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A DISCIPLINA NÃO EGOCÊNTRICA Quando a religião se torna universal, deixa de ser religião. Se religião é questão de crença, de conversão, de pertencer a um grupo que defende certas idéias, já não existe então a semente religiosa. Porque religião é algo que precisa ser compreendido por cada indivíduo no “processo” do viver, nas atividades da vida diária e, por conseguinte, nenhuma relação tem com o educar a mente para funcionar segundo determinado padrão de pensamento. Assim, parece-me muito importante compreender a função de um indivíduo numa sociedade que é puramente o mecanismo de um sistema de idéias e na qual o que se chama moral é simples questão de manter-se dentro de determinado padrão de conduta. Mas, virtude não é seguir um padrão; é a ação da mente que compreende sua relação com outra. Se sou moral apenas no sentido social, essa moralidade, embora conveniente do ponto de vista social, nada tem que ver com a Religião. Ora, por certo, para descobrirmos o que é a verdade, o que é a realidade ou deus, devemos estar livres da moralidade social, porque a moralidade social conduz à respeitabilidade, ao conformismo; e, é óbvio, a mente que apenas se ajusta a um padrão ético ou moral, nunca descobrirá o verdadeiro. A virtude é que, realmente, põe a mente em ordem; e nosso problema é como criar a virtude, sem “cultivar virtude”. Se eu a cultivo, ela deixa de ser virtude; entretanto, sem a virtude não existe ordem. É, de fato, um disciplinar da mente sem nenhum objetivo em mira – algo semelhante ao arrumar um quarto. A virtude não é um fim em si. Ela apenas torna a mente clara, livre, não contaminada pela sociedade. O problema, portanto, é este: como pode a mente, nosso ser inteiro, tornar-se de pronto virtuosa, e não pelo seguir o “processo” de se fazer virtuosa? Porque a luta para se tornar virtuosa, só pode reforçar a limitação, a atividade egocêntrica da mente. Isso me parece bem claro, isto é, ao procurar ser virtuoso estou em verdade realçando a atividade do meu próprio egotismo e isso, por conseguinte, já não é virtude. A virtude liberta a mente, e a mente não está livre enquanto não há virtude. Mas a chamada virtude em que quase todos nós baseamos nossa conduta é pura conveniência social; e a sociedade, radicada que está na aquisição, na compulsão, no egotismo, nenhuma possibilidade tem de compreender a virtude de ser e não vir a ser. 1

Jiddu Krishnamurti Meditando Com Krishnamurti 3

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Terceira parte de de uma compilação de textos de Krishnamurti, que tratam do tema da meditação, extraídos de 11 diferentes obras suas. Variam de tamanho, desde uma simples linha até uma página inteira. Para quem está envolvido de algum modo com a prática da meditação, trata-se de abordagens fundamentais para uma reflexão mais profunda e que poderia embasar melhor futuras discussões sobre o tema.

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A DISCIPLINA NÃO EGOCÊNTRICA

Quando a religião se torna universal, deixa de ser religião. Se religião é questão de crença, de conversão, de pertencer a um grupo que defende certas idéias, já não existe então a semente religiosa. Porque religião é algo que precisa ser compreendido por cada indivíduo no “processo” do viver, nas atividades da vida diária e, por conseguinte, nenhuma relação tem com o educar a mente para funcionar segundo determinado padrão de pensamento.

Assim, parece-me muito importante compreender a função de um indivíduo numa sociedade que é puramente o mecanismo de um sistema de idéias e na qual o que se chama moral é simples questão de manter-se dentro de determinado padrão de conduta.

Mas, virtude não é seguir um padrão; é a ação da mente que compreende sua relação com outra.

Se sou moral apenas no sentido social, essa moralidade, embora conveniente do ponto de vista social, nada tem que ver com a Religião. Ora, por certo, para descobrirmos o que é a verdade, o que é a realidade ou deus, devemos estar livres da moralidade social, porque a moralidade social conduz à respeitabilidade, ao conformismo; e, é óbvio, a mente que apenas se ajusta a um padrão ético ou moral, nunca descobrirá o verdadeiro.

A virtude é que, realmente, põe a mente em ordem; e nosso problema é como criar a virtude, sem “cultivar virtude”. Se eu a cultivo, ela deixa de ser virtude; entretanto, sem a virtude não existe ordem. É, de fato, um disciplinar da mente sem nenhum objetivo em mira – algo semelhante ao arrumar um quarto. A virtude não é um fim em si. Ela apenas torna a mente clara, livre, não contaminada pela sociedade.

O problema, portanto, é este: como pode a mente, nosso ser inteiro, tornar-se de pronto virtuosa, e não pelo seguir o “processo” de se fazer virtuosa? Porque a luta para se tornar virtuosa, só pode reforçar a limitação, a atividade egocêntrica da mente. Isso me parece bem claro, isto é, ao procurar ser virtuoso estou em verdade realçando a atividade do meu próprio egotismo e isso, por conseguinte, já não é virtude.

A virtude liberta a mente, e a mente não está livre enquanto não há virtude . Mas a chamada virtude em que quase todos nós baseamos nossa conduta é pura conveniência social; e a sociedade, radicada que está na aquisição, na compulsão, no egotismo, nenhuma possibilidade tem de compreender a virtude de ser e não vir a ser.

Se não compreendemos o que é ser virtuoso, nunca estará a mente livre para investigar, descobrir a realidade. A virtude é essencial como conduta, comportamento; mas o comportamento baseado na compulsão, no conformismo, no medo, já não é ação de uma mente virtuosa.

Assim, cumpre averiguar o que é ser virtuoso, sem cultivo da Virtude. As duas coisas seguem direções completamente diversas.

O homem que cultiva a virtude está sempre a pensar em si mesmo; só se preocupa com seu próprio progresso, seu melhoramento pessoal, e isso e ainda atividade do “ego”, do “eu”; e essa atividade, evidentemente, nada tem em comum com a virtude, que é um “estado de Ser” e não de “vir a ser”.

Ora, como pode a mente, cujo condicionamento social e moral sempre foi o de cultivar a virtude, servindo-se do tempo como o meio de se tornar virtuosa – como pode a mente libertar-se desse estado de “vir a ser” e permanecer num “estado de virtude?” Não sei se já alguma vez pensastes no problema desta maneira.

Para compreendê-lo, talvez seja necessário descobrirmos o que significa disciplinar a mente. A maioria de nós se serve da disciplina a fim de conseguir um resultado. Se sinto cólera digo que não devo sentir cólera e, assim, me disciplino, controlo, reprimo, domino a minha cólera – e isso significa que me estou ajustando a um padrão ideológico. Assim estamos acostumados: uma luta constante para ajustarmos “o que somos” ao que pensamos “que deveríamos ser”.

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A fim e nos tornarmos o que deveríamos ser, submetemo-nos a certas práticas, disciplinas, dia após dia, mês após mês, do começo ao fim do ano, na esperança de alcançar um estado que consideramos correto.

Há, assim, na disciplina, não apenas repressão, mas também conformismo, o estreitar da mente para ajustá-la a um certo padrão. Por favor, senhores, compreendei que, não estou condenando a disciplina.

Estamos examinando todo processo envolvido na conduta que se baseia na disciplina.Se posso compreender o atual processo de disciplina, processo que a maioria de nós conhece,

e perceber a respectiva falsidade ou verdade, terei então um “senso de disciplina” completamente diferente, ou seja uma disciplina sem nenhuma relação com o medo; e esse “senso” da disciplina é essencial.Mas a disciplina que praticamos se baseia no temor e no ajustamento, na luta para “vir a ser” algo mediante a substituição, identificação ou sublimação. Tudo isso está implicado na pratica da disciplina por parte e uma mente que se vê em confusão, e tal disciplinamento, é óbvio, baseado no medo, nenhuma relação tem com a realidade.

Se me disciplino porque meu vizinho, ou a sociedade, ou o sacerdote, ou um certo livro sagrado me diz ser essa a ação correta, então essa disciplina é sem maturidade, é infantil, nenhuma significação tem, e toda conduta baseada em tal padrão só leva à respeitabilidade, que nada tem que ver com a realidade.Ora, se compreendo que o mero ajustar-se a um padrão, por medo, não é disciplina, que é então disciplina? A mente deve funcionar livre de desordem, livre de confusão; e virtude sem dúvida, é por em ordem a mente, de modo que ela possa voar em linha reta, e não tortuosamente, sem as distorções de suas próprias ambições, invejas e desejos.

Mas, para “voar em linha reta”, ela necessita de uma disciplina não relacionada com a disciplina do conformismo, da sublimação ou repressão, isto é, uma disciplina isenta de esforço – esforço para “vir a ser algo”.

E como tornar existente essa disciplina sem volição, ação da vontade?Pois, afinal de contas a vontade é a culminação do desejo. É possível a mente ser

disciplinada, sem vir à existência a entidade que deseja a disciplina? Entendeis?Este me parece um ponto importante e permiti-me sugerir que escuteis, não com o antagonismo próprio da mente que funciona pela velha disciplina e, portanto, rejeita a outra, mas, sim, com o intuito de descobrir o que é essa outra disciplina. A disciplina comum, embora possa parecer nobre, baseia-se essencialmente no temor; e nossa investigação visa a descobrir se existe uma disciplina não-baseada no medo, não-proveniente da ação volitiva.

Pode-se ver que a ação da vontade produz de fato um certo resultado. Se desejo algo muito ardentemente, se o persigo pacientemente, tê-lo-ei. Mas isso implica o funcionamento da vontade, e a vontade é essencialmente um “processo” de resistência, e a mente cuja disciplina é puramente processo de resistência não pode de modo nenhum compreender outra espécie de disciplina. Assim, como poderá a mente individual, vossa mente e a minha, alcançar o “estado de disciplina” sem disciplinar-se? Afinal de contas, a virtude – que significa “ser virtuoso”, e não “vir a ser virtuoso” – é um estado de disciplina sem base egocêntrica.

E como pode a mente libertar-se da atividade egocêntrica, a que agora chama disciplina?Essa disciplina pode produzir certos resultados, que poderão ser nobres ou ignóbeis; mas a

atividade egocêntrica; em qualquer forma que seja, com sua vontade, com seus temores, nunca pode ser virtuosa. E é possível minha mente libertar-se de toda atividade egocêntrica sem se disciplinar? Este é, na conduta, no comportamento, o problema real.

Quando emprego as palavras “minha mente”, isso é naturalmente uma maneira de dizer; não se trata de minha mente, trata da mente. Ora, essa mente, até onde posso ver, funciona tão-só como atividade egocêntrica; quer meditando em deus, quer buscando satisfação sexual, praticando o ideal da “não-violência”, lançando-se a reformas sociais – sua atividade, é essencialmente egocêntrica, isto é, confinada na esfera do tempo, no campo de seu próprio pensamento.

É possível a mente libertar-se dessa atividade egocêntrica, sem compulsão sem a disciplina de ajustamento a padrão?

Por que se faz esta pergunta?

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Quase todos nós nos disciplinamos no sentido comum. Se somos invejosos, dizemos que não devemos ser invejosos, que devemos ser rigorosos com nós mesmos. Se não compreendemos, dizemos: “se eu progredir por meio da disciplina, no fim compreenderei”.

Nunca duvidamos desse processo de disciplina em si.Ora, pelo duvidar, pelo investigar, vereis que a disciplina a nenhum valor tem, a não ser

socialmente, e de modo nenhum pode conduzir à realidade.Realidade só pode ser compreendidas com o completo “abandono”, e não podeis

abandonar-vos enquanto existir qualquer forma de atividade egocêntrica.Não se pode ser austero quando se cultiva a austeridade, porque então a mente está em

busca de resultado. Há uma austeridade de espécie diferente, que nenhuma relação tem com o abandonar uma coisa a fim de alcançar outra coisa, e que nunca será conhecida enquanto a mente estiver forçando, controlando, reprimindo a si própria. A austeridade da repressão produz de fato um sentimento de poder, de domínio de si mesmo, e nisso se encontra grande prazer, grande vitalidade que, entretanto, não nós leva na direção da realidade.

Pelo contrário, isso, puramente, uma perpetuação da atividade egocêntrica, “apartada do mundo”. É como possuir todos os tesouros do mundo seguindo por um caminho diferente.

Assim, será possível a mente ser austera se existe a entidade que procura ser austera? Senhores, isto não é algo metafísico, místico ou vago.

Se realmente seguirdes, ou investigardes, olhardes na direção que estou apontando, descobrireis, por vós mesmos, como resultado dessa investigação, que surgirá uma disciplina que nada tem em comum com a atividade egocêntrica que busca um resultado.

A disciplina a que estais habituados é de todo em todo falsa; poderá ter valor no sentido social, mas nenhuma relação tem com a investigação da realidade; assim, que cumpre fazer?

Quando a mente busca, não pelo desejo de resultado, mas pela simples necessidade de buscar, porque percebeu a falsidade do que estava fazendo – então, esse próprio processo de investigação é disciplina que nenhuma relação tem com auto-aperfeiçoamento. Eu estou investigando; e, para investigar, deve a mente total estar “não-contaminada”, livre de todas as pressões.

A mente que está agrilhoada à preocupação, à ambição, à avidez, à paixão, é evidentemente incapaz de investigar.

A verdade é para ser achada, e não para se crer, e para achá-la a mente deve ser livre.No momento em que percebo a verdade disso, minha mente se está libertando do falso, e, por

conseguinte, existe a verdadeira disciplina; não há nenhuma “entidade que disciplina”, e o próprio percebimento do que é falso faz a mente compreender a verdadeira disciplina.

A virtude, pois, é essencial para se compreender a realidade, e virtude não é respeitabilidade. Ser virtuoso, sem procurar tornar-se virtuoso, exige extraordinária investigação, lúcido pensar, e não tendes nenhuma possibilidade de pensar lucidamente, se há qualquer forma de medo.

Por conseguinte, impende compreender a violência sem tentar tornar-se “não violento”.Descobrireis, então, que existe uma disciplina não-relacionada com a disciplina da

moralidade social; uma disciplina que é essencial, porquanto torna a mente capaz de seguir com incomum velocidade o célere movimento da verdade.

Se desejais observar o vôo de uma ave, deveis prestar-lhe toda a atenção, e essa própria atenção é disciplina.

A “realidade” dos livros, dos sacerdotes, da sociedade, nenhuma realidade é; é mera propaganda e, portanto, não-verdadeira. Se Desejais compreender a realidade, deve vossa mente ser capaz de extraordinária lucidez, silencio, velocidade; e não é lúcida, não é silenciosa, não é veloz a mente agrilhoada a qualquer forma de disciplina, paralisada pela moralidade social.

Ao compreenderdes isso, vereis que existe uma disciplina, uma austeridade não resultante de atividade egocêntrica; e essa disciplina é que é essencial, para que a mente possa seguir o rápido movimento da verdade.

Para a maioria de nós a dificuldade é que tivemos uma certa e agradável experiência, e nos disciplinamos porque desejamos que essa experiência continue. Tive um momento lúcido, feliz, de percepção de algo inefável, e isso me deixou forte impressão na mente; e, porque desejo repeti-lo, controlo-me, pratico a virtude, etc.

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Trata-se de uma forma de inveja, não achais? A inveja gera a disciplina, mas isso não é a liberdade.

Ora, a mente que busca a realidade encontra, nessa busca um “processo” de disciplina em que não há experimentar por parte do “experimentador”. Para que o “experimentador” não tenha experiências, requer-se extraordinária lucidez, espantosa firmeza de pensamento, de compreensão; e dessa compreensão da totalidade da mente, que é autoconhecimento, provém uma disciplina, uma conduta, um comportamento produtivo daquela austeridade tão essencial ao “abandono” de si mesmo. Com esse “abandono”, produto da austeridade, encontra-se a beleza. Só a mente que de todo se abandona é realmente austera, e ela é que pode compreender a verdade, a realidade.

Pergunta: o pensamento é a semente que contém começo e o fim – a totalidade do tempo. Esta semente se robustece e germina na escuridão da mente. Que ação é possível para consumir esta semente?

Krishnamurti: só há uma ação: a ação do silêncio. Mas, antes de qualquer coisa, espero tenhais compreendido a pergunta. Diz o interrogante que a semente do pensamento, ou seja, a totalidade tempo, amadurece no “ventre escuro da mente’’, e pergunta como pode esta semente do pensamento, este resultado do tempo, este produto do passado, ser completamente consumido – não por meio de um “processo”, não por meio de um método ou sistema, pois isso implica tempo, e desse modo nos vemos de volta à escuridão em que ocorre a germinação e a continuidade do pensamento.

A questão, pois, é esta: como pode o pensamento, que é a totalidade do tempo, terminar? Ora, antes de proceder a este descobrimento, tenho de investigar o que é pensar, não achais? E com esta pergunta apresentei a mim mesmo um “desafio” – e a “reação” a esse “desafio” é de acordo com minha memória.

Quando digo “que é pensar?” Se põe em movimento o mecanismo da memória – a memória de minhas experiências, de meus conhecimentos, de tudo o que aprendi ou tudo o que me disseram a respeito do pensar.

Minha mente, pois, está a “cavar” na memória, procurando uma resposta à pergunta – ao “desafio”. Esse “cavar” na memória, em busca da resposta, e a comunicação verbal dessa resposta, é o que chamamos “pensar”, o qual, é processo de tempo.

Espero me esteja fazendo claro, pois é realmente importante compreender isso. É só quando compreendemos o processo do nosso próprio pensar que se pode descobrir o que significa ter uma mente de todo tranqüila. Para que a mente esteja tranqüila, há necessidade de energia completa, energia que não se dissipe; que seja total, na qual haja a vitalidade de todo nosso ser. Para termos essa energia total que silencia a mente, precisamos, investigar o que é pensar; e vemos que pensar é reação da memória, sendo isto bastante simples.

Se vos pergunto onde morais, respondeis prontamente, porque se trata de uma coisa com que estais familiarizado. Se vos faço uma pergunta mais complicada, hesitais, há um intervalo entre minha pergunta e vossa resposta; nesse intervalo a mente está pensando, perscrutando a memória. Se vos faço pergunta mais complicada ainda, o intervalo é mais longo.

A mente está buscando, tateando para encontrar a resposta; e se não encontra a resposta, diz: “não sei”. Mas, quando diz “não sei”, encontra-se num “estado de “desejar saber” e, por conseguinte, está ainda prisioneira do processo de pensar.

Estamos vendo, pois, o que é pensar. A pergunta que põe a mente em movimento pode ser simples ou muito complexa, mas é sempre o mecanismo da memória que responde, reage, quer seja a memória de passado extremamente recente, quer seja do passado de ontem, ou do passado de há um século.

Vê-se, pois, que o “processo” de pensar é reação da memória.E é este processo de pensar que diz: “devo disciplinar-me, devo libertar-me do medo, da avidez, da inveja, preciso encontrar Deus”; é esse processo de pensar que tem a crença em deus ou que diz “não há deus”; mas ele está ainda compreendido na esfera do tempo, porquanto o pensamento é ele próprio, a totalidade do tempo. Agora para um homem que deseja encontrar a realidade ou a compreensão que lhe revelará a realidade, para esse homem o pensamento deve cessar – pensamento no sentido de totalidade do tempo. E como pode cessar o pensamento? – mas não por meio de qualquer espécie de exercício, disciplina, controle, repressão, pois tudo isso está na esfera

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do pensamento, e, por conseguinte, no âmbito do tempo. A mente diz: “preciso investigar algo que não seja do tempo”, é essa mente – processo de pensamento, processo de tempo – que deve cessar.

Não achais?Espero não estejais simplesmente ouvindo minhas palavras, porquanto palavras são cinzas,

nenhuma significação tem, a não ser no nível verbal; mas, se fordes capazes de investigar a significação que se acha além das palavras, compreendereis então a extraordinária beleza e profundeza, no tempo não há virtude, no tempo só se encontra a germinação e amadurecimento do pensamento – do pensamento sempre condicionado, do pensamento que nunca pode ser livre. Não existe “pensamento livre”: isso é puro disparate.

Pensar é unicamente “pensar”, e se perceberdes o verdadeiro significado do pensar, nunca mais falareis de “livre pensamento”. Por conseguinte, perguntamos: é possível ao pensamento, que é o resultado do passado, a totalidade do tempo, cessar de imediato? Digo que só é possível quando a mente está por inteiro tranqüila. Se perguntais: “como poderá a mente ficar completamente tranqüila?” - Esse “como” é uma exigência de método e, dessa maneira, estais de novo aprisionados no tempo. Mas existe um “como” que não está em relação com o tempo, pois não é exigência de método. Compreendeis o que estou dizendo senhores?

Podeis perguntar “como” – significando: “ensinai-me o método que, com o tempo, porá fim ao pensar” – e esse “como” constitui meramente a continuação do pensamento, com o qual esperais alcançar um estado (psicológico) em que não há pensar – o que é uma óbvia impossibilidade.

Mas se percebeis a falsidade desse processo, então o “como” tem significado inteiramente diferente.

Peço-vos prestar atenção a isto, pois, se o compreenderdes, sabereis de pronto, por vós mesmos, o que é “ter uma mente serena”; ninguém vo-lo precisará ensinar e não necessitareis de nenhum guru.

O “como” que implica método supõe tempo e, por conseguinte, continuação do pensamento, que é condicionado e no qual não há liberdade. Não tem esse “como” validade alguma ao investigar-se o que é a verdade, porque, para se investigar o que é a verdade, necessita-se de liberdade – de estar livre do pensamento.

Ora, no momento em que se percebe que o “como” que exige método é meramente a continuação do tempo, que acontece à mente?

Espero que estejais observando vossa mente, e não simplesmente ouvindo minhas palavras.Que acontece à vossa mente ao perceberdes que o “como” que exige método não é o caminho

certo para se libertar a mente?Resta-vos um “como” que é investigação não é verdade? E para investigar, temos de começar

no mais completo silencio, visto que nada sabemos. Entendeis? A mente que está investigando não contem acumulação, sua investigação não é “aditiva”, não há nela acumulação de conhecimento. Entendeis, senhores?

Se estou investigando o que é o amor, não posso dizer que o amor é espiritual, divino, efeito de karma etc., pois isso é simplesmente um “processo” de pensar nunca descobrirei o que é o amor por meio do pensar, porquanto o pensamento é condicionado, é pensamento é resultado do tempo. O pensamento “projeta” idéias sobre o amor, mas o que ele projeta não é amor.

Para investigar o que é o amor, a mente deve estar livre de informações, idéias, pensamentos. Ao perceber esta verdade, minha mente se torna tranqüila; não tenho de perguntar como torná-la tranqüila. O importante é a correta investigação, isto é: investigar de modo que a mente esteja livre do conhecimento acumulado, através da experiência, pelo “experimentador”.

O pensamento, que é a totalidade do tempo, germina nos escuros recessos da mente, porque a mente resultou do tempo, de muitos milhares de dias passados. A mera continuação do pensamento, por mais nobre, mais erudito, mas venerável que seja, se verifica na esfera do tempo, e essa mente é incapaz de descobri o que se acha além de seus próprios limites.

O relevante, pois, é que a mente – resultado do tempo – comece a investigar a si mesma, em vez de especular a respeito do estado mental, que é livre do tempo.

Só quando começa a investigar a si própria que a mente se torna cônscia de seus próprios processos e do significado de seu pensar.

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Só podeis estar total e imediatamente cônscios de todos os obscuros recantos da mente, onde o pensamento funciona, se percebeis que o pensamento nunca conduzirá a mente a liberdade.

Se bem compreenderdes isso, vereis que a mente se tornará sobremodo tranqüila, não apenas a mente consciente, mas também a mente inconsciente, com toda a sua herança racial, seus motivos, dogmas e ocultos temores.

Mas só se verifica essa tranqüilidade total da mente quando há a tremenda energia do autoconhecimento. É o autoconhecimento que trás essa energia, e não vossa abstinência do sexo, do álcool, disto ou daquilo – pois isso, também, é uma atividade egocêntrica. Essa energia e essencial e só pode manifestar-se em toda a sua intensidade, plenitude e vitalidade quando há conhecimento próprio. Mas o autoconhecimento não é “cumulativo”; é o descobrimento do quê sois, momento a momento.

A mente está então tranqüila, e nessa tranqüilidade há grande beleza, da qual nada sabeis. Há nela um espantoso movimento que destrói a germinação da mente. Esse silêncio tem uma atividade própria, seu modo próprio de atuar sobre a sociedade, e ele produzirá ação, não importa qual seja o padrão social em apreço.

Mas a mente que apenas se empenha na reforma social, no produzir a igualdade pela legislação, etc., nunca conhecerá essa outra ação que opera sobre a totalidade.

Eis porque tanto importa compreendermos. Graças a essa compreensão, há o verdadeiro “abandono” – passividade – e só então se apresenta esse extraordinário sentimento de silencio.

Não sei se já alguma vez experimentastes, de manhã cedo, estar sentados calmamente, com a mente inativa, observando o céu sereno, as refulgentes estrelas, as árvores, os pássaros. Experimentai-o uma vez, não para meditardes – que é atividade egocêntrica do meditador, – mas por mero divertimento.

Vereis então que há um silêncio que nenhuma relação tem com o conhecimento. Não é o fim do barulho, ou o oposto do barulho. É um silêncio que é, em verdade, o movimento criador de todas as coisas, o começo de tudo. Mas nunca o encontrareis se não tiverdes esse conhecimento próprio.

Essa compreensão é o começo da liberdade.Conferência de Krishnamurti, em Bombaim, Índia em 17.02.1957 págs. 143/152 do livro

“o homem livre” – Cultrix – 1976 – tradução de Hugo Veloso – destaques, parênteses e nova disposição gráfica, foram colocados por ocasião do estudo.

VIVER A ARTE DE VIVER

Nesta manhã pretendo examinar um assunto um tanto complicado. Poderá parecer difícil, porém é bastante simples. O importante não é fazermos alguma coisa, não é perguntar-nos o que se pode fazer em

relação a certa coisa, porém o importante é o ato de escutar. Toda comunicação, mesmo no nível verbal, está no simples escutar, e não em tentarmos

descobrir o que o orador está dizendo, em fazermos um enorme esforço para compreender o problema de que se está tratando.

Escutar é uma arte, e se puder escutar com atenção isenta de esforço, sem a determinação de escutar, sem a atenção que visa a um fim, porém assim como se escuta o rio a correr, então o próprio ato de escutar é, em si, uma ação total. Nossa mente é tão complexa, tão contraditórios e ocultos são nossos motivos e intenções, que perdemos toda a simplicidade.

O escutar requer uma mente muito simples - não uma mente desequilibrada, porém uma mente muito clara, como um lago de águas tão límpidas e tranqüilas que se possa ver o seu fundo, com todos os seixos e os peixes e as ervas e tudo o que vive sob a água.

Se uma pessoa é capaz de observar e de escutar, não precisa fazer mais nada. Não terá de exercer o raciocínio, não necessitará de nenhuma convicção ou fé, nem de fazer

esforços para ser séria: só terá de ver a existência como um todo, ver o céu todo inteiro e não através

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de uma janela, através de uma mente especializada que olha para o céu com seus conhecimentos científicos.

A mente especializada não pode ver a totalidade, não pode perceber o todo da vida - amor, morte, ódios, guerras, impulso aquisitivo, batalha constante, interior e exterior, ambição, poder - como um vazio total, um movimento total. Se pudéssemos ver dessa maneira, escutar o movimento da vida, todas as relações teriam uma significação inteiramente diferente, e a existência uma diferente profundeza.

Por que razão olhais a vida em fragmentos? Peço-vos não responder ou procurar resposta. Disso se encarregará o orador, o mais detalhadamente possível. O que tendes de fazer nesta manhã, se posso sugeri-lo, é só ficar escutando durante quarenta

ou quarenta e cinco minutos, se tendes o interesse, a seriedade, a intenção, a vitalidade, a energia que isso requer.

Escutai; depois, se o desejardes, tereis a bondade de fazer perguntas e examinaremos mais um pouco a matéria. Mas, permiti-me sugerir que escuteis sem esforço, e com agrado. Esta é uma linda manhã: as montanhas muito claras, o prado todo rutilante, cada árvore, cada ser vivo cheio de vida e beleza.

Para se ver tudo isso, não deve haver ponto de vista especializado, fragmentário. Por que razão olhamos a vida aos fragmentos? Porque fracionamos a vida, a vasta corrente da existência, em seções, em séries classificadas de fragmentos?

Porque dividimos o mundo físico em nacionalidades, em dogmas, em mundos diferentes - mundo político, religioso, social, econômico? Nossas relações estão divididas. O marido, a mulher, o filho, a família, o grupo, a comunidade, as nações - todos funcionam separadamente.

Porque temos divisões como amor e ciúme, deus e demônio, bom e mau? Tudo é fracionário, e nossa própria mente e corações estão divididos, fragmentados; por

causa dessa fragmentação nunca vemos o todo, embora tentemos, de todas as maneiras, juntar esses fragmentos num todo. Mas não podemos integrá-los. Não se pode integrar o preto e o branco, o ódio e o amor, ou a bondade e o ciúme. Visto não ser possível essa integração, necessitamos de uma maneira inteiramente  nova de abeirar-nos do problema. Para se compreender ou observar a vida como um todo não-fragmentado, não deve haver nenhum centro, nenhum eu, como observador, como experimentador.

O observador, o nacionalista, o homem que crê ou que não crê, o comunista - cada um desses tem o seu centro, de grau e profundidade diferentes, inteligente ou não, embotado e estúpido ou altamente intelectual, muito ilustrado ou muito ignorante. Enquanto existir tal centro, haverá fragmentação: vida e morte, amor e ódio, etc.

