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1 O ECONOMICISMO E A INVISIBILIDADE DAS CLASSES 1 . Jessé Souza O objetivo deste texto é refletir acerca das assim chamadas “classes populares” no Brasil contemporâneo. Toda intervenção no campo das idéias se dá, no entanto, dentro de um contexto já constituído com uma semântica e um conjunto de noções dominantes. Perceber isso é especialmente importante quando se trata da questão mais importante para a estrutura e legitimação de toda a ordem social: o tema da produção e reprodução das classes sociais. Não existe questão mais importante para a compreensão adequada de qualquer ordem social posto que: 1) é o pertencimento de classe que nos esclarece acerca do acesso positiva ou negativamente privilegiado a qualquer tipo – material ou ideal – de recurso social escasso; e, 2) dado que a sociedade moderna se legitima na medida em que “aparece” como justa e igualitária, são as justificativas para a desigualdade efetiva entre as classes que formam o núcleo da legitimação social e política que permitem que a sociedade moderna possa ser aceita como justa também pelos injustiçados e humilhados por ela. Quando dizemos que o pertencimento de classe é a questão mais importante da vida social é porque ela não define apenas o acesso privilegiado a todo tipo de “bem material”, como a compra do carro do ano e do apartamento com varanda. Esse pertencimento pré-decide também o destino dos recursos escassos “ideais” como respeito, auto-estima, reconhecimento, “cultura”, prestígio, “charme”, os quais vão permitir, portanto, não só o acesso diferencial a “empregos de prestígio e bons salários”, mas, também, o acesso a certos amigos, a “conquista” bem sucedida de certo tipo de mulher ou de homem, e de tudo àquilo que desejamos e sonhamos acordado ou dormindo todas as 24 horas do dia. Assim, compreender a produção e a reprodução das classes sociais é a “chave mestra” para o desvelamento do “mistério” do funcionamento da sociedade como um todo. O problema é que o descobrimento do “mistério” acerca do mecanismo de funcionamento da realidade social tem vários e poderosos inimigos. Todos os interesses e poderes que “estão ganhando” têm interesse na reprodução da sociedade injusta e desigual tal como ela é e a legitimam, por exemplo, dizendo que todo privilégio vem da ideologia – da qual trataremos em detalhe mais tarde - do “mérito 1 Agradeço a Maria Teresa Carneiro e Ricardo Visser pelas críticas e comentários a este texto.

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    O ECONOMICISMO E A INVISIBILIDADE DAS

    CLASSES1.

    Jess Souza

    O objetivo deste texto refletir acerca das assim chamadas classes populares no

    Brasil contemporneo. Toda interveno no campo das idias se d, no entanto,

    dentro de um contexto j constitudo com uma semntica e um conjunto de noes

    dominantes. Perceber isso especialmente importante quando se trata da questo

    mais importante para a estrutura e legitimao de toda a ordem social: o tema da

    produo e reproduo das classes sociais. No existe questo mais importante para a

    compreenso adequada de qualquer ordem social posto que: 1) o pertencimento de

    classe que nos esclarece acerca do acesso positiva ou negativamente privilegiado a

    qualquer tipo material ou ideal de recurso social escasso; e, 2) dado que a

    sociedade moderna se legitima na medida em que aparece como justa e igualitria,

    so as justificativas para a desigualdade efetiva entre as classes que formam o ncleo

    da legitimao social e poltica que permitem que a sociedade moderna possa ser

    aceita como justa tambm pelos injustiados e humilhados por ela.

    Quando dizemos que o pertencimento de classe a questo mais importante da vida

    social porque ela no define apenas o acesso privilegiado a todo tipo de bem

    material, como a compra do carro do ano e do apartamento com varanda. Esse

    pertencimento pr-decide tambm o destino dos recursos escassos ideais como

    respeito, auto-estima, reconhecimento, cultura, prestgio, charme, os quais vo

    permitir, portanto, no s o acesso diferencial a empregos de prestgio e bons

    salrios, mas, tambm, o acesso a certos amigos, a conquista bem sucedida de

    certo tipo de mulher ou de homem, e de tudo quilo que desejamos e sonhamos

    acordado ou dormindo todas as 24 horas do dia. Assim, compreender a produo e a

    reproduo das classes sociais a chave mestra para o desvelamento do mistrio

    do funcionamento da sociedade como um todo.

    O problema que o descobrimento do mistrio acerca do mecanismo de

    funcionamento da realidade social tem vrios e poderosos inimigos. Todos os

    interesses e poderes que esto ganhando tm interesse na reproduo da sociedade

    injusta e desigual tal como ela e a legitimam, por exemplo, dizendo que todo

    privilgio vem da ideologia da qual trataremos em detalhe mais tarde - do mrito

    1 Agradeo a Maria Teresa Carneiro e Ricardo Visser pelas crticas e comentrios a este texto.

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    individual. Todas as propagandas de cigarro ou carro, todos os Best Sellers vendidos

    como romance, 90% dos filmes de grande bilheteria, todas as telenovelas, alm de

    toda a percepo fragmentada da realidade cotidiana que confunde o principal e o

    secundrio e ficam na superfcie de toda real compreenso do mundo social tambm

    ajudam para a manuteno da opacidade social.

    Mas quem termina por fechar o crculo que constri a nossa cegueira acerca do

    efetivo funcionamento da sociedade so as cincias da ordem, ou seja, as cincias

    que cumprem papel semelhante s propagandas de cigarro, s telenovelas, e

    fragmentao da conscincia cotidiana. As cincias da ordem perfazem 80% ou 90% do

    que se passa por cincia seja no Brasil seja fora dele. As cincias da ordem imitam a

    cincia verdadeira apegando-se aos artifcios de cientificidade, exemplarmente a

    partir da quantificao da realidade afinal os nmeros lembram exemplarmente as

    cincias naturais - com equaes e grficos. Mas elas no so cincias de verdade,

    pelo simples fato de que cincia verdadeira apenas a cincia crtica desta mesma

    realidade. Apenas a cincia crtica capaz de explicitar todos os conceitos que usa

    para no contrabandear noes do senso comum comprometidas com a manuteno

    da ordem e, desse modo, ser capaz de reconstruir a sociedade no pensamento

    como um todo. apenas deste modo que podemos restituir a compreensibilidade

    roubada pelos interesses da manuteno e reproduo de todos os poderes que esto

    ganhando. A cincia social tem que ser crtica da realidade social seno no

    verdadeira. Seno ela apenas reflete e refora com o prestgio da cincia os mesmos

    preconceitos sociais que produzem e reproduzem a dominao social e sua

    legitimao.

    Minha tese que o tema da produo e reproduo das classes sociais no Brasil o

    tema que poderia estruturar uma concepo verdadeiramente crtica sobre o Brasil

    contemporneo - dominando por uma leitura economicista e redutora da

    realidade social. Por economicista eu no imagino gostaria que fosse ocioso dizer

    isso, mas infelizmente no algo que atributo de economistas. No estou de

    modo algum em uma cruzada corporativista que oporia socilogos a economistas

    at porque a maior parte dos meus colegas socilogos so, eles prprios, ou

    economicistas ou adeptos da desfigurao da realidade social que a fragmentao

    da disciplina em incontveis reas de interesse provoca. Mas no so apenas

    economistas e socilogos que so economicistas. Toda a realidade social

    economicista posto que construda para receber e consumir conhecimento

    superficial e confundir informao com reflexo.

    Iremos escolher dois dos mais eminentes economistas brasileiros para criticar o

    economicismo e perceber suas possibilidades e limites, simplesmente pelo fato de

    que a economia tornou-se a cincia da ordem oficial, inclusive tomando para si

    temas antes tpicos de outras cincias como o tema das classes e da desigualdade

  • 3

    social. Duas razes so decisivas para o novo papel da economia e dos economistas: 1)

    a esfera econmica a esfera social mais visvel o que no significa mais

    importante - nos seus efeitos sobre a sociedade; e, 2)a economia logrou construir para

    si a partir de sua formalizao matemtica conseqente uma aparncia de

    cientificidade derivada das cincias naturais.

