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ÓRGÃO OFICIAL DA SOCIEDADE PORTUGUESA DE REUMATOLOGIA - ACTA REUM PORT. 2007;32:205-229 205 ARTIGO DE REVISÃO BREVE HISTÓRIA DO RAQUITISMO E DA DESCOBERTA DA VITAMINA D J. Martins e Silva* Abstract Almost eighteen centuries mediated between the first cases of rickets, reported by Soranus and Gale- no, and the clarification of the disease aetiology. Due to the outbreak of rickets verified in the 17 th century in England, the situation was known as the «English disease», being its first detailed descripti- on presented by Francis Glisson. The growing in- cidence of rickets with the Industrial Revolution raised speculations about its origin and treatment. The characterization of solar light and luminous spectrum led to the identification of the biological effects of ultraviolet radiation, and to the discovery of phototherapy as an alternative therapeutic pro- cess to the solar irradiation. The experimental rick- ets achieved by Mellanby and McCollum gave sup- port to the concept that this situation could have an origin in a dietary defect. It was also referred an inverse relationship between sun exposure and the incidence of rickets. The identification of the che- mical nature of an essential dietary factor with anti- rickets effect (ergocalciferol or vitamin D2), toge- ther with another factor with identical properties, but more potent, produced in the skin exposed to sunlight (cholecalciferol or vitamin D3), was essen- tial to the elucidation, prevention and therapy of the disease. The present revision summarizes the history of rickets, the characterization and anti-rickets pro- perties of the light and dietary supplements of li- pid nature, and the identification of the major bio- logical forms of vitamin D. Keywords: Diet; Sun Irradiation; Lipids; Rickets; Vitamin D Introdução A história da vitamina D começou há cerca de 100 anos, tendo evoluído a par com a elucidação pato- * Unidade de Biopatologia Vascular do Instituto de Medicina Molecular, Lisboa, Portugal Resumo Desde os primeiros casos de suspeita de raquitis- mo, referidos por Soranus e Galeno, mediaram cer- ca de dezoito séculos até a etiologia daquela doença ser esclarecida. O surto de raquitismo verificado no século XVII em Inglaterra fez que a situação fos- se conhecida na época por «doença inglesa», sen- do então apresentada a sua primeira descrição por- menorizada, por Francis Glisson. O agravamento da incidência do raquitismo com a Revolução In- dustrial acentuou as especulações sobre a sua ori- gem e tratamento. A caracterização da luz solar e do espectro luminoso conduziu à identificação dos efeitos biológicos da radiação ultravioleta e ao des- cobrimento da fototerapia como processo terapêu- tico alternativo à irradiação solar. A obtenção de ra- quitismo experimental por Mellanby e McCollum deu suporte ao conceito que atribuía aquela situa- ção a um defeito nutricional específico. Em alterna- tiva era referida uma relação inversa entre a exposi- ção à luz solar e a incidência do raquitismo. A identificação da natureza química de um factor es- sencial da dieta com acção anti-raquítica, o ergo- calciferol (ou vitamina D 2 ), a par com um outro fac- tor com idênticas propriedades (ainda que mais potente), formado por irradiação solar da pele, o colecalficerol (vitamina D 3 ), foram etapas iniciais para o esclarecimento, prevenção e tratamento da doença. A presente revisão sumariza a história do raqui- tismo, a caracterização e propriedades anti-raquí- ticas da luz e de suplementos dietéticos de natu- reza lipídica e a identificação das principais formas biológicas da vitamina D. Palavras-chave: Dieta; Irradiação Solar; Lípidos; Raquitismo; Vitamina D.

J.Martins e Silva*ordemdosmedicos.pt/wp-content/uploads/2017/09/AR___Raquitismo.… · (a) Ibn Sina (também conhecido por Avicena), nasceu em Bukhara,na Pérsia (980-1037 d.C.).Eminente

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  • ÓRGÃO OF IC IAL DA SOC IEDADE PORTUGUESA DE REUMATOLOGIA - ACTA REUM PORT. 2007;32:205-229

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    A R T I G O D E R E V I S Ã O

    B R E V E H I S T Ó R I A D O R A Q U I T I S M O

    E D A D E S C O B E R T A D A V I T A M I N A D

    J. Martins e Silva*

    Abstract

    Almost eighteen centuries mediated between thefirst cases of rickets, reported by Soranus and Gale-no, and the clarification of the disease aetiology.Due to the outbreak of rickets verified in the 17th

    century in England, the situation was known as the«English disease», being its first detailed descripti-on presented by Francis Glisson. The growing in-cidence of rickets with the Industrial Revolutionraised speculations about its origin and treatment.The characterization of solar light and luminousspectrum led to the identification of the biologicaleffects of ultraviolet radiation, and to the discoveryof phototherapy as an alternative therapeutic pro-cess to the solar irradiation. The experimental rick-ets achieved by Mellanby and McCollum gave sup-port to the concept that this situation could havean origin in a dietary defect. It was also referred aninverse relationship between sun exposure and theincidence of rickets. The identification of the che-mical nature of an essential dietary factor with anti-rickets effect (ergocalciferol or vitamin D2), toge-ther with another factor with identical properties,but more potent, produced in the skin exposed tosunlight (cholecalciferol or vitamin D3), was essen-tial to the elucidation, prevention and therapy ofthe disease.