Peço-vos escutar, sem perguntar como vos libertareis do centro. Não podeis livrar-vos dele.Como podeis livrar-vos do todo da vida? Não o podeis! Quanto mais vos esforçardes para vos libertar do centro, tanto mais forte ele se tornará.Vemos ocorrer essa fragmentação e sabemos também, pela observação, pelo claro pensar,

porque a fazemos.Somos condicionados desde a infância para pensarmos de uma certa maneira. O matemático, os cientistas, se devotaram a certas especialidades, e tudo mais lhes é

secundário. Dividiram, fragmentaram a vida. A vida é contradição enquanto não percebemos por nós mesmos, o seu todo, a totalidade dos

entes humanos, a totalidade do mundo, assim como vemos estas montanhas, estes rios e vales. Enquanto a mente estiver fragmentada, fracionada, especializada, enquanto algum homem

disser: "esta é a direção que tenho de seguir", ou "este e o caminho de meu preenchimento, de meu "vir a ser", o caminho que seguirei" - haverá aflições e mais sofrimentos.

Cada um de nós tem esse centro, de onde olha, julga, avalia e faz tremendos esforços. A vida está fragmentada e essa fragmentação, causada pelo centro, é o tempo

Se olhamos o todo da existência, sem esse centro, o tempo desaparece. Um milagre!O tempo (psicológico) é uma das coisas mais complexas que temos de compreender.

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É relativamente fácil compreendê-lo intelectualmente, mas, para perceber o seu significado, compreender a natureza do tempo (psicológico), a importância o tempo (psicológico), não só temos de compreender o tempo cronológico, marcado pelo relógio que trazemos no bolso ou no pulso, mas temos também de compreender e de observar o fator psicológico que cria o tempo (psicológico) como ontem, hoje e amanhã.

O tempo é um movimento, uma totalidade, e se o fracionamos em ontem, hoje e amanhã, ficamos-lhe escravizados. Criamos então teorias: gradualismo, ou o "imediato", o "agora".

Pela teoria gradualista, os entes humanos se tornarão gradualmente mais benevolentes, mais bondosos, mais isto e mais aquilo. Percebemos a total futilidade da esperança (vir a ser) de uma vida futura, sendo o futuro amanhã, de contarmos com um ganho que se verificará daqui a alguns meses, anos ou séculos.

Isso, mais uma vez, é fragmentação do tempo. Nessa rede estamos presos e, por conseguinte, não compreendemos o extraordinário movimento do tempo não fragmentado.

Na realidade, só existe o tempo marcado pelo relógio, e nenhum outro. Aquele trem passa por aqui precisamente a esta hora, todos os dias, e se desejais tomá-lo

deveis estar na estação na hora da sua partida. De contrário, o perdereis. O tempo cronológico tem de ser observado rigorosamente. A observância do tempo marcado pelo relógio não é uma fragmentação como a daquele outro tempo. O tempo não cronológico (psicológico) é invenção da memória, da experiência, ou do centro, que diz: "eu serei".

Existe a questão da morte, questão que preferimos adiar, evitar, afastar de nós.O pensamento é a causa da fragmentação do tempo, o qual, salvo o tempo cronológico, não

tem existência real. Não compreendemos aquele extraordinário movimento do tempo em que não há

fragmentação, porque estamos sempre pensando no que fomos, no que somos, no que seremos. Isso é fragmentação do tempo psicológico, e a tal respeito nada podeis fazer, senão escutar.Não podeis dizer: "livrar-me-ei do tempo, para viver no presente, porque só o presente é

importante". Que significa realmente "o presente"? Ele é apenas um resultado do passado; mas existe um presente real quando não há

fragmentação do tempo. Espero que possais ver a beleza disso.O tempo tem para nós desmedida importância - não o tempo cronológico, a hora de ir para o

escritório, de tomar o trem, o ônibus, de ir a um encontro marcado. Tudo isso são trivialidades, que temos de observar. Mas, o que tem importância é o tempo psicológico (o que criamos), que dividimos em ontem, hoje e amanhã.

Estamos sempre vivendo no passado. O "agora" é o passado, porque esse "agora" é a continuação da memória, o reconhecimento do que foi e não pode ser alterado, e o que está acontecendo no momento presente.

Ou vivemos engolfados nas recordações da juventude, na lembrança de coisas passadas, ou vivemos na imagem do amanhã. Levamos uma vida de gradual declínio, gradual definhamento. Com a aproximação da senilidade, as células cerebrais se vão tornando mais e mais fracas e perdem, por fim, toda a energia, vitalidade e força. Esta é que é a grande tristeza. Ao envelhecermos a memória desaparece e tornado-nos caducos, meros repetidores do passado. É assim que estamos vivendo; embora muito ativos, somos senis.

No presente, no momento da ação, estamos sempre vivendo no passado, com sua influência, suas pressões e tensões, sua vitalidade.

Todo o saber que, com enorme esforço, adquirimos e armazenamos através do tempo, é do passado. O saber nunca é do presente.

Com esse saber (psicológico) do passado atuamos, e a essa ação é que chamamos "o presente". Tal ação está sempre a causar declínio. Estamos atuando "dentro" da imagem, do símbolo, da idéia do passado; tal é a fragmentação da vida. Inventamos filosofias, teorias do presente: "vivamos só no presente e tiremos dele todo o proveito possível". "Nada mais importa".

Esse "viver no presente" é desespero, porque o tempo que foi dividido em passado, presente, e futuro só produz desespero. Conhecendo o desespero, dizemos: "não importa; tratemos de viver no

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agora no presente, porque tudo mais é sem significação. Toda ação, toda vida, toda existência, toda relação, tudo enfim resulta necessariamente na divisão do tempo e, por conseguinte, no desespero, no declínio, na aflição".

Tendes a bondade de escutar, porque a esse respeito não podemos fazer coisa nenhuma.Tal é a beleza daquilo que ocorrerá se ficarmos apenas escutando. Isso não significa que se

tenha de aceitar o que se diz; não há nada que aceitar nem que rejeitar. É estúpido dizer-se: "estou vivendo no presente". Isso não significa nada. Igualmente estúpido é dizer: "nego o passado". Podemos negar o passado, mas somos o resultado dele.

Todo nosso funcionamento vem do passado.Nossas crenças, nossos dogmas, nossos símbolos, a norma que nos esforçamos para seguir,

qualquer que ela seja, tudo é resultado do passado, o qual é o tempo. Dividimos o tempo em passado, presente e futuro. Isso naturalmente gera medo, medo da

vida que está fora do tempo, e medo do movimento do tempo não fracionado em ontem, hoje e amanhã.

Esse movimento do tempo só pode ser percebido totalmente, quando não há fragmentação, quando não há nenhum centro, de onde olhamos a vida.

A beleza não é "do tempo"; o que tem relação com o tempo é sua expressão fragmentária, conforme a percebemos no tempo. A beleza, como o amor, não pode ser dividida em ontem, hoje e amanhã. Se a dividimos, apresentam-se todos os problemas inerentes àquela relação que chamamos "amor" - ciúme, inveja, domínio, sentido de posse. Quando a beleza não é resultado da fragmentação do tempo, então a pintura, a música e todas as modernas falácias e artifícios perdem toda a significação.

Tudo o que é expressão do tempo, do período, do moderno estado de revolta, nega a beleza. A beleza não pode ser traduzida em termos de tempo. Ela só pode ser compreendida, vivida, conhecida, no silêncio total. Não podemos ver a beleza da montanha e do claro céu azul quando a mente está a tagarelar interminavelmente, quando ocupada com problemas. Só se pode ver aquela beleza no silêncio total, e esse silêncio não se alcança por meio do tempo, pelo dizermos: "amanhã estarei em silêncio; praticarei os necessários métodos", e outras infantilidades que tais.

O silêncio só se manifesta em sua totalidade, profundeza e beleza, tão logo cessa a fragmentação do tempo. A mente silenciosa é uma mente livre do tempo, e em virtude desse silêncio ela pode agir. Ela é silenciosa, porque "sem tempo".

Está sempre no presente, sempre no "agora".Como não é possível atuar positivamente por meio da "vontade" para quebrar a sujeição ao

tempo, nada se pode fazer.É necessário compreender realmente que nada se pode fazer.Isso não significa que a pessoa tenha de se tornar preguiçosa, negligente, de levar uma vida

estúpida e sem significação. Vê-se a totalidade da vida, a extraordinária complexidade da existência, e percebe-se que nada se pode fazer. Que podemos fazer a respeito daquele barulho? Podemos resistir-lhe ou podemos ficar a escutá-lo, a "acompanhá-lo".

Se percebemos que, nem positivamente nem de outra maneira podemos fazer alguma coisa a respeito da vida fragmentária que levamos, essa vida de contradição a que estão condenados os entes humanos; se percebemos esse fato realmente, e não intelectual, racional ou verbalmente; se compreendemos totalmente que não temos possibilidade de fazer coisa alguma a respeito de nossa vida, com seus sofrimentos, prazeres, alegrias, aflições, ambições, competição, sua busca de poder e de posição e todos os fragmentos em que está dividida a nossa existência, então o tempo como ontem, com todas as suas lembranças, experiências e conhecimentos termina totalmente.

Dessa terminação do tempo nasce a beleza - que não é as coisas que vemos, nem a montanha, nem o quadro, nem o regato, tudo isso são fragmentos - porém a beleza que nasce sem ter sido buscada, nem premeditada. Só surge essa beleza quando o tempo não existe, ou quando o tempo não está fracionado. Dessa beleza vem o silencio.

A mente que não está em silêncio e o coração que não está tranqüilo vivem no conflito e na aflição. O que quer que façamos, ela trará sempre aflições, para nós e para outros.

A beleza surge, com ela nos encontramos insabida e misteriosamente, quando estamos a escutar sem esforço, tranqüilamente, sem estarmos sendo hipnotizados por quem nos fala. Esse

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encontro poderá durar só um segundo, um minuto, poderá durar um dia, um século, mas não importa. Quando queremos apoderar-nos dela, quando dizemos: "tenho de retê-la toda a vida", já estamos fragmentados; recomeça a contradição, a irritação, o ciúme, etc.

Para se ver a totalidade da existência, o tempo como presente, passado e futuro deve terminar.

Podemos agora palestrar, investigar, não como alcançar essa extraordinária beleza, porém como ver, como observar o quanto está fragmentada, fracionada a nossa vida?

Se percebemos os fragmentos e percebemos que nada podemos fazer, que não há possibilidade de integrá-los, visto que toda ação é fragmentária enquanto existe um centro, e esse centro é o resultado da fragmentação do tempo - se pudermos observar esse fato, abrir-nos a ele, então será possível encontrarmos algo não criado pelo tempo - tempo como ontem, hoje e amanhã.

O tempo se detém, então. O tempo constituído de fragmentos termina.Se pudermos nesta manhã ver realmente as nossas vidas e como as fracionamos e

fragmentamos, talvez então suceda alguma coisa - não nascida do inconsciente, porque este não existe.

Só há consciência, que dividimos em consciente e inconsciente. É dessa divisão que nascem todas as fragmentações e as respectivas aflições.

Interrogante: vedes todas as coisas como beleza? Krishnamurti: que quererá dizer o interrogante? Pode-se achar belo o assassínio de uma pessoa, a guerra, um incêndio, o sofrimento, a lama

da estrada, o esqualor da pobreza? Por que fazeis esta pergunta? É por que desejais ver tudo como beleza - as provocações e disputas entre marido e mulher, a cólera, o ciúme? Quereis ver tudo isso como beleza, para terdes uma imagem para cultuar, uma espécie de extravagância mística? Senhor, deveis ver as coisas como são, os fatos como fatos, e não ter opiniões a respeito dos fatos. Deveis ver realmente, sem dissimulação, a fealdade, a brutalidade, as coisas horrorosas que estão sucedendo no mundo. Todas as igrejas com seus dogmas, cruzes e signos são irreais. São símbolos, e o símbolo nunca é o real. Quando reconheço que o símbolo não é real, perde ele então toda a significação. Respondi a vossa pergunta, senhor?

Interrogante: sim, com restrições.Krishnamurti: restrição de quê? Senhor, compreendestes o que eu disse? A mente que já não

pensa em termos de ontem, hoje ou amanhã, a mente que não está fragmentada, racionada, saberá o que é a beleza. Então não se pergunta: "pensais que a vida é toda de beleza?". Primeiro descobri por vós mesmo porque vossa mente está fragmentada, porque vossa vida se acha especializada, como marido, etc. Enquanto investigais isso, fazei perguntas. Mas começai, primeiramente, a investigar, para então fazerdes perguntas verdadeiramente importantes.

Interrogante: o que perturba a maioria de nós é o fato de serem as palavras tão superficiais. As palavras que empregamos não têm significação. Se falamos a respeito de certas coisas, usamos de certa, expressões; as palavras brotam espontaneamente.

Krishnamurti: é exato isso? "minha esposa" ou "meu marido" são palavras, mas têm enorme significação, não achais? Há gente disposta a matar por causa das palavras "meu deus" ou "eu sou comunista". Uma idéia é apenas palavra racionalizada, palavra organizada, e por ela estamos prontos a matar e a embrutecer-nos, destruir-nos. Não digais, senhor, que as palavras têm muito pouca significação. Se compreendemos que a palavra, o símbolo, a expressão não é o fato, assim como a palavra "árvore" não é a árvore, então já não estamos enredados nas palavras. Nosso pensar, nossas mentes estão cheias de palavras, condicionadas por palavras como "sou inglês, sou francês". As palavras têm para nós extraordinária importância. Podemos chamá-la "superficial", mas uma palavra, uma expressão, um símbolo tem muita significação. Mas, quando sabemos que a palavra, o símbolo, a expressão não tem significação real, que só o fato a tem, então as palavras e expressões de que usamos não nos cativam a mente. Senhor, fez-se uma tentativa de investigar a questão da propaganda. Criou-se uma comissão que logo começou a trabalhar. Sabeis quem sustou essa tentativa? A igreja, os militares, os homens de negócios!

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Interrogante: numa pequena aldeia vive uma serpente venenosa. Uma mãe está em prantos porque essa serpente lhe mordeu o filhinho e ele morreu. Posso matar a serpente, ou deixá-la em paz. Que devo fazer? "

Krishnamurti: que fazeis num caso destes? Ficais esperando uma oportunidade de vir aqui, para saber o que deveis fazer? Ou fazeis alguma coisa imediatamente, no local? Vós agis! Se sois insensível, indiferente, nada fazeis; mas, se o fato vos comove, fazeis, com efeito, alguma coisa, imediatamente. Senhor, todas as nossas ações se baseiam na idéia de que devemos prestar bons serviços, ser bons, de que isto é justo e aquilo é injusto. Toda ação está condicionada por uma idéia, por nossa pátria, nossa civilização, e pela alimentação que tomamos. Tudo isso condiciona as nossas ações, porque elas se baseiam em idéias. Quando percebermos que a ação que se ajusta a uma idéia não é ação, rejeitaremos todas as idéias e saberemos o que é ação. É interessante observar como temos fracionado a ação: virtuosa, imoral, justa, verdadeira, nobre, ignóbil, ação nacional, ação conforme com a igreja. Se compreendemos o nenhum valor de tais ações, então agimos. Não perguntamos como agir, o que fazer; agimos, e esse ato é, naquele momento, a mais bela das ações.

Krishnamurti em Saanen - Suíça, 26.07.1966 - págs. 83/91 do livro “O Mistério da Compreensão” - Cultrix 1972 - tradução de Hugo Veloso - parênteses e nova disposição gráfica foram colocados por ocasião do estudo. Cada um tem de ser mestre e discípulo de si próprio -- não há nenhuma autoridade, há apenas compreensão... Temos de estar livres de toda a crença, o que quer dizer de todo o medo, para sabermos se existe uma Realidade, um estado intemporal.Krisnamurti

MUDANÇA E MUTAÇÃO

Há a meu ver, vasta diferença entre mudança e mutação. A mera mudança não conduz a parte alguma. Uma pessoa pode tornar-se superficialmente adaptável, muito hábil no ajustar-se aos diferentes ambientes e circunstâncias sociais, e a várias formas de pressão interior e exterior; mas a mutação requer um estado mental muito diferente.

Mudança é alteração, reforma, substituição de uma coisa por outra. Mudança implica ato da vontade, consciente ou inconsciente. E, considerando-se a confusão, a miséria, a opressão, a extrema

aflição existente em toda a Ásia (1965) subdesenvolvida, torna-se evidente a necessidade de uma mudança radical, revolucionária. Há necessidade, não só de mudança física ou econômica, mas também de mudança psicológica - mudança em todos os níveis do nosso ser, exteriores e interiores, a fim de se proporcionar uma melhor existência ao homem.

Acho que isso é bastante óbvio, e até os mais estremados conservadores o admitirão. Mas, ainda que o reconheçamos, creio que em regra não consideramos profundamente a questão da mudança e tudo o que ela implica. Qualquer ajustamento, substituição, reforma, é de ação muito profunda ou consiste meramente num polimento superficial, numa "limpeza" na moralidade das relações humanas?

Penso que devemos compreender bem profunda e cabalmente o que está implicado nesse processo de mudança, antes de examinarmos o que considero mutação.

A mudança, embora necessária, me parece sempre superficial. Entendo por mudança todo movimento operado pelo desejo ou vontade, toda iniciativa concentrada numa dada direção, visando uma certa atitude ou ação precisamente definida. Toda mudança, evidentemente, tem atrás de si um motivo. Esse motivo pode ser pessoal ou coletivo, manifesto ou remoto; pode ser um motivo bondoso, generoso, ou um motivo de medo, desespero; mas, qualquer que seja a natureza ou o nível do motivo, a iniciativa ou, movimento resultante desse motivo produz uma certa mudança.

Isso me parece bastante claro.

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Os mais de nós somos muito suscetíveis, individual e coletivamente, de modificar nossas atitudes, sob influência, pressão, e também quando aparece alguma invenção nova que direta ou indiretamente influi em nossa vida. Podemos ser levados a mudar nossos pensamentos, orientá-los em diferente direção, por um artigo de jornal ou pela propaganda que se faz de uma idéia. A religião organizada mostra muito empenho em educar-nos, desde crianças, numa certa forma de crença, condicionando-nos assim a mente, e, pelo resto da vida, toda mudança que operamos fica dentro dos limites "modificados" dessa crença.

Assim, são raros os que mudam, a não ser com um motivo. O motivo poderá ser altruísta ou interesseiro, limitado ou amplo; poderá ser o medo de perder uma recompensa, ou de não atingir um certo estado prometido para o futuro. O indivíduo se sacrifica à coletividade, ao estado, a uma ideologia, ou a determinada forma de crença em deus.

Tudo isso implica uma certa mudança, consciente ou inconscientemente produzida.Pois bem; a chamada mudança é uma "continuidade modificada" do que já existia , e

nessa suposta mudança nos tornamos muito hábeis. Estamos constantemente fazendo novas descobertas na física, na ciência, na matemática, inventado coisas novas, preparando-nos para ir à lua, etc. Etc. Em certos terrenos estamos-nos tornando extraordinariamente "sabidos", muito bem informados; e essa espécie de mudança implica capacidade de ajustamento ao novo ambiente, às novas pressões que ela cria.

Mas, basta isso? Pode-se perceber tudo o que implica essa superficial modalidade de mudança. Entretanto, sabemos, interiormente, profundamente, que é necessária uma mudança radical – mudança não produzida por nenhum motivo ou como resultado de pressão. Percebemos a necessidade de mutação na raiz mesma da mente, pois, sem ela, somos apenas uma horda de macacos muito hábeis e dotados de extraordinárias capacidades - e não autênticos entes humanos.

Percebendo-se tudo isso, profundamente, em nós mesmos, que cumpre fazer? Vemos que se necessita de uma mudança revolucionária, de completa mutação na raiz

mesma de nosso ser, porque, do contrário, nossos problemas, tanto econômicos como sociais, irão crescendo, inevitavelmente, e se tornando cada vez mais críticos. Necessita-se de uma mente nova, fresca - e, para a termos, deve operar-se, na totalidade de nossa consciência, uma mutação não produzida por ato de vontade e, portanto, sem motivo.

Não sei se me estou expressando claramente.Percebendo a necessidade de mudança, pode uma pessoa exercer a vontade, a fim de produzi-

la - sendo "vontade" o desejo fortalecido, em dada direção, pela determinação e posto em movimento pelo pensamento, pelo medo, pela revolta. Mas toda mudança dessa ordem - mudança produzida pela ação do desejo, da vontade - é sempre limitada. É uma "continuidade modificada" do que era antes, como se pode ver pelo que está ocorrendo no mundo comunista, e também nos países capitalistas. Necessita-se, pois, de uma revolução extraordinária, de revolução psicológica no ente humano, no próprio homem; mas, se ele tem um alvo, se sua revolução é planejada, está ainda dentro dos limites do "conhecido" e, por conseguinte, não constitui mudança nenhuma.

Eu posso mudar, posso forçar-me a pensar de modo diferente, a adotar um diferente sistema de crenças; posso suprimir um dado hábito, livrar-me do nacionalismo, reformar meu raciocínio, fazer eu próprio a "lavagem" de meu cérebro, em vez de deixá-la para ser feita por um partido ou igreja. Tais mudanças são muito fáceis de operar em mim mesmo; mas percebo sua total inutilidade, porquanto são superficiais e não conduz à compreensão profunda que deve orientar o viver, o existir, o funcionar.

Assim, que fazer?Compreendeis minha pergunta? Acho que fui claro. Se faço um esforço para mudar, esse

esforço tem motivo, significando isso que o desejo inicia o movimento em certa direção. Aí está em ação a vontade, e, por conseguinte, qualquer mudança que seja produzida é uma simples modificação - não é uma mudança real, absolutamente.

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Vejo com muita clareza que preciso mudar, e que essa mudança deve ocorrer sem esforço. Todo esforço para mudar anula-se a si próprio, uma vez que supõe a ação do desejo, da vontade, em conformidade com um padrão, uma fórmula, um conceito preestabelecido.

Assim sendo, que fazer?Não sei se sentis como eu a relevância dessa questão - o quanto ela nos interessa, não só no

sentido intelectual, mas, principalmente, como um fator essencial em nossa vida. Há milhões de anos vem o homem fazendo um esforço incessante para mudar, entretanto continua envolto em aflições, desespero, medo, só tendo raros e fugidios clarões de alegria e de deleite. E como pode essa entidade, que há tanto tempo vem sendo tão fortemente condicionada, alijar de sua carga sem nenhum esforço?

Esta a pergunta que estamos fazendo a nós mesmos. Mas, "o lançar fora a carga" não deve tornar-se mais um problema; porque, como antes

indiquei, problema é algo que não compreendemos, algo que não temos capacidade de examinar até o fim e liquidar de uma vez.

Para se produzir essa mutação - "produzir", não, esta é uma expressão errônea; a mutação é uma necessidade e tem de verificar-se agora. Mas, se introduz o tempo como fator da mutação, o tempo cria o problema. Não há amanhã, não há tempo nenhum em que eu irei mudar - sendo o tempo pensamento. Isso tem de acontecer agora ou nunca.

Compreendeis?Percebo a necessidade dessa mudança radical em mim, ente humano, parte integrante da raça

humana; e percebo, também, que o tempo, que é pensamento, não deve representar nisso um fator. O pensamento não pode resolver este problema. Venho exercendo o pensamento há milhares e milhares de anos e, no entanto, não mudei. Continuo com meus hábitos, minha avidez, minha inveja, meus temores, e me vejo ainda todo enredado no padrão de competição da existência. Foi o pensamento que criou o padrão; e o pensamento não pode, em circunstancia alguma, alterar esse padrão sem criar outro padrão - sendo o pensamento tempo. Portanto, não posso contar com o pensamento, com o tempo, para operar a mutação, a mudança radical. Não pode haver exercício da vontade, e não se pode deixar o pensamento orientar a mudança.

Que me resta, então? Vejo que o desejo, que é vontade, não pode operar em mim a verdadeira mutação. O homem

vem trabalhando nisso há séculos e nele não se produziu nenhuma mudança fundamental. Tem-se servido, também, do pensamento para produzir mudança em si próprio - pensamento como tempo, pensamento como amanhã, com todas as suas exigências, invenções, pressões, influências - e, como vemos, ainda não houve nenhuma transformação radical.

Que fazer, pois?Ora, uma vez compreendida em seu todo, a estrutura e movimento da vontade, esta deixa de

atuar; e, se percebemos que o emprego do pensamento, do tempo, como instrumento de mudança, não passa de mero adiamento, termina então o processo de pensamento.

Mas, que queremos exprimir ao dizer que percebemos ou compreendemos uma coisa? A compreensão é meramente intelectual, verbal, ou significa que se está vendo uma coisa

como fato? Posso dizer que "compreendo" - mas a palavra não é a coisa real. A compreensão intelectual de um problema não é a solução desse problema. Quando compreendemos uma coisa apenas verbalmente, e isso é o que chamamos compreensão intelectual, a palavra tem então enorme importância; mas, quando há a verdadeira compreensão, a palavra perde toda a importância, sendo então simples meio de comunicação.

Há contacto direto com a realidade, o fato. Se percebemos como um fato a futilidade da vontade, e também a futilidade do pensamento, ou do tempo, na produção dessa radical transformação, então a mente que rejeitou toda estrutura da vontade e do pensamento, nenhum instrumento tem com que iniciar a ação.

Bem, até agora vós e eu temos estado em comunicação, e talvez tenhamos também estabelecido entre nós uma certa comunhão. Mas, antes de prosseguirmos, considero importante compreender o que entendemos por comunhão.

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Se alguma vez andastes entre as árvores de uma floresta, ou pela margem de um rio, e sentistes a quietude, tivestes o sentimento de estar vivendo completamente com todas as coisas, com as pedras, com as flores, com o rio, com as árvores, com o céu - sabereis então o que é comunhão.

O "vós" - com seus pensamentos, suas ânsias, seus prazeres, lembranças, desesperos – cessou completamente. Não existe "vós", como observador separado da coisa observada; há só aquele estado de completa comunhão. E espero que seja esta a comunhão aqui estabelecida entre nós.

Ela não é um estado hipnótico; o orador não vos está hipnotizando, para pôr-vos nesse estado.

Explicou certas coisas, com todo o cuidado, verbalmente. Mas há algo mais, que não pode ser explicado verbalmente. Até um certo ponto podeis ser informados pelas palavras que o orador emprega, mas ao mesmo tempo deveis ter em mente que a palavra não é a coisa, e que se não deve permitir á palavra interferir na vossa direta percepção do fato. Quando comungais com uma árvore - se alguma vez o fazeis - vossa mente não está ocupada com a espécie dessa árvore, ou a respeito de sua utilidade ou não utilidade. Estais em comunhão direta com a árvore.

Analogamente, deve-se estabelecer esse estado de comunhão entre vós e o orador, porque o que agora vai seguir é uma das coisas mais difíceis de tratar verbalmente.

Como disse, a ação da vontade, e a ação do pensamento como tempo, e o movimento iniciado por influencia ou pressão de qualquer natureza, cessaram de todo. A mente, por conseguinte, que, não -verbalmente, observou e compreendeu tudo isso, está completamente quieta.

Ela não é a iniciadora de qualquer movimento, consciente ou inconsciente. E isso, também, é algo que precisa ser considerado, antes de podermos ir um pouco mais longe.

Conscientemente, podereis não desejar atuar em nenhuma direção determinada, porque já observastes a futilidade de toda espécie de mudança calculada, da mudança promovida pelo comunista ou pelo mais reacionário conservador.

Vedes quanto tudo isso é fútil. Mas, interiormente, inconscientemente, há o tremendo peso do passado a impelir-vos

numa certa direção. Estais condicionado como europeu, como cristão, como cientista, como matemático, como artista, como técnico; e há a milenar tradição muito zelosamente explorada pela igreja que instilou no inconsciente certas crenças e dogmas. Podeis, conscientemente, rejeitar tudo isso, mas, inconscientemente, o seu peso continua existente. Sois ainda cristão, inglês, alemão, italiano, francês; saís ainda movido pelos interesses nacionais, econômicos, familiais, e pelas tradições da raça a que pertenceis; e, quando se trata de raça antiqüíssima, mais profunda ainda é sua influência.

Ora, como eliminar tudo isso? Como purificar o inconsciente, imediatamente, do passado? Crêem os analistas que o

inconsciente pode ser expurgado, em parte ou no todo, por meio da análise - mediante investigação, exploração, a confissão, a interpretação dos sonhos, etc. - de modo que qualquer um pode tornar-se pelo menos um ente humano "normal", capaz de ajustar-se ao atual ambiente. Mas, na análise, há sempre o analista e a coisa analisada, um observador a interpretar a coisa observada - e isso representa uma dualidade, fonte de conflito.

Vejo, pois, que a mera análise do inconsciente a nenhuma parte conduz.Poderá ajudar-me a ser um pouco menos neurótico, um pouco mais amável com minha

mulher, meu próximo - ou outra superficialidade semelhante; mas não é disso que estamos falando. Percebo que o processo analítico que implica tempo, interpretação, movimento do pensamento que analisa, como observador, a coisa observada, não pode libertar o inconsciente; por conseguinte, rejeito completamente o processo analítico.

Assim que percebo esse fato, que a análise não pode, em circunstância nenhuma, afastar o fardo do inconsciente estou fora da análise.

Já não analiso. Que aconteceu, pois? Já que não há analista, separado da coisa analisada, ele próprio, o analista é essa coisa. Não é uma entidade dela separada. Descobre-se, então, que o inconsciente é de muito pouca importância.