    Certamente, a economia tem muito a contribuir para o esclarecimento da realidade

    social confusa. Mas ela aparenta dar mais coisas do que efetivamente d. Ela

    promete coisas que no entrega. A temos o economicismo: uma viso empobrecida

    e amesquinhada da realidade, como se fosse toda a realidade social. Vamos

    examinar a obra recente de dois dos mais festejados e reconhecidos economistas

    brasileiros, os professores Mrcio Pochmann2 e Marcelo Nri3, para tentar comprovar

    nossa hiptese. Se minha hiptese estiver correta, poderemos, na segunda parte deste

    artigo, a partir da demonstrao precisamente daquilo que o economicismo esconde

    ou no entrega, reconstruir um diagnstico mais completo de nossos problemas e

    desafios do que os que esto disponveis hoje em dia no debate pblico brasileiro.

    LIMITES E POSSIBILIDADES DO ECONOMICISMO

    Ao ler o livro do Prof. Pochmann fui surpreendido com o fato de que este autor, to

    srio e competente, ter feito uma aluso4 ao meu livro Os batalhadores brasileiros:

    classe mdia ou classe trabalhadora? UFMG, 2010, como sendo um daqueles que

    teriam associado a assim chamada classe C ao conceito de classe mdia

    ascendente5. Em considerao a capacidade de interpretao do Prof. Pochmann eu

    presumo que ele no leu o livro e sequer atentou ao ttulo, o qual j antecipa o debate

    precisamente contra essas mesmas interpretaes as quais ele me vincula, talvez, na

    nsia de por todos os autores que escreveram sobre o tema em uma mesma gaveta.

    No existe uma s vrgula em todo o texto coletivo do livro que possa ter levado

    Pochmann a essa concluso. O contrrio o caso. Durante todo o livro construmos o

    conceito de uma classe trabalhadora precarizada em formao, utilizando, para isso,

    tanto trabalho terico de modo a compreender essa formao como ligada a

    desenvolvimentos recentes do capitalismo internacional, quanto trabalho emprico

    qualitativo de trabalhadores do setor de servios, comrcio, agricultura e indstria

    artesanal de todas as grandes regies brasileiras. A verdade que antecipamos em

    2 Pochmann, Marcio, Nova classe mdia? O trabalho na base da pirmide social brasileira, Boitempo,

    2012. 3 Nri, Marcelo, A nova classe mdia: o lado brilhante da base da pirmide, Saraiva, 2012.

    4 Souza, Jess et alli, Os batalhadores brasileiros: nova classe mdia ou nova classe trabalhadora?, Ed.

    UFMG, 2010. 5 Pochmann, ibid, Pag. 30

  • 4

    2010 a concluso principal do trabalho do prprio Prof. Pochmann dois anos mais

    tarde: ou seja, em suas prprias palavras, que a suposta classe C na verdade

    representa uma reconfigurao de parte significativa da classe trabalhadora6.

    Quaisquer que tenham sido os motivos que levaram Pochmann tanto a ter induzido o

    seu leitor em erro quanto a no reconhecer que sua tese principal j havia sido

    formulada antes, no queremos, aqui, incorrer no mesmo engano. O trabalho de

    Pochmann, em seu livro recente, representa para mim uma das anlises estatsticas

    mais preciosas acerca de todo o desenvolvimento das relaes de trabalho no Brasil

    contemporneo. O fato de ter examinado todo o desenvolvimento recente da

    estrutura das relaes de trabalho no capitalismo brasileiro desde os anos 70, permitiu

    que Pochmann pudesse perceber tendncias de desenvolvimento fundamentais para

    qualquer anlise das relaes de classe neste perodo. Assim, o leitor tem uma idia

    clara e bem construda acerca de praticamente todas as variveis importantes das

    transformaes estruturais do capitalismo brasileiro. Exemplos disso so os estudos

    sobre a evoluo da composio setorial das ocupaes, a evoluo do saldo lquido

    mdio anual das ocupaes geradas, alm de uma preciosa anlise em detalhe acerca

    da renovao ocupacional da base da pirmide social no Brasil nos ltimos dez anos

    que o aspecto mais aprofundado em todo o livro.

    O ponto talvez mais relevante de toda a pesquisa para os nossos fins aqui a tese de

    que todo o movimento positivo da pirmide social brasileira, na primeira dcada do

    sculo XXI, na verdade envolveu postos de trabalho que se encontram na base da

    pirmide social. Nesta, os movimentos mais importantes indicam a criao de quase

    dois milhes de ocupaes abertas anualmente, em mdia, para os trabalhadores com

    remunerao mensal de at 1,5 salrios mnimos, e de 616 mil postos de trabalho

    anuais em mdia, para a parcela de ocupados pertencentes faixa de rendimento

    entre 1,5 e 3 salrios mnimos7. Na maior parte de seu estudo, Pochmann se dedica a

    mostrar em maior detalhe o universo ocupacional precisamente desses trabalhadores.

    O trabalho de Neri, assim como o de Pochmann, tambm o trabalho de um virtuoso

    no uso de dados estatsticos. A mirade de dados dos rgos censitrios e de pesquisa

    do governo so tornados compreensveis e agrupados de modo a estabelecer relaes

    estatsticas importantes. Estamos tratando aqui com pesquisadores qualificados,

    inteligentes e de grande inventividade. Afora uma diferena de tom no existe

    nenhuma diferena substancial entre a anlise estatstica de Pochmann e a anlise de

    Neri em seu mais recente trabalho que estaremos usando para fins de contraposio.

    Ambos, inclusive, louvam os mesmos aspectos principais deste fenmeno recente que

    so, para os dois, a expanso do emprego formal com carteira assinada8, o potencial

    6 Ibid, Pag. 123.

    7 Ibid, pag. 19.

    8 Pochmann, ibid, pag. 38 e Neri, ibid, pag. 183.

  • 5

    de mobilidade ascendente acompanhando de incluso no mercado de bens e

    consumo9 e a diminuio da abissal desigualdade brasileira10. At os fatores causais

    dessa mudana so percebidos por ambos do mesmo modo, na medida em que os

    ganhos de salrio real e aumento real do salrio mnimo, por um lado e o sucesso do

    bolsa famlia e do micro-crdito, por outro lado, so compreendidos como elementos

    decisivos.

    Como a fonte dos dados para os dois muito semelhante, muito da aparente diferena

    pode ser esclarecida pelo fato de Pochmann analisar o ganho individual, enquanto a

    famlia e seus rendimentos agregados a unidade bsica da anlise estatstica de

    Neri11. Afora isso, as anlises de ambos possuem os mesmos pontos fortes e fracos:

    excelente tratamento estatstico dos dados, por um lado, e carncia de qualquer fora

    explicativa mais profunda do fenmeno analisado por outro. A nica diferena

    efetivamente observvel que Pochmann enfatiza o fato de que estamos falando da

    base, da classe trabalhadora, do setor de baixo da populao brasileira ou seja,

    repete, sem citar, o que havamos dito antes dele - enquanto Neri enfatiza o carter

    mediano e ascendente deste mesmo grupo. Ainda que o modo como denominamos

    os fenmenos sociais seja importante j que a forma como eles so interpretados

    socialmente depende disso, no basta, no entanto, denominar os fenmenos sociais

    para compreend-los.

    Efetivamente a construo do conceito de uma nova classe mdia por Marcelo Neri

    carece de qualquer reflexo aprofundada. Neri simplesmente toma o rendimento

    mdio como indicador daquilo que ele chama de classe C ou nova classe mdia. Em

    seguida imaginando com isso contornar todas as dificuldades desta noo diz que

    no est falando de classe social, supostamente para tranqilizar os socilogos,

    mas sim de classes econmicas12. O conceito de classe econmica absurdo de fio

    a pavio j que; ou pressupe que as determinaes econmicas so as nicas variveis

    realmente importantes para o conceito de classe o que eu suponho seja

    efetivamente o caso ainda que o autor no tenha a coragem de admitir13 - ou, caso

    contrrio, deveria simplesmente se referir a faixas de renda e no a classes. Esta

    ltima opo no a de Neri at porque faixas de renda no possuem o mesmo

    apelo no imaginrio das pessoas que classe. Ao contrrio, Neri usa as tais classes

    econmicas como se fossem classes sociais em sentido estrito, j que o ponto

    decisivo que elas tomam o seu lugar na analise e so o fundamento central para

    todas as hipteses construdas por Neri para explicar o Brasil contemporneo e seus

    dilemas e desafios.

    9 Pochmann, ibid, pag. 46 e Neri, ibid, pag. 85.

    10 Pochmann, ibid, pag. 31 e Nri, ibid, pag. 59.

    11Pochmann, ibid, pag. 19 em diante, e Nri, ibid, pag.81

    12 Nri, ibid, pag. 17.

    13 Como as recorrentes menes de Nri ao bolso como parte mais sensvel do corpo humano deixam

    entrever. Nri, ibid, pag. 17.