    The present revision summarizes the history ofrickets, the characterization and anti-rickets pro-perties of the light and dietary supplements of li-pid nature, and the identification of the major bio-logical forms of vitamin D.

    Keywords: Diet; Sun Irradiation; Lipids; Rickets;Vitamin D

    Introdução

    A história da vitamina D começou há cerca de 100anos, tendo evoluído a par com a elucidação pato-

    * Unidade de Biopatologia Vascular do Instituto de MedicinaMolecular, Lisboa, Portugal

    Resumo

    Desde os primeiros casos de suspeita de raquitis-mo, referidos por Soranus e Galeno, mediaram cer-ca de dezoito séculos até a etiologia daquela doençaser esclarecida. O surto de raquitismo verificadono século XVII em Inglaterra fez que a situação fos-se conhecida na época por «doença inglesa», sen-do então apresentada a sua primeira descrição por-menorizada, por Francis Glisson. O agravamentoda incidência do raquitismo com a Revolução In-dustrial acentuou as especulações sobre a sua ori-gem e tratamento. A caracterização da luz solar edo espectro luminoso conduziu à identificação dosefeitos biológicos da radiação ultravioleta e ao des-cobrimento da fototerapia como processo terapêu-tico alternativo à irradiação solar. A obtenção de ra-quitismo experimental por Mellanby e McCollumdeu suporte ao conceito que atribuía aquela situa-ção a um defeito nutricional específico. Em alterna-tiva era referida uma relação inversa entre a exposi-ção à luz solar e a incidência do raquitismo. Aidentificação da natureza química de um factor es-sencial da dieta com acção anti-raquítica, o ergo-calciferol (ou vitamina D2), a par com um outro fac-tor com idênticas propriedades (ainda que maispotente), formado por irradiação solar da pele, ocolecalficerol (vitamina D3), foram etapas iniciaispara o esclarecimento, prevenção e tratamento dadoença.

    A presente revisão sumariza a história do raqui-tismo, a caracterização e propriedades anti-raquí-ticas da luz e de suplementos dietéticos de natu-reza lipídica e a identificação das principais formasbiológicas da vitamina D.

    Palavras-chave: Dieta; Irradiação Solar; Lípidos;Raquitismo; Vitamina D.

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    BREVE HISTÓRIA DO RAQUITISMO E DA DESCOBERTA DA VITAMINA D

    génica do raquitismo e com a daquela substânciater origem num precursor do colesterol.

    A vitamina D inclui-se nos «acessory food factors» que, de acordo com os resultados do ci-rurgião russo Nicolai Lunin, em 1881,1 e na pers-pectiva de Frederick Hopkins, em 1912,2 seriamessenciais para a saúde e prevenção de determina-das doenças, como o escorbuto, o beri-beri e a pe-lagra.

    Em 1911, o bioquímico norte-americano de ori-gem polaca, Casimur Funk, criaria o termo «vitami-nas» para designar as substâncias essenciais cujadeficiência na dieta seria a causa daquelas doençasespecíficas, e de outras a identificar.3 Aquela expres-são pretendia significar «vital amines», do latim vita(vida) e do termo químico amines (cunhado paraos compostos orgânicos com azoto, com proprie-dades próprias das aminas e derivados do amonía-co). Atendendo a que o significado do sufixo «ami-nes» não se aplicava às características de todos osmicronutrientes identificados, Jack Drumoundpropôs, em 1920, que o e final fosse retirado paraevitar confusões com os compostos «amines»;[a]

    cada uma das substâncias essenciais que tivessesido isolada e caracterizada até à data, ou no futuro,seria denominada por uma letra do alfabeto latinopor ordem de sequência.4

    A partir de 1920 começou a conjecturar-se quea carência de vitamina D na alimentação estaria naorigem do raquitismo.5 Verificou-se também queaquela substância estava erradamente identificadacomo vitamina;6 enquanto as vitaminas já conheci-das eram compostos essenciais de origem exógena,fornecidos na alimentação, a vitamina D poderiaser formada pelo próprio organismo a partir de umintermediário da biossíntese do colesterol, por ex-posição da pele à luz solar. Na sequência da carac-terização química da vitamina D na década de 30,tornou-se claro que aquele composto existia sobduas formas com acção anti-raquitismo equivalen-te, uma exógena, derivada do ergosterol (calciferolou vitamina D2) e outra sintetizada na pele, por irra-diação luminosa, a partir do 7-desidrocolesterol(colecalciferol ou vitamina D3).7 Mais recentementefoi comprovado que, em condições normais, a ali-mentação contribui pouco para as necessidade doorganismo em vitamina D, ao contrário do que su-cede com a sua proveniência após a exposição so-