Percebeis? Estive mostrando quanto é trivial o consciente, com.suas atividades superficiais, sua perene tagarelice, etc.; e o inconsciente é também muito trivial. O inconsciente, como o consciente, só se torna importante quando o pensamento lhe dá continuidade. O pensamento tem seu

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lugar próprio, sua utilidade própria em assuntos técnicos, etc., mas o pensamento é de todo em todo fútil, quando se trata de operar aquela radical transformação. Quando percebo que é o pensamento que dá continuidade, está terminada a continuidade do pensador.

Espero estejais seguindo o que estou dizendo, que requer muita atenção.O consciente, ou o inconsciente tem insignificante importância.Só se torna importante, quando o pensamento lhe dá continuidade. Quando percebeis essa

verdade, que todo o "processo do pensar" é uma reação do passado e não pode, de modo nenhum, atender à enorme necessidade de mutação, então, tanto o consciente como o inconsciente perde toda a importância, e a mente deixa de ser influenciada ou impelida por qualquer dos dois.

Por conseguinte, lá nenhuma iniciativa toma; fica completamente quieta, tranqüila, silenciosa. Embora cônscia da necessidade de mutação, revolução, de completa e radical transformação de nosso ser, a mente nenhum movimento inicia, em nenhum sentido; e, nesse percebimento total, nesse silencio completo, já se operou a mutação.

A mutação, pois, só pode verificar-se de uma maneira não "diretiva", isto é, quando a mente nenhum movimento inicia e, por conseguinte, permanece inteiramente tranqüila. Nessa tranqüilidade há mutação, porque a raiz de nosso ser, ficando exposta, seca. Esta é a única revolução real e não a revolução econômica ou social, e não pode ser feita pela vontade ou pelo pensamento.

Só naquele estado de mutação, pode-se perceber algo que excede a medida das palavras, algo de supremo, acima de toda tecnologia e todo reconhecimento.

Espero não tenhais adormecido! Quereis fazer algumas perguntas?Pergunta: até onde tenho experimentado, o pensamento me condena ao isolamento,

porquanto me impede a comunhão com as coisas que me cercam, e impede-me também penetrar as raízes de meu ser. Por conseguinte, desejo perguntar: porque pensam os entes humanos? Qual a função do pensamento humano? E porque tanto exageramos a importância do pensar?

Krishnamurti: pensei que isso já tivesse ficado para trás. Está bem, senhor, vou explicar.Escutar meramente uma explicação não é ver o fato, e não podemos estar em comunhão por

meio de uma explicação, a menos que ambos vejamos o fato e não lhe toquemos, isto é, nos abstenhamos de nele intervir. Então, estamos também em comunhão com o fato.Mas, se interpretais o fato de uma maneira e eu interpreto de outra, não estamos em comunhão nem com o fato nem entre nós.

Ora, como surge o pensamento - o pensamento que isola, que não dá amor, o único meio de comunhão? E, como pode terminar esse pensamento? O pensamento - todo o mecanismo do pensamento tem de ser compreendido, e a própria compreensão dele é seu fim.

Vou examinar isso, se me permitis.Surge o pensamento, como reação, quando há um "desafio". Se nenhum desafio houvesse,

vós não pensareis. O desafio pode ter a forma de uma pergunta, trivial ou importante, e conforme a pergunta "respondemos". No intervalo de tempo entre a pergunta e a resposta, começa o processo de pensamento, não é verdade? Se me perguntais a respeito de alguma coisa com que estou bem familiarizado, minha resposta é imediata. Se me perguntais onde moro, por exemplo, não há intervalo de tempo, porque não tenho de pensar nisso, e imediatamente respondo.

Mas, se vossa pergunta é um pouco mais complexa, há um intervalo durante o qual fico rebuscando na memória entre vossa pergunta e minha resposta. Podeis perguntar-me qual a distancia entre a terra e a lua, e eu digo: "será que sei alguma coisa a este respeito?... Ah! Sei. . . " - e, então, respondo. Entre vossa pergunta e minha resposta decorre um espaço de tempo, durante o qual a memória se põe em funcionamento, fornecendo, por fim, a resposta. Assim, quando sou "desafiado", minha "resposta" pode ser imediata, ou pode necessitar de algum tempo. Se me perguntais algo a cujo respeito nada sei, o intervalo é muito mais longo. Digo: "não sei, mas vou verificar"; e, não encontrando a resposta entre as coisas guardadas na memória, apelo para alguém, a fim de obter a informação, ou procuro-a num livro. Também aqui, durante esse intervalo muito mais longo, o "processo de pensamento" está em função.

Essas três fases são-nos muito familiares.Pois bem; há uma quarta fase que talvez desconheçais ou nunca tenhais encadeado às outras,

e que é a seguinte: vós me fazeis uma pergunta, e eu realmente não sei a resposta a resposta.

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Minha memória não tem nenhum registro dela, e eu não estou contando que outra pessoa me dê a resposta. Não tenho resposta nenhuma, e nenhuma expectativa.

Com efeito, eu não sei. Não há espaço de tempo e, por conseguinte, não há pensamento, porque a mente não está à

procura de nada, nem esperando nada. Este estado é, com efeito, uma negação completa, um estado livre de todas as coisas que a mente tem conhecido. E é só nesse estado que o novo pode ser compreendido - sendo o novo o supremo, ou qualquer outra palavra que preferirdes. Nesse estado, cessou todo o processo do pensamento; não há observador nem coisa observada, não há experimentador nem coisa experimentada.

Toda experiência cessou, e nesse silencio total há completa mutação.Palestra de Krishnamurti em Saanen em 19 de julho de 1964, págs 44 a 53 do livro  "A

MENTE SEM MEDO" – ICK 1965 – tradução de Hugo Veloso – Destaques, parênteses e nova disposição gráfica fora colocados por ocasião do estudo.

QUE ESTAMOS BUSCANDO?

PERGUNTA: Quanto mais vos ouço mais sinto a verdade dos antigos ensinos. É verdade que nunca lestes ensinamentos do Bhagavadgita, Cristo, Teosofia ou de outro qualquer?

KRISHNAMURTI: Responderei em primeiro lugar à segunda parte da pergunta, e depois à primeira parte. "É verdade que nunca os lestes?".

Não, senhor nunca os li. Que mal há nisso? Estais surpresos? Escandalizado? Mas porque lê-los? Porque desejais os livros dos outros, quando tendes o vosso próprio livro? Qual a razão de desejardes ler a Bíblia ou Cristo? Sem dúvida, porque desejais confirmação, porque desejais conformar-vos. Eis porque a maioria das pessoas lê: querem ver confirmada sua crença ou sua opinião, para terem segurança, abrigo, certeza. Podemos descobrir alguma coisa, abrigados na certeza? Claro que não. Um homem que está certo, psicologicamente, é incapaz de descobrir. Então, porque ledes? Podeis ler por simples divertimento, ou com o fim de acumular fatos; ou ledes, também, para adquirir o que chamais sabedoria, e pensais ter compreendido todas as coisas porque podeis citar Cristo; pensais que, citando Cristo, possuís o inteiro significado da vida. O homem que cita, não pensa, porque repete o que outro disse. Senhores, se não tivésseis livro algum, nem Bhagavadgita, nem Cristo, que faríeis? Teríeis de empreender sós a viagem para o desconhecido, aventurar-vos sozinhos. Quando descobris alguma coisa, o que descobris vos pertence; não necessitais então de livro algum. Não li o Bhagavadgita, nem nenhum livro de religião, psicologia, ou filosofia, mas descobri algo, e esse descobrimento só é possível quando somos livres, e não mediante repetição. Esse descobrimento é muito mais grandioso do que a experiência alheia, porque descobrimento não é repetição, não é cópia.

Passo agora à primeira parte da pergunta. Senhor, porque comparais? Qual é o processo da comparação? Porque dizeis "O que falais tem semelhança com Cristo?" Se tem, ou não, semelhança, isso nada importa. A verdade não pode ser sempre a mesma, ela é sempre nova. Se conservar a mesma, não é a verdade, porque a verdade é viva, de momento a momento, não pode ser hoje o que ontem foi. Mas, porque comparais? Não é porque quereis sentir-vos seguro, sentir que não tendes necessidade de pensar, pois o que digo é o que Cristo disse? Lestes Cristo, e pensais que compreendestes; assim, comparais e vos pondes à vontade, e isso se pode fazer num instante e sem esforço. Na realidade, nada compreendestes, e é por isso que comparais. Quando comparais, não há compreensão. Para compreender, devemos olhar diretamente a coisa que se nos apresenta, e a mente que compara é preguiçosa, desperdiçada; vive na segurança, e está fechada na satisfação. Em tais condições, não pode a mente compreender a verdade. A verdade é uma coisa viva, não estática, e uma coisa viva é incomparável; não se pode comparar com o passado ou o futuro. A verdade é incomparável, de instante em instante, e para quem tenta compará-la, pesá-la, julgá-la, não existe verdade alguma. Para essa pessoa só há propaganda, repetição; e repetição é mentira, não é verdade. Repetis porque não estais"experimentando", e o homem que está experimentando nunca repete, porque a verdade não pode ser repetida. Não podemos repetir a verdade, mas tão somente a nossa

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conclusão, nosso juízo a respeito dela. Por conseguinte, a mente que compara, que diz: "O que estais dizendo é exatamente o que disse Cristo", essa mente deseja continuidade e, portanto, esta paralisada, morta.

Senhor, não existe canção em vosso coração, se vos limitais a repetir uma canção e, por conseguinte, seguir o cantor. O que importa não é se eu li livros sagrados, ou se o que digo é comparável ao que disse Cristo, Bhagavadgita, ou Sankara: o importante é saber porque repetis, porque comparais. Compreendei a razão por que comparais, e compreendereis a vós mesmo. Compreender-vos importa mais do que a compreensão de Cristo, porque o que sois tem mais relevância do que Cristo ou qualquer ideologia. É só através de vós mesmo que descobris a verdade. Vós sois o descobridor da verdade, e não a Bíblia, nem o Bhagavadgita, que nada significam, servindo apenas como um meio de vos hipnotizardes, tal como ler os jornais. Assim, a mente capaz de receber a verdade não compara, porque a verdade é incomparável. Para recebê-la, a mente precisa estar só, e ela não está só quando sob a influência de Cristo ou Buda. Por conseguinte, toda influência, todo condicionamento deve desaparecer. Só nesse estado, em que o conhecimento cessou de todo, existe um findar e, conseqüentemente, a solidão da verdade.

 PERGUNTA: Afirmais que nunca lestes um só livro, mas isso é verdade? Não sabeis que declarações inconsistentes como esta causam irritação? Parece que conheceis a terminologia mais moderna da política, da economia, da psicologia, e das ciências; quereis dar a entender que obtendes estas informações por meio de faculdades sobre-humanas?

KRISHNAMURTI: Senhor, quer vos agrade sabê-lo, quer não agrade, o fato é que nunca li um único livro religioso, nem livros sobre psicologia ou ciência; e fato é também que quando jovem não fiz nenhum curso rigoroso de filosofia ou psicologia. Por alguma razão, sempre senti relutância em lê-los - enfadavam-me e esta é que é a verdade . Naturalmente, conheço grande número de pessoas de todas as condições - cientistas, filósofos, psicanalistas, religiosos, etc. - que vêm discorrer comigo; e, vez por outra, leio alguns semanários sobre política e assuntos mundiais. Isso é tudo o que possuo em matéria de cultura geral. Ora, porque vos irrita isso? Não é porque lestes tanta coisa, e vossa ignorância vos é mostrada por um homem que não leu nada? Senhor, vós ledes para vos tomardes sábio? Sapiência é sabedoria? A sabedoria não é coisa inteiramente diversa da sapiência? Mas aqui temos dois problemas: um deles é o de saber porque sentis irritação, e o outro o de como eu obtenho a matéria das minhas palestras. Vamos, pois, em primeiro lugar indagar os motivos por que sentis irritação.

Não é importante descobrir a causa da irritação? Vós ledes jornais, revistas, livros sagrados, os comentários sobre filosofia, psicologia e ciência, continuais lendo, lendo sempre. Porque ledes, porque conservais a vossa mente de contínuo ocupada? E porque vos ressentis quando alguém que nada leu vos chama a atenção para alguma coisa? Será porque vos sente frustrado e tendes antipatia e aborrecimento para com todo aquele que, mostra uma atitude diferente perante a vida? Qual é o "processo" do vosso ressentimento? Por certo, é importante verificar se a sabedoria, a compreensão é dada pelos livros; e por que razão lê, porque encheis a mente de conhecimentos, de coisas ditas por fulano ou sicrano? Não indica isso uma mente preguiçosa, uma mente não inquiridora? Não denota, também, uma mente incapaz de investigar, de experimentar diretamente? Uma mente em tais condições está vivendo da experiência alheia e se sente satisfeita, está dormindo, está embotada; e a mente que está cheia de tagarelice, de conhecimentos, pode estar receptiva para a sabedoria?

O segundo problema é este: embora eu faça conferências, não li livro algum; e vós perguntais - "Quereis dar a entender que obtendes estas informações por meio de faculdades sobre- humanas?". Ora, quando uma pessoa nada lê, precisa ela saber como escutar, precisa ver e compreender mais claramente, observar com mais sensibilidade e penetração, não é assim? Tem de estar muito mais sutilmente atenta para tudo o que a cerca, não só para as pessoas que encontra, as pessoas que vêm visitá-la, mas também para as que viajam no mesmo bonde e no mesmo táxi, as que passam na rua. Tem de observar tudo mais claramente, mais penetrantemente; mas, se sua mente está atulhada de conhecimentos, isso é impossível. Quando vivemos com plenitude, com atenção integral, há a experiência direta, não temos autoridades nem sanções; e, além disso, para que precisamos de outras pessoas, quando o tesouro está todo inteiro em nós mesmos? Afinal de contas, coletiva e individualmente, somos o resultado do total de toda a humanidade - não é verdade? Somos o

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resultado total de todos os pais e de todas as mães; e se conhecemos a maneira de perscrutar-nos, não necessitamos de ler um só livro sobre religião, filosofia, ou psicologia, porque o livro somos nós mesmos. Tereis, talvez, de ler para adquirir conhecimentos científicos, aprender matemática, etc: mas isso pode ficar guardado nas bibliotecas. Porque atulhar a mente de fatos, quando temos conosco um tesouro a exigir o máximo de atenção, o máximo de vigilância? Aí é que está a essência da questão. Embora tenhamos contatos com pessoas de todos os tipos, de todos os graus de erudição, é a compreensão própria que traz o conhecimento infinito, a infinita sabedoria.

Senhores, estou certo de que nos tempos antigos, quando não se publicavam livros, quando não havia seguidores, instrutores e gurus, houve descobridores originais, que nunca tinham lido um livro. Porque não havia Bhagavad Gita, nem Bíblia, nem livro de espécie alguma, tinham eles de descobrir por si mesmos, não é assim? Como procediam? Eles, claro, não tinham sanções, não citavam estupidamente a autoridade de um indivíduo. Investigavam a verdade individualmente, encontravam-na nos santuários de suas próprias mentes e corações. Sem dúvida, também nós podemos descobrir a verdade diretamente no santuário de nosso mundo interior. Mas descobrir, perceber o que é, sem condenação nem justificação, é sobremodo difícil. A mente é mero processo do passado a servir-se do presente como de uma passagem para o futuro; e como pode a mente nessas condições perceber o que é? Para perceber o que é, tem a mente de estar livre de toda aquisição, de toda acumulação - mas este é outro problema. Estamos agora procurando compreender o problema de porque lemos, e porque sentimos irritação contra os que não lêem. Será possível àquele que leu muito, que acumulou grande soma de conhecimentos, estar livre para ver, escutar, e ouvir? Ora bem, de nada vale ressentir-nos: isso é insensato, é pura perda de tempo; mas todos nós nos comprazemos em atividades que nada significam e, positivamente, senhoras e senhores, se desejamos descobrir o que é a sabedoria, tendes em vós mesmos a chave e também a porta que se deve abrir. O autoconhecimento é o começo da sabedoria; mas o autoconhecimento começa pertinho de nós, ele não se acha num certo nível Átmico supremo, pois isso não passa de mera invenção de uma mente engenhosa, em busca de segurança. O autoconhecimento está refletido em vossas relações com vossa esposa, vossos filhos, vosso vizinho, vosso patrão, vossa propriedade, com as árvores, com o mundo. Para irmos longe precisamos começar com o que está mais perto. Mas, em geral, não gostamos de começar com o que está próximo, porque a nossa própria fealdade nos faz medo; por isso, imaginamos algo maravilhoso e distante, e dele fazemos nosso alvo, nosso lema, o padrão que temos de seguir. Porque não temos vontade de ver e compreender o que somos, momento por momento, fazemos da nossa vida uma contradição, um tormento, uma desordem total. Senhor, a verdade está aqui, e não distante; a felicidade está no descobrimento do que é, e isso é virtude.

Krishnamurti - QUE ESTAMOS BUSCANDO? - EDITORA CULTRIX - JCM. Cada um tem de ser mestre e discípulo de si próprio -- não há nenhuma autoridade, há apenas compreensão... Temos de estar livres de toda a crença, o que quer dizer de todo o medo, para sabermos se existe uma Realidade, um estado intemporal.Krisnamurti

PÉROLAS DA REVOLUÇÃO PSICOLOGICA – I

Meditação não é um escape do mundo; não é atividade egocêntrica, isolante; porém, antes, a compreensão do mundo e de seus costumes. Pouco tem o mundo para oferecer além de alimento, roupa, morada, prazer e suas aflições.

A meditação é um movimento para fora (do campo psicologico) deste mundo, pois temos de estar totalmente fora dele. Então, o mundo tem significado e a beleza do céu e da terra é constante. Então, o amor não é prazer. Daí nasce uma ação que não é resultado de tensão, de contradição; da busca de autopreenchimento ou da arrogância do poder.

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“deixemos de lado, se este que lhe fala é um indiano criado nesta tradição, condicionado por esta cultura, se ele é uma síntese desse antigo ensinamento. Em primeiro lugar, ele não é hindu, isto é, não pertence a esta nação ou à comunidade dos brâmanes, embora nela nascido. Rejeita toda essa tradição de que está revestido. Nega que seu ensinamento seja a continuação dos ensinamentos antigos. Não leu nenhum dos livros sagrados da índia ou do ocidente porque eles são desnecessários ao homem que está atento ao que acontece no mundo - o comportamento dos seres humanos, com suas intermináveis teorias, com a propaganda aceita de dois ou cinco mil anos, que se tornou a tradição, a verdade, a revelação.

Para esse homem - que total e completamente rejeita aceitar a palavra, o símbolo e seu condicionamento -, para ele a verdade não é uma coisa de segunda mão. Se o tivesse escutado realmente, senhor, desde o começo ele tem dito que qualquer aceitação da autoridade é a negação mesma da verdade, e tem insistido que devemos ficar fora de toda cultura, tradição e moralidade social. Se o tivesse escutado, então não diria que ele é um indiano ou que está continuando a tradição antiga, traduzida em linguagem moderna. Ele rejeita totalmente o passado, seus instrutores, seus intérpretes, suas teorias e fórmulas.

A verdade nunca está no passado. A verdade do passado são cinzas da memória; a memória pertence ao tempo, e, nas cinzas mortas de ontem, não existe verdade.

A verdade é uma coisa viva, não contida na esfera do tempo!E, assim, tendo colocado tudo isso de lado, podemos agora considerar a questão central.

Certamente, senhor, a própria asserção dessa crença é uma teoria inventada por uma mente imaginativa - seja shankara, seja o moderno e acadêmico teólogo. Pode-se experimentar uma teoria e dizer que assim é; mas isso é ser como um homem criado e condicionado no mundo católico e que tem visões de cristo. Tais visões, é óbvio, são a projeção de seu próprio condicionamento, e os que foram criados na tradição de krishna têm experiências e visões oriundas de sua cultura. Assim, a experiência não prova nada. Reconhecer a visão como sendo de krishna ou de cristo é o resultado de conhecimento condicionado; tal visão, portanto, não é real, em absoluto, porém uma fantasia, um mito fortalecido pela experiência e totalmente nulo.

Por que você quer mesmo uma teoria e por que precisa de alguma crença? Essa constante asserção de crença é sinal de medo - medo da vida de cada dia, medo do

sofrimento, medo da morte e da total falta de significação da vida. Vendo tudo isso, você inventa uma teoria e, quanto mais ardilosa e erudita essa teoria, mais peso tem. E, após dois ou dez mil anos de propaganda, ela se torna, invariável e tolamente, "a verdade".

Mas, se você não prega nenhum dogma, então se vê frente a frente com o que realmente é. O que é - é pensamento, prazer, sofrimento e o medo da morte. Quando você compreende a estrutura de seu viver diário - com sua competição, avidez, ambição e busca do poder - então verá não só o absurdo das teorias, salvadores e gurus, mas também poderá encontrar o fim do sofrimento, o fim de toda a estrutura construída pelo pensamento.

O aprofundamento e compreensão dessa estrutura é meditação. Então você verá que o mundo não é uma ilusão, mas uma terrível realidade que o homem,

nas relações com seus semelhantes, construiu. Isso é que se precisa compreender e não essas teorias extraídas da. Vedanta, com os rituais e toda a parafernália da religião organizada. Quando o homem, sem nenhum motivo, é livre do medo, da inveja ou do sofrimento, só então a mente está naturalmente em paz e tranqüila. Pode, então, não só ver a verdade na vida diária, de momento a momento, mas também ir além de toda a percepção; por conseguinte, existe o findar do observador e da coisa observada, cessa a dualidade.

Mas, além de tudo isso, e sem relação com essa luta, essa vaidade e esse desespero, existe - e isto não é uma teoria - uma corrente sem começo nem fim; um movimento imensurável que a mente jamais pode apreender.

Ouvindo isto, obviamente você vai fazer uma teoria disso e, se gostar dessa nova teoria, irá propagá-la. Mas o que você propaga não é a verdade. A verdade se apresenta somente quando você está livre da dor, da ansiedade e da agressividade que ora enchem o seu coração e mente.

Quando se percebe tudo isto e se chega àquela bênção chamada amor, então você saberá a verdade do que foi dito.”

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O importante na meditação é a qualidade da mente e do coração. Não é o que você alcança ou diz alcançar, mas a qualidade da mente que é inocente e vulnerável. Pela negação encontra-se o estado positivo. (negar todos os conhecimentos aceitando-os apenas como informativos e cultura, sem que permita que integrem o ego) juntar experiência ou nela viver, nega a pureza da meditação. A meditação não é um meio que leva a um fim. Ela é meio e fim. Mediante a experiência, a mente nunca se tornará inocente. A negação da experiência (aceita-la no seu devido lugar) é que faz nascer o estado positivo da inocência, que não pode ser cultivado pelo pensamento.

O pensamento nunca é inocente. A meditação é o findar do pensamento, mas não por parte do meditador, pois o meditador é a

meditação. Se não existe meditação, então você é como um homem cego num mundo cheio de beleza, de luz c de cor.

Caminhe pela praia e deixe essa qualidade meditativa vir a você. Se ela não vier, não a busque. O que se busca se tornará a memória do que foi e, o que foi, é a morte do que é. Ou, ao caminhar pelas colinas, deixe que tudo lhe fale da beleza e da dor da vida, de modo que você desperte para o seu próprio sofrimento e o seu terminar. A meditação é a raiz, a planta, a flor e o fruto. São as palavras que separam o fruto, a flor, a planta e a raiz. Nessa separação, a ação não cria bondade; virtude é a percepção total.

Não se pode encontrar deus; não há caminho para ele. O homem inventou muitos caminhos, muitas religiões, muitas crenças, salvadores e

instrutores, que ele pensa que o ajudarão a encontrar a felicidade duradoura. O lamentável da busca é que ela conduz a uma certa fantasia mental, uma certa visão que a mente projetou e mediu pelas coisas conhecidas.

O amor que ele busca é destruído por sua maneira de vida. Não se pode ter uma arma em urna mão e deus na outra. Deus apenas é um símbolo, uma palavra que, cora efeito, perdeu sua significação, porque as igrejas e os lugares de devoção a destruíram. Naturalmente, se você não acredita em deus, você é igual ao crente; ambos sofrem e passam pelo sofrimento de urna vida curta e vã; e as amarguras de cada dia tornam a vida uma coisa sem significação.

A realidade não se encontra no fim da corrente do pensamento, e o coração vazio se enche com as palavras do pensamento. Tornamo-nos muito espertos, inventando novas filosofias, e depois existe a amargura do fracasso delas. Inventamos teorias de como alcançar a realidade final, e o devoto vai ao templo e se perde no meio das imaginações de sua própria mente. O monge e o santo não encontram aquela realidade, porque ambos pertencem a uma tradição, a uma cultura que os aceita como santos e monges.

Meditação não é a repetição da palavra, nem o experimentar de uma visão, nem o cultivo do silêncio. A conta do rosário e a palavra podem de fato aquietar a mente tagarela, mas isso é uma forma de auto-hipnose. Você poderia igualmente tomar uma droga.

Meditação não significa envolver-se num padrão de pensamento, no encantamento do prazer. A meditação não tem começo e, portanto, não tem fim. Se você diz: "começarei hoje a controlar os meus pensamentos, sentando tranqüilamente em postura meditativa, respirando ritmadamente" - nesse caso você é apanhado pelos artifícios com os quais uma pessoa engana a si própria. Meditação não é uma questão de estar absorvido em alguma idéia ou imagem grandiosa: isso só dá urna aquietação momentânea, como uma criança absorvida por um brinquedo fica quieta por um certo tempo.

Mas, tão logo o brinquedo deixa de ser interessante, recomeçam a inquietação e as travessuras. Meditação não é seguir um caminho invisível, que conduz a uma bem-aventurança imaginária. A mente meditativa está vendo - observando, escutando, sem a palavra, sem comentário, sem opinião -, atenta ao movimento da vida em todas as suas relações, do começo ao fim do dia. E a noite, quando todo o organismo está em repouso, a mente meditativa não tem sonhos, porque esteve desperta todo o dia. Só os indolentes tem sonhos; só os semi-adormecidos é que precisam ser advertidos dos seus próprios estados. Mas enquanto a mente vê, escuta o movimento da vida - o externo e o interno -, a essa mente vem um silêncio não construído pelo pensamento.

Não é um silêncio que o observador possa experimentar. Se ele o experimenta e reconhece, isso já não é mais silêncio. O silêncio da mente meditativa não se encontra entre os limites do

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reconhecimento, porque é um silêncio sem fronteiras. Existe apenas silêncio - no qual cessa o espaço da divisão.

Meditação é a revelação do novo! (a presença do sempre vivo movimento da eternidade, sem mácula do passado!)O novo está além e acima do passado, repetitivo - e a meditação é o fim dessa repetição. A

morte que a meditação traz é a imortalidade do novo. O novo não se acha na área do pensamento, e a meditação é o silêncio do pensamento.

Meditação não é uma conquista, nem é o capturar de uma visão, nem excitação da sensação. É como o rio, que não é para ser domado, correndo rapidamente e transbordando suas margens. É música sem som; não pode ser domesticada nem utilizada.

É o silêncio no qual o observador deixou de existir desde o começo.O silêncio tem muitas qualidades!Há o silêncio entre dois barulhos, o silêncio entre duas notas e o silêncio que se estende no

intervalo entre dois pensamentos. Há aquele silêncio peculiar, sereno, penetrante, que chega com o anoitecer no campo; há o silêncio por entre o qual se ouve o latido de um cão ao longe ou o apito de um trem a galgar um aclive forte; o silêncio em uma casa quando todos foram dormir, e sua peculiar intensidade quando você desperta no meio da noite e ouve a coruja piando no vale; e existe aquele silencio antes da resposta do companheiro ela coruja. Há o silêncio da casa velha e abandonada, e o silêncio de uma montanha; o silêncio entre dois seres humanos quando viram a mesma coisa, sentiram a mesma coisa e agiram.

Se você se dispõe a meditar, não será meditação. Se você se dispõe a ser bom, a bondade jamais florescerá. Se você cultiva a humildade, ela

deixa de existir. A meditação é como a brisa, que entra quando deixamos a janela aberta; mas se, deliberadamente, a conservarmos aberta, e deliberadamente a convidamos para entrar, ela nunca aparecerá. A meditação não é um caminho do pensamento, porque o pensamento é astuto, com infinitas possibilidades de enganar a si próprio, e, assim, ele se perde da meditação.

Como o amor, a meditação não pode ser buscada!O pensamento não pode conceber nem formular para si mesmo a natureza do espaço (onde

ele inexista, energia, vida pura atemporal e real). Seja lá o que ele formule, tem em si mesmo a limitação de suas próprias fronteiras. Não é o espaço onde ocorre a meditação. O pensamento tem sempre um horizonte. A mente meditativa não tem horizonte. A mente não pode passar do limitado ao imenso, nem pode transformar o limitado em ilimitado.

Um tem que cessar para que o outro exista!Meditação é o abrir a porta para uma vastidão que não se pode imaginar ou especular a

respeito.O pensamento é o centro em torno do qual existe o espaço da idéia, e esse espaço pode ser

expandido através de novas idéias. Mas essa expansão por qualquer forma de estimulação não é a vastidão na qual não existe centro. A meditação é o entendimento desse centro e assim, vai além dele. O silencio e a vastidão vão juntos. A imensidão do silencio é a imensidão da mente em que não existe um centro. A percepção desse espaço e silencio não é do pensamento. O pensamento só pode perceber sua própria projeção, e o reconhecimento disso é a sua própria fronteira.