  • 6

    O problema que, apesar de sua inteno explcita, a anlise de Pochmann no

    fundamentalmente diferente da de Neri. Ao contrrio, para alm das diferenas

    superficiais j apontadas, Pochmann compartilha todos os fundamentos essenciais da

    anlise de Neri. Pochmann acrescenta, em relao a Neri, um estudo mais detalhado

    das ocupaes que ganharam dinamismo no ltimo momento econmico e confere

    menos nfase aos dados de consumo. Assim, poderamos dizer, utilizando as

    subdivises consagradas por Karl Marx acerca da esfera econmica, que Neri pratica

    um economicismo da distribuio, enquanto Pochmann pratica um

    economicismo da produo. Mas o principal, o economicismo, ou seja, a crena

    explcita ou implcita, de que a varivel econmica por si s esclarece toda a realidade

    social est presente nos dois autores e contamina todas as suas hipteses e

    concluses.

    Assim, ainda que eu concorde com as crticas de Pochmann, dirigidas provavelmente

    ao prprio Neri na introduo do seu livro, no acho que Pochmann acrescente

    qualquer ponto explicativo decisivo em relao a Neri que possa p-lo no outro plo

    do debate brasileiro acerca dessas questes fundamentais. Citemos o prprio

    Pochmann literalmente:

    Em sntese: entende-se que no se trata da emergncia de uma nova classe

    muito menos de uma classe mdia. O que h, de fato, uma orientao alienante sem

    fim, orquestrada para o seqestro do debate sobre a natureza e a dinmica das

    mudanas econmicas e sociais, incapaz de permitir a politizao classista do

    fenmeno de transformao da estrutura social..14

    .

    Assim como para Pochmann, meu interesse maior precisamente estimular com

    meios do esclarecimento cientfico a politizao classista das transformaes

    sociais no Brasil recente. O que no acredito que o trabalho de Pochmann

    malgrado as preciosas informaes que o tratamento srio e qualificado dos dados

    estatstico proporciona - tenha efetivamente contribudo de qualquer forma

    substancial para este desiderato. Afinal no simplesmente apresentando os dados

    ainda que muito bem agrupados e esclarecidos da estrutura ocupacional que se

    conhece e se compreende qualquer coisa relevante acerca da dinmica das lutas de

    classe do Brasil contemporneo.

    Esse ponto condensa precisamente todo o balano crtico que gostaria de fazer da

    obra desses dois autores: ainda que o tratamento estatstico dos dados, seja no nvel

    da produo, como em Pochmann, seja prioritariamente no nvel do consumo, como

    em Neri, seja extremamente bem feito nos dois casos, proporcionando informaes

    valiosas para qualquer interpretao que se queira fazer da realidade, nos dois

    casos, temos apenas isso: informaes valiosas para uma posterior interpretao.

    14

    Pochmann, ibid, pag. 8

  • 7

    O que os dois autores produzem ajudar a mapear um campo a ser explorado

    pelo pensamento reflexivo e interpretativo com ajuda de conceitos que permitem,

    estes sim, problematizar a realidade em toda a sua realidade. Ai est, em minha

    opinio, as possibilidades e os limites do economicismo e de todo conhecimento

    estatstico.

    Como informao preliminar no existe conhecimento mais valioso, tanto que

    utilizamos, ns mesmos, dados estatsticos de estudos anteriores tanto do prprio Neri

    quanto do prprio Pochmann (e do IPEA) para escolher alguns dos tipos sociais de

    nossa ltima grande pesquisa qualitativa. Os dados estatsticos permitem o acesso

    grandeza e significao quantitativa dos elementos que informam a transformao

    dos fenmenos sociais. Da sua importncia fundamental. Interpretar a realidade sem

    essa ajuda pode ser desastroso. Confundir a apresentao desses dados, no entanto,

    com uma efetiva compreenso da realidade, muito especialmente dos meandros

    que envolvem a legitimao do poder simblico indispensvel para qualquer

    dominao social bem sucedida objetivo que parece estar no centro das atenes

    tambm de Pochmann , para dizer o mnimo, muito ingnuo.

    Mas aqui eu no quero apenas dizer a crtica. Eu quero enfrentar o desafio de

    comprov-la com o meio tpico do debate cientfico por excelncia que a

    competio entre argumentos. Isso parece ser bvio, mas, infelizmente, no . Entre

    ns confunde-se o tempo todo o poder interpretativo dos conceitos com as posies

    polticas pessoais ou, ainda pior, as posies partidrias - dos autores que as

    enunciam com resultados previsivelmente lamentveis. Por exemplo, Srgio Buarque,

    que no seu livro mais importante, Razes do Brasil15, criou a falsa oposio entre

    Estado corrupto e mercado virtuoso e o falso tema do patrimonialismo estatal como

    maior problema nacional, criando as bases ideais modernas de um liberalismo to

    cego e perverso quanto o brasileiro, tido, por ter sido, no final da vida, um dos

    fundadores do PT, como um escritor progressista. O programa do partido

    liberal/conservador brasileiro mais importante, o PSDB, no entanto, , no seu ncleo

    principal de defesa do Estado mnimo e combate s supostas oligarquias patrimoniais,

    a mais perfeita realizao institucional e partidria das idias de Buarque. Pergunto ao

    leitor: quem o Buarque mais relevante, afinal, o cidado que assinou a ficha de

    inscrio de um partido de trabalhadores, ou o criador de uma idia que se expandiu

    por todo o pas e se institucionalizou em partidos, rgos de imprensa, senso comum

    discutido nas ruas, etc.?

    O mesmo poderia ser dito de Raimundo Faoro, outra vaca sagrada do nosso panteo

    de grandes pensadores intocveis, cuja crtica acirra dios de muitos como se ele fosse

    um ente acima dos mortais e acima da crtica. Faoro, na verdade, apenas continuou o

    trabalho de Buarque e influenciou decisivamente a obra de alguns de nossos

    15

    Buarque, Srgio, Razes do Brasil, companhia das letras, 2003.

  • 8

    pensadores conservadores mais eminentes aqueles que legitimam com meios

    pseudo-cientficos a reproduo de todos os privilgios injustos - como Simon

    Schwartsmann, Bolvar Lamounier ou Roberto DaMatta. Eu ainda me lembro,

    adolescente, da admirao que sentia por Faoro como presidente da OAB na luta pela

    redemocratizao do Brasil. Um liberal/conservador lutando contra uma ditadura pode

    demonstrar notvel coragem pessoal, mas isso no torna as suas idias progressistas

    ou verdadeiramente crticas.

    Mas a confuso entre pessoa e obra fruto da pouca institucionalizao da esfera

    cientfica e, portanto, da fragilidade do mundo das idias entre ns. Ainda hoje a

    imensa maioria dos nossos intelectuais ainda pensa que quem tem uma boa idia deve

    realiz-la, e torn-la prtica no Estado. Como se houvesse um abismo entre idia

    e prtica, quando na verdade, as idias so performativas, ou seja, elas so em si

    ao, e pensar o mundo de modo alternativo, ou contribuir no mundo das idias

    para uma percepo crtica deste mundo j , em alguma medida varivel, mud-lo.

    por isso que o debate de idias cientficas primeira trincheira da luta poltica e da

    luta de classes16. E ai o que precisamos de idias que tenham o poder de

    reconstruir o mundo no pensamento de outro modo de como ele se apresenta

    nossa conscincia. A relao entre cincia e poltica no externa, como se fosse

    possvel posies progressistas com conceitos ultrapassados e limitados. Ao

    contrrio, a relao interna prpria cincia e depende da fora argumentativa e do

    alcance interpretativo de seus conceitos.

    Para o leitor atento existe um mtodo infalvel de perceber, mesmo no sendo

    especialista, quando ele est diante de uma perspectiva cientfica crtica daquelas

    que re-constroem o mundo confuso em pensamento lhe conferindo

    compreensibilidade ou diante de uma abordagem menos ambiciosa e passvel de ser

    colonizada pelas noes de senso comum. que toda abordagem verdadeiramente

    crtica tem que prestar conta de seus pressupostos. Um exemplo do nosso tema em

    discusso pode deixar esse ponto central mais claro. Pochmann critica na introduo

    de seu livro a abordagem de Neri ainda que no o nomeie diretamente por que ela

    seria incapaz de permitir a politizao classista do fenmeno de transformao da

    estrutura social.... do Brasil17. Concordo em gnero, nmero e grau com a crtica de

    Pochmann a Neri. Eu s no concordo que Pochmann faa aquilo que critica nem que

    ele explique adequadamente o que ele entende por estrutura social.