    [a] «Vitamines» é traduzido em português pelo termo «vitaminas»,que também não possui conotação química com a categoria químicadas «aminas»

    Figura 1. Soranus de Ephesus (98-138 d.C.).Médico grego natural de Ephesus, contemporâneo dos imperadores Trajano e Adriano. Estudou e exerceu medicina em Alexandria antes de residir em Roma.Considerado o principal representante dos médicosmetodistas da escola de Alexandria, foi autor de diversasobras médicas influentes no seu tempo e séculosseguintes.(Imagem do domínio público/Courtesy of National Libraryof Medicine, History of Medicine Division).

    lar do corpo.8

    De acordo com os estudos realizados desde a se-gunda metade do século XX, está estabelecido queo colecalciferol é uma pró-hormona esteroide enão uma vitamina, embora continue a ser assimdesignada devido a um uso de quase um século.9

    Além da função endócrina que exerce, com amplase importantes repercussões no metabolismo doosso, têm sido identificados múltiplos efeitos da vi-tamina D, que são independentes da modulaçãodo cálcio.10

    A presente revisão inclui a perspectiva históri-ca do raquitismo em relação com a identificaçãoda vitamina D, sendo destacados os estudos maisrelevantes sobre a sua presença nos alimentos e aformação pelo próprio organismo, por exposiçãosolar.

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    J. MARTINS E SILVA

    Primeiras observações de raquitismo

    O raquitismo tem uma história muito mais longado que a da vitamina D. As primeiras referênciasregistadas remontam ao século I e II d.C. em queSoranus de Efesus (Fig. 1), e Claudius Galeno dePergamus (Fig. 2), ambos médicos de origem gre-ga, são creditados por terem observado deforma-ções ósseas sugestivas do raquitismo em criançasde Roma, cuja causa atribuiram à falta de higienee a carências alimentares.11[b] Soranus, num dos ca-pítulos do tratado que escreveu sobre doenças gi-necológicas interroga-se sobre o motivo de nume-rosas crianças de Roma serem «tortas».12

    As recomendações médicas de Soranus para agravidez e pós-parto das mães e filhos foram reto-madas no «Canon» de Ibn Sina (Fig. 3) e, em geral,pela medicina islâmica;13 depois, na Idade Média,foram ensinadas e seguidas nos países ocidentaisaté ao início da Revolução Industrial.14

    Figura 2. Galeno de Pergamus (129-200 d.C.). Médicogrego, natural de Pergamus, estudou e exerceu medicinaem Alexandria, após o que regressou à cidade de origemonde praticou e adquiriu experiência anatómica e cirúrgica como médico de gladiadores. No ano 162 foi residir para Roma onde adquiriu grande fama, sendo médico pessoal do imperador Marco Aurélio. Os seusconceitos, apresentados em numerosos livros, dominaramo ensino e a prática da Medicina durante mais de trezeséculos. O primeiro nome Claudius é referido somenteem textos publicados durante a Renascença.(Crédito: Courtesy of Internet Shakespeare Editions,Canadá)

    Figura 3. (a) Ibn Sina (também conhecido por Avicena),nasceu em Bukhara, na Pérsia (980-1037 d.C.). Eminentemédico, filósofo e poeta da era medieval, no auge datradição islâmica, é-lhe atribuída a autoria de cerca de 450 livros, sendo os mais famosos o «Cânon da Arte daMedicina («al-Qanun fi-al-tibb”) e o «Livro dos Tratamentos” («kitab al-Shifa”), os quais foram utilizadosdurante vários séculos pelas universidade europeias.(Imagem dos domínio público/Cortesia de Wikipedia).(b) Iluminura de abertura do volume I do «Cânon”, daedição (coligida em árabe) provavelmente persa, do séculoXV. Este volume, onde são abordados os princípios geraisda medicina, era frequentemente utilizado em separado darestante obra, sobretudo nas universidades europeias. Nosoutros quatro volumes eram apresentadas as drogas simples e a terapêutica médica (volume II), tratamentos(volume III), doenças generalizadas (volume IV) e remédioscompostos (volume V).(Imagem do domínio público/Courtesy of National Libraryof Medicine - Islamic Medical Manuscripts).

    [b] É de referir que a falta de higiene, deficiências dietéticas e a po-breza foram constantemente mencionadas quase até à segunda dé-cada do século