A meditação é um trabalho árduo!Exige a disciplina em sua forma mais elevada - não conformismo, não imitação, não

obediência -, a disciplina oriunda da percepção constante, não só das coisas que nos cercam, externamente, mas também interiormente. Assim, a meditação não é uma atividade de isolamento, mas, sim, ação na vida diária, que exige cooperação, sensibilidade e inteligência. Se não se lançam as bases de uma vida íntegra, a meditação se torna uma fuga e, portanto, completamente sem valor. Uma vida íntegra não é o seguir da moralidade social, mas a libertação da inveja, da avidez e da busca de poder - tudo que gera inimizade.

A libertação dessas coisas não vem através da ação da vontade, mas, sim, ao serem percebidas no autoconhecimento. Sem conhecer as atividades do eu, a meditação se torna excitação dos sentidos e, por conseguinte, muito pouco significativa.

Krishnamurti - págs. 9/44 do livro “A ÚNICA REVOLUÇÃO” Ed. Terra Sem Caminho – 2001

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MENTE RELIGIOSA

Nesta tarde desejo falar a respeito da mente religiosa. Mas, antes de começar, cumpre assinalar, pois considero isso importante — a necessidade da negação do pensamento. Nós nunca negamos, só sabemos dizer “sim”. Aceitamos as coisas segundo as nossas tendências e idiossincrasias. Quando negamos, essa negação é uma reação e, por conseguinte, não é negação nenhuma.

Desejo fazer algumas considerações sobre a negação, pois importa compreender isso para nos habilitarmos a investigar e compreender, por nós mesmos, o que é a mente religiosa. Nós nunca negamos. Se vos tendes observado com atenção e seriedade, tereis visto que sempre encontramos um caminho fácil, sempre aceitamos a solução mais fácil. Aceitamos a tradição e varias influências culturais, econômicas e sociais. Nunca reagimos a elas; ou, se o fazemos, reagimos pela força e nunca com boa-vontade e compreensão. Por conseguinte, nossa negação é sempre eivada de medo. Ela sempre se produz mediante uma dada forma de aceitação, a qual nos oferece uma esperança. Nunca é uma negação em que não se sabe o que acontecerá; é uma negação com aceitação de um futuro bem regulado e ordenado.

Escutai o que estou dizendo, porquanto, quando falarmos a respeito da mente religiosa, iremos negar toda a estrutura da religião, tal como a conhecemos, negá-la totalmente porque é de todo falsa, porque nenhuma significação tem. E, para compreenderdes o que iremos dizer mais adiante, deveis, se me permitis salientá-lo, compreender profundamente esse ato de negação.

Podeis ser forçados a negar; certas circunstâncias podem obrigar -vos ou compelir-vos a dizer “não”. Circunstâncias tais como falta de dinheiro, uma tribulação qualquer, podem forçar-vos a dizer “não”. Mas o dizer “não”, com clareza, sem motivo algum, sem nenhum desejo de recompensa ou medo de punição; dizer “não” deliberadamente, a algo a que destes vossa atenção completamente, incondicionalmente; dizer “não”, depois de terdes pensado no problema do princípio ao fim, seriamente — isso é questão muito diferente. Dizer “não” seriamente significa examinar um problema até o fim, não romanticamente, não emocionalmente, não de acordo com vossa particular idiossincrasia de vaidade, de prazer ou desejo, examiná-lo até o fim, pondo de parte nossas fantasias pessoais, vossos mitos, gostos e desgostos. “Ir até o fim” de um pensamento, de uma idéia, de um sentimento é ser sério.

Desejo nesta tarde examinar a questão da religião, porque, a meu ver, se pudermos sair deste pavilhão com uma mente clara, forte, religiosa, estaremos aptos a resolver os nossos problemas. Religião é algo que inclui tudo, nada exclui. A mente religiosa não tem nacionalidade, nem provincianismo. Não pertence a nenhum grupo organizado. Não é o resultado de dez mil ou dois mil anos de propaganda. Nenhum dogma tem, nenhuma crença. Ë uma mente que se move de fato para fato; mente que compreende o pensamento em sua totalidade — não apenas o pensamento óbvio, superficial, o pensamento “educado”, mas também o pensamento “não educado”, o pensamento e os motivos inconscientes e profundos. Quando a mente investiga a totalidade de alguma coisa, quando, por meio dessa investigação, reconhecer o que é falso, e o nega porque é falso, então essa total negação produz uma mente de nova qualidade, uma mente religiosa, revolucionária. Mas a religião, para a maioria de nós, é não só a mera palavra, o símbolo, senão também o resultado de nosso condicionamento. Vós sois cristãos porque desde pequenino vos dizem que sois cristãos e vos inculcam todas as superstições, crenças, dogmas e tradições do cristianismo; e todos vós aceitastes o que vos foi ensinado, O mesmo se pode dizer do muçulmano, do hindu, etc. Assim como o comunista aceita, desde pequeno, a não existência de Deus, assim também vós aceitais a existência de Deus.

Não há muita diferença entre vós e aquele que nega Deus; pois o que ambos pensais emana de uma mente condicionada. Notai, por favor, que não vos estou atacando; portanto, não ha necessidade de vos defenderdes, de resistirdes. Nós estamos tratando de fatos; e seria completa falta de sensatez resistir a um fato, isso nenhuma significação teria. O mundo se encontra num caos de tal ordem que, mesmo que deliberadamente empreendêsseis torná-lo ainda mais caótico, não o conse-

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guiremos nem com a ajuda dos políticos. E é necessária urna mente bem penetrante, clara, decidida, sadia, para resolver essas condições caóticas. Creio que uma mente dessas só virá à existência mediante o percebimento religioso.

Tende a bondade de acompanhar as operações de vossa própria mente — não a palavra, não o orador, com ele concordando ou dele discordando. Se observardes o vosso próprio condicionamento — não porque eu vos mando fazê-lo, mas porque ele é um fato — se olhardes esse fato, esse condicionamento, podeis então tratar de dissolvê-lo. Mas, em primeiro lugar, deveis estar cônscio do fato de que vossa mente está condicionada. Quando ela diz que é cristã, está condicionada, moldada pelo passado, por uma secular cultura; ela resulta de um processo histórico-mitológico. As religiões que professais originam-se das experiências de outras pessoas. Vossa religião não constitui experiência pessoal, direta; ela é o que aprendestes em algum livro, com algum instrutor, ou algum filósofo; não é coisa que vós mesmo experimentais. Só quando vossa mente está toda descondicionada, podeis experimentar ou descobrir se há algo real ou não.

Mas se, antes de descondicionar a vossa mente, vos dizeis religioso, vos dizeis hinduísta, muçulmano, budista ou cristão — isso nada significa, absolutamente. É puro “romantismo”, explorado pelo líder religioso, por um grupo organizado, político ou religioso, que têm nisso seu próprio interesse. Tudo isso são fatos, quer gosteis, quer não gosteis. Apenas estou descrevendo tais fatos. Essas divisões em grupos religiosos que crêem nisto e naquilo, que aceitam este dogma e negam aquele, andando de prisão em prisão, de templo em templo, praticando intermináveis ritos — nada disso constitui a mente religiosa; trata-se, tão só, de uma mente tradicional, dominada pelo medo. E, por certo, a mente com temor nunca descobrirá se há ou se não há algo além da palavra, além dos “limites mentais”. Escutai não só o que o orador está dizendo, mas também as operações de vossa própria mente. Ao empregar a palavra “escutai”, não vos estou dando uma ordem. Emprego-a com um significado especial. Escutar é uma arte, porque nós nunca escutamos. Escutamos indiferentemente, com nossos pensamentos noutra parte. Escutamos com condenação ou comparação. Escutamos com certos gostos e aversões. Escutamos para concordar ou discordar. Escutamos, comparando o que ouvimos com o que já sabemos. Por isso, há sempre distração; jamais existe o ato de escutar. E valeria bem a pena escutardes sem nenhuma dessas distrações do pensamento, de modo que esse próprio ato de escutar constitua uma quebra daquela condição.

Quando me utilizo à palavra “religião”, acodem-vos à mente imagens de toda espécie, todas as espécies de símbolos. O cristão tem seus próprios símbolos, dogmas e crença. O hinduísta, o muçulmano, todos aqueles que se dizem religiosos têm sua maneira peculiar de raciocinar, conforme sua idiossincrasia, sua tradição; por essa razão, nunca podem raciocinar claramente sobre esta questão. Eles são, em primeiro lugar, hinduístas ou muçulmanos; e depois é que começam a investigar. Assim, para se descobrir se há ou se não há alguma coisa transcendente ao pensamento, algo não mensurável pela mente, esta deve, primeiro, estar livre. Outra peculiaridade das pessoas religiosas é o serem totalmente ilógicas. Psicologicamente, carecem de sanidade. Aceitam sem investigar: e sua investigação é motivada pelo medo, pelo desejo de segurança, que lhes impede o pensar: tornam-se “românticas”, porque tal lhes apraz. Entregam-se a devoções, pois isso lhes dá um sentimento de alegria, de felicidade. Mas essa não é a mente religiosa; é uma mente cheia de fantasias, uma mente sem realidade.

Se observardes vossa própria mente, vereis como está ela abarrotada e sobrecarregada de crença; e considerais necessária a crença. Utilizais a crença como uma hipótese — e isso é puro contra-senso. Quando um homem investiga, não começa com uma hipótese; sua mente é livre. Não se sente atraído por nenhum dogma, não está dominado por nenhum temor. Primeiro nega tudo isso e, depois, começa a investigar. Mas vós nunca negais, por várias razões. Nunca negais, porque isso seria “desrespeitável” numa sociedade respeitável — embora, na verdade, essa sociedade esteja apodrecida. Não negais, por medo de perder vosso emprego ou posição. Não negais, por causa de vossa família: tendes de casar vossa filha, vosso filho, tendes de fazer isto ou aquilo. Por conseguinte, consciente ou inconscientemente, estais sujeitos ao medo, ao dogma, a tradição em que fostes educado. Isso também é um fato: não é fantasia minha. É um fato psicológico de todos os dias.

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Assim, a mente que está sujeita a uma crença, a um dogma, por mais antigo ou por mais moderno que seja, essa mente é incapaz de produzir um mundo de ordem, um mundo sadio. Ela é incapaz de estar livre do sofrimento, do conflito. Por certo, só a mente livre de conflito, livre de problemas. livre de sofrimento, está apta a investigar e descobrir. E vós tendes de descobrir, porquanto esta é a única saída de toda a aflição e confusão que criamos neste mundo: a saída não se encontra ingressando-se em grupos incontáveis, ou retornando-se à antiga tradição, já morta, ou seguindo-se um novo guia ou líder. Não sei se não tendes observado que, quando seguis alguém, destruístes vosso próprio pensar, perdestes vossa própria independência, perdestes vossa liberdade, não só exteriormente, mas também, e principalmente, interiormente.

Assim, sempre que há o seguir, sempre que há o líder, em matéria realmente espiritual, tem de haver necessariamente confusão, porque existe, aí, uma contradição psicológica entre nossos profundos impulsos e compulsões e as exigências do líder e bem assim nossas próprias exigências, relativas ao que pensamos que devemos fazer; e essa contradição leva a conflito; e onde há conflito há esforço; e, havendo esforço, há deformação. A mente religiosa não tem conflito. Ela não segue ninguém.

A mente religiosa não segue nenhuma autoridade. Autoridade implica limitação, autoridade implica ajustamento. E há ajustamento porque desejais êxito, desejais realizar algo; e, por conseguinte, há medo. Se não dissolverdes o medo completamente, comum podereis realizar a investigação, como podereis empreender o descobrimento? Essas não são perguntas retóricas. Se tiver medo, vejo-me obrigado a buscar conforto, abrigo, segurança, no que quer que seja, porque o temor ordena; mas a sanidade e a clareza não ordenam. O temor ordena o ajustamento, ordena-me imitar, ordena-me seguir alguém, na esperança de encontrar conforto. A mente religiosa não obedece à autoridade de espécie alguma; e isso nos é muito difícil de aceitar, porque fomos educados sob a autoridade. O Gita, os Upanishads, a Bíblia, o Corão e todos os demais livros chamados “sagrados” tomaram o lugar de nosso próprio pensar, de nosso próprio sofrer; dão-nos conforto na ilusão; não são, afinal, reais. Vós fazeis deles realidades, porque neles, nas palavras mortas de outros, encontrais conforto, na autoridade de outrem encontrais luz. Podeis ver quanto isso é realmente absurdo, se o examinardes; e, no entanto, sois tidos por pessoas educadas, sãs, racionais!

No tocante a questões religiosas, somos completamente irracionais, insanos e tudo isso constitui as muralhas de nosso condicionamento. Aí tendes mais um fato, um inegável fato psicológico. Vós freqüentais o templo, vós ledes o Gita, a Bíblia, o Corão e murmurais um amontoado de palavras que perderam toda a sua significação. Isso não constitui, de modo nenhum, uma mente religiosa. Esse ler, esse repetir torna a mente embotada, insensível. Há contradição entre o viver diário e aquilo que pensamos ser real. Não há o viver de uma vida religiosa. Divorciastes a vida da religião, divorciastes a ética da religião. E vivendo nessa dualidade, nessa contradição, nessa divisão, a mente está criando o mundo atual; traz cada vez mais caos ao mundo. Estamos vendo tudo isso. Sempre que há confusão, sempre que há aflição, as pessoas se voltam para a autoridade, para a tirania não só politicamente, mas também religiosamente. Gurus, líderes, idéias, crenças, dogmas multiplicam-se e florescem, porque nunca nos penetramos a fundo para descobrirmos o que é verdadeiro.

O começo da mente religiosa é o autoconhecimento — não o conhecimento do Ser Supremo; isso é puro contra-senso. Como pode uma mente medíocre, estreita, nacionalista, gerada pelo medo, pela compulsão, pela imitação, pela autoridade — como pode essa mente descobrir o que é o Ser Supremo? A busca do Ser Supremo é uma fuga; é puro e autêntico “romantismo”. O fato é: vós tendes, primeiramente, de compreender a vós mesmo. Como pode meu pensamento resultante do medo investigar? Como pode um pensamento oriundo da contradição, do sofrimento, da dor, da ambição, da inveja, pode pesquisar o “impesquisável”? Não pode, obviamente,mas é isso o que sempre estamos fazendo.

Assim, o começardes a compreender-vos tais como sois é o começo da sabedoria. E, também, o começo da meditação é perceber, sem deformação, o fato representado pelo que sois e não pelo que pensais que deverieis ser. Quando pensais como geralmente fazeis — que sois o Supremo Ser, que em vós existe uma entidade espiritual, essa idéia é inteiramente o resultado de vosso condicionamento passado. Deveis estar cônscio do fato e não aceitar a idéia de que sois o

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Supremo Ser. Essa idéia nenhuma significação tem. O verdadeiramente significativo é o fato representado por aquilo que sois cada dia, e não aquilo que deveríeis ser. Outrossim, a idéia, a ideação, o ideal é um “artigo” de mitologia; nada significa. O fato é que tem significação. O fato de que sois invejoso tem importância, e não a idéia de que deveríeis achar-vos num estado de “não inveja”.

Outra peculiaridade da mente religiosa é o estar livre de idéias, livre de ideais. Todos vós sois idealistas isto é, sempre vos preocupais com o que deveríeis ser e não com o que sois. Mas a mente religiosa só está interessada no fato, e se move com o fato. O cientista se interessa pelo fato. Ele investiga a matéria, investiga a vida, sob a forma de matéria, em seu laboratório. Investiga-a sob o seu microscópio. Ele não tem medo; move-se de fato para fato e desenvolve o seu saber; e esse saber ajuda-o a levar mais longe suas investigações, sempre num determinado plano, limitado e restrito, que é a ciência.

Mas nós estamos interessados na totalidade da vida, e não na ciência apenas; não estamos interessados apenas em edificações, mas também no ódio, na ambição, nas disputas, naquilo que somos — enfim, na totalidade da vida. A ciência não abarca a totalidade da vida, mas a mente religiosa abarca-a. A mente religiosa não está interessada na parcela. Ela se interessa pelo inteiro desenvolvimento do homem; está interessada na entidade total do homem —isto é, o movimento exterior da vida é o mesmo movimento interior. O movimento exterior é como a maré vazante; e o movimento interior e como a maré enchente; mas é a mesma maré que vai e veio. — Se os dois movimentos — o interior e o exterior — estão divorciados, estão separados, tendes então conflito, tendes aflição.

As pessoas chamadas “religiosas” dividiram a vida em “exterior e interior”. Não a olham como um processo unitário. Evitando o “exterior” recolhendo-se a um mosteiro ou vestindo o manto do sannyasi. Negam o mundo exterior; mas não negam o mundo da tradição, o do conhecimento, o de seu condicionamento. Separam os dois mundos e, por isso, há contradição. Mas a mente religiosa não os separa. Para a mente religiosa o movimento exterior da vida e o movimento interior da vida formam um movimento unitário, como o movimento da maré que vai e volta.

Tende a bondade de escutar tudo isso, sem aceitar nem negar. Eu não vos estou atacando; portanto, não tendes necessidade de procurar refúgio ou de resistir. Tampouco estou fazendo propaganda. Estou apenas apontando algo. Podeis aceitá-lo, se quiserdes. Podeis vê-lo, ou rejeitá-lo; mas antes, ainda que intelectual ou verbalmente olhai-o. Podeis não desejar percorrer todo o caminho até o fim. Mas ao menos, podeis olhá-lo verbalmente, intelectualmente, investigá-lo; e, com essa compreensão intelectual, que absolutamente não é a compreensão completa, talvez possais ver a sua inteira significação.

O conhecimento de vós mesmo é o início da meditação. O conhecerdes a vós mesmo, psicologicamente, tal como sois, é o começo da mente religiosa. Mas não podeis conhecer-vos se negais o que vedes, se procurais interpretar o que vedes. Segui isto, por favor. Se negais psicologicamente o que vedes em vós mesmo, ou se desejais transformá-lo noutra coisa, neste caso não estais compreendendo o fato de o que é. Se sois vaidoso e procurais modificar essa qualidade com o cultivo da humildade, há então contradição. Se sois vaidoso e procurais cultivar o ideal da humildade, há contradição entre as duas coisas; e essa contradição embota a mente, produz conflito. Tendes de olhar o fato de que sois vaidoso; tendes de vê-lo em sua inteireza, sem introduzirdes um ideal contraditório. Mas, para verdes que sois vaidoso, não podeis dizer “Não devo ser vaidoso”. Isso é bastante simples e óbvio, porque, para poderdes ver uma coisa, deveis aplicar-lhe vossa total atenção. Ao dizerdes que não deveis ser vaidoso, vossa mente se afastou do fato, e esse afastamento do fato cria um problema; não é o fato que o cria. O fato jamais cria problema. Só o evitar o fato, o fugir ao fato, o tentar modificá-lo, o tentar ajustá-lo ao ideal isso é que cria o problema; o fato nunca o cria.

Assim, quando vos observardes com toda a clareza, quando estiverdes cônscio, sem escolha, de cada pensamento, de cada sentimento, descobrireis então algo, ou seja: que há um pensador e há o pensamento; que há um experimentador, um observador, e há a experiência, a coisa observada. Isso é um fato, não? Há um censor, uma entidade que julga, que avalia, que pensa, que observa; e há a coisa observada.

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Por favor, investigai vossa própria mente; não estais aqui para ouvir minhas palavras. As palavras nada significam. Enquanto falo, observai vossa própria mente a funcionar. Assim, ir-vos-eis daqui com a mente clara, penetrante e sã.

Há, pois, pensador e pensamento. Há divisão entre pensador e pensamento, sendo que o pensador procura dominar o pensamento, alterar o pensamento, modificar o pensamento, controlá-lo, forçá-lo, procura imitar, etc. A divisão entre pensador e pensamento cria conflito, porque o pensador é sempre o censor, a entidade que julga, que avalia. Essa entidade é uma entidade condicionada, porquanto se tornou existente como uma reação ao pensamento, o qual, por sua vez, é meramente reação do condicionamento, da memória. Estais compreendendo, senhores? Isso é uma coisa muito simples e que vós mesmos podeis descobrir.

O pensamento é a reação da memória. Pergunto-vos uma coisa, e vós respondeis de acordo com vossa memória. O intervalo entre a pergunta e a resposta é tempo; e durante esse tempo refletis e, depois, dais a resposta. Se estais familiarizado com a resposta, esta é imediata; e se a pergunta é muito complicada, precisais de mais tempo, de uma demora, de uma distância maior entre a resposta e a pergunta. Durante essa demora, vossa memória está reagindo e, depois, respondeis. O pensamento, pois, é a “resposta” da memória, da associação com o passado. Há, pois, pensamento e há pensador; o pensador é condicionado, e seu pensamento também se torna condicionado.

Quando há separação entre o pensador e o pensamento, há contradição; e, enquanto houver essa separação entre o pensador e o pensamento, haverá infindável conflito. Pode-se afastar essa contradição, esse conflito, significando isso que não há pensador como entidade central atuante porém apenas pensamento? Esta é uma questão muito complexa. Deveis descobrir por vós mesmo tudo o que este problema implica.

Pode-se ver que, quando há separação entre o pensador e o pensamento, tem de haver contradição. E contradição implica conflito; e o conflito embota a mente, torna-a estúpida, insensível. O conflito, de qualquer espécie que seja — conflito entre vossa esposa e vós, entre vós e a sociedade, entre vós e vosso patrão, entre vós e outro qualquer embota a mente. Se deseja compreender o conflito central, é necessário investigar esta questão (e não simplesmente aceitá-la) — se há, primeiro, o pensador e, depois, o pensamento. Se dizeis que assim é, estais de volta à vossa tradição, ao vosso condicionamento. Tendes de investigar, pelo vosso pensamento, como vossa memória reage. Enquanto essa memória — que é condicionada por cada movimento de pensamento, cada influência reage, tem de haver conflito e aflição.

Se examinardes isso bem profundamente, descobrireis por vós mesmo que a ação baseada numa idéia, que é pensamento, gera discórdia, porque quereis moldar a ação de acordo com a idéia. Descobrireis, pois, depois de vos terdes penetrado a fundo, que ação não e idéia. Há ação sem motivo. E só a mente religiosa, que olhou para si própria, que profundamente se investigou, só essa mente pode atuar sem idéia, sem motivo, porquanto ela não tem nenhum centro, nenhuma entidade que, como pensador, dirige a ação. Essa ação não é caótica.

Assim, o autoconhecimento, o aprenderdes acerca de vós mesmo todos os dias, produz — psicologicamente, interiormente — uma mente nova — porque negastes a mente velha. Com o autoconhecimento, negastes por inteiro o vosso condicionamento. O condicionamento mental só pode ser de todo negado quando a mente está cônscia de suas próprias operações — como funciona, como pensa, o que diz, quais são os seus motivos.

Há, aqui, outro fator para considerar. Pensamos que o libertar a mente do condicionamento é um processo gradual, que requer tempo. Por favor, segui o que estou dizendo. Pensamos que serão precisos muitos dias ou muitos anos para descondicionar nossa mente condicionada, significando isso que teremos de fazê-lo gradualmente, dia por dia. Que implica isso? Implica, por certo, aquisição de conhecimento a fim de dissipar o condicionamento — em vez de aprender, adquirir. A mente que está adquirindo jamais aprende. Mas a mente que se serve do conhecimento a fim de “chegar”, de ter êxito, de alcançar um sentimento de libertação — essa mente necessita do tempo. Essa mente diz: “Preciso de tempo para libertar-me de meu condicionamento’ — entendendo-se com isso que ela vai adquirir conhecimentos e, à medida que se ampliarem os seus conhecimentos, ela se tornará cada vez mais livre. Isso é de todo em todo falso.

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Através do tempo, pela multiplicação de muitos “amanhãs”, não há libertação. Só há libertação na negação da coisa que se vê diretamente. A pessoa reage prontamente ao ver uma serpente venenosa; não há pensamento, porém ação imediata. Essa ação é resultado do medo e do conhecimento que adquiriu a respeito da serpente. Essa aquisição exige tempo. Há, pois, um modo de perceber mediante o conhecimento, que requer tempo. Há também uma qualidade de percebimento que não requer tempo. Eu estou falando sobre a mente que vê “fora do tempo”, que vê sem pensamento, pois a mente resulta de muitos dias passados, a mente origina-se do tempo. Isso também é um fato. Não estamos tratando de uma suposição, de uma teoria. Vossa mente deriva de numerosos dias passados, vossa mente é o resultado do passado. E, se não estamos totalmente livres do passado, não é possível termos uma mente nova, uma mente religiosa. Ora, o ver esse passado totalmente, completamente, o vê-lo imediatamente, significa quebrar de pronto o passado.

Mas, não podeis quebrar incontinenti o passado se vossa mente está sob o controle do conhecimento, que diz: “Acumularei conhecimentos gradualmente e, no fito, quebrarei o condicionamento”. A mente deve ver o condicionamento imediatamente. Por exemplo, se vedes quanto é absurdo o nacionalismo, se “vedes” o veneno do nacionalismo, se vedes isso e o compreendeis completamente — e isso é possível, se prestais toda a vossa atenção então, no mesmo instante em que o compreendeis, estais livre do nacionalismo; o nacionalismo nunca mais vos interessará. Mas, nos não percebemos a natureza venenosa do nacionalismo porque ele é geralmente sancionado, porque vos sentis reunidos em torno de uma bandeira - coisa muito absurda.

Tendes um sentimento de unidade, um sentimento de coesão em torno de nada, pois a bandeira é meramente uma idéia, um símbolo, sem nenhuma realidade, que os políticos e outros gostam de explorar. Mas, se virdes esse fato — e podeis vê-lo dando-lhe toda a vossa atenção. sem procurar justificá-lo, dizendo que podeis perder vosso emprego, etc. — quando dais inteira atenção ao fato do nacionalismo, ele se ira para sempre. Atenção é a total negação do passado, total negação da separação entre o pensador e o pensamento.

A mente religiosa, pois, é aquela que não tem crença, que não tem dogma, que não tem medo, que absolutamente não segue autoridade de espécie alguma. Ela é a luz de si própria. Essa mente, porque é livre, pode ir muito longe. Mas essa liberdade tem de começar bem de perto, isto é, ela se encontra em vós mesmo, no compreender-vos; podereis, assim, ir muito longe.

Descobrireis então, por vós próprios, aquela extraordinária serenidade mental — que não é uma idéia, porém um fato autêntico. A mente de todo tranqüila, sem distração alguma, — a mente plácida e não a mente romântica — mas a mente que não foi gerada pelo conflito, ou pela contradição, ou pela aflição - só ela pode estar completamente quieta e, por conseguinte, totalmente viva, sensível; só essa mente pode receber o Imensurável.

Palestra de Krishnamurti - 4 de fevereiro de 1962 - Nova Deli- Índia - JCM  Cada um tem de ser mestre e discípulo de si próprio -- não há nenhuma autoridade, há apenas compreensão... Temos de estar livres de toda a crença, o que quer dizer de todo o medo, para sabermos se existe uma Realidade, um estado intemporal.Krisnamurti

FAMÍLIA, CASAMENTO, FILHOS; RELAÇÕES, “EU” E AMOR.

Pergunta: A família é o arcabouço do nosso amor e nossa avidez, do nosso egoísmo e nossa divisão. Que lugar tem ela em nossa vida?

K.: - A vida é uma coisa viva, dinâmica, ativa, não podemos encerrá-la num arcabouço. São os intelectuais que põem a vida num molde. Em primeiro lugar, temos o fato de nossas relações com os outros, uma esposa, um marido ou um filho -as relações a que chamamos família.

Pois bem, que é isso a que chamamos família? Trata-se, obviamente, de uma relação de intimidade, de comunhão.

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Ora, em vossa família, em vossas relações com vossa esposa, vosso marido, há comunhão? Relação significa comunhão sem temor, liberdade de mútua compreensão, de comunhão direta. Estais em comunhão com vossa esposa? Talvez estejais, fisicamente, mas isso não é relação. Vós e vossa esposa viveis em lados opostos de uma muralha de isolamento. Tendes os vossos alvos e ambições próprias, e ela os seus. Ora, se existem relações reais entre duas pessoas, o que significa que existe comunhão entre elas, o que isso implica é de extraordinária significação.Porque então não há isolamento, há amor, e não responsabilidade ou dever. Um homem que ama, porém, não fala de responsabilidade - ele ama. Por isso partilha com alguém a sua alegria, a sua tristeza, o seu dinheiro.

Então, senhores, não é isso o que está acontecendo? Em nossas famílias o que há é isolamento, e não comunhão; logo, não há amor. Amor e sexo são duas coisas diferentes. Se tivésseis interesse pelo próximo, se estivésseis em real comunhão com vossa esposa, com vosso marido, o mundo não estaria nesta desgraça.

Como, então, quebrar esse isolamento? Para quebrarmos esse isolamento, precisamos estar cônscios dele. Tomai nota da maneira como trata a vossa esposa, vosso marido, vossos filhos, notem a insensibilidade, a brutalidade, as asserções tradicionais, a falsa educação. E por não saberdes amar vossa esposa, vosso marido, não sabeis amar a Deus.

Pergunta: - O casamento é necessidade ou luxo?K.: - Examinemos:Por que nos casamos? Em primeiro lugar, por força da necessidade biológica, do impulso

sexual, que a sociedade legaliza. A sociedade deseja proteger a prole. Casamo-nos também por exigência psicológica. Preciso de um companheiro ou companheira, alguém que eu possua, e domine, e chame“meu” ou “minha”.

Aqui o sistema matrimonial faz da mulher uma escrava, para ser protegida, dominada, governada, possuída. A mulher é uma coisa que se possui; assim como possuo bens, possuo minha mulher. Possuo-a sexualmente e a domino exteriormente. Psicologicamente, a posse me dá conforto, me dá segurança: minha propriedade, minha esposa, meus filhos.