    O que , afinal, estrutura social e, mais importante ainda, o que a estrutura social

    tem a ver com as classes sociais? Por que um estudo to bem feito como o de

    Pochmann acerca da estrutura ocupacional do Brasil nos ltimos 40 anos apresenta

    16

    A cincia herda boa parte do prestgio das grandes religies e no existe assunto na esfera pblica que dispense a presena de um especialista cientfico. Todas as idias que movimentam partidos, imprensa, instituies, prticas sociais, foi ou criao de intelectuais em sentido lato. 17

    Pochmann, ibid, pag. 8.

  • 9

    limites que o deixam prximo do estudo mais superficial de Neri malgrado a inteno

    de seu autor? E, ainda, como se pode ir alm, na verdade muito alm, do que ambos

    os autores ofereceram? Essas so as trs questes as quais quero me dedicar a seguir.

    PARA IR ALM DO ECONOMICISMO

    Quais so os pressupostos da anlise de Pochmann, que ele no explicita, e quais suas

    limitaes para perceber tanto o tema da estrutura social quanto da luta de classes?

    Pochmann utiliza em seu estudo noes marxistas centrais e partir do uso

    conseqente dessas noes que ele pretende vislumbrar a estrutura social do Brasil

    moderno e as relaes de classes que ela enseja. A noo central de capital, definida

    por Marx, seguindo David Ricardo, como expresso de trabalho acumulado 18, servia

    a Marx precisamente para compreender a estrutura social e a dinmica de classes

    por ela criada, para alm da vaga e fragmentada idia que temos dela no senso

    comum. Capital j era, para Marx, um conceito relacional, ou seja, ele s desenvolve

    suas virtualidades de apropriao de privilgios em uma situao social concreta.

    Assim, a propriedade dos meios de produo, capital fixo, produto ele prprio de

    trabalho acumulado anterior morto e materializado nele, define a classe dos

    capitalistas. A classe dos despossudos dos meios de produo de seu prprio trabalho

    tem que vender a nica mercadoria que possuem, o trabalho vivo, para ser

    empregado e explorado pelo capitalista que recebe um algo a mais do que investiu,

    seja pelos meios de produo que adquiriu, seja pelo trabalho que comprou sob a

    forma salarial.

    Tambm a qualificao do trabalho para Marx um produto de trabalho

    acumulado anterior. Assim, o valor maior pago ao trabalho mais qualificado, na

    verdade pagaria o tempo de trabalho investido na sua formao. Essa diferena na

    qualidade do trabalho seria a principal responsvel pela estratificao social interna

    da classe trabalhadora. E precisamente o estudo das variaes estatsticas da

    estratificao interna da classe trabalhadora brasileira dos ltimos 40 anos que perfaz

    o cerne do trabalho de Mrcio Pochmann.

    Ainda que Karl Marx tenha sido um autor genial e o pai de toda a cincia social crtica,

    as cincias sociais no pararam em 1883 quando Marx morreu. Ao contrrio, elas se

    desenvolveram e se sofisticaram pelo menos a meu ver - a um ponto em que as

    grandes questes marxistas clssicas puderam ser respondidas de modo muito mais

    convincente. O conceito central de capital, por exemplo, foi desenvolvida por outros

    autores, como o socilogo francs Pierre Bourdieu, com um potencial criativo muito

    18

    Marx, Karl, Das Kapital, Tomo I, in: Marz-Engels Werke, Volume 23, Berlin oriental 1953.

  • 10

    mais penetrante, esclarecedor e sofisticado do que seu uso por Marx. Em primeiro

    lugar, capital deixa de ser apenas uma categoria econmica, mas passa a incluir

    tudo aquilo que passa a ser decisivo para assegurar o acesso privilegiado a todos os

    bens e recursos escassos em disputa na competio social. Ainda que Bourdieu

    reconhea que o capital econmico decisivo para assegurar vantagens permanentes

    nesta disputa, ele no est sozinho.

    Para alm do capital econmico, uma das maiores descobertas de Bourdieu para a

    cincia social crtica foi a descoberta da importncia, to central como a do capital

    econmico, do capital cultural. Capital cultural para Bourdieu tudo que aquilo que

    logramos aprender e no apenas os ttulos escolares. O conhecimento, a cincia,

    j era fundamental para Marx j que a reproduo do capitalismo depende de

    conhecimento, seja para qualificar sua fora de trabalho, seja para auferir ganhos

    em produtividade em inovaes tcnicas aplicadas aos meios de produo. Mas Marx

    era um homem do sculo XIX e pensava o processo de aprendizado como o de um

    sujeito j pronto que adiciona certo tipo de conhecimento sua bagagem, como

    algum enche um cesto vazio quando vai a feira do Sbado. Nesta concepo, o

    conhecimento se aloja na cabea do sujeito e seu corpo um mero meio para

    faz-lo caminhar e segurar a cabea que envolve seu esprito.

    Essa a concepo cartesiana do sujeito, que era alta filosofia no sculo XVII e que

    hoje senso comum e base das cincias da ordem. Tanto que Pochmann e Neri,

    homens do sculo XXI, usam essas pr-noes como fundamento no explicitado de

    seus prprios trabalhos. Eles tambm partem de homens e mulheres j formados que

    sero agrupados seja em diferentes agrupamentos ocupacionais, no caso de

    Pochmann, seja em distintos grupos de renda, no caso de Nri. Aonde reside, nessa

    discusso dos pressupostos da anlise, a cegueira de toda forma de economicismo?

    Para mim reside no fato de no perceber que a faceta mais importante do capital

    cultural o fato de ele ser uma in-corporao, literalmente, tornar-se corpo, de

    toda uma forma de se comportar e de agir no mundo, a qual compreendida por

    todos de modo inarticulado e no refletido. O avano cientfico aqui a superao

    da oposio entre corpo e esprito, onde o corpo pensado como matria sem vida

    e sem esprito, em favor de uma concepo onde o corpo compreendido como um

    emissor de sinais e como prenhe de significados sociais19. precisamente esse

    avano cientfico que permite perceber o trabalho da gnese e da reproduo das

    classes sociais e, portanto, da produo diferencial dos seres humanos que ela

    constitui para alm da cegueira da percepo unilateral e amesquinhada da

    determinao econmica seja na produo seja no consumo.

    19

    Essa virada epistemolgica nas abordagens mais sofisticadas das cincias sociais da segunda metade do sculo XX , muitas vezes chamada de revoluo Wittgensteiniana. Ver, por exemplo, Taylor, Charles, To Follow a Rule, in: Calhoun, Craig, et alli. (orgs) Bourdieu: critical debates, Chicago, 1993.

  • 11

    Esse avano cientfico que implica a percepo de outro tipo de capital

    fundamental que no apenas o econmico esclarece, inclusive, a prpria ao do

    capital econmico e a sua relao com outras formas de capital. Afinal, o capital

    econmico jamais est sozinho como a cegueira economicista imagina. O ponto

    decisivo aqui que os indivduos so constitudos, em seus limites e possibilidades na

    competio social, de modo muito distinto dependendo de seu ponto de partida de

    classe. Esse ponto de partida envolve, basicamente, trs capitais: o econmico, o

    cultural e o social. Os dois primeiros so, nas sociedades modernas, os mais

    importantes.

    Assim, uma famlia de classe mdia, que tem menos capital econmico que a classe

    alta, s pode assegurar a reproduo de seus privilgios - como empregos de maior

    prestgio e salrio seja no mercado seja no Estado - se a famlia possui algum capital

    econmico para comprar o tempo livre dos filhos, que no precisam trabalhar

    cedo como os filhos das classes populares, para o estudo de lnguas ou de capital

    cultural tcnico ou literrio mais sofisticado. Isso mostra a importncia do capital

    econmico mesmo para as classes que no se reproduzem majoritariamente a partir

    dele como as classes altas. Ao mesmo tempo, a competio social no comea na

    escola. Para que possamos ter tanto o desejo quanto a capacidade de absoro de

    conhecimento raro e sofisticado, necessrio ter tido, em casa, na socializao com os

    pais ou quem ocupe esse lugar, o estmulo afetivo afinal nos tornamos seres

    humanos imitando a quem amamos para, por exemplo, a concentrao nos

    estudos, ou a percepo da vida como formao contnua onde o que se quer ser no

    futuro mais importante que o que se no presente.

