia sedas e espeCIanas queobtinha nos mercados do Oriente. Minha primeira impres-so sobre o homem, depois de ouvi-lo falar, foi que ele lida-va com mercadorias mais exticas do que aquelas normal-mente atribudas ao comrcio.

    Ele falava grego fluentemente, embora com um acen-tuado sotaque levantino. Talvez fosse nativo de uma dascomunidades gregas da sia Menor. Mas ele no me ofere-ceu informao alguma sobre sua terra natal. Fiquei com aimpresso que seu escritrio estava sob a sua capa e suaresidncia era a cabine de um navio. Srio e ponderado emsuas opinies, revelava seus pensamentos como uma pessoa