Tratamos seres humanos como tratamos as coisas materiais, sem consideração. E vós bem conheceis as coisas da vida, os horrores, as agonias, os sofrimentos dos que são casados e não se amam. Como pode haver amor quando há instinto de posse?

Como, na maioria, vivemos tão concentrados, tão absortos em nossas atividades comerciais, em ganhar dinheiro, como somos impiedosos no comércio e cruéis no mundo, como é possível ter amor por alguém no lar? No entanto, é o que quereis fazer, e por isso não tendes amor.

O casamento também é uma forma de perpetuação do “eu”. Desejo continuidade, através dos meus filhos. Por conseguinte, os filhos se tornam muito importantes, não por eles próprios, mas por causa de minha continuidade - meu nome, minha classe, minha casta. Assim, para compreender todos esses processos humanos, que é extremamente complexo e sutil, requer-se inteligência. Inteligência é também amor, e não apenas intelecto; e não podemos ter amor se, por um lado, procedemos cruelmente em nossos negócios, na vida cotidiana, e por outro lado procuramos ser ternos, meigos e bondosos. Não podeis fazer as duas coisas.

Só quando há amor, compaixão - que é inteligência, a forma mais elevada de inteligência - é que pode ser resolvido este problema. No momento em que nos considerarmos uns aos outros como seres humanos, como indivíduos, não como algo para ser possuído, teremos então a possibilidade de compreender e de transcender esse conflito existente entre dois cônjuges.

Pergunta.:- Não sois contrário ao matrimonio como instituição?K.: A família é um processo de identificação particularista; e quando a sociedade está

baseada nessa idéia da família como uma unidade exclusiva, em oposição a outras, uma tal sociedade há de produzir a violência.

Usamos a família como um meio de segurança para nós mesmos. Essa exclusão é chamada “amor”, e nesse chamado estado de família ou de matrimônio existe realmente amor? Não estamos considerando o ideal do que ela deveria ser, mas tal como a conhecemos.

Entendeis por “família” vossa esposa e vossos filhos. É uma unidade nessa unidade sois vós quem tem importância - não a vossa esposa, nem os vossos filhos ou a sociedade, mas somente vós, que estais em busca de segurança, de nome, de posição, de poder, tanto na família como fora dela.

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Dominais as vossas esposa, e ela vos são subserviente; vós ganhais e gastais o dinheiro, ela é vossa cozinheira e a progenitor dos vossos filhos. Criais, assim, a família, que é uma unidade exclusiva. Por conseguinte não pode haver reforma do coletivo enquanto vós, como indivíduo, fordes exclusivista e buscardes o auto-isolamento em cada uma de vossas ações, limitando o vosso interesse a vós mesmos.

Ora, esse processo de exclusão não é, por certo; amor. O amor não é criação da mente. O amor não é pessoal. O amor é algo que não pode ser compreendido enquanto existir o pensamento que é exclusivista. O pensamento, que é a reação da mente, nunca pode compreender o que é amor; o pensamento é invariavelmente exclusivista, separatista.

A família, como a conhecemos, é exclusivista, é um processo de engrandecimento do “eu”, que é resultado do pensamento.

Dizemos que amamos a verdade, a esposa, o esposo, os filhos; mas essa palavra está rodeada pelo fumo do ciúme, da inveja, da opressão, da dominação.

A solução reside, não na legislação, mas na vossa própria compreensão do problema; e o problema só é compreendido, e, por conseguinte desaparece, quando há o verdadeiro amor. Quando as coisas da mente não enchem o coração, a ambição individual não predomina, só então conhecereis o amor.

Que tem o casamento a ver com isto? Fazeis do casamento um embaraço, em vez de um auxílio; tende-o como um cativeiro. No fim de tudo ele é um processo de assimilação de experiência, não um cativeiro que vos force. Sei que ele vos aprisiona na maioria dos casos, porque não sabeis como utilizar, como assimilar a experiência dele. Tratai todos que vos rodeiam como amigos, por intermédio de quem e com quem cresceis.

Pergunta:- Por que tem a mulher a propensão de se deixar dominar pelo homem? K.: - Ora, quando o marido domina, a mulher gosta disso e considera-o afeição; e quando a

esposa governa o marido, ele também gosta disso. Porque? Denota isso que a dominação proporciona um certo sentimento de maior proximidade, nas relações.

Temeis a indiferença por parte de vossa esposa ou de vosso marido.E esse domínio dá um sentimento de relação, esse domínio gera o ciúme: se não me

dominais, é porque estais com os olhos noutra pessoa. Senhor, o homem que ama não é ciumento. O ciúme é coisa do cérebro, mas o amor não pertence ao cérebro; e onde há amor não há domínio. Quando amais alguém, não sois dominantes, sois parte dessa pessoa. Não há separação, mas completa integração. É o cérebro que separa, e cria o problema da dominação.

Pergunta: - Qual ao os deveres de uma esposa?K.: Neste país (índia), o marido é o patrão; ele é a lei, o senhor, porque economicamente

dominante, e é ele quem diz quais são os deveres de uma esposa. Podemos considerar o problema do ponto de vista do marido ou da esposa.

Se considerarmos o problema da esposa, vemos que, porque não é livre, economicamente, a sua educação é limitada; e a sociedade lhe impôs regras e modos de conduta estabelecidos por homens. Portanto, ela aceita o que se convencionou chamar direitos do marido; e como este é quem domina, por ser economicamente livre e ter capacidade para gastar dinheiro, quem dita a lei é ele.

Quando o marido exige os seus direitos e quer uma esposa “cumpridora de seus deveres, a relação entre os dois não passa evidentemente de mero contrato mercantil”.

Enquanto as relações estiverem baseadas em contrato, em dinheiro, em posse, autoridade ou dominação, elas serão, forçosamente, uma questão de direitos e deveres. É evidente a extrema complexidade das relações, quando elas resultam de um contrato, em que se estipula o que é correto, o que é incorreto e o que é o dever.

Mas não haverá uma outra maneira de considerar este problema? Isto é, quando há amor, não há nenhum dever. Quando amais vossa esposa, vós lhe dais participação em tudo - na vossa propriedade, nas vossas tribulações, vossas ansiedades e vossas alegrias. Não a dominais: não sois o homem e ela a mulher, para ser usada e posta de parte, uma espécie de máquina procriadora.

Só o homem que não tem amor no coração fala em direitos e deveres, e neste país direitos e deveres tomaram o lugar do amor. Vossa esposa não tem participação em vossa responsabilidade, porque considera a mulher menos importante do que vós, como uma coisa para ser guardada e usada sexualmente, segundo vossa conveniência, quando o apetite o exigir.

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Sem amor, não percebo a utilidade de se ter filhos. Sem amor criamos filhos feios, imaturos, incapazes de pensar; porque nunca se lhes deu afeição, porque só serviram de brinquedo e de divertimento, e para conservar o vosso nome.

Para que venha a existir uma nova sociedade, uma nova civilização, não deve evidentemente haver dominação nem por parte do homem nem por parte da mulher. A dominação existe em virtude da pobreza interior.

Certamente, só o sentimento afetuoso, o calor do amor, pode implantar uma nova condição, uma nova civilização. O cultivo do coração não é um processo da mente. A mente não pode cultivar o coração; mas, quando é compreendido o processo da mente, surge então o amor.

Pergunta: O casamento é necessário para as mulheres?K.: Não sei por que será mais necessário para as mulheres do que o é para os homens. Vamos

tentar compreender o problema do matrimônio, o qual implica relações de sexo, amor, camaradagem e comunhão. Evidentemente, não havendo amor, torna-se o matrimônio uma ignomínia. Torna-se, puramente, um meio de satisfação.

E só existe amor quando o ego está ausente. Ao considerar o matrimônio, se ele é necessário ou não, é preciso primeiro compreender o amor. O amor é casto, e sem amor não podeis ser castos; pode um indivíduo ser celibatário, mas isso não significa que seja casto, puro, se não houver amor.

E, visto como à maioria das mulheres é negado o amor, buscam elas o preenchimento nas coisas ou nos filhos. Destarte, as coisas e os filhos assumem toda a importância para as mulheres, enquanto o homem busca o preenchimento no trabalho e nas atividades. E por esta razão dou valor às coisas, às relações, às idéias. Atribui-lhes um valor superior ao que tem.

Podeis ter filhos, mas não existe amor, porque vós e vossa esposa estais isolados. Estais escondidos atrás de uma parede por vos mesmos edificada, e para haver essa comunhão é necessário que haja o amor. Quando há amor, há castidade, pureza, incorruptibilidade.

É só para os poucos que amam, que as relações matrimoniais têm significado; então, elas são inquebrantáveis, não representam mero hábito ou conveniência, nem estão baseadas na necessidade biológica, na necessidade sexual.

Nesse amor, que é incondicional, as identidades se fundem. Para que haja a fusão de duas entidades separadas, tendes de conhecer a vós mesmo, e ela a si mesma. Isso significa amar.

Só há castidade quando há amor. Quando existe o amor, não existe o problema do sexo; senhor, isso significa que tereis de submeter vosso coração e vossa mente a uma intensa busca, da qual resultará uma transformação em vosso interior. O amor é casto; e quando existe o amor então o sexo já não é um problema e tem significação inteiramente diversa.

Krishnamurti

Nossa cotidiana existência

Antes de começarmos a falar sobre assuntos sérios, precisamos estabelecer a correta relação entre este orador e vós.

Com as palavras "correta relação", refiro-me à comunhão. Entre nós deve estabelecer-se essa comunhão. Releva não só compreender o significado das palavras, mas também descobrir o que atrás delas se esconde, perceber que a palavra não é a coisa.

A palavra, o símbolo, não é a realidade.Temos de penetrá-la e ultrapassá-la a fim de descobrir, por nós mesmos, a realidade, o fato.Só se torna possível à comunhão quando ambas partes não estão apenas compreendendo o

significado da palavra, mas também percebendo o que ela está indicando, a substancia atrás dela existente.

Vamos falar a respeito de nossa existência diária.A menos que estabeleçamos para nós mesmos uma correta maneira de viver, em meio ao

atual estado de caos e confusão, não importa o que estejamos buscando, nossos intentos serão

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frustrados; porque a realidade se encontra em nossa vida de cada dia, e não numa certa, coisa misteriosa que supomos existir além do fato de nossa existência diária.

Se não compreendemos o inteiro significado de nossa vida diária, com todos os seus conflitos, e angústias, e confusão, a terrível desordem em que estamos mergulhados, se não compreendemos tudo isso, claramente, todos os esforços que fizermos para "ir além" serão meras fugas; e quanto mais fugirmos da realidade, tanto mais confusa e caótica ela se tornará.

O que nesta tarde vamos considerar, juntos, não é algo que se acha "além", porém, sim, como compreender o presente e se há possibilidade de ficarmos totalmente livres de nossos sofrimentos, aflições, confusão e angustia.

Depois de esclarecermos esse ponto - se o conseguirmos – estaremos então, talvez, aptos a investigar se existe, ou não, uma realidade que não seja apenas uma idéia, uma crença, um conceito.

O que vamos fazer juntos é examinar a nossa vida de cada dia.Para examinar, para olhar e perceber claramente as coisas precisamos ser livres.É esse o primeiro requisito, se desejamos seriamente examinar o presente estado de nossa

existência e de nossa conduta.Essa liberdade é necessária ao exame e à percepção.Devemos estar livres para escutar o que se nos diz, e devemos estar livres para olhar. Do

contrário, nada percebemos. O que escutarmos será, sem significação, se não formos capazes de escutar totalmente, completamente.

Para investigar, examinar, sondar, penetrar, necessita-se de liberdade para escutar e liberdade para perceber. Todos nós desejamos paz, pois percebemos que, sem paz, não é possível o florescimento da bondade.

Nenhum movimento pode haver, não oriundo da confusão, da nossa própria aflição.Para fruirmos a paz, deve haver liberdade.É a respeito destas duas coisas que vamos palestrar: a paz e a liberdade.Dizendo "palestrar", entendo exatamente isto. Não ides ficar aqui apenas a escutar o que se

está dizendo. Vamos empreender juntos uma viagem, vamos participar, comungar e, por conseguinte, trata-se de um trabalho que temos de fazer juntos, vós e eu. Não estais aqui apenas para escutar o que se diz, concordando ou discordando, intelectualmente, ou admitindo certos conceitos, idéias e fórmulas. Isso não leva a parte alguma, mas, se pudermos cooperar, explorar juntos, não verbal nem intelectualmente, porém realmente, penso que, então, uma reunião como esta será frutuosa.

Mas, se o que nos interessa são apenas definições, e fórmulas, e argumentos, nesse caso receio que não sairemos do lugar em que agora nos encontramos.

Desejo fazer-vos ver que, em todas estas palestras, a cooperação será necessária. Não vamos considerar ideais, nem o que é certo e o que é errado. Não vamos tentar descobrir ou formular novos conceitos. Estamos já fartos de conceitos e ideais, porquanto não alteraram nossa existência.

O que nos interessa é uma revolução total na consciência, não num determinado setor, porém na totalidade da consciência. Aí é que se faz necessária uma revolução total. O problema não é externo, não se trata de criar uma sociedade melhor. O problema é uma crise que se está verificando na consciência e, se não sou capaz de enfrentar totalmente esta crise - não como cientista, como pessoa religiosa, como homem de negócios, como poeta ou artista, porém como ente humano total - não se realizará uma revolução radical. O que mais nos interessa é ver se será possível tal revolução, para que possamos encontrar uma diferente maneira de viver. Será essa a nossa preocupação, nestas palestras.

Quando empregamos a palavra "libertação", não entendemos "revolta" ou "reação"; revolta e reação não é libertação. A libertação de alguma coisa não é liberdade, porém reação. A liberdade não depende de reação ou de revolta. Ela existe por si e para si. Não é produto de nenhum motivo ou ideal.

Se não há liberdade, não podemos ter paz.Pela palavra "paz", não entendo aquele estado interior ou exterior em que nos vemos "entre

dois muros", ou entre duas incertezas ou, duas confusões. A paz, tal como a liberdade, não é uma coisa que podemos procurar ou achar. Só pode haver paz quando vivemos pacificamente, não como indivíduos, porém como entes humanos. Penso que há diferença entre o indivíduo e o ente humano.

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O indivíduo é a entidade "local", o londrino, o inglês, o alemão ou o russo. Esse é o indivíduo, a "entidade local", condicionada pelo seu ambiente, porém o ente humano é o homem, o homem total, quer viva na Inglaterra, quer na Índia ou noutra parte.

Compreendendo o homem, compreenderemos o indivíduo, e não vice-versa.O que nos interessa é a liberdade e a paz para os entes humanos. Se o indivíduo meramente

se revolta contra o ambiente, isso não significa necessariamente que ele se libertará ou encontrará a paz. Só pode haver paz, quando existe uma maneira de vida pacífica, quando o homem não está dividido em nacionalidades, grupos religiosos, a cultivar certas formulas e conceitos.

São essas as coisas que destroem a paz.Os conceitos religiosos organizados negam a paz. Observando-se o que está sucedendo no

mundo, vê-se que ele está dividido em áreas políticas, administrativas, nacionalistas. Vós sois inglês, eu sou russo ou alemão. Política e economicamente, cada um têm seu particular condicionamento. Estamos também divididos por nossas crenças e dogmas. Aqui, credes numa determinada fórmula religiosa, e a Ásia inteira crê noutro conjunto de fórmulas.

Há conflito e, por certo, para termos paz, precisamos estar libertos do condicionamento religioso. Isso é extremamente difícil, porque, enquanto racionalmente, exterior e superficialmente, podemos negar certos conceitos e fórmulas religiosas, inconscientemente, no fundo, levamos uma pesada carga de condicionamento. Precisamos libertar-nos de todo condicionamento, para podermos ter paz. Sem paz, não podemos florescer exterior e interiormente. Estaremos sempre a encontrar frustrações e haverá sempre reação, revolta. O que nos interessa é a total revolução humana.

Como se realizará ela?Se alguma vez já refletimos a esse respeito, como respondemos a esta pergunta?Como puderam os entes humanos viver dois milhões e mais de anos, a seguir sempre o

mesmo padrão, interiormente? Embora tenha havido exteriormente enormes mudanças, interiormente somos mais ou menos o que sempre fomos: ávidos, invejosos, ambiciosos, competidores, impiedosos, cruéis, egocêntricos, sempre a batalhar pela conquista de posição e de prestígio.

Isso vem ocorrendo há milhares de anos, e o homem tem sofrido. O sofrimento sempre foi sua sina. Ele teme a vida e a morte. Porque tem medo, inventa fugas, deuses e diversões de todo o gênero. Dessa maneira temos vivido, e a aceitamos como a norma da vida, o caminho da vida.

Todos estamos vendo isso; notamo-lo muito bem. Vendo tudo isso suceder, não só exterior, mas também interiormente, perguntamos se é possível uma mudança radical e, se é, como poderá verificá-se.

Cada um é produto do país em que nasceu. As influências religiosas, sociais, econômicas e climáticas, a alimentação, os trajos, tudo tem influenciado a sua mente. Somos vítimas da ansiedade, do medo, do desespero, de múltiplas frustrações, e nos vemos ameaçados de cair num estado neurótico – se já não caímos. O viver nos parece inteiramente sem significação, só nos oferecendo tédio, frivolidade, morte, sofrimento infindo, conflito interior e exterior.

Em vista de tudo isso, há possibilidade de uma mudança completa?Se dizemos que não há tal possibilidade - como de fato se diz – então não há saída desta

situação. No momento em que dizemos que não é possível aquela mudança, fechamos todos os caminhos.

Para descobrirmos se ela é possível, temos de investigar, e para investigar necessitamos de liberdade, para perceber o fato real - não a idéia do medo, porém o fato, e isso é muito difícil.

A palavra "medo" não é o medo.Temos de compreender a palavra e dela libertar-nos, a fim de enfrentarmos o fato - o medo.Analogamente, é-nos possível mudar tão radicalmente que nossa maneira de vida, nossa

"perspectiva da vida" se torne completamente diferente? Essa é uma dimensão inteiramente nova.Vamos investigar isso.E, se é possível a mudança, como poderá verificar-se? Em primeiro lugar, devemos

compreender o que significa "olhar", "perceber", "ver".Para se ver claramente uma coisa, não deve haver interferência do pensamento, da palavra, da

idéia.

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Quando olhamos ou, percebemos uma árvore, uma flor, podemos olhá-la com os nossos conhecimentos botânicos, e nesse caso não estamos olhando realmente a árvore; estamos olhando através de palavras, através de nossos conhecimentos e experiência; nossa experiência nos impede de olhar diretamente. Não sei se já experimentastes olhar diretamente para uma árvore, livre da palavra, da imagem por esta criada, e sem tendência para julgar ou avaliar.

Não se pode olhar realmente de oura maneira, e esse modo de olhar não é um estado de abstração, porém de intensa atenção.

Observar, ver - essa é a coisa principal; ver o que realmente somos e não o que achamos que deveríamos ser; observar nossa avidez, inveja, ambição, ansiedade, medo, tais como existem realmente, e sem interpretação, nem julgamento.

Nesse estado de observação não há esforço algum.Isso temos de compreender isso claramente, porque estamos condicionados para fazer

esforço. Tudo o que fazemos envolve esforço, luta. Se desejo mudar, se, por exemplo, desejo deixar de fumar, tenho de lutar, de forçar-me, de manter minha resolução e, assim, talvez eu acabe deixando de fumar, mas minha energia se terá esgotado nessa batalha.

Pode-se abandonar alguma coisa sem esforço?O fumar é uma coisa muito trivial.Abandonar o prazer, em todas suas formas, porque o prazer sempre produz dor, eis um

problema extremamente complexo, que iremos considerar numa destas palestras.O que no momento nos interessa é isto: se temos possibilidade de abandonar alguma coisa,

de agir sem esforço.Porque paz é isso, não achais?A paz alcançada por meio de uma batalha interior não é paz, porém exaustão, pois a paz de

modo nenhum pode ser um, resultado de esforço. Só vem quando há compreensão. Esta é uma palavra um pouco difícil. Compreensão não significa "compreensão intelectual". Quando dizemos que compreendemos uma coisa, entendemos em geral uma apreensão intelectual, conceitual. Só pode verificar-se a percepção, quando há atenção total. A atenção total só é possível quando "nos damos" completamente. A mente, o corpo, os nervos, todo o nosso ser fica então sobremodo ativo. Só então há compreensão. Temos de compreender nossa vida de entes humanos. Para nós, a vida é uma caótica contradição. Não a estamos descrevendo sentimental, emocionalmente ou noutro sentido qualquer, porém tão-só em sua realidade. Vemo-nos confusos, aflitos, ansiosos, aterrados, desesperados. Está sempre a inquietar-nos esse medo e sofrimento. Tal é a nossa vida, e, no final de tudo e inevitavelmente, a morte. Só isso sabemos. Podemos imaginar coisas, ter muitos ideais, fórmulas e fugas, mas, quanto mais fugimos, tanto maior a contradição, tanto mais profundo o conflito.

Podemos observar nossa vida, tal como é realmente e não como deveria ser?Os ideais são de todo em todo fúteis. Nenhuma significação tem. São como o ideal dos que

crêem na não-violência e, na realidade, são violentos. Isso é um fato. Os entes humanos são violentos. Demonstram-no suas palavras, seus gestos, seus atos e sentimentos. Cultivaram o ideal de "não ser violento" - que representa um estado de paz, de ausência da violência. Há o fato e o que "deveria ser".

Entre "o que é" e o "desejável", entre o fato e a idéia, a utopia, "o que deveria ser", acha-se o intervalo de tempo.

No esforço para alcançar "o que deveria ser", estamos sempre a semear a violência. O ideal é uma maneira hipócrita de olhar a vida. Não há, decerto, nenhuma necessidade de ideal, se sabemos olhar o fato e dele libertar-nos. Porque não sabemos olhar os fatos e libertar-nos deles, pensamos que com um ideal os resolveremos. Em verdade, o ideal, a utopia é uma fuga da realidade. Sabendo-se olhar a violência, talvez se torne possível uma ação de espécie diferente.

Consideremos um pouco mais este ponto.Sou violento e percebo que qualquer forma de fuga à realidade, ao fato de que sou violento,

toda e qualquer fuga, bebida, ideal, etc. - diminui a energia de que necessito para olhar o fato. Preciso dessa energia para olhar, para manter-me completamente atento. Isso também é um fato simples. Se desejais olhar qualquer coisa que seja, necessitais de muita energia. Se só estais incompletamente atento, porque tendes ideais que não devíeis ter, então estais dissipando vossa

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energia e, por conseguinte, sois incapaz de olhar. Olhar é uma operação que requer toda a vossa atenção. Só se pode olhar quando não se está querendo alcançar nenhum ideal, nem desejando alterar o que é.

Só aparece o desejo de alterar "o que é", quando o fato é desagradável. Quando agradável, não desejamos alterá-lo. Nossa preocupação é perseguir o ideal e evitar a

dor. Nosso maior interesse é o prazer e não a violência ou a não-violência, a bondade, etc.Queremos prazer, e para alcançá-lo estamos dispostos a tudo.Enquanto estivermos a olhar o fato com a intenção de alterá-lo, não teremos possibilidade de

alterá-lo, por quanto nosso principal interesse é modificar, para termos prazer - ainda que seja um prazer muito nobre.

Devemos perceber isso muito claramente, porque os nossos valores morais, éticos e religiosos estão todos baseados no prazer.

Eis o fato verdadeiro.Não é um fato imaginário, como veremos, se nos sondarmos muito profundamente e

olharmos todos os valores que estabelecemos.Quando existe esse princípio do prazer, tem de haver inevitavelmente dor.Olhamos a violência com o fim de transformá-la num prazer e passarmos deste a um prazer

maior; por isso, somos incapazes de alterar o fato de que somos violentos. Consideramos a vida com a mira no prazer.

No fundo, os entes humanos são violentos, por várias razões.Uma das razões fundamentais é que todas as suas atividades se concentram em perpetuar o

eu, o ego. A atividade egocêntrica é uma das causas da violência. Por outro lado, a fim de realizar uma revolução radical, tenho de compreender o princípio do prazer. Amo os meus deuses; isso me proporciona enorme satisfação.

Amais os vossos deuses, vossas fórmulas, vossa nacionalidade, vossa bandeira. O mesmo faço eu. Tudo isso se baseia no prazer. Posso dar-lhe diferentes nomes, mas não importa; o fato é este. Ora, é possível considerarmos a violência, sem procurarmos transformá-la em prazer; posso observar simplesmente o fato de que sou violento?

Temos de compreender o que significa "olhar" e "escutar".Escutar é uma das coisas mais difíceis, porque costumamos interpretar tudo o que ouvimos e,

depois, concordar ou discordar. A mente, o cérebro está em incessante atividade, sempre a ouvir, refutando ou aceitando, negando ou seguindo o que se diz. Para podermos escutar realmente, precisamos estar absolutamente quietos; do contrário, não podemos escutar. O que geralmente acontece é que nunca escutamos o que se nos diz, nunca escutamos uma ave ou o ciciar da brisa entre as folhas.

Nunca escutamos realmente.Já traduzimos tudo em palavras, imagens, e olhamos as coisas com essas imagens, palavras,

experiências, conhecimentos. Afinal, escutar o vosso amigo, escutar vossa esposa ou marido, é uma das coisas mais difíceis que há, porque tendes uma imagem já formada de vosso amigo, de vossa esposa, e esta tem sua imagem de vós. A relação existente é entre duas imagens, e são essas imagens que falam uma à outra - sendo as imagens lembranças, experiências, mágoas, etc.

Nunca há o verdadeiro ato de escutar.Para escutar, temos de estar livres da imagem. Do mesmo modo, para vermos as coisas, não

deve haver a interferência de nenhuma imagem. Podemos então olhar a violência, descobrir se a palavra está criando o sentimento ou se o sentimento da violência é independente da palavra, já que a palavra não é a coisa.

Embora o cérebro se ache ativo, olha num estado de negação, porque a "imagem que olha" deixou de existir.

Cada um de nós tem uma imagem de si própria e imagens do "outro". Não estais a olhar-me realmente. Estais olhando para a imagem que tendes de mim, tal como tendes imagens de vossa esposa ou marido, de vossos filhos, de vossa pátria. Nossas relações - assim chamadas - são entre essas imagens. Quando queremos escutar ou olhar, as imagens interferem. Imagens de ofensas, de coisas ditas, lembranças, experiências acumuladas, tudo isso interfere e, por conseguinte, não se

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pode olhar, nem pode haver verdadeiras relações entre duas pessoas. Só pode estabelecer-se um estado de relação entre pessoas quando não existe imagem alguma.

Quando podemos olhar a violência, sem a respeito dela termos uma imagem, qual o estado da mente ou do cérebro que está a olhar? Se nenhuma imagem tendes de vossa esposa, e ela nenhuma imagem tem de vós, nenhuma - absolutamente, qual o estada da vossa mente e da dela, de vosso cérebro e do dela?

Que se está passando?Nenhuma imagem tendes de vós mesmo, como inglês. Não vos qualificais de cristão ou

hinduísta, de marido ou esposa. Não há imagem de espécie alguma.Para nos libertarmos da imagem, temos de investigar muito profundamente a questão da

formação das imagens e, uma vez feito esse exame, com o máximo de escrúpulo e atenção, o cérebro não fica "em branco", num estado de entorpecimento. Ao contrário, torna-se sumamente ativo, porém não estará em atividade o "formador de imagens".

Com essa atenção pode-se olhar. É relativamente fácil olhar a árvore, a flor, um pássaro, mas olhar dessa mesma maneira para dentro de nós mesmos, olhar a nossa violência, nossos prazeres e dores, isso é outra questão. Só se pode olhar e escutar, quando a mente, o cérebro está totalmente quieto. Do contrário, nada se pode ver. Só é possível à mudança, a revolução total, quando olhamos com essa atenção, atenção em que não existe mais o processo formador de imagens do prazer ou dos valores do prazer. Isso é que é ser livre.

Liberdade significa, decerto capacidade de olhar, de observar, porque ver é agir.Pode-se perceber tudo o que a violência implica, tanto historicamente como na atualidade.

Sabemos o que ela significa. Dizem-me que já houve quinze mil guerras nos últimos 5.500 anos -quase três guerras por ano! Podem não se estar travando guerras aqui, entretanto elas continuam a ser travada no mundo. Apesar das religiões, apesar de toda a bondade existente, aceitamos a guerra como norma da vida. O homem aceitou a violência como norma da vida. Os políticos, as pessoas religiosas, todos falam a respeito da paz. Não podemos ter paz, se não vivemos pacificamente. Para vivermos pacificamente, não deve existir violência. Esta questão exige a mais ampla investigação e exame.

A transformação, a revolução radical na consciência, só se tornará possível quando formos capazes de observar, de ver, de escutar, e quando soubermos que o observar e ver é agir. É possível extinguir a violência dentro de nós imediatamente, instantaneamente, e não em termos de tempo? Tão condicionados nos achamos, que dizemos: "gradualmente me libertarei da violência". Estamos acostumados com a gradualidade, a evolução, mas é possível extinguir instantaneamente a violência existente em nós mesmos?

Digo que podemos terminar a violência imediatamente, quando somos capazes de observar esse fato completamente, com atenção total, em que não exista nenhuma espécie de imagem.

Isso é como uma pessoa tornar-se consciente de um precipício, de um perigo. A menos que seja neurótica, desequilibrada, a pessoa se afastará do perigo; a ação é

imediata.Perceber, ver realmente o perigo é estar livre de imagens. Pode-se então olhar com absoluta serenidade, em completo silêncio. Verificar-se-á, então, uma total mutação do fato.

Uma revolução em toda a psique do homem não é realizável por meio da vontade, que é desejo, determinação, por meio de um plano de vida conducente à paz.