    Os filhos das classes mdias, com grande probabilidade, possuem esses estmulos

    emocionais e afetivos, ou seja, possuem esse capital cultural, o que ir garantir a sua

    reproduo de classe como classe privilegiada em dois sentidos. Em primeiro lugar

    vo chegar como vencedores na escola e depois no mercado de trabalho e ocupar

    espaos que as classes populares classe trabalhadora e ral - no podero

    alcanar; em segundo lugar, reproduzem tambm a invisibilidade do processo social

    de produo de privilgios que se realizam na privacidade dos lares e que podem

    aparecer, posto que sua gnese encoberta, como mrito individual e, portanto,

    como merecimento dos filhos das classes mdias. Que o privilgio aparea como

    merecido a forma especificamente capitalista e moderna de legitimao da

    desigualdade social. A cegueira do economicismo , portanto, dupla: ela cega em

    relao aos aspectos decisivos que reproduzem todos os privilgios; e cega, tambm,

    em relao a falsa justificao social de todos os privilgios. Em outras palavras o

    economicismo congenitamente conservador posto que joga gua no moinho da

    reproduo no tempo de todos os privilgios injustos, posto que ele no possui meios

    cientficos de criticar a ideologia do mrito individual.

  • 12

    Mas os limites do economicismo no param ai. O economicismo incapaz at de

    perceber adequadamente o prprio capital econmico. A reproduo das classes altas

    que tem no capital econmico seu elemento principal na luta pelos recursos sociais

    escassos tambm depende em boa medida de outros capitais. Por exemplo, um rico

    sem capital cultural de alguma espcie - nem que seja aquela espcie de cultura

    que significa saber os novos lugares in no soho em Nova Iorque, o vinho da hora, ou

    qual ilha no oceano ndico agora a legal para se levar a amante - no levado a srio

    por seus pares. Ao rico bronco esto vedadas no apenas as importantes relaes

    entre o capital econmico e o capital cultural, o qual possibilita a naturalidade a

    leveza, o charme pessoal, to importante no mundo dos negcios como em

    qualquer outro lugar. Mas a ele esto vedadas tambm as relaes com uma terceira

    forma importante de capital - ainda que secundria em relao aos estudados

    anteriormente - que o capital social de relaes pessoais20. este capital que

    permite aquele amlgama especfico entre interesses e afetos, to importantes para

    a gnese e reproduo das amizades, casamentos e alianas de todo tipo no interior

    de uma classe onde a reproduo dos direitos de propriedade to decisiva.

    O economicismo , portanto, cego em relao tanto a estrutura social, que implica a

    considerao de capitais que no se restringem ao econmico, como cego em

    relao ao ponto verdadeiramente decisivo em relao s classes sociais: a forma

    velada e encoberta de como as classes sociais so produzidas e reproduzidas. Se o

    economicismo incapaz de perceber a gnese e a reproduo das classes ele incapaz

    pelas deficincias no das posies progressistas pessoais de seus defensores, mas

    pela superficialidade de seu aparato conceitual - de compreender qualquer fato

    realmente importante em relao dinmica das classes sociais. Ele pode at falar

    de classes sociais, mas sua compreenso deste fenmeno to decisivo e central difere

    muito pouco da forma como o senso comum (no) percebe as classes. isso que

    permite que Pochmann trate apenas do mundo das ocupaes e pense estar

    oferecendo uma anlise verdadeiramente compreensiva das relaes de classe no

    Brasil moderno. isso que permite tambm Nri falar de classes econmicas -

    envolvendo apenas faixas de renda e hbitos de consumo - e achar que est

    interpretando as novas relaes de classe do Brasil contemporneo.

    Como Pochmann (nem Nri) sequer pe como problema explicar a produo de seres

    humanos diferencialmente aparelhados, pela herana familiar que sempre tambm

    uma herana de classe ou seja, a construo do capital cultural especfico a cada

    classe social - para a competio social ento o pressuposto de que estamos tratando

    com um sujeito genrico, igual em todas as classes, inescapvel. Por conta disso, a

    investigao sobre a estrutura ocupacional no diz nada de verdadeiramente relevante

    20

    Bourdieu, Pierre, A Distino, Zouk/Edusp, 2010 e Boike, Rehbein e Frhlich, Gerhard, Bourdieu Handbuch: Leben, Werke, Wirkung, J.B. Metzler, 2009, pags. 134 e seguintes,

  • 13

    acerca da dinmica de classes do Brasil moderno porque nada se sabe acerca de sua

    gnese nem de sua reproduo no tempo.

    Pochmann no responde - na verdade nem sequer atenta - para o fato de que a

    questo principal para o problema que ele prprio quer resolver a questo acerca do

    por que? precisamente aquela classe est condenada a exercer aquele tipo de

    ocupao e quais so os fatores que a eternizam nela. No so as ocupaes que criam

    as classes sociais, como parece pensar Pochmann, mas o pertencimento a certa

    classe que pr-decide a escolha por certo tipo de ocupao. Mas s um estudo

    terico e emprico - da incorporao dos diversos tipos de capital cultural pode

    esclarecer o tipo especfico de socializao que permite, ou melhor, pr-decide, a

    escolha de precisamente quele tipo de ocupao.

    Sem um estudo da socializao anterior, que explica a incorporao de certo tipo de

    capital cultural, tem-se que, necessariamente, pressupor que todos so iguais, um

    homo economicus que reage sempre do mesmo modo, um sujeito genrico, o qual

    , no fundo, o sujeito tpico do liberalismo clssico sem passado, sem socializao

    prvia e, portanto, sem classe - que o economicista engajado compra sem saber. A

    simples investigao quantitativa do horizonte ocupacional no nos esclarece em nada

    acerca do que realmente relevante, ainda que seja uma informao importante

    neste caminho.

    O engano de Nri complementar. Saber-se que a populao brasileira se divide em

    dadas faixas de renda uma informao relevante para uma posterior anlise das

    estruturas de classe no Brasil. Mas apenas isso. Por que tambm Nri sequer atenta

    a cegueira congnita de toda percepo redutoramente economicista da realidade

    social - que a questo central para o que ele quer saber e no sabe por que

    precisamente aquele porcentual de indivduos logrou ascender a outros patamares de

    consumo, enquanto outros permaneceram onde estavam. O tamanho do bolso

    uma informao preliminar relevante, mas sequer toca no principal. A cincia da

    sociedade tem como sua questo central saber por que as pessoas se comportam

    diferencialmente21. Se sabemos disso, podemos analisar e interpretar a sociedade,

    dizer onde esto seus problemas e para onde ela tende ir. Mas no sabemos um

    milmetro a mais acerca desta questo se conhecemos a magnitude quantitativa das

    faixas de renda ou da estrutura ocupacional, ainda que essas informaes sejam

    relevantes como informao preliminar.

    UMA INTERPRETAO NO ECONOMICISTA DAS CLASSES POPULARES NO BRASIL

    CONTEMPORNEO.

    21

    Essa a definio clssica de Max Weber e seguida por Bourdieu. Ver Weber, Max, Wirtschaft und Gesellschaft, J.C.B. Mohr, 1985, pags. 1/30.

  • 14

    Como ir-se alm da percepo limitada e superficial do capital econmico e com isso

    produzir uma percepo verdadeiramente crtica da realidade social brasileira? Esse foi

    precisamente o desafio que nos propusemos nas duas pesquisas que redundaram em

    dois trabalhos publicados subseqentemente: um trabalho sobre os muito

    precarizados socialmente, que chamamos provocativamente de ral22; e o trabalho

    sobre os batalhadores23, ou seja, os tambm precarizados socialmente, mas com

    maiores recursos e possibilidade de ascenso social.

    Os dois estudos devem ser analisados de modo combinado: s se pode compreender

    porque alguns brasileiros ascenderam socialmente se compreendemos tambm as

    razes que impossibilitaram outros brasileiros de ascender ou de terem tido ascenso

    menor. Os dois estudos representam, portanto, um esforo de compreender e

    responder quela questo central a nica verdadeiramente fundamental - deixada

    de lado pelo economicismo, seja da produo seja do consumo: afinal, o que que faz

    com que alguns ascendam e outros no? Essa a questo decisiva posto que apenas

    ela pode compreender e explicar as razes profundas tanto da ascenso quanto

    da marginalidade social algo que os dados e nmeros que so informaes

    importantes, mas, jamais, interpretaes - por si s jamais podero fazer.

    Isso no significa, obviamente, que o conhecimento estatstico no seja fundamental.

    Pelo contrrio, ns construmos nossos tipos ideais das classes populares, nas duas

    pesquisas, com base em conhecimento estatstico, por um lado, e pelo seu potencial

    significativo, por outro lado. Assim, por exemplo, estudamos as empregadas

    domsticas, no livro da ral, posto que 18% do trabalho feminino poca era

    trabalho domstico. Como quase todas elas eram da ral, que no nosso estudo

    estatstico especialmente encomendado para este livro abrangia 1/3 da populao24,

    isso significava que mais da metade das mulheres da ral exerciam alguma espcie de

    trabalho domstico. Neste caso, coincidia significao estatstica e significao

    heurstica. Mas ns estudamos, tambm, os catadores de papel e lixo, por exemplo,

    no porque eles so estatisticamente relevantes, mas, por que seu estudo mostra, de

    modo especialmente evidente, ou seja, uma significao heurstica, destinada a

    tornar clara a humilhao social, a fantasia compensatria e o abandono dessa classe

    presente em vrias das ocupaes mais humilhantes da ral.

    Assim, o conhecimento estatstico um meio e no um fim em si, posto que est

    a servio da necessidade interpretativa, ou seja, daquilo que vai permitir

    reconstruir uma realidade que no visvel a olho nu de modo novo e indito. O que

    22

    Souza, Jess, et alli, A ral brasileira: quem e como vive, UFMG, 2009. 23

    Souza, Jess, et alli, Os batalhadores Brasileiros: Nova classe mdia ou nova classe trabalhadora, UFMG, 2010. 24

    Souza, Jess et alli, 2009, pags. 463/481.

  • 15

    h de novo e indito no livro da ral e como ele ajuda a compreender melhor a

    ascenso social de setores significativos das classes populares, enquanto outros

    ficaram para trs? A meu ver o que h de novo e indito no estudo dos

    desclassificados brasileiros , antes de tudo, a percepo de que eles formam uma

    classe social especfica25, com gnese, reproduo e futuro provvel semelhante.

    Tanto o senso comum como a cincia dominante entre ns deixam de percebem essa

    classe enquanto classe ao fragment-la ao ponto de torn-la irreconhecvel. Mas

    possvel defini-la seja na periferia das grandes cidades do Sudeste seja, por exemplo,

    no serto do Nordeste, como a classe social reduzida a energia muscular, posto que

    no dispe ou no dispe em medida significativa das pr-condies para a

    incorporao do capital cultural indispensvel no capitalismo moderno para o

    trabalho no mercado competitivo.

    Essa classe , portanto, moderna posto que formada pela incapacidade estrutural na

    sua socializao familiar sempre de classe - de dispor dos estmulos afetivos e das

    pr-condies psquicas, cognitivas e emocionais que possibilitam a incorporao do

    conhecimento til necessrio reproduo do capitalismo competitivo. Como o

    economicismo, arrogantemente mope, parte do indivduo sem passado, j adulto e

    igual a todos e, portanto, sem classe, esta questo central sequer percebida como

    relevante ainda que ela v decidir, inclusive, que tipo de sujeito econmico ser criado

    pelas distintas heranas de classe. O capital cultural constitudo por ambas as

    coisas: tanto as pr-condies afetivas e psquicas para o aprendizado; quanto pelo

    aprendizado em si do conhecimento julgado til. No caso da ral a carncia e o

    abandono so tamanhos que a questo principal a da ausncia em maior ou menor

    medida dos prprios pressupostos indispensveis ao aprendizado do papel social de

    produtor til no contexto da economia competitiva.

    isso tambm que faz com que essa classe no seja passvel de ser confundida com o

    lumpenproletariado marxista, o famoso exrcito de reserva do capital, posto que

    no capitalismo do tempo de Marx a quantidade de incorporao de conhecimento

    necessria ao trabalhador era mnima, tanto que at crianas podiam realizar o

    trabalho das tecelagens de Manchester. Com o desenvolvimento das foras produtivas

    do capitalismo, no entanto, a incorporao crescente de conhecimento aos meios de

    produo exige tambm que quem opera as mquinas por exemplo, os robs da

    indstria automobilstica moderna - tambm seja perpassado por uma certa

    economia emocional e por conhecimento tcnico. O trabalhador moderno do setor

    competitivo tem que ter incorporado, ou seja, tornado corpo, reflexo automtico e

    25

    Que no se confunda com os diversos trabalhos sobre a pobreza e os pobres. O trabalho anterior mais importante sobre uma classe de desclassificados entre ns o clssico de Florestan Fernandes, A integrao do negro na sociedade de classes, tica, 1978. Neste brilhante clssico da sociologia brasileira, Florestan termina por confundir raa e classe social o que limita de modo decisivo o alcance de seu trabalho. Para conhecer minha crtica em detalhe, ver Souza, Jess, A construo social da subcidadania, 2 edio, com prefcio de Axel Honneth, UFMG, pags. 153 e seguintes.

  • 16

    naturalizado, tanto a disciplina e o autocontrole necessrio ao ritmo das mquinas

    como o conhecimento para sua operao bem sucedida.

    esse tipo de incorporao de capital cultural que caracteriza as classes

    trabalhadoras modernas e que reencontramos nos batalhadores de nossa pesquisa.

    A ral, ao contrrio - ainda que as fronteiras entre as diversas classes populares na

    realidade concreta sejam na imensa maioria dos casos muito fluda pode ser

    definida, para fins analticos, como a classe abaixo da classe trabalhadora, posto que

    caracterizada, para fins analticos, pela ausncia dos pressupostos acima definidos. Isso

    no significada, obviamente, que esta classe tambm no seja explorada. Ela o de

    modo inclusive muito mais cruel j que jogada nas franjas do mercado competitivo,

    condenada a exercer todos os trabalhos mais duros, humilhantes, sujos, pesados e

    perigosos. Foram esses trabalhadores tornados precrios que estudamos durante os

    quatro anos da pesquisa.

    A compreenso da profundidade da explorao sistemtica desses trabalhadores pelas

    classes do privilgio no Brasil as classes mdias que incorporam capital cultural raro e

    sofisticado, e as classes altas que reproduzem, antes de tudo, capital econmico sob a

    forma de direito de propriedade foi, talvez, o nosso principal resultado de pesquisa.

    Isso implica simplesmente poder perceber a luta de classes no cotidiano de todos

    ns, onde ela opera de modo velado, naturalizado em prticas sociais sem discurso

    e sem articulao consciente, e, por isso mesmo, muito mais eficazes socialmente.

    As classes do privilgio exploram esse exrcito de pessoas disponveis a fazer de quase

    tudo. Desde o moto boy que entrega pizza; ao lavador de carros; ao trabalhador que

    carrega a mudana nas costas; a prostituta pobre que vende seu corpo para

    sobreviver; ou o exrcito de serviais domsticos que fazem a comida e cuidam dos

    filhos da classe mdia e alta que assim pode se dedicar a estudos ou trabalhos mais

    rentveis. este tempo roubado de outra classe que permite reproduzir e eternizar

    uma relao de explorao que condena uma classe inteira ao abandono e a

    humilhao, enquanto garante a reproduo no tempo das classes do privilgio.

    Luta de classes no apenas a greve sindical, ou a revoluo sangrenta nas ruas

    que todos percebem. Ela , antes de tudo, o exerccio silencioso da explorao

    construda e consentida socialmente, inclusive por abordagens cientficas que

    malgrado a inteno, como no caso do prof. Pochmann no dispe dos meios

    cientficos adequados a essa percepo. No a reproduo estatstica, por mais

    bem feita, das ocupaes brasileiras que vai permitir a politizao classista do

    fenmeno de transformao da estrutura social ...do Brasil26 no Brasil como a

    inteno do Prof. Pochmann. A percepo da luta de classes exige os meios

    cientificamente adequados a isso. Exige tornar visvel a formao e a gnese das

    26

    Pochmann, ibid, pag. 8.

  • 17

    classes sociais e, portanto, do conjunto de capitais que iro pr-decidir toda a

    competio social por recursos escassos - l onde elas so constitudas de modo muito

    especfico.

    Como as classes esto inter-relacionadas apenas a percepo de sua gnese e de

    suas relaes especficas de reproduo e explorao precisamente como

    procuramos mostrar - que pode aportar conhecimento no visvel a olho nu e,

    portanto, perceber conflitos sistematicamente mascarados. Este o ponto decisivo. A

    tese central do livro da ral que a luta de classes mais importante e, ao mesmo

    tempo, a mais escamoteada e invisvel do Brasil contemporneo a explorao

    sistemtica e cotidiana dos nossos desclassificados sociais o que apenas contribui para

    sua reproduo no tempo. No existe nenhum problema real, que seja especfico do

    Brasil e de pases em condio semelhante, que no advenha do abandono desta

    classe27.