Ela só é possível quando o cérebro pode estar quieto e ao mesmo tempo ativo, para observar sem criar imagens de acordo com sua experiência, conhecimentos e prazer.

A paz é essencial, porque só na paz pode o indivíduo florescer em bondade e beleza.Essa possibilidade só existe quando somos capazes de escutar o todo da existência, com todas

as suas agitações, aflições, confusão e angústias - escutá-lo, simplesmente, sem nenhum desejo de alterá-lo.

O próprio ato de escutar é a ação que operará a revolução.

Estudo da 1ª palestra de Krishnamurti em Londres em 26 de abril de 1966 págs. 7 a 17 do livro "Encontro com o Eterno" – 1974 – tradução de Hugo Veloso - Nova disposição gráfica colocada por ocasião do estudo.

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Mudança e mutação

Há a meu ver, vasta diferença entre mudança e mutação.A mera mudança não conduz a parte alguma. Uma pessoa pode tornar-se superficialmente

adaptável, muito hábil no ajustar-se aos diferentes ambientes e circunstâncias sociais, e a várias formas de pressão interior e exterior; mas a mutação requer um estado mental muito diferente.

Nesta manhã desejo salientar a diferença entre estas duas coisas.Mudança é alteração, reforma, substituição de uma coisa por outra. Mudança implica ato da

vontade, consciente ou inconsciente. E, considerando-se a confusão, a miséria, a opressão, a extrema aflição existente em toda a Ásia (1965) subdesenvolvida, torna-se evidente a necessidade de uma mudança radical, revolucionária. Há necessidade, não só de mudança física ou econômica, mas também de mudança psicológica - mudança em todos os níveis do nosso ser, exteriores e interiores, a fim de se proporcionar uma melhor existência ao homem.

Acho que isso é bastante óbvio, e até os mais estremados conservadores o admitirão. Mas, ainda que o reconheçamos, creio que em regra não consideramos profundamente a questão da mudança e tudo o que ela implica. Qualquer ajustamento, substituição, reforma, é de ação muito profunda ou consiste meramente num polimento superficial, numa "limpeza" na moralidade das relações humanas?

Penso que devemos compreender bem profunda e cabalmente o que está implicado nesse processo de mudança, antes de examinarmos o que considero mutação.

A mudança, embora necessária, me parece sempre superficial. Entendo por mudança todo movimento operado pelo desejo ou vontade, toda iniciativa concentrada numa dada direção, visando uma certa atitude ou ação precisamente definida. Toda mudança, evidentemente, tem atrás de si um motivo.

Esse motivo pode ser pessoal ou coletivo, manifesto ou remoto; pode ser um motivo bondoso, generoso, ou um motivo de medo, desespero; mas, qualquer que seja a natureza ou o nível do motivo, a iniciativa ou, movimento resultante desse motivo produz uma certa mudança.

Isso me parece bastante claro.Os mais de nós somos muito suscetíveis, individual e coletivamente, de modificar nossas

atitudes, sob influência, pressão, e também quando aparece alguma invenção nova que direta ou indiretamente influi em nossa vida. Podemos ser levados a mudar nossos pensamentos, orientá-los em diferente direção, por um artigo de jornal ou pela propaganda que se faz de uma idéia. A religião organizada mostra muito empenho em educar-nos, desde crianças, numa certa forma de crença, condicionando-nos assim a mente, e, pelo resto da vida, toda mudança que operamos fica dentro dos limites "modificados" dessa crença.

Assim, são raros os que mudam, a não ser com um motivo. O motivo poderá ser altruísta ou interesseiro, limitado ou amplo; poderá ser o medo de perder uma recompensa, ou de não atingir um certo estado prometido para o futuro. O indivíduo se sacrifica à coletividade, ao estado, a uma ideologia, ou a determinada forma de crença em deus. Tudo isso implica uma certa mudança, consciente ou inconscientemente produzida.

Pois bem; a chamada mudança é uma "continuidade modificada" do que já existia, e nessa suposta mudança nos tornamos muito hábeis. Estamos constantemente fazendo novas descobertas na física, na ciência, na matemática, inventado coisas novas, preparando-nos para ir à lua, etc. Etc. Em certos terrenos estamos-nos tornando extraordinariamente "sabidos", muito bem informados; e essa espécie de mudança implica capacidade de ajustamento ao novo ambiente, às novas pressões que ela cria.

Mas, basta isso?Pode-se perceber tudo o que implica essa superficial modalidade de mudança. Entretanto,

sabemos, interiormente, profundamente, que é necessária uma mudança radical – mudança não produzida por nenhum motivo ou como resultado de pressão. Percebemos a necessidade de mutação na raiz mesma da mente, pois, sem ela, somos apenas uma horda de macacos muito hábeis e dotados de extraordinárias capacidades - e não autênticos entes humanos.

Percebendo-se tudo isso, profundamente, em nós mesmos, que cumpre fazer?

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Vemos que se necessita de uma mudança revolucionária, de completa mutação na raiz mesma de nosso ser, porque, do contrário, nossos problemas, tanto econômicos como sociais, irão crescendo, inevitavelmente, e se tornando cada vez mais críticos. Necessita-se de uma mente nova, fresca - e, para a termos, deve operar-se, na totalidade de nossa consciência, uma mutação não produzida por ato de vontade e, portanto, sem motivo.

Não sei se me estou expressando claramente.Percebendo a necessidade de mudança, pode uma pessoa exercer a vontade, a fim de produzi-

ia - sendo "vontade" o desejo fortalecido, em dada direção, pela determinação e posto em movimento pelo pensamento, pelo medo, pela revolta. Mas toda mudança dessa ordem - mudança produzida pela ação do desejo, da vontade - é sempre limitada.

É uma "continuidade modificada" do que era antes, como se pode ver pelo que está ocorrendo no mundo comunista, e também nos países capitalistas. Necessita-se, pois, de uma revolução extraordinária, de revolução psicológica no ente humano, no próprio homem; mas, se ele tem um alvo, se sua revolução é planejada, está ainda dentro dos limites do "conhecido" e, por conseguinte, não constitui mudança nenhuma.

Eu posso mudar, posso forçar-me a pensar de modo diferente, a adotar um diferente sistema de crenças; posso suprimir um dado hábito, livrar-me do nacionalismo, reformar meu raciocínio, fazer eu próprio a "lavagem" de meu cérebro, em vez de deixá-la para ser feita por um partido ou igreja. Tais mudanças são muito fáceis de operar em mim mesmo; mas percebo sua total inutilidade, porquanto são superficiais e não conduz à compreensão profunda que deve orientar o viver, o existir, o funcionar.

Assim, que fazer?Compreendeis minha pergunta? Acho que fui claro.Se faço um esforço para mudar, esse esforço tem motivo, significando isso que o desejo

inicia o movimento em certa direção. Aí está em ação a vontade, e, por conseguinte, qualquer mudança que seja produzida é uma simples modificação - não é uma mudança real, absolutamente.

Vejo com muita clareza que preciso mudar, e que essa mudança deve ocorrer sem esforço. Todo esforço para mudar anula-se a si próprio, uma vez que supõe a ação do desejo, da vontade, em conformidade com um padrão, uma fórmula, um conceito reestabelecido.

Assim sendo, que fazer?Não sei se sentis como eu a relevância dessa questão - o quanto ela nos interessa, não só no

sentido intelectual, mas, principalmente, como um fator essencial em nossa vida. Há milhões de anos vem o homem fazendo um esforço incessante para mudar, entretanto continua envolto em aflições, desespero, medo, só tendo raros e fugidios clarões de alegria e de deleite. E como pode essa entidade, que há tanto tempo vem sendo tão fortemente condicionada, alijar de sua carga sem nenhum esforço?

Esta a pergunta que estamos fazendo a nós mesmos.Mas, "o lançar fora a carga" não deve tornar-se mais um problema; porque, como antes

indiquei, problema é algo que não compreendemos, algo que não temos capacidade de examinar até o fim e liquidar de uma vez.

Para se produzir essa mutação - "produzir", não, esta é uma expressão errônea; a mutação é uma necessidade e tem de verificar-se agora. Mas, se introduz o tempo como fator da mutação, o tempo cria o problema. Não há amanhã, não há tempo nenhum em que eu irei mudar - sendo o tempo pensamento. Isso tem de acontecer agora ou nunca.

Compreendeis?Percebo a necessidade dessa mudança radical em mim, ente humano, parte integrante da raça

humana; e percebo, também, que o tempo, que é pensamento, não deve representar nisso um fator. O pensamento não pode resolver este problema.

Venho exercendo o pensamento há milhares e milhares de anos e, no entanto, não mudei. Continuo com meus hábitos, minha avidez, minha inveja, meus temores, e me vejo ainda todo enredado no padrão de competição da existência. Foi o pensamento que criou o padrão; e o pensamento não pode, em circunstancia alguma, alterar esse padrão sem criar outro padrão - sendo o pensamento tempo. Portanto, não posso contar com o pensamento, com o tempo, para operar a

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mutação, a mudança radical. Não pode haver exercício da vontade, e não se pode deixar o pensamento orientar a mudança.

Que me resta, então?Vejo que o desejo, que é vontade, não pode operar em mim a verdadeira mutação. O homem

vem trabalhando nisso há séculos e nele não se produziu nenhuma mudança fundamental. Tem-se servido, também, do pensamento para produzir mudança em si próprio - pensamento como tempo, pensamento como amanhã, com todas as suas exigências, invenções, pressões, influências - e, como vemos, ainda não houve nenhuma transformação radical.

Que fazer, pois?Ora, uma vez compreendida em seu todo, a estrutura e movimento da vontade, esta deixa de

atuar; e, se percebemos que o emprego do pensamento, do tempo, como instrumento de mudança, não passa de mero adiamento, termina então o processo de pensamento.

Mas, que queremos exprimir ao dizer que percebemos ou compreendemos uma coisa?A compreensão é meramente intelectual, verbal, ou significa que se está vendo uma coisa

como fato? Posso dizer que "compreendo" - mas a palavra não é a coisa real. A compreensão intelectual de um problema não é a solução desse problema. Quando compreendemos uma coisa apenas verbalmente, e isso é o que chamamos compreensão intelectual, a palavra tem então enorme importância; mas, quando há a verdadeira compreensão, a palavra perde toda a importância, sendo então simples meio de comunicação.

Há contacto direto com a realidade, o fato. Se percebemos como um fato a futilidade da vontade, e também a futilidade do pensamento, ou do tempo, na produção dessa radical transformação, então a mente que rejeitou toda estrutura da vontade e do pensamento, nenhum instrumento tem com que iniciar a ação.

Bem, até agora vós e eu temos estado em comunicação, e talvez tenhamos também estabelecido entre nós uma certa comunhão. Mas, antes de prosseguirmos, considero importante compreender o que entendemos por comunhão.

Se alguma vez andastes entre as árvores de uma floresta, ou pela margem de um rio, e sentistes a quietude, tivestes o sentimento de estar vivendo completamente com todas as coisas, com as pedras, com as flores, com o rio, com as árvores, com o céu - sabereis então o que é comunhão.

O "vós" - com seus pensamentos, suas ânsias, seus prazeres, lembranças, desesperos – cessou completamente. Não existe "vós", como observador separado da coisa observada; há só aquele estado de completa comunhão. E espero que seja esta a comunhão aqui estabelecida entre nós.

Ela não é um estado hipnótico; o orador não vos está hipnotizando, para pôr-vos nesse estado.

Explicou certas coisas, com todo o cuidado, verbalmente. Mas há algo mais, que não pode ser explicado verbalmente. Até um certo ponto podeis ser informados pelas palavras que o orador emprega, mas ao mesmo tempo deveis ter em mente que a palavra não é a coisa, e que se não deve permitir á palavra interferir na vossa direta percepção do fato. Quando comungais com uma árvore - se alguma vez o fazeis - vossa mente não está ocupada com a espécie dessa árvore, ou a respeito de sua utilidade ou não utilidade. Estais em comunhão direta com a árvore.

Analogamente, deve-se estabelecer esse estado de comunhão entre vós e o orador, porque o que agora vai seguir é uma das coisas mais difíceis de tratar verbalmente.

Como disse, a ação da vontade, e a ação do pensamento como tempo, e o movimento iniciado por influencia ou pressão de qualquer natureza, cessaram de todo. A mente, por conseguinte, que, não - verbalmente, observou e compreendeu tudo isso, está completamente quieta.

Ela não é a iniciadora de qualquer movimento, consciente ou inconsciente. E isso, também, é algo que precisa ser considerado, antes de podermos ir um pouco mais longe.

Conscientemente, podereis não desejar atuar em nenhuma direção determinada, porque já observastes a futilidade de toda espécie de mudança calculada, da mudança promovida pelo comunista ou pelo mais reacionário conservador.

Vedes quanto tudo isso é fútil.Mas, interiormente, inconscientemente, há o tremendo peso do passado a impelir-vos numa

certa direção. Estais condicionado como europeu, como cristão, como cientista, como matemático, como artista, como técnico; e há a milenar tradição muito zelosamente explorada pela igreja que

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instilou no inconsciente certas crenças e dogmas. Podeis, conscientemente, rejeitar tudo isso, mas, inconscientemente, o seu peso continua existente. Sois ainda cristão, inglês, alemão, italiano, francês; saís ainda movido pelos interesses nacionais, econômicos, familiais, e pelas tradições da raça a que pertenceis; e, quando se trata de raça antiqüíssima, mais profunda ainda é sua influência.

Ora, como eliminar tudo isso?Como purificar o inconsciente, imediatamente, do passado? Crêem os analistas que o

inconsciente pode ser expurgado, em parte ou no todo, por meio da análise - mediante investigação, exploração, a confissão, a interpretação dos sonhos, etc. - de modo que qualquer um pode tornar-se pelo menos um ente humano "normal", capaz de ajustar-se ao atual ambiente. Mas, na análise, há sempre o analista e a coisa analisada, um observador a interpretar a coisa observada - e isso representa uma dualidade, fonte de conflito.

Vejo, pois, que a mera análise do inconsciente a nenhuma parte conduz.Poderá ajudar-me a ser um pouco menos neurótico, um pouco mais amável com minha

mulher, meu próximo - ou outra superficialidade semelhante; mas não é disso que estamos falando. Percebo que o processo analítico que implica tempo, interpretação, movimento do pensamento que analisa, como observador, a coisa observada, não pode libertar o inconsciente; por conseguinte, rejeito completamente o processo analítico.

Assim que percebo esse fato, que a análise não pode, em circunstância nenhuma, afastar o fardo do inconsciente estou fora da análise.

Já não analiso. Que aconteceu, pois? Já que não há analista, separado da coisa analisada, ele próprio, o analista é essa coisa. Não é uma entidade dela separada. Descobre-se, então, que o inconsciente é de muito pouca importância.

Percebeis?Estive mostrando quanto é trivial o consciente, com.suas atividades superficiais, sua perene

tagarelice, etc.; e o inconsciente é também muito trivial. O inconsciente, como o consciente, só se torna importante quando o pensamento lhe dá continuidade.

O pensamento tem seu lugar próprio, sua utilidade própria em assuntos técnicos, etc., mas o pensamento é de todo em todo fútil, quando se trata de operar aquela radical transformação. Quando percebo que é o pensamento que dá continuidade, está terminada a continuidade do pensador.

Espero estejais seguindo o que estou dizendo, que requer muita atenção.O consciente, ou o inconsciente tem insignificante importância.Só se torna importante, quando o pensamento lhe dá continuidade. Quando percebeis essa

verdade, que todo o "processo do pensar" é uma reação do passado e não pode, de modo nenhum, atender à enorme necessidade de mutação, então, tanto o consciente como o inconsciente perde toda a importância, e a mente deixa de ser influenciada ou impelida por qualquer dos dois.

Por conseguinte, lá nenhuma iniciativa toma; fica completamente quieta, tranqüila, silenciosa. Embora cônscia da necessidade de mutação, revolução, de completa e radical transformação de nosso ser, a mente nenhum movimento inicia, em nenhum sentido; e, nesse percebimento total, nesse silencio completo, já se operou a mutação.

A mutação, pois, só pode verificar-se de uma maneira não "diretiva", isto é, quando a mente nenhum movimento inicia e, por conseguinte, permanece inteiramente tranqüila. Nessa tranqüilidade há mutação, porque a raiz de nosso ser, ficando exposta, seca. Esta é a única revolução real e não a revolução econômica ou social, e não pode ser feita pela vontade ou pelo pensamento.

Só naquele estado de mutação, pode-se perceber algo que excede a medida das palavras, algo de supremo, acima de toda tecnologia e todo reconhecimento.

Espero não tenhais adormecido! Quereis fazer algumas perguntas?Pergunta: até onde tenho experimentado, o pensamento me condena ao isolamento,

porquanto me impede a comunhão com as coisas que me cercam, e impede-me também penetrar as raízes de meu ser. Por conseguinte, desejo perguntar: porque pensam os entes humanos? Qual a função do pensamento humano? E porque tanto exageramos a importância do pensar?

Krishnamurti: pensei que isso já tivesse ficado para trás. Está bem, senhor, vou explicar.Escutar meramente uma explicação não é ver o fato, e não podemos estar em comunhão por

meio de uma explicação, a menos que ambos vejamos o fato e não lhe toquemos, isto é, nos abstenhamos de nele intervir.

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Então, estamos também em comunhão com o fato. Mas, se interpretais o fato de uma maneira e eu interpreto de outra, não estamos em comunhão nem com o fato nem entre nós.

Ora, como surge o pensamento - o pensamento que isola, que não dá amor, o único meio de comunhão? E, como pode terminar esse pensamento? O pensamento - todo o mecanismo do pensamento tem de ser compreendido, e a própria compreensão dele é seu fim.

Vou examinar isso, se me permitis.Surge o pensamento, como reação, quando há um "desafio".Se nenhum desafio houvesse, vós não pensareis.O desafio pode ter a forma de uma pergunta, trivial ou importante, e conforme a pergunta

"respondemos". No intervalo de tempo entre a pergunta e a resposta, começa o processo de pensamento, não é verdade? Se me perguntais a respeito de alguma coisa com que estou bem familiarizado, minha resposta é imediata. Se me perguntais onde moro, por exemplo, não há intervalo de tempo, porque não tenho de pensar nisso, e imediatamente respondo.

Mas, se vossa pergunta é um pouco mais complexa, há um intervalo durante o qual fico rebuscando na memória entre vossa pergunta e minha resposta. Podeis perguntar-me qual a distancia entre a terra e a lua, e eu digo: "será que sei alguma coisa a este respeito? ...

Ah! Sei. . . " - e, então, respondo. Entre vossa pergunta e minha resposta decorre um espaço de tempo, durante o qual a memória se põe em funcionamento, fornecendo, por fim, a resposta. Assim, quando sou "desafiado", minha "resposta" pode ser imediata, ou pode necessitar de algum tempo. Se me perguntais algo a cujo respeito nada sei, o intervalo é muito mais longo. Digo: "não sei, mas vou verificar"; e, não encontrando a resposta entre as coisas guardadas na memória, apelo para alguém, a fim de obter a informação, ou procuro-a num livro. Também aqui, durante esse intervalo muito mais longo, o "processo de pensamento" está em função. Essas três fases são-nos muito familiares.

Pois bem; há uma quarta fase que talvez desconheçais ou nunca tenhais encadeado às outras, e que é a seguinte: vós me fazeis uma pergunta, e eu realmente não sei a resposta a resposta.

Minha memória não tem nenhum registro dela, e eu não estou contando que outra pessoa me dê a resposta. Não tenho resposta nenhuma, e nenhuma expectativa.

Com efeito, eu não sei.Não há espaço de tempo e, por conseguinte, não há pensamento, porque a mente não está à

procura de nada, nem esperando nada. Este estado é, com efeito, uma negação completa, um estado livre de todas as coisas que a mente tem conhecido.

E é só nesse estado que o novo pode ser compreendido - sendo o novo o supremo, ou qualquer outra palavra que preferirdes. Nesse estado, cessou todo o processo do pensamento; não há observador nem coisa observada, não há experimentador nem coisa experimentada.

Toda experiência cessou, e nesse silencio total há completa mutação.Estudo da 4ª palestra de Krishnamurti em Saanen em 19 de julho de 1964, págs 44 a 53 do

livro "A mente sem Medo" – Ick 1965 – tradução de Hugo Veloso – Nova disposição gráfica colocada por ocasião do estudo.

Dependência psicológica

Estivemos falando sobre a importância de nos libertarmos totalmente da estrutura psicológica da sociedade, isto é, de ficarmos completamente fora da sociedade. Para compreendermos os problemas da estrutura social de que fazemos parte e também para deles nos livrar-mos, necessitamos de considerável energia, vigor e vitalidade.

Quanto melhor percebermos quão complexa é a sociedade, tanto mais óbvia se torna a complexidade do indivíduo que nela vive. O indivíduo é parte integrante da sociedade que ele próprio criou, sua estrutura psicológica é essencialmente a dessa sociedade.

Compreender os problemas de cada um de nós é compreender os problema das relações dentro da sociedade. Pois só temos um único problema: o problema das relações dentro dessa estrutura social, psicológica.

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Para a compreensão e libertação do problema das relações, necessita-se de abundante energia, não só energia física e intelectual, mas também uma energia não "motivada" ou dependente de estímulos psicológicos ou de drogas de qualquer espécie. Para se ter essa energia, é necessário compreender primeiramente a maneira como dissipamos energia.

Entraremos neste assunto passo a passo, e peço-vos compreender que o orador é apenas um espelho: está a expressar o que supõe ser o problema da cada um de nós; assim sendo, o ouvinte não fica apenas a ouvir uma série de palavras e idéias, porém está realmente escutando e observando a si próprio, não segundo o que o orador ou outra pessoa formula, porém, antes, observando o seu verdadeiro estado de confusão, de falta de energia, de aflição, de total desesperança, etc.

Se dependemos de algum estímulo para a obtenção da energia necessária, esse mesmo estimulo embota a mente, torna-a insensível, sem penetração. Uma pessoa pode tomar a droga chamada lsd ou outras e, temporariamente, achar energia suficiente para ver as coisas com muita clareza, mas terá de reverter ao estado anterior e tornar-se cada vez mais dependente dessa droga. Todo estímulo quer por parte da igreja, quer da bebida ou droga, quer do orador, criará inevitavelmente uma dependência que impede o indivíduo de ter a energia vital necessária para ver claramente e por si próprio.

Toda espécie de dependência a algum estímulo reduz a agilidade e a vitalidade da mente. Por infelicidade, todos nós dependemos de alguma coisa: de uma relação, da leitura de um livro intelectual, ou de certas idéias e ideologias por nós formuladas; ou dependemos da solidão, do isolamento, da rejeição, da resistência.

Tudo isso, obviamente, perverte e dissipa a energia.Temos de perceber de que é que estamos dependendo. Cumpre descobrir por que razão

dependemos de alguma coisa, psicologicamente; não aludo à dependência tecnológica ou à dependência em que estamos do entregador do leite ... Mas, psicologicamente, porque é que dependemos, o que supõe a dependência?

Esta é uma pergunta essencial, quando se quer investigar a dissipação, a deterioração e a perversão da energia - dessa energia de que temos vital necessidade para compreendermos nossos inúmeros problemas.

De que é que tanto dependemos: de uma pessoa (Jesus, Buda), um livro, uma igreja, um sacerdote, uma ideologia, uma bebida ou droga? Quais são os esteios que sustentam cada um de nós, sutilmente ou de maneira muito óbvia?

Por que dependemos, e o descobrimento da causa da dependência, liberta a mente dessa dependência?

Entendeis essa pergunta? Estamos viajando juntos; não estais à espera de que eu vos mostre as causas de vossa

dependência, porém, investigando-as juntos, as descobriremos; será um descobrimento feito por vós e que, como tal, vos dará vitalidade.

Descobrimos por nós mesmos que dependemos de alguma coisa, por exemplo, de um auditório, para nos estimular e dele, portanto, necessitamos. Quando se dirige a palavra a um grande grupo de pessoas, pode-se adquirir uma certa espécie de energia e fica-se, portanto, na dependência desses ouvintes, de sua concordância ou discordância, para se obter aquela energia. Quanto maior a discordância, tanto maior se torna a batalha e tanto mais vitalidade se adquire; mas, se o auditório concorda, não se obtém a mesma energia.

Dependemos - porquê? E perguntamos a nós mesmos se, descobrindo a causa de nossa dependência, nos

libertaremos dessa dependência? Acompanhai-me, por favor, com vagar. Uma pessoa descobre que necessita de ouvintes porque é muito estimulante falar a outras

pessoas; porque necessita desse estimulo? Porque, interiormente, essa pessoa é superficial, interiormente nada tem, não há nenhuma fonte de energia, sempre cheia, abundante, vital, em movimento, viva. Interiormente é paupérrima e descobriu que essa é a causa de sua dependência.

Pode o descobrimento da causa nos livrar de continuarmos dependentes, ou esse descobrimento é meramente intelectual, mero descobrimento de uma fórmula? Se, se trata de uma

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investigação intelectual e se foi o intelecto que descobriu a causa da dependência da mente, por meio de racionalização, de análise, pode esse descobrimento libertar a mente da dependência?

Não pode, evidentemente.O mero descobrimento intelectual da causa não liberta a mente da sua dependência daquilo

que lhe dá estímulo, assim como a mera aceitação intelectual de uma idéia ou a aquiescência emocional a uma ideologia não pode libertá-la.

A mente se liberta da dependência quando vê, em seu todo, essa estrutura do estímulo e dependência e vê que o mero descobrimento intelectual da causa da dependência não liberta a mente da dependência.

O ver a inteira estrutura e natureza do estímulo e da dependência e perceber como essa dependência torna a mente estúpida, embotada, inerte, só esse percebimento liberta a mente.

Vemos o quadro inteiro, ou apenas uma parte dele, um detalhe?Essa é uma pergunta muito importante que nos devemos fazer, porque nós vemos as coisas

em fragmentos e pensamos em fragmentos; todo o nosso pensar é fragmentário.Temos, pois, de investigar o que significa ver totalmente.Perguntamos se nossa mente pode ver o todo, apesar de ter sempre funcionado

fragmentariamente, como nacionalista, individualista, como coletividade, como católico, alemão, russo, francês, ou como indivíduo aprisionado numa sociedade tecnológica, funcionando numa especialidade, etc. – tudo dividido em fragmentos, como o bem oposto ao mal, o ódio ao amor, a ansiedade à liberdade.

Nossa mente pensa sempre num estado de dualidade, de comparação, de competição, e essa mente, que funciona em fragmentos, não pode ver o todo. Se uma pessoa é hinduísta e olha o mundo por essa estreita janela, crendo em certos dogmas, ritos, tradições, educada que foi numa certa cultura, etc., evidentemente não pode perceber o todo da humanidade.

Assim, para se ver alguma coisa totalmente, seja uma árvore, seja uma relação ou atividade que temos, a mente deve estar livre de toda a fragmentação, porquanto a origem da fragmentação é justamente aquele centro de onde estamos olhando. O fundo, a cultura, na qual o indivíduo é católico, protestante, comunista, socialista, chefe de família, é o centro de onde se está olhando.

Assim, enquanto estamos a olhar a vida de um certo ponto de vista, ou de uma dada experiência a que estamos apegados, que constitui nosso fundo, nosso "eu", não podemos ver a totalidade.

A questão, pois, não é de como nos libertarmos da fragmentação.Invariavelmente, uma pessoa perguntaria: "como posso eu, que funciono em fragmentos,

deixar de funcionar em fragmentos?". Mas, essa é uma pergunta errônea.Percebe essa pessoa que depende psicologicamente de muitas coisas e descobriu

intelectualmente, verbalmente e por meio de análise, a causa dessa dependência; esse mesmo descobrimento é fragmentário, por ser um processo intelectual, verbal, analítico; e isso significa que tudo que o pensamento descobre é inevitavelmente fragmentário.

Só se pode ver a totalidade de uma coisa quando o pensamento não interfere, porque então não se vê verbalmente nem intelectualmente, porém realmente, como eu vejo o fato que é este microfone - sem agrado nem desagrado; ele existe.

Vemos então a realidade, isto é, que somos dependentes e não desejamos libertar-nos dessa dependência ou de sua causa. Observamos, e fazemo-lo sem termos um centro, sem termos nenhuma estrutura de pensamento. Quando há observação dessa espécie, vê-se o quadro inteiro e não um simples fragmento dele; e quando a mente vê o quadro inteiro, há liberdade.

Acabamos de descobrir duas coisas.A primeira, que há dissipação de energia quando há fragmentação. Pelo observar, pelo

"escutar" a estrutura total da dependência, descobriu-se que toda atividade da mente que trabalha e funciona em fragmentos - como hinduísta, comunista, católico, ou como analista que analisa - é essencialmente a atividade de uma mente dissipada, de uma mente que desperdiça energia.

A segunda coisa foi que esse descobrimento dá-nos energia para enfrentar todos os fragmentos que forem surgindo e, conseqüentemente, observando-os à medida que surgem, eles vão sendo dissolvidos.

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Descobriu-se a própria origem da dissipação de energia e que toda fragmentação, divisão, conflito, pois divisão significa conflito e é desperdício de energia. Todavia, pode-se pensar que não há desperdício de energia no imitar e aceitar a autoridade, no depender do sacerdote, dos rituais, do dogma, do partido, de uma ideologia, porque então a pessoa aceita e segue.

Mas o seguir e o aceitar uma ideologia, seja boa, seja má, sagrada ou não sagrada, representa uma atividade fragmentária e, por conseguinte, causa conflito. O conflito surgirá, inevitavelmente, porque haverá separação entre "o que é" e "o que deveria ser", e esse conflito é uma dissipação de energia.