    Usamos o mesmo mtodo no estudo da classe que chamamos de batalhadores. Aqui

    a questo foi tentar perceber como possvel reverter o crculo vicioso de abuso

    sexual generalizado, instrumentalizao dos mais fracos pelos mais fortes, baixa auto

    estima, baixa capacidade de concentrao e auto controle, etc., que caracteriza o

    cotidiano de muitas das famlias da ral, e as condenam a uma vida sem futuro e

    sem esperana. Ascender socialmente s possvel a quem logra incorporar as pr-

    condies que o capitalismo atual pressupe para a crescente incorporao de

    distintas formas de conhecimento e de capital cultural como porta de entrada em

    qualquer de seus setores competitivos. A fronteira entre ral e batalhadores - a

    qual sempre fluda na realidade concreta, embora, analiticamente, para efeitos de

    compreenso seja importante precisamente enfatizar o contraste - est situada

    precisamente na possibilidade da incorporao pelos batalhadores dos pressupostos

    para o aprendizado e o trabalho que faltam a ral.

    Mas porque falta a uns o que possvel a outros nas fludas fronteiras das classes

    populares? A resposta dessa questo exige o passo terico que tomamos na nossa

    pesquisa de criticar e complementar o esquema utilitarista dos capitais em Bourdieu.

    Ainda que a verso enriquecida dos capitais em Bourdieu possibilite que se

    compreenda o clculo e a estratgia de indivduos e classes no capitalismo, o

    comportamento social no apenas utilitrio. As pessoas tambm precisam dotar

    sua vida de sentido, de onde retiram tanto a auto-estima quanto o reconhecimento

    social para o que so e o que fazem. No estudo das classes populares essa dimenso

    fundamental, por que o que se retira dos dominados socialmente no so apenas os

    meios materiais. O domnio permanente de classes sobre outras exige que as classes

    dominadas se vejam como, inferiores, preguiosas, menos capazes, menos

    27

    Que se pense na (in)segurana pblica, no gargalo da mo de obra qualificada, nos problemas da sade e da educao pblicas, etc.

  • 18

    inteligentes, menos ticas, precisamente o que reencontramos em todas as nossas

    entrevistas. Se o dominado socialmente no se convence de sua inferioridade no

    existe dominao social possvel28.

    Precisamente para percebermos adequadamente a dor e o sofrimento humanos

    envolvidos nesta condio, ns acrescentamos dimenso bourdieusiana

    utilitarista da teoria dos capitais que no se reduzem ao capital econmico - a

    dimenso valorativa do que as sociedades modernas julgam ser a boa vida. a

    noo prtica de boa vida que define o que a virtude e, portanto, o que perfaz

    um indivduo digno de respeito ou de desprezo. Essa dimenso implcita e no

    articulada, mas todos ns nos julgamos a ns mesmos e julgamos os outros baseados

    nela as 24 horas do dia. Utilizamos a reconstruo do filsofo social canadense Charles

    Taylor29, que mostra, como nenhum outro a relevncia dessas categorias que se

    tornaram instituies e, portanto, prtica naturalizada e irrefletida no mundo

    moderno. Para Taylor, assim como para Max Weber30, julgamos socialmente uns aos

    outros baseados nas figuras do produtor til e da personalidade sensvel. O efeito

    de distino produzido pela noo implcita de personalidade sensvel foi a base do

    estudo mais brilhante de Bourdieu acerca das lutas de classe na Frana31.

    Nos nossos estudos das classes populares brasileiras procuramos tornar operacional o

    conceito de dignidade do produtor til. Dignidade aqui um conceito procedural

    e no substantivo, ou seja, ele no um valor moral especfico, mas um conjunto

    de caractersticas psicossociais incorporadas praticamente afetivas, emocionais e

    cognitivas que fazem com que tanto a auto-estima pessoal, quanto o

    reconhecimento social seja possvel. essa seleo prtica que qualquer entrevista

    de emprego no mercado ou qualquer prova de concurso pblico procura fazer. a

    mesma seleo que fazemos todos os dias acerca de quem apertamos a mo ou de

    quem evitamos at usar a mesma calada. Essa dimenso to encoberta e

    escamoteada quanto a dimenso dos capitais no econmicos. Da que a realidade

    social tenha que ser reconstruda de modo novo em pensamento para que faa

    sentido.

    As classes populares no so apenas despossudas dos capitais que pr-decidem a

    hierarquia social. Paira sobre as classes populares tambm o fantasma de sua

    incapacidade de ser gente e o estigma de ser indigno, drama presente em

    literalmente todas as entrevistas. As classes com essa insegurana generalizada,

    como a ral e boa parte dos batalhadores, esto divididas internamente entre o

    28

    Essa tambm uma tese clssica de Max Weber. Ver Weber, ibid, pags. 122/176. 29

    Taylor, Charles, Sources of the self: the making of modern identity, Harvard,1989. 30

    As clebres figuras do especialista sem esprito e do hedonista sem corao, no final do livro sobre a tica protestante, referem-se a papis sociais muito prximos ao desenvolvidos por Taylor. Ver, Weber, Max, Die protestantische Ethik und der Geist des kapitalismus, J.C.B. Mohr, 1948. 31

    Bourdieu, Pierre, A distino, Zouk/EDUSP, 2010.

  • 19

    pobre honesto, que aceita as regras do jogo que o excluem, e o pobre delinqente,

    o bandido no caso do homem, e a prostituta no caso da mulher. A maioria esmagadora

    das famlias pobres convive com essa sombra e com essa ameaa, como a me da

    prostituta que a sustentava e que dizia a filha em uma discusso: j fiz de tudo na

    vida, minha filha, mas puta eu nunca fui32. Como o estigma da indignidade ameaa

    a todos, vale qualquer coisa contra quem quer que seja para se conseguir um alvio

    momentneo de tamanha violncia simblica.

    Assim, as classes do privilgio no dispem apenas dos capitais adequados para vencer

    na disputa social por recursos escassos, mas dispem tambm da autoconfiana de

    quem teve todos os cuidados na famlia, de quem sabe que freqentou a melhor

    escola, que possui a naturalidade para falar bem lnguas estrangeiras, que conta

    com as economias do pai para qualquer eventualidade ou fracasso, que conta com

    exemplos bem sucedidos na famlia. Tudo isso tambm fonte de recursos

    valorativos como a crena em si mesmo, produto de uma autoconfiana de classe,

    to necessria para enfrentar todas as inevitveis intempries e fracassos eventuais da

    vida sem cair no alcoolismo e no desespero, e usufruir do reconhecimento social dos

    outros como algo to natural como quem respira.

    As classes populares, ao contrrio, no dispem de nenhum dos privilgios de

    nascimento das classes mdia e alta. A socializao familiar muitas vezes disruptiva, a

    escola pior e muitas vezes consegue incutir com sucesso insegurana na prpria

    capacidade33, os exemplos bem sucedidos na famlia so muito mais escassos, quando

    no inexistentes, quase todos necessitam trabalhar muito cedo e no dispem de

    tempo para estudos, o alcoolismo, fruto do desespero com a vida, ou o abuso sexual

    sistemtico so tambm sobre representados nas classes populares. Os efeitos desse

    ponto de partida acarretam que a incorporao da trade disciplina, autocontrole e

    pensamento prospectivo, que est pressuposta tanto em qualquer processo de

    aprendizado na escola quanto em qualquer trabalho produtivo no mercado

    competitivo seja parcial e incompleto ou at inexistente.

    Sem disciplina e autocontrole impossvel, por exemplo, se concentrar na escola da

    que os membros da ral, que analisamos no nosso livro anterior sobre essa classe,

    diziam repetidamente que fitavam o quadro negro por horas a fio sem aprender.

    Essa virtude no natural, como pensa o economicismo, mas um aprendizado de

    classe. Por outro lado, sem pensamento prospectivo ou seja, a viso de que o

    futuro mais importante que o presente - no existe sequer a possibilidade de

    conduo racional da vida pela impossibilidade de clculo e de planejamento da vida

    pela priso no aqui e agora.