Pode-se ver a verdade aí contida? Mais uma vez, não se trata de "como me libertar do conflito?" - se fazemos a nós mesmos a

pergunta "como possa libertar-me do conflito?", criamos outro problema e, por conseguinte, aumentamos o conflito. Mas se, ao contrário, vemos - tal como vemos o microfone – clara e diretamente, pode-se então compreender a verdade essencial de uma vida inteiramente sem conflito.

Mas, senhores, digamo-lo de maneira diferente. Estamos sempre a comparar "o que somos" com "o que deveríamos ser". Esse "deveria ser" é uma projeção do que pensamos deveria ser.

Comparamo-nos com nosso vizinho, com a riqueza que ele tem e nós não temos. Comparamos-nos com os que são mais brilhantes, mais intelectuais, mais afetuosos, mais bondosos, mais famosos, mais isto e mais aquilo. O "mais" tem um importantíssimo papel em nossas vidas, e essa medição que em cada um de nós se verifica, a medição de nós mesmos com alguma coisa, é uma das principais causas do conflito. Nela, há competição, comparação com isso e aquilo, e ficamos envolvidos nesse conflito.

Ora, porque existe comparação? Fazei a vós mesmo essa pergunta. Porque vos comparais com outrem? Naturalmente, um dos

ardis da propaganda comercial é fazer-vos crer que não sois "o que deveríeis ser", etc. Isso começa desde os mais verdes anos de nossa vida - ser tão arguto como outrem, nos exames, etc.

Porque nos comparamos, psicologicamente? Verificai-o. Se não comparo, "que sou eu?" eu ficaria embotado, vazio, estúpido - ficaria sendo o que

sou.Se não me comparo com outrem,  fico sendo o que sou. Mas, pela comparação, espero

evolver, desenvolver-me, tornar-me mais inteligente, mais belo, mais isto e mais aquilo.Isso acontecerá?O fato é que "eu sou o que sou" e, pela comparação, estou fragmentando esse fato, a

realidade, e isso é um desperdício de energia; mas, ao contrário, o não comparar, porém ser realmente o que sou, é ter a extraordinária energia de que necessito para olhar. Quando sois capaz de olhar sem comparação, estais fora de toda comparação, o que não indica uma mente estagnada, contentada; pelo contrário!

Estamos vendo, pois, em essência, como a mente desperdiça energia e como essa energia é necessária para compreendermos a totalidade da vida e não apenas os seus fragmentos.

Ela é como um vasto campo todo florido. Se aqui estivestes antes, notastes como, antes de ser ceifado o feno, havia milhares de variegadas flores? Mas, em geral, escolhemos só um dado canto do campo e nesse canto ficamos a olhar uma só flor; não olhamos o campo inteiro. Damos importância a uma só flor e, com dar importância a essa única flor, rejeitamos o resto. É o que fazemos quando atribuímos importância à imagem que temos de nós mesmos; rejeitamos então todas as outras imagens e, por conseguinte, ficamos em conflito com cada uma delas.

Assim, como dissemos, é necessária a energia, energia "sem motivo", sem direção. Para tê-la, devemos ser interiormente pobres, não ser ricos das coisas que a sociedade, que nós formamos. Como, em maioria, somos ricos das coisas da sociedade, não existe pobreza em nós. O que a sociedade formou em nós, o que em nós mesmos formamos, é avidez, inveja, cólera, ódio, ciúme, ansiedade - disso somos riquíssimos.

Para compreender tudo isso, precisamos de uma extraordinária vitalidade, tanto física como psicológica. A pobreza é uma das coisas mais estranhas da vida; as várias religiões de todo o mundo têm pregado a pobreza - pobreza, castidade, etc. A pobreza do monge que veste um hábito muda de

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nome, recolhe-se a uma cela, abre a bíblia e fica a lê-la interminavelmente; esse homem é reputado pobre.

O mesmo se faz, de diferentes maneiras, no oriente, e isso é considerado pobreza. O voto de castidade, o possuir só uma tanga, só uma túnica, só tomar uma refeição por dia - todos nós respeitamos essa espécie de pobreza. Mas, aqueles que tomaram o manto da pobreza continuam ricos das coisas da sociedade, interiormente, psicologicamente, uma vez que estão ainda em busca de posição, de prestígio; pertencem à categoria do "religioso", e esse tipo é uma das divisões da cultura social.

Isso não é pobreza; pobreza é estar-se completamente livre da sociedade, embora se possuam algumas roupas e se tomem algumas refeições diárias. Torna-se a pobreza uma coisa maravilhosa e bela, quando a mente esta livre da estrutura psicológica da sociedade, porque então já não há conflito, não há buscar, indagar, desejar – não há nada.

Só essa pobreza interior pode ver a verdade existente numa vida inteiramente livre de conflito. Essa vida é uma benção que não se encontra em nenhuma igreja ou templo.

Interrogante: não é um paradoxo dizerdes que o pensamento sempre funciona em fragmentos e que, para se perceber que o pensamento funciona em fragmentos, necessita-se de energia? Isso não é um círculo vicioso?

Krishnamurti: necessito de energia para olhar, mas esse olhar se torna fragmentário e, por conseguinte, dissipa energia; assim sendo, que se deve fazer? Vede, senhor, eu necessito de energia física, necessito de energia intelectual, necessito de energia emocional, apaixonada, para compreender qualquer coisa - uma energia inquebrantável.

Mas sei que estou dissipando essa energia na fragmentação; a todas as horas o estou fazendo. Digo então: "que devo fazer? Tenho necessidade dessa energia para resolver imediatamente os problemas da vida; no entanto, estou a dissipá-la continuamente, não tomando alimentos adequados, pensando nisso e naquilo, com meu hinduísmo, meus preconceitos, minhas ambições, inveja, avidez, etc. Ora, posso fazer alguma coisa em tal estado?".

Escutai primeiramente essa pergunta, muito atentamente, não a rejeiteis nem aceiteis.Dissipo energia e tenho necessidade de energia; quer dizer, acho-me num estado de

contradição e essa mesma contradição é outro desperdício de energia. Percebo, pois, que tudo o que faço em tal estado é desperdício de energia. A mente que está confusa, por mais que se esforce, em qualquer nível, continuará confusa. Não se pense que, vivendo-se de acordo com "um momento de clareza", a confusão se dissipará. Se o tento gera-se novo conflito e, por conseguinte, fomenta-se a confusão.

Percebo que toda ação nascida da confusão produz ou leva a mais confusão; compreendi que toda ação da mente confusa só conduz a maior confusão. Vejo isso muito claramente, vejo-o como uma coisa extremamente perigosa - como quando se percebe um grande perigo; vejo-o com a mesma clareza.

Que sucede então?Não atuo mais nessas condições de confusão.Essa inação total é ação completa.Consideremos a questão de maneira diferente. Percebo que a guerra, em qualquer forma, matar o próximo de um avião a grande altura ou

com um fuzil a pequena distância; ou uma batalha entre minha mulher e mim, uma batalha comercial, um conflito interior, em mim - é sempre guerra.

Posso não matar realmente um vietnamita ou americano, mas, enquanto a minha vida for um campo de batalha, estarei contribuindo para a guerra.

Vejo esse fato.Vejo-o -primeiro, como a maioria de nós foi exercitada para vê-lo: intelectualmente, isto é,

fragmentariamente. E vejo que, se empreendo qualquer ação nesse estado fragmentário, tal ação só contribuirá para fomentar a guerra, o conflito. Tenho, pois, de descobrir um estado em que não haja conflito de espécie alguma - um estado mental inacessível ao conflito. Devo, antes de tudo mais, descobrir se tal estado existe, pois pode ser que se trate de um estado puramente teórico, ideológico, imaginário e, portanto, sem valor.

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Mas, eu tenho de descobri-lo, e para o descobrir não devo aceitar a idéia de que tal estado existe.

Ora, existe esse estado?Só posso verificá-lo se compreendo a natureza do conflito, totalmente - o conflito que é a

dualidade, "o bom" e o "mau", o que não significa que não haja "bom" e "mau", e o conflito entre o amor e o ciúme. Devo olhá-lo sem julgar, sem comparar-olhar simplesmente.

Começo a aprender a olhar, e não a atuar.Aprendo a olhar esse complexo campo da vida, sem aceitar nem rejeitar, comparar, condenar,

justificar; a olhar assim como olho uma árvore. Só posso olhar realmente uma árvore, quando não há observador, isto é, quando não se torna existente o processo fragmentário do pensamento. Olho, pois, esse vasto campo de batalha da vida, o qual suponho constituir a maneira natural de viver, esse campo onde tenho de lutar contra meu próximo, contra minha mulher; onde tenho de lutar, quer dizer, comparar, julgar, condenar, ameaçar, odiar.

Olho para essa situação que aceitei, para essa vida que sou eu - e posso então olhar para, mim mesmo, assim como sou, sem nenhuma comparação, condenação, julgamento?

Se posso, já estou fora da sociedade, porque a sociedade pensa sempre segundo as noções de grande e pequeno, poderoso e fraco, belo e feio, etc. De um golpe, compreendi todo o processo da fragmentação e, por conseguinte, não pertenço a nenhuma igreja, nenhum grupo, nenhuma religião, nenhuma nacionalidade, nenhum partido.

Interrogante: as reações e os sentimentos são influenciados pelo que pensamos, e quando se apresenta um sentimento moderado, este não atinge as relações e se, enquanto o olhamos, nenhuma ação empreendemos a seu respeito, o sentimento parece dissipar-se; mas, quando se apresenta uma emoção forte, antagônica, esta atinge realmente as relações, e se também a olhamos sem nada fazer, ela não parece dissipar-se; continua existente.

Krishnamurti: reagir é perfeitamente natural, não? Se me espetais com um alfinete, eu tenho de "reagir", a não ser que esteja paralisado ou morto. Reagir ao prazer e à dor é natural; são as duas unicas coisas a que tenho de reagir. O prazer, quero que continue; a dor, desejo afastá-la. A reação é inevitável, natural, mas porque dividi-la sempre em prazer e dor? Eu "reajo" e, depois, que sucede? Entra em cena o pensamento.

Interrogante: mas antes disso, se reagis violentamente ...Krishnamurti: um momento, senhor, eu reajo violentamente; vós me espetais um alfinete e eu

atuo violentamente - bato-vos ou fujo de vós, que é também violência: ambos os atos são violentos. Só depois, um segundo após, me torno hostil, quando o pensamento entra em cena e ordena-me que faça alguma coisa. Observai isso, senhor, bem de perto, e vereis por vós mesmo. Vós me picais com um alfinete, eu reajo; porque o antagonismo?

Interrogante: porque me estais perturbando.Krishnamurti: a vida está perturbando cada um de nós a todos os momentos.Interrogante: e por isso resistimos.Krishnamurti: descobri agora, senhor, porque resistis. Investigai isso.Interrogante: é a própria natureza...Krishnamurti: ... Que nos manda proteger-nos fisicamente. Eu tenho de proteger-me

fisicamente. Ora, porque levamos essa necessidade de proteção aos estados psicológicos?Interrogante: porque não gostamos de ser jogados para um lado e para o outro,

psicologicamente. Eu quero ser livre; não gosto de restrições.Krishnamurti: e estais sendo restringido?Interrogante: estou, naturalmente, e resisto a isso.Krishnamurti: não, senhor, não me estais seguindo, isso não está bem claro. Fisicamente, há

necessidade de proteção porque, de contrário, eu não poderia viver. Mas, porque é que a mente transfere esse desejo de proteção para o plano psicológico? Porquê?

Interrogante: por causa da reação autoprotetória. Reparai que isso não devia ser assim.Krishnamurti: não, não - não digais "devia" ou "não devia". O fato é que, psicologicamente,

desejamos proteger-nos, defender-nos, resistir; porque?Interrogante: quando ele se apresenta é um fato, e quando olhamos para esse fato...

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Krishnamurti: antes de olhardes o fato, senhor, descobri porque desejais protege-vos psicologicamente.

Interrogante: isso é inerente à nossa natureza.Krishnamurti: não há nada "inerente". Examinai bem isso, senhor, e vereis. Porque desejo

proteger-me psicologicamente?Interrogante: porque o meu eu tem certas características, e esta é uma delas. Por conseguinte,

quereis dizer que tenho de libertar-me do eu. Mas isso não é possível.Krishnamurti: não estou falando a respeito de libertar-nos. De coisa alguma. Porque desejo

proteger-me psicologicamente? Só desejo proteger-me psicologicamente quando não me conheço. Quanto melhor me conheço, tanto menos desejo proteger-me, porque eu sou nada; um feixe de palavras e de memórias. Estou protegendo uma coisa que não existe, que é uma mera idéia, um conceito; estou a proteger isso, a resistir, a defender, a disputar com todo o mundo, para conservá-lo. Entretanto, quanto mais conheço, melhor, no momento em que conheço a inteira estrutura dessa coisa, não há mais nada para proteger.

Não se trata de concordardes comigo, senhor; fazei isso. Interrogante: por conseguinte, essas reações fortes continuarão até que vejamos a nós

mesmos.Krishnamurti: e se gostardes de continuar com elas, continuareis.Interrogante: oh, sim; mas, se delas não gostamos, temos de resistir-lhes. Isso não está certo.Krishnamurti: vede, a resistência, a defesa, o ataque, tudo isso são maneiras de manter uma

certa coisa que consideramos importante, um certo estado que desejamos proteger.Interrogante: essa é apenas uma parte da questão. Krishnamurti: uma grande parte. Interrogante: existe aí uma questão de relação.Krishnamurti: está bem; como quiserdes: uma questão de relação.Interrogante: ora, eu não desejo comportar-me de maneira tal que minhas relações se tornem

rudes, ainda que eu tenha o sentimento de rudeza. Portanto, tenho de intervir, de interferir.Krishnamurti: em primeiro lugar, temos de compreender o que é relação, antes de protegê-la.

Que é nossa relação? Se sou casado, se tenho um marido, uma esposa, filhos, qual a minha relação com essas outras pessoas? Não teoricamente, porém realmente, qual a minha verdadeira relação com minha mulher ou meu marido? Tenho de fato alguma relação?

Interrogante: conviveis um com o outro, decerto. Krishnamurti: naturalmente, vivo com minha mulher.Interrogante: e por vezes vossas relações são amigáveis, e...Krishnamurti: atenção, senhor, atenção! Examinai bem isso! Eu vivo com minha esposa. Os

apetites sexuais que tinha em jovem, foram-se - mais ou menos, pois ainda os tenho ocasionalmente. -- mas, que sucede? Durante o período de convivência com minha esposa, criei uma forma de resistência, de domínio ou de aquiescência -- não quero ser importunado por ela, não quero que grite comigo, e isso continua a acontecer. Formei, em mim mesmo, uma imagem a respeito dela, e ela formou uma imagem a meu respeito.

Ora, essas duas imagens é que estão em relação - e não eu com ela.Portanto, não há relação direta. Vejo isso ocorrer durante toda a minha vida - a criação da

imagem e a defesa dessa imagem - e percebo que, enquanto tenho essa imagem de minha esposa, tem de haver contradição; embora eu esteja em relação com ela, como minha esposa, está continuamente a travar-se uma batalha, e, se deseja viver sem batalhas, devo primeiramente libertar-me de todas as imagens.

Ora, é possível não criar, nem por um instante, uma imagem dela?O que quer que ela faça se grita comigo, se briga comigo, se me importuna - é possível nunca

formar imagem alguma? Isso significa que devo ter uma mente tão viva, tão alertada, que nada que ela a esposa, diga possa enraizar-se. Se não sois capaz disso, então, naturalmente, tereis a relação das imagens, que permanecerão em perene batalha entre si.

Interrogante: não estamos atacando o mesmo ponto; pois, no escritório ou com pessoas a quem estamos ligados, pode suceder alguma coisa a que reagimos com um sentimento violento. Ora bem, o fato é que, se não estou vigilante, esse sentimento...

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Krishnamurti: descobri então porque não estais vigilante.Interrogante: mas, no ínterim...Krishnamurti: não há "ínterim".Interrogante: eu não desejo brigar com o escritório.Krishnamurti: então, não brigueis com o escritório.Interrogante: é o que quero dizer. Preciso evitá-lo.Krishnamurti: pois o evitai. Mas, muito mais importante é descobrirdes porque não estais

desperto, vigilante. Se puderdes responder a esta pergunta, então todas as outras serão respondidas. Mas, desejais que sejam respondidas as perguntas periféricas, sem cuidardes do ponto fundamental, que é: estar vigilante, observar a vós mesmo.

Segundo interrogante: como sabemos que existe um mundo exterior, como sabemos que existe a essência daquilo que constitui o mundo exterior? Talvez o mundo exterior seja maya.

Krishnamurti: ora, creio que a palavra maya significa, em sânscrito, "medir". Enquanto a mente tiver a capacidade de medir criará ilusão, naturalmente. Por isso se disse que, uma vez que a mente não possui outra capacidade senão a de medir, tudo o que ela mede é ilusório.

Essa é uma filosofia existente na índia - que o mundo é todo maya, ilusão. E assim, dizem que temos de suportá-lo, esquecê-lo; que as doenças, as ofensas, o mundo, as disputas, tudo é só ilusão. Mas, com efeito, se dizemos a um homem faminto que o mundo é maya, ilusão, isso não tem para ele nenhuma significação.

Uma pessoa que sofre de câncer, que sente dor - o falar-lhe em ilusão nada significa. O que importa não é se o mundo existe ou não existe, se é ilusório ou não, porém o fato é que aí está o mundo, ai estais vós e aqui estou eu, a batalharmos um com o outro; aí estão os vietnamitas a serem mortos por isto ou por aquilo.

Isso são fatos, e para compreender fatos devemos estar em contato com eles, quer dizer, devemos olhá-los sem nenhuma interferência do pensamento, na forma.de preconceito, dogma, crença, nacionalidade.

Estudo da 2ª palestra realizada por Krishnamurti em 11 de julho de 1967 em Saanen, Suíça, págs 18/32 do livro "Como Viver Neste Mundo" – ICK 1976 – tradução Hugo Veloso – a nova disposição gráfica foram colocados por ocasião do estudo.

Krishnamurti no Brasil

Amigos,

Jornais e revistas deram curso a tantos conceitos errôneos e mal-entendidos relativamente a minha pessoa, que julgo seria melhor dar uma explicação que venha esclarecer o caso. As pessoas, geralmente, desejam ser salvas por outrem ou, então, por meio de algum milagre ou mediante idéias filosóficas; e receio que muitos aqui venham enfraquecidos desse desejo e na esperança de que, por simplesmente me ouvirem, irão encontrar solução imediata para os seus múltiplos problemas. Nem a solução dos seus problemas, nem a sua pretensa salvação lhes pode ser outorgada por intermédio de outra pessoa ou mesmo por qualquer sistema de filosofia. O entendimento da verdade ou da vida, obtém-se pelo nosso próprio discernimento, pela nossa própria perseverança e clareza de pensamento. Pelo fato de nós, em grande maioria, termos demasiada preguiça de pensar por nós mesmos, vamos, cegamente, aceitando e seguindo pessoas ou idéias, que se tornam para nós meios de evasão, em tempos de conflito e sofrimento. Antes de tudo, desejo declarar que não pertenço a sociedade alguma. Não sou teosofista nem missionário teosófico e nem tampouco aqui vim para vos converter a qualquer forma especificada de crença. Acredito não ser possível seguir a alguém ou aderir a determinada crença e, ao mesmo tempo, possuir a capacidade de pensar com clareza. Eis porque a maioria dos partidos, das sociedades, das seitas e das corporações religiosas se tornam meios de exploração. Tampouco sou portador de uma filosofia oriental, concitando-vos a que a

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aceiteis. Quando falo na Índia, dizem-me ali que anuncio uma filosofia do ocidente; e quando venho para países ocidentais, dizem que trago um misticismo oriental que não é prático e que, portanto, é inútil para o mundo das ações. Se, porém, realmente refletirdes, haveis de ver que para o pensamento não há nacionalidades, nem tampouco se acha ele restrito a qualquer país, clima ou povo. Portanto peço-vos que não considereis o que vos vou dizer como o resultado de um determinado preconceito racial, de uma especificada idiossincrasia ou peculiaridade. O que vos tenho a dizer é atual, efetivo no sentido de poder ser aplicado á vida atual do homem, e não, em absoluto, coisa teórica, baseada em certas teorias ou crenças, porém sim baseada, se me é permitido personalizar, em minha própria experiência. É praticável e aplicável ao homem.

Agora, o pleno significado do que vos vou dizer, somente pode ser compreendido por meio da experiência e, portanto, da ação. À maioria de nós outros agrada a discussão sobre questões filosóficas que não se relacionam com as nossas ações diárias; ao passo que, aquilo de que vos falo não é uma filosofia nem um sistema de pensamento, e seu profundo significado somente pode ser compreendido por meio da experiência e, conseqüentemente, da ação. O que vos digo não é uma teoria ou crença intelectual para ser meramente discutida, para servir de motivo a controvérsias; é coisa que exige reflexão demorada; e, para descobrir a sua utilidade prática, a verdade que contém, o de que se necessita é ação e não debate intelectual. Não é um sistema para ser guardado de memória nem um conjunto de conclusões a ser aprendido e automaticamente executado. Deve ser criticamente compreendido. Critica, porém, é coisa diferente de oposição. Se realmente fordes críticos, não vos oporeis pura e simplesmente, mas haveis de vos esforçar para averiguar se o que eu digo tem mérito intrínseco em si mesmo. Isso exige clareza de pensar de vossa parte, de modo a vos ser possível passar além da ilusão das palavras, não permitindo que os vossos preconceitos, sejam eles econômicos ou religiosos, vos impeçam de pensar fundamentalmente. Isto é, tendes que pensar a partir, do começo, pensar simples e diretamente. Todos nós havemos sido educados com muitos preconceitos, muitas idéias preconcebidas, fomos criados por entre tradições que corrompem, limitados pelo ambiente, e, por isso, está o nosso pensamento, continuamente, sendo torcido e pervertido, impedindo, destarte, a simplicidade da ação. Tomai, por exemplo, a questão da guerra. Sabeis que muita gente discute sobre se a guerra é um bem ou um mal. Certamente, não pode haver duas maneiras de encarar este assunto. A guerra é, fundamentalmente, um mal, seja defensiva ou ofensiva. Ora, para pensarmos, desde o principio, a respeito deste assunto, tem a mente que estar inteiramente liberta da moléstia do nacionalismo. Somos impedidos de pensar fundamental, direta e simplesmente, em virtude dos preconceitos que têm sido explorados, durante idades, sob a forma de patriotismo, com todo o seu séquito de coisas absurdas. Por muitos séculos, pois, havemos, criado hábitos, tradições, preconceitos que impedem o individuo de pensar de maneira integral, fundamental, acerca dos vitais assuntos humanos. Ora, para compreender os múltiplos problemas da vida, com todas as suas variedades de sofrimento, temos que, por nós próprios, descobrir seus motivos e causas fundamentais, com seus implícitos resultados e efeitos. Porque, se não estivermos plenamente conscientes das nossas ações e das suas causas e respectivos efeitos, nós exploraremos e seremos explorados, tornar-nos-emos escravos de sistemas, vindo as nossas ações a tornar-se apenas mecânicas e automáticas. Enquanto não pudermos, conscientemente, libertar as nossas ações de seu efeito limitador, por meio da compreensão do significado de suas causas, a não ser que, conscientemente, rompamos com as velhas formas de pensamento que em nosso derredor havemos construído, não nos será possível ultrapassar as inúmeras ilusões que nos rodeiam e havemos criado, nas quais estamos embaraçados. Cada qual tem que perguntar, a si próprio, o que está buscando, a fim de averiguar se está meramente deixando-se arrastar pelas circunstâncias e condições ambientes, sendo, portanto, irresponsável e irrefletido. Aqueles dentre vós que realmente se acharem descontentes, aqueles que forem críticos, devem já ter perguntado a si próprios o que é que cada individuo anda procurando. Procurais conforto, segurança, ou procurais a compreensão da vida? Muitas pessoas dirão que estão buscando a verdade. Se, porém, analisarem a natureza; de suas aspirações, de sua busca, verificarão que, realmente, estão á procura de conforto, de segurança, de uma evasão do conflito, do sofrimento. Ora, se andais á procura de conforto, de segurança, essas coisas terão que se basear na aquisição, portanto, na exploração e na crueldade. E, se disserdes que estais buscando a verdade, tornar-vos-eis prisioneiros da ilusão; pois que a verdade não é coisa em cujo encalço se corra, não pode ser buscada, tem que ser ela um acontecimento. Isto é, o seu êxtase é

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somente perceptível quando a mente está, por completo, despojada de todas as ilusões que haja criado em virtude da busca de sua própria segurança e conforto. Só então terá lugar o alvorecer daquilo que é a verdade. Expressando isto mesmo em outros termos: temos que, a nós próprios, interrogar no sentido de saber em que é que toda a nossa vida, todo o nosso pensamento e toda a nossa ação se baseiam. Se pudermos responder a esta pergunta de modo completo e verdadeiro, então, por nós mesmos, averiguaremos quem é o criador das ilusões, o criador dessas supostas realidades, das quais nos havemos tornado prisioneiros. Se, realmente, refletirdes, sobre isto, verificareis que toda a vossa vida está baseada na consecução da segurança, da salvação e do conforto individual. Desta busca de segurança, naturalmente, nasce o medo. Ao buscar conforto, ao tentar evadir-se da luta, do conflito e da tristeza, a mente tem de criar varias vias de fuga, e essas vias tornam-se as nossas ilusões. Portanto, o medo, que é a resultante da busca individual da segurança, é também o criador das ilusões. Este medo arrasta-vos de uma para outra seita religiosa, de uma filosofia para a outra, de um para outro instrutor, até encontrardes a segurança e o conforto que desejais. A isto chamais busca da verdade e da felicidade. Ora, conforto e segurança são coisas que não existem; existe somente a clareza de pensar, que produz a compreensão da causa fundamental do sofrimento, a qual, unicamente, pode libertar o homem. Nessa libertação reside a beatitude - do presente. E digo-vos que existe uma eterna realidade, a qual só pode ser descoberta quando a mente está liberta de todas as ilusões. Portanto, acautelai-vos contra a pessoa que vos dá conforto, pois nela tem que haver exploração; essa pessoa cria uma armadilha na qual ficais colhidos como o peixe na rede. Na busca do conforto e da segurança, a vida chegou a ser dividida em vida religiosa ou espiritual e vida econômica ou material. A segurança material encontra-se por meio da posse de bens que proporcionam o poder; e é em virtude desse poder que esperais alcançar a felicidade. Para, atingir esta segurança material, este poder, tem que haver exploração, a exploração do vosso próximo mediante um sistema deliberadamente estabelecido, que se tem tornado hediondo pelas suas múltiplas crueldades. Esta busca de segurança individual em que se acha incluída também a nossa família, criou as distinções de classe, os ódios de raça, o nacionalismo; coisas essas que, eventualmente, terminam em guerras. E há um fato curioso que podeis verificar se sobre ele refletirdes: a religião, a quem competia a condenação da guerra, ajuda a promovê-la. Os sacerdotes, que se teriam como sendo os educadores do povo, animam todas as espécies de absurdos criados pelo nacionalismo, e que cegam o povo em momentos de ódio nacional. Naturalmente, pois, criais um sistema, baseado no conforto e na segurança individual a que chamais religião. Vós é que haveis criado as religiões que são formas cristalizadas do pensamento e que têm por fim assegurar a imortalidade pessoal. Em uma de minhas próximas palestras, hei de abordar de novo esta questão da imortalidade. Assim, pois, em virtude da busca de segurança individual, movidos pelo desejo da continuidade do ser individual, haveis criado uma religião que vos explora por meio do clericalismo, por meio das cerimônias, por meio dos pretensos ideais. O sistema a que chamais religião, e que foi, originariamente, criado em virtude do vosso apelo por segurança, tornou-se tão poderoso, tão realista, que mui poucos são os que se libertam do seu peso, do fardo esmagador da tradição e, da autoridade. O ponto inicial de partida para uma verdadeira critica, reside na perquirição dos valores que a religião, em nosso redor, estabeleceu. Ora, todos nós estamos encerrados neste âmbito; e enquanto estivermos escravos de um ambiente e de valores não pesquisados, não postos em dúvida, sejam passados ou presentes, têm eles que perverter a integridade das ações. Esta perversão é a causa do conflito entre o indivíduo que busca a segurança, e a coletividade; entre o individuo e o continuo movimento da experiência. E do mesmo modo por que, individualmente, havemos criado este sistema de exploração e de esmagadora limitação, temos também que, individual e conscientemente, derrubá-lo por meio da compreensão relativa ao alicerce dessa construção, e não pelo mero criar de novos conjuntos de valores que nada mais serão que novas séries de evasões. E assim, verdadeiramente, começaremos a penetrar o significado real do viver. Sustento que existe uma realidade, dá-lhe embora o nome que quiserdes, a qual somente poderá ser compreendida e vivida quando a mente e o coração houverem penetrado a ilusão dos falsos valores e deles se tiverem libertado. Somente então existirá o eterno.

KrishnamurtiPrimeira palestra no Rio de Janeiro (excerto) - 13 de Abril de 1935.

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Do Livro "Palestras no Brasil".

O FINDAR DO SOFRIMENTO – O QUE É RELIGIÃO

Nesta noite, vamos percorrer um longo caminho. Ontem estivemos tratando do sofrimento e do findar do sofrimento. Quando o sofrimento chega ao fim, há paixão. Pouquíssimos de nós realmente compreendem a questão do sofrimento ou nela penetram profundamente. Será possível liquidar, de vez, o sofrimento? Todos os seres humanos têm feito essa pergunta, embora, talvez, não muito conscientemente, mas, no fundo, todos querem saber se a dor e o sofrimento humano podem acabar. Enquanto o sofrimento não termina, não pode haver amor.