    32

    Ver trabalho de Patrcia Mattos em Souza, Jess et alli, ibid, 2009, pags. 173 e seguintes. 33

    Ver Trabalho de Lorena Freitas em Souza, Jess et alli, ibid, 2009, pags. 281 e seguintes.

  • 20

    No contexto das classes populares, nosso estudo dos batalhadores se concentrou na

    determinao das fronteiras que os separam da ral, por um lado, e da classe mdia

    verdadeira, por outro. Observamos, por exemplo, fontes importantes de auto

    confiana individual e de solidariedade familiar baseada na socializao religiosa,

    temas negados por estudiosos conservadores34. O tipo de religiosidade pentecostal,

    crescentemente importante nas classes populares brasileiras, tende a ser, nos

    batalhadores dominado pelas denominaes mais ticas ao contrrio da ral

    onde predominam as denominaes mais mgicas do pentecostalismo - onde a

    regulao racional da vida cotidiana e a crena na prpria capacidade passa a ser o

    valor mximo35. Isso implica, nos melhores casos, na possibilidade de se conquistar

    tardiamente estmulos morais e afetivos que, nas classes do privilgio, dado pelo

    horizonte familiar em tenra idade. O belo estudo de Maria de Lourdes Medeiros

    mostra como tambm a igreja catlica no interior do Nordeste pode servir de

    incorporao de slida tica do trabalho para muitas famlias36. A religio tambm

    pode ser fundamental na redefinio da tica do trabalho de mulheres que o racismo

    havia condenado ao destino de objeto sexual37.

    Assim, do mesmo modo que a no incorporao familiar, escolar e social dos

    pressupostos de qualquer aprendizado e trabalho moderno o que produz e reproduz

    a ral, os batalhadores representam a frao das classes populares que lograram sair

    deste crculo vicioso. Como as fronteiras aqui so muito fludas, isso significa que no

    existe classe condenada para sempre. Com condies polticas e econmicas

    favorveis, os setores que lograram incorporar, seja por socializao religiosa tardia,

    seja por pertencerem a famlias comparativamente mais bem estruturadas malgrado

    o ponto de partida desvantajoso comum a todas as classes populares a incorporao

    das pr-condies para o desempenho do papel social do trabalhador til, podem

    ascender socialmente.

    Alm da importncia inegvel, para classes socialmente to frgeis, da varivel

    religiosa, procuramos perceber a dinmica e os efeitos da incorporao, ainda que

    tardia, familiar e extra familiar, dos pressupostos emocionais, afetivos, morais e

    cognitivos para a ao econmica racional nas classes populares. Este o caminho

    oposto de toda forma de economicismo que simplesmente pressupe e, portanto,

    naturaliza o ator econmico universal, escondendo a luta de classes que implica,

    precisamente, uma incorporao diferencial e seletiva desses pressupostos. A maior

    34

    Ver minha crtica ao trabalho de Lamounier, Bolvar e Souza, Amaury, A classe mdia brasileira: ambies, valores e projetos de sociedade, Campus/CNI, 2010, em Souza, Jess et alli, ibid, 2010, pags 349 e seguintes. 35

    Ver o trabalho de Arenari, Brand e Dutra, Roberto, em Souza, Jess et alli, ibid, 2010, pags. 311 e seguintes. 36

    Ver o trabalho de Maria de Lourdes de Medeiros, em Souza, Jess et alli, ibid, 2010, pags. 199 e seguintes. 37

    Ver o trabalho de Djamila Olivrio, em Souza, Jess et alli, ibid, 2010, pags.173 e seguintes.

  • 21

    parte do livro, inclusive, se dedica a compreender, levando em conta as desvantagens

    do ponto de partida das classes populares, como se aprende, na prtica, com erros e

    acertos, por exemplo, a ser um trabalhador ou a calcular e a administrar um

    pequeno negcio de um trabalhador autnomo38? Ou ainda, na dimenso mais poltica

    e social, tentar responder a questo acerca das bases da solidariedade familiar

    pressuposta nas pequenas unidades produtivas. Ou ainda de como o trabalhador

    formal, mas, precrio, especialmente dos servios e do comrcio39, so tornados refm

    de uma legitimao de um novo tipo de capitalismo que se expande precisamente para

    essas reas do capitalismo moderno40.

    O nosso livro tratou da ascenso social, portanto, como um conceito relacional. Quando se trata o tema da ascenso de maneira relacional possvel perceber, por exemplo, como a ascenso tambm traz consigo sofrimento, esforo, assim como o prprio medo de uma possvel desclassificao social futura. Se tratamos o tema da ascenso social desta maneira, foi para demonstrar que ascenso no uma categoria linear de um ponto ao outro, como um trem social que se pega de uma classe outra. Ela no uma bala que vai de um ponto a outro sem encontrar obstculo. Qualquer entrevista no livro comprova isso. Pra levar o conceito a srio temos que considerar a ascenso social como uma prtica em constante re-afirmao, um jogo social, cujos participantes so postos prova a todo o momento com o fantasma da queda social e da desclassificao sempre a espreita.

    Mas temos a clara compreenso de que o nosso prprio trabalho foi apenas uma

    primeira aproximao neste horizonte to novo e to desconhecido. Seria muito

    desejvel se os estudos estatsticos bem feitos pudessem ser associados a trabalhos

    sociolgicos mais refinados para os estudos posteriores dos diversos ambientes

    sociais, os millieus41 ou fraes de classe em movimento na nossa sociedade.

    Apenas assim, seria possvel perceber e ter uma idia mais clara dos fatores que esto

    em jogo tanto na ascenso quanto na estagnao ou decadncia social dos diversos

    setores das classes populares brasileiras no atual momento do capitalismo mundial.

    O que faz uma concepo triunfalista das classes populares no Brasil, como a

    defendida pelo Prof. Marcelo Nri - onde apenas ascenso social e felicidade42 so

    38

    Ver o trabalho de Fabrcio Maciel em em Souza, Jess et alli, ibid, 2010, pags.173 e seguintes 39

    Ver o trabalho de Ricardo Visser, em Souza, Jess et alli, ibid, 2010, pags.61 e seguintes. 40

    Ver meu captulo inicial em Souza, Jess et alli, ibid, 2010, pags.19 e seguintes. 41

    Ver, acerca da importncia dos diversos ambientes sociais ou millieus para a reproduo de uma classe social, o livro clssico de Vester, Michael et alli, Soziale Milieus im Gesellschaftlichen Strukturwandel, Suhkamp, 2001. 42

    O fato do habitus, ou seja, o conjunto dos esquemas de avaliaes e percepo do mundo,

    incorporado nos sujeitos, no ser consciente a eles, implica que a anlise emprica dos sujeitos no

    pode ter a ingenuidade da pesquisa sobre felicidade dos brasileiros citada vrias vezes pelo Prof. Nri

    com tanto ardor. que, como nota Max Weber, a necessidade primria dos seres humanos no dizer

    a verdade, mas sim a de legitimar a prpria vida que levam. No ter conscincia disso correr o risco

    de sria ingenuidade acerca da vida social. Antes do hiphop e do Funk at Cartola dizia como o

    morro era melhor que o asfalto, mais alegre e mais humano. Do mesmo modo as prostitutas da

  • 22

    percebidos - ser to cientificamente superficial e politicamente conservadora

    precisamente a negao sistemtica de sofrimento e da dor do dominado e do

    humilhado socialmente. Afinal, apenas conhecendo e reconhecendo a dor e o

    sofrimento injustos que podemos mitig-lo. Enfeit-lo e neg-lo , ao contrrio, a

    melhor maneira de torn-lo eterno. De certo, apenas, a certeza de que um Brasil

    melhor se faz olhando nossos problemas e mazelas nos olhos, difceis e desafiadores

    como eles so. No existe nenhum outro caminho para o aperfeioamento individual

    ou coletivo. A escolha nossa.

    nossa pesquisa fantasiavam uma vida familiar idlica e s depois, nas entrevistas subseqentes - que

    faziam parte do mtodo crtico que construmos - que, por exemplo, o abuso sexual do pai e a

    competio com me ficavam explcitos. O discurso inicial, nesses casos, sempre uma fantasia

    compensatria, uma necessidade transformada em escolha, humana, demasiado humana, para quem

    tem negado, como no caso das classes populares, vrios dos fundamentos de uma vida digna que

    podem proporcionar auto-estima e reconhecimento social. O que no compreensvel uma cincia

    to ingnua o fato das pesquisas serem internacionais parece que funciona como uma espcie de

    carteirada ou fetiche cientfico para nossos pesquisadores - que desconhea esse fato to bsico.