O sofrimento é um violento golpe no sistema nervoso, como um soco no corpo e na psique. E geralmente tentamos escapar dele através de drogas, bebida, movimentos religiosos - ou, então, acabamos cínicos ou passamos a aceitar as coisas como inevitáveis. Será que podemos investigar, a fundo e com seriedade, se é possível ficar com o problema sem fugir dele? Suponhamos que perca meu filho e, sofrendo com isso um grande choque, experimentando uma dor imensa, descubra que sou um ser humano extremamente solitário. Não consigo encarar nem suportar a situação e, por isso, fujo dela. Há inúmeras formas de fuga - religiosas, mundanas ou filosóficas. Mas será que posso permanecer com o que aconteceu, com essa coisa chamada sofrimento, sem procurar, de modo algum, fugir da dor, da angústia, da solidão, da aflição, do abalo? Será que podemos observar um problema, observá-lo apenas, sem procurar resolvê-lo, olhar para ele como se fosse uma jóia preciosa, de fino acabamento? Para uma coisa bonita olhamos sem parar, sem qualquer desejo de fugir dela; sua beleza nos atrai tanto e tanto prazer nos proporciona que ficamos olhando para ela o tempo todo. Se, da mesma forma, pudermos observar nosso sofrimento, sem um movimento sequer de julgamento ou fuga, ficar com a tristeza... nesse caso, a própria ação de ficar com o fato nos liberta completamente daquilo que produziu a dor. Voltaremos a isso depois. Desejamos também considerar o que é a beleza - não a beleza de uma pessoa nem de quadros e estátuas de museus, nem os mais remotos esforços do homem para transmitir seus sentimentos através da pedra, da pintura ou de um poema, mas indagar a nós mesmos o que é a beleza. Talvez a beleza seja a verdade. Talvez seja o amor. Sem compreendermos a natureza e a profundidade dessa coisa extraordinária que é a beleza, jamais chegaremos ao que é sagrado. Examinemos, portanto, a questão da beleza. O que acontece quando vemos algo grandioso como a montanha coberta de neve contra o céu azul? Por um segundo a majestade da montanha, com sua imensidão, com seu belo recorte contra o céu azul apaga toda nossa preocupação com nós mesmos. Nesse segundo, não há "ninguém" a olhar. Por um segundo, a grandiosidade da montanha afasta todo sentimento egocêntrico do nosso viver. Certamente que já devem ter notado isso. Já observaram uma criança com um brinquedo? Durante o dia inteiro ela fez travessuras (o que é normal), e então damos um brinquedo a ela. Agora, por um bom tempo, até que escangalhe o brinquedo, ela permanece tranqüila; o brinquedo dissipou sua agitação, absorveu-a. Assim também quando vemos algo extremamente belo - a beleza nos absorve? Significa isso que só há beleza quando cessa a luta do eu, quando não existe mais egocentrismo. Compreendem isso? Se não ficamos absorvidos nem impressionados por algo muito belo, como uma montanha ou um vale cheio de sombras; se não somos arrebatados pela montanha, podemos compreender a beleza sem o ego? Quando o eu está presente, não há beleza; quando existe egocentrismo, não há amor; e o amor e a beleza estão sempre juntos - não são duas coisas separadas.

Temos de tratar também da morte. Isso é uma coisa que todos precisamos encarar. Sejamos ricos ou pobres, ignorantes ou eruditos, jovens ou velhos, a morte é inevitável para todos nós; todos vamos morrer. E nunca fomos capazes de compreender a natureza da morte; estamos sempre com medo de morrer, não estamos? Para compreender a morte temos de indagar o que é o viver, o que é a nossa vida, pois estamos desperdiçando a nossa vida, estamos desperdiçando nossas energias de muitas maneiras, nas muitas profissões especializadas. Pode ser que sejam ricos, muito competentes, que sejam especialistas, um grande cientista ou um homem de negócios; pode ser que tenham poder, posição, mas, no fim da vida, será que tudo isso não foi um desperdício? Toda essa lida, sofrimento,

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essa enorme ansiedade e insegurança, as tolas ilusões que o homem acumulou (deuses, santos, etc.), não será tudo isso um desperdício? Por favor, essa é uma pergunta séria, que cada um tem de fazer a si próprio. Ninguém pode responder por nós. Costumamos separar o viver do morrer. A morte fica lá no fim da vida; nós a colocamos o mais longe possível - depois de muito tempo. Mas, ainda que seja uma longa jornada, temos de morrer. E o que é isso a que chamamos viver - ganhar dinheiro, ir ao escritório das nove às cinco? E com isso sofremos interminável conflito, temor, ansiedade, solidão, desesperança, depressão. Mas será que toda essa existência a que chamamos vida, viver (essa imensa vicissitude do homem com seu conflito sem fim, decepção, degradação) - será isso viver? Mas é a isso que chamamos viver; é isso que conhecemos, é como isso que estamos familiarizados, essa é a nossa existência diária. E a morte significa o fim de tudo, o findar de tudo que pensamos, acumulamos e gozamos. E vivemos apegados a tais coisas. Estamos apegados à família, ao dinheiro, aos conhecimentos, às crenças com as quais temos convivido, aos ideais. Estamos apegados a tudo isso. E a morte vem e diz: "Esse é o fim de tudo, meu velho".

Tememos morrer, isto é, deixar tudo que conhecemos, tudo que experimentamos, reunimos - nossa encantadora mobília e a bela coleção de quadros de pintura. A morte chega e diz: "Nada mais lhe pertence." É por isso que nos apegamos ao conhecido e tememos o desconhecido. Podemos inventar a reencarnação, que devemos renascer numa próxima vida. Mas nunca indagamos o que nasce na vida seguinte. O que renasce é um feixe de memórias.

A pergunta, portanto, é esta: por que o cérebro separou o viver (que é conflito e tudo o mais) do morrer? Por que essa divisão? Existe essa divisão quando há apego? Podemos viver no mundo moderno com a morte? Não estamos falando de suicídio, mas em acabar com o apego (e isso é a morte) enquanto vivemos. Estou apegado à casa em que vivo - comprei a casa por um bom dinheiro e apego-me ao mobiliário, aos quadros, à família, a todas essas memórias. Então chega a morte e acaba com tudo. Mas será que podemos conviver diariamente com a morte, dando um fim a tudo no fim de cada dia, eliminando todo nosso apego? Isso é o que significa morrer. Como costumamos separar o viver do morrer, estamos sempre com medo. Quando levamos juntos, contudo, a vida e a morte, o viver e o morrer, então descobrimos que há um estado cerebral em que cessa todo conhecimento como memória.

Precisamos do conhecimento para escrever uma carta, vir até aqui, falar inglês, fazer a contabilidade, ir para casa etc. Mas será que podemos usar o conhecimento sem sobrecarregar a mente? Poderá o cérebro usar o conhecimento quando necessário, mas estar livre de todo conhecimento? Nosso cérebro está sempre registrando; agora mesmo estão registrando o que se está dizendo. O registro torna-se memória e a memória, nesse registro, é necessária em certo domínio, no domínio da atividade física. Por conseguinte, pode o cérebro usar o conhecimento quando necessário mas estar livre do velho conhecimento? Pode o cérebro estar livre para funcionar perfeitamente noutra dimensão? Todos os dias, portanto, quando forem dormir, eliminem tudo que acumularam; morram no fim do dia. E então ouvimos uma declaração como esta: viver é morrer; viver e morrer não são duas coisas diferentes. Se não ouvirem essa declaração com os ouvidos apenas, se estiverem escutando com muita atenção, perceberão a verdade do fato, perceberão a realidade. E, imediatamente, verão como isso é claro. Assim, será que, no fim do dia, podemos morrer para tudo que não for necessário? Morrer para a lembrança de nossas mágoas, nossas crenças, temores, ansiedades, infortúnios - será que podemos pôr fim a tudo isso diariamente? E aí descobrimos que estamos vivendo com a morte o tempo todo, pois a morte é o fim.

Precisamos, de fato, investigar essa questão do findar. Nunca terminamos, definitivamente, coisa alguma; só quando conseguimos alguma vantagem com isso, alguma recompensa. Mas, será que podemos viver assim no mundo de hoje - liquidando tudo voluntariamente, sem pensar no futuro, sem esperar por algo "melhor", ter, portanto, uma maneira holística de viver, vivendo e morrendo a cada momento? Estamos tratando juntos de coisas que o homem se vem ocupando há um milhão de anos - o viver e o morrer. Temos, portanto, de examinarmos juntos o problema e não reagir a ele, dizendo: "É, mas eu creio na reencarnação" - pois, nesse caso, termina o diálogo entre nós. Estamos apegados a um mundo de coisas - ao nosso guru, ao conhecimento acumulado, ao dinheiro, às crenças com que temos vivido, aos ideais, à memória de nosso filho ou filha e por aí afora. Nós somos a memória. Nosso cérebro é todo memória - não somente a memória dos conhecimentos recentes mas também a dos remotos, a memória profunda que conserva o que foi o

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animal, o macaco. Fazemos parte dessa memória e estamos apegados a toda essa consciência. Certo? Isso é um fato. Aí chega a morte e diz: "Acabou o seu apego." E nós tememos tal coisa, tememos ficar completamente libertos disso tudo. A morte, no entanto, retira de nós tudo que adquirimos. Podemos inventar e dizer: "Sim, mas eu continuo na próxima vida." Mas o que é que continua? Compreendem a pergunta? Que significa o desejo de continuar? Haverá alguma espécie de continuidade a não ser a da sua conta bancária, ir diariamente ao escritório, a rotina do culto e a continuidade das crenças - tudo que o pensamento criou? O pensamento é limitado e, assim, cria conflito - já vimos isso. E o eu, o ego, a persona é um complicado feixe de memórias, antigas e recentes. Vivemos de memórias. Vivemos do conhecimento, adquirido ou herdado; somos o produto do conhecimento. O eu é o conhecimento resultante das experiências passadas, dos pensamentos etc. Isso é que é o eu. O eu pode inventar que há algo divino em nós; mas isso ainda é atividade do pensamento. E o pensamento é sempre limitado. Podem ver isso por si mesmos; não precisam ler livros nem estudar as filosofias; podem perceber claramente por si próprios que são um feixe de memórias. E a morte põe fim a toda memória. Eis porque ficamos atemorizados. A questão, portanto, é esta: podemos conviver com a morte no mundo moderno?

Agora devemos também examinar juntos o que é o amor. Será que o amor é sensação? Será desejo? Será prazer? Será coisa criada pelo pensamento? Será que amam a esposa ou o marido ou os filhos? Será que o amor é ciúme? Não digam que não. Será que o amor é medo, ansiedade, sofrimento e tudo mais? O que é o amor? E sem esse quê, esse perfume, essa chama (ainda que sejam ricos, tenham poder, posição, importância) sem amor, serão apenas uma concha vazia. Precisamos, por conseguinte, aprofundar essa questão do amor. Se amassem seus filhos, haveria guerras? Se amassem seus filhos, permitiriam que eles matassem outros? Pode haver amor quando existe ambição? Por favor, enfrentem tudo isso. Mas não conseguimos porque estamos presos a uma rotina, à sensação repetida de sexo etc.

O amor nada tem que ver com prazer, com sensação. O amor não provém do pensamento; não faz parte, por isso, da estrutura do cérebro. É algo que está completamente fora do cérebro, pois o cérebro, por sua própria natureza, é instrumento da sensação, das reações nervosas etc. Quando há sensação, não existe amor. O amor não é coisa da memória.

E temos que discutir sobre a vida religiosa e a religião. Essa é uma questão muito complexa. Os seres humanos vêm buscando alguma coisa que esteja além do mundo físico, além da existência diária do sofrimento, dor ou prazer. Têm buscado algo transcendente, primeiro nas nuvens, sendo o trovão a voz de deus. Depois, cultuaram árvores, pedras - e os aldeões que vivem longe desta feia e detestável cidade ainda veneram pedras, árvores, pequenas imagens. O homem deseja saber se existe alguma coisa sagrada e, então, chega o sacerdote e diz: "Vou-lhe mostrar" - é exatamente o que faz o guru. Os sacerdotes do Ocidente possuem seus rituais, frases de repetição, roupas ornamentadas e o culto a imagens. E os daqui também têm suas próprias imagens. Há os que não acreditam em nada disso; são ateus e se dizem hamanitaristas. Mas os que ouvem a este que fala querem descobrir se há algo fora do tempo, além do pensamento. Vamos, portanto, investigar juntos, exercitar nosso cérebro, nossa razão, nossa lógica para averiguar o que é religião, o que é vida religiosa e se é possível viver uma vida religiosa neste mundo moderno.

Investiguemos, por conseguinte, para descobrir o que, de fato e verdadeiramente, é a vida religiosa. E só podemos descobrir isso quando compreendemos o que são as religiões e as descartamos totalmente - não quando pertencemos a uma religião, a uma organização, um guru ou determinada autoridade que se diz espiritual. Não há autoridades espirituais; esse é um dos crimes que cometemos: inventar um mediador entre nós e a verdade. Quando indagamos o que é religião, nessa própria indagação já estamos vivendo religiosamente; não no fim dela. No processo mesmo de olhar, observar, discutir, duvidar, objetar, não ter crença nem fé, nessa própria investigação já estamos levando uma vida religiosa. Vamos fazer isso agora.

Tratando-se de assunto religioso, parece que perdem a razão, a lógica, o bom senso. Precisamos, portanto, ser lógicos, racionais, descrentes, indagadores em relação a tudo que o homem criou - deuses, salvadores, gurus e toda sua autoridade; precisamos eliminar, completamente, tudo isso. Nada disso é religião; é apenas a autoridade que alguns poucos assumem. Nós é que lhes conferimos autoridade.

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Já notaram que, sempre que há desordem social e política nas relações humanas, aparece um déspota, um ditador? Temos recentes exemplos disso. Sempre que há desordem em nossa vida, criamos uma autoridade; somos responsáveis pela autoridade e existem pessoas prontas a aceitar essa autoridade. Sempre que há medo, inevitavelmente o homem procura um meio de se proteger, de se manter em segurança, uma vez que ele se sente atemorizado. E é por causa desse medo que inventamos deuses. Por causa desse medo é que inventamos os rituais e todo esse circo a que damos o nome de religião. Todos os templos neste país, todas as igrejas e mesquitas, tudo isso foi o pensamento que criou. Podem afirmar que há uma revelação sem jamais duvidarem de tal coisa. Mas ponham em dúvida essa revelação. Acontece que aceitam; se usarem, contudo, a lógica, a razão, o bom senso, perceberão como acumulam superstições - e nada disso, obviamente, é religião. Será que podem descartar tudo isso para descobrir a essência da religião, qual é a mente, o cérebro, capaz de viver religiosamente? Será que podem, como seres humanos cheios de temor, viver sem inventar nada, sem criar ilusões, e enfrentar o medo? O medo psicológico pode desaparecer completamente quando ficamos com ele, sem fugir dele, dando a ele total atenção. É como lançar um jato de luz sobre o medo, um forte jorro de luz; o medo se extingue por completo. E, quando não há medo, já não há mais deuses, já não mais rituais, pois tudo isso se torna desnecessário, estúpido. As coisas que o pensamento inventa nada têm que ver com religião, pois o pensamento não passa de um processo material resultante da experiência, do conhecimento e da memória. É o pensamento que inventa todo o palavrório e estrutura das religiões organizadas, que já perderam totalmente a significação. Será que, voluntariamente, podem rejeitar tudo isso sem esperar por uma recompensa? Será que querem fazer isso? Se fizerem, então ninguém mais perguntará o que é religião.

E haverá alguma coisa que ultrapasse o tempo e o pensamento? Podem fazer essa pergunta mas, se o pensamento inventar que existe algo transcendente, isso ainda constitui um processo material. O pensamento é um processo material que acumula o conhecimento nas células cerebrais. O orador não é cientista, mas podem ver isso em si mesmos, podem observar em seu próprio cérebro a atividade do pensamento. Desse modo, se puderem desfazer-se de tudo isso voluntariamente, sem oposição nem resistência, nesse caso, inevitavelmente, indagarão: existirá algo que esteja além do tempo e do espaço? Haverá algo jamais visto antes por qualquer outro homem? Haverá algo imensamente sagrado? Haverá algo jamais tocado pelo cérebro? E é isso que vamos descobrir, se é que já deram o primeiro passo, o de varrer completamente toda essa baboseira chamada religião. Quando usam o cérebro e a lógica, podem duvidar, indagar.

Assim, o que significa a meditação que faz parte da religião? O que é meditação? Será fugir do tumulto, ter uma mente silenciosa, uma mente tranqüila e pacífica? E, para ficarem atentos, para manterem os pensamentos sob controle, praticam um sistema, um método, um processo. Sentam-se de pernas cruzadas e repetem um mantra qualquer. Disseram-me que essa palavra, etimologicamente, significa "ponderar", "não vir a ser", "absorver", "eliminar toda atividade egocêntrica". Mas nós repetimos, repetimos, repetimos e continuamos vivendo egocentricamente, egoisticamente, pois mantra perdeu o significado.

O que é, pois, meditação? Será um esforço consciente? Costumamos meditar conscientemente, praticar a fim de conseguir alguma coisa - uma mente ou um cérebro tranqüilo, um estímulo para o cérebro. Mas qual é a diferença entre esse meditador e o homem que diz "Quero dinheiro e vou trabalhar para obtê-lo?" Qual é a diferença entre os dois? Ambos estão buscando alguma coisa. Só que a busca de um classificamos de espiritual e a do outro, de mundana. Não obstante, ambos estão buscando algo. Assim, para o orador, isso não é meditação; meditação nada tem que ver com qualquer desejo consciente e deliberado como produto da vontade.

Precisamos indagar, portanto, se há alguma espécie de meditação que não seja produzida pelo pensamento. Haverá alguma espécie de meditação da qual não estejamos consciente? Compreendem isso? Nenhum processo deliberado de meditação é meditação. Isso é tão claro! Podem sentar-se de pernas cruzadas pelo resto da vida, meditar, respirar e praticar tudo mais sem que cheguem sequer perto da outra coisa, pois isso não passa de uma ação intencional para conseguir um resultado - causa e efeito. Mas o efeito torna-se a causa e, assim, acabam presos num círculo. Haverá uma espécie de meditação que não resulte do desejo, da vontade, do esforço? O orador afirma que há. Mas não precisam acreditar nisso; pelo contrário, devem duvidar, indagar, assim como o orador indagou, duvidou, rejeitou. Haverá uma espécie de meditação não planejada nem organizada? Para

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examinar isso, precisamos compreender o cérebro condicionado, o cérebro limitado, o cérebro que tenta alcançar o ilimitado, o imensurável, o atemporal, se é que existe esse atemporal. E, para isso, é necessário compreender o som. Som e silêncio são inseparáveis.

Costumamos separar o som do silêncio. O som é o mundo; o som é a batida do coração; o universo está repleto de sons; os céus, as milhares de estrelas, todo o firmamento está cheio de som. E consideramos o som uma coisa intolerável. Mas, quando escutamos o som, o próprio ato de escutar é silêncio. O silêncio não se separa do som. A meditação, portanto, não é algo planejado, organizado. A meditação apenas é. Começa com o primeiro passo que é o estar livre de todos os ressentimentos, livre de tudo que já acumulamos - temores, ansiedades, solidão, desespero, sofrimento. Essa é a base, o primeiro passo e o primeiro passo é o último passo. Se derem o primeiro passo, termina tudo. Mas não estamos com vontade de dar esse primeiro passo porque não queremos ser livres. Queremos depender - do poder, de pessoas, do meio-ambiente, de nossa experiência, do conhecimento. Nunca nos libertamos da dependência, do medo.

No findar do sofrimento está o amor. E nesse amor há compaixão. A compaixão tem sua própria inteligência. E quando age a inteligência, atua a própria verdade. Quando essa inteligência está presente, não há conflito. De tudo já ouviram falar - da cessação do medo, do findar do sofrimento, da beleza e do amor. Mas uma coisa é ouvir, e outra, agir. Ouvem tudo isso (que é verdadeiro, lógico, sensato, racional) mas não agem de acordo com isso. Vão para casa e começa tudo de novo - as preocupações, os conflitos, toda a miséria. Assim, perguntamos: qual é a finalidade de tudo isso? Que adianta ouvir este orador e não viver o que ele diz? Quando ouvimos e não agimos, desperdiçamos nossa vida; se ouvirem algo verdadeiro e não agirem, estarão desperdiçando a vida. E a vida é algo muitíssimo precioso - é a única coisa que temos. E acontece que perdemos também contato com a natureza, o que significa que perdemos contato com nós mesmos, parte que somos da natureza. Não amamos as árvores nem os pássaros nem as águas nem as montanhas. Estamos a nos destruir uns aos outros. E tudo isso é desperdício de vida.

Quando percebemos toda essa coisa não apenas intelectualmente nem verbalmente, então vivemos uma vida religiosa. Botar uma tanga, tornar-se pedinte ou entrar para um mosteiro, nada disso é vida religiosa. A vida religiosa começa quando cessa o conflito, quando existe amor. Podemos amar uma pessoa (esposa ou marido), mas aquele amor é para todos os seres humanos, não se destina a uma só pessoa, não é restritivo. Portanto, se empenharem coração, mente e cérebro haverá algo que transcende o tempo. E aí estará a bênção - não nos templos, nas igrejas nem mesquitas. Essa bênção estará onde estivermos.

Krishnamurti. Bombaim. 10/02/1985. K. F. Bulletin 54 (1988) – Carta de Notícias. Janeiro-Dezembro 1991. ICK.

A Essência da Maturidade

A questão, pois, é se há possibilidade de ver a coisa em seu todo imediatamente, e com esse ato de ver pôr-lhe fim.

Vê-se de maneira total, quando o problema é suficientemente urgente, não só para a própria pessoa, mas também para o mundo. Há guerra, externamente, e há guerra internamente, dentro de cada um de nós; é possível acabarmos com ela de imediato, voltarmos-lhe as costas, psicologicamente? Ninguém pode responder a esta pergunta senão vós mesmo - isto é, quando a ela respondeis sem dependerdes de nenhuma autoridade, de quaisquer conceitos intelectuais ou emocionais, quaisquer fórmulas ou ideologias. Mas, como dissemos, isso exige muita seriedade e séria observação - observação, quando estais sentado num ônibus, de tudo o que vos cerca; observação daquilo que está diante de vós mesmo, a mover-se, a transformar-se; observação, sem

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motivo algum, de todas as coisas tais como são. O que é tem muito mais importância do que o que deveria ser. Como resultado desse zelo, dessa atenção, talvez venhamos a saber o que é amar.

INTERROGANTE: Do que dizeis, devo entender que temos de meditar, mas nossa mente é impedida de fazê-lo porque está sempre passando automaticamente de um pensamento para outro, de modo que não podemos observar o que se passa ao redor de nós? Significa isso que, em primeiro lugar, devemos observar o que se passa em nossa mente?

KRISHNAMURTI: "Para observar, temos de meditar" - eu não disse isso. Observar é meditação, e isso não significa que para observar temos de meditar. Observar é uma das coisas mais difíceis que há. Observar, por exemplo, uma árvore, é dificílimo, porque temos idéias, imagens relativas à árvore e essas idéias - conhecimentos botânicos, etc. - nos impedem de olhar a árvore. Observar vossa esposa ou marido é mais difícil ainda, porque também tendes uma imagem relativa a vossa esposa e ela tem uma imagem a vosso respeito, e a relação existente é entre essas duas imagens. É o que em geral se chama "relações": dois conjuntos de lembranças, de imagens, com relação entre si. Vede quanto isto é absurdo. As relações que em geral temos são uma coisa morta. Observar significa, com efeito, estar cônscio da interferência do pensamento; perceber como a imagem que tendes da árvore, da pessoa, do que quer que seja, intervém no ato de olhar. Observai como vos esqueceis do objeto que estais olhando - a árvore, a pessoa; e vede porque o pensamento interfere, porque tendes uma imagem de tal pessoa. Porque tendes uma imagem de quem quer que seja? Aqui estamos, vós e eu, a olhar-nos - eu, o orador, e vós, os ouvintes. Vós tendes unia imagem relativa ao orador, infelizmente; mas eu, porque não vos conheço, nenhuma imagem tenho de vós e, por conseguinte, posso olhar-vos. Mas não posso olhar-vos se digo de mim para comigo: vou servir-me destes ouvintes para alcançar poder, posição, para explorá-los, tomar-me um homem famoso - sabeis do resto - de todas as futilidades que os entes humanos cultivam. Assim, observar significa: observar sem a interferência de nosso fundo. Entendeis? Todo o nosso ser, que está a olhar, é o nosso fundo - cristão, francês, intelectual. Pela observação, descobre-se esse fundo; e observá-lo sem nenhuma escolha, nenhuma inclinação, é uma disciplina tremenda - não a absurda disciplina de ajustamento, de imitação. Essa observação torna a mente sobremodo ativa, sobremodo sensível. Isso, em seu todo, é meditação. Não se entenda, pois, que "para observar é preciso meditar", porém, antes, que é quando observamos, que todas essas coisas sucedem. Isso, em seu todo, é meditação, e não um certo método de controle do pensamento, assunto de que trataremos noutra ocasião.

INTERROGANTE: Podeis explicar, com precisão, como se relacionam o prazer e o medo?

KRISHNAMURTI: Medo - Já estiveste alguma vez em contato direto com o medo? Já estiveste alguma vez diretamente em contato com alguma coisa, uma árvore, uma flor, um ente humano; diretamente, e não através da imagem? Quando olhais uma árvore, no parque, há sempre o observador e a coisa observada: vós estais a observar a árvore, e há um espaço entre o observador e a coisa observada. Estar em contato direto (podeis tocar a árvore, mas isso não é contato, nem o é o identificar-vos com a árvore; não se trata disso, que é uma outra espécie de ginástica mental) - estar em contato direto é coisa de todo diferente, é não ter espaço algum. É o que se verifica quando se tomam certas drogas - L.S.D., etc. - o espaço desaparece. Mas essa é uma experiência inteiramente diferente, pois aquele espaço volta, obrigando a pessoa a repetir a droga, etc., e o resultado é que ela fica a deteriorar-se, a cansar-se cada vez mais da droga e a obter efeitos cada vez menores. Mas, quando a pessoa é capaz de observar sem o observador, quer dizer, sem o fundo, sem conceitos ideológicos, sem a memória, o espaço desaparece então totalmente, entre as pessoas, e nesse estado talvez não haja medo, porém uma coisa chamada (podemos servir-nos da palavra "verbalmente") amor. Teremos de considerar a questão do medo noutra ocasião.

INTERROGANTE: Parece-me que até a nossa presença aqui é uma espécie de paradoxo, porquanto significa que estamos insatisfeitos. Isto é, eu - insatisfeito com a vida, pois vejo que nela há violência - desejando compreender essa coisa que me causa insatisfação.

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KRISHNAMURTI: Não, senhor, não há entes humanos separados da violência. Quando sinto cólera, não é uma certa coisa ou pessoa que está encolerizada dentro de mim; sou eu que estou encolerizado. Não há nenhum "eu" separado da cólera. Perceber o fato real expresso por essa asserção, isto é, que eu sou a violência; percebê-lo deveras e não intelectual ou teoricamente, é pôr fim à separação entre mim e a violência, a cólera. Mas isso exige enorme atenção e muito trabalho.

INTERROGANTE: Faríeis distinção entre prazer, ódio e violência?

KRISHNAMURTI: Senhor, penso que a questão do prazer não é tão fácil de compreender. Cumpre examinar o problema, e não simplesmente negar o prazer. Não sentis prazer quando comeis ou quando dais um passeio, ou ao olhardes uma árvore, uma bela mulher, um homem belo, ou o que quer que seja? É preciso examinar de maneira completa esta questão do prazer. A vida é complexa, não? A vida é sumamente complexa, e o prazer é uma coisa complexa. Os chamados monges, os religiosos, têm dito que não devemos ter prazer; abrem a Bíblia ou o Gita, ficam a ler perpetuamente esse livro e nunca olham a vida. Mas, para compreender o prazer, temos de compreender o desejo, o deleite, a memória - a conservação das experiências que proporcionaram prazer, tanto no nível consciente como no chamado subconsciente.

Como disse, a vida é um problema complexo, e não podemos esquecer a sua complexidade dizendo: "Não quero olhá-la." Temos de olhá-la pela maneira mais simples, sem nenhuma fórmula, nenhuma ideologia, nenhuma escolha - só simples observação. Esta é provavelmente a primeira vez que alguns de vós estão ouvindo estas palestras, e o que se está dizendo poderá parecer-lhes grego ou chinês, mas enquanto vamos considerando e examinando estas questões, começaremos talvez a compreendê-las melhor.

Importa fazer perguntas; não só agora, porém sempre. É necessário duvidar, e nunca aceitar coisa alguma. Releva fazer uma pergunta, e talvez mais ainda fazer a pergunta correta. Fazer a pergunta correta implica que a pessoa deve estar perfeitamente cônscia dos problemas da vida - não em termos de "gostar" e "não gostar", porém o campo inteiro da vida. Fazer tal pergunta denota grande humildade, não a humildade da vaidade, mas a humildade daquele que deseja saber. Ao fazermos a nós mesmos a pergunta correta, como resultado de profunda e inteligente investigação, então, visto que é correta, a pergunta contém sua própria resposta. Não precisamos perguntar a ninguém: já temos a resposta.

16 de abril de 1967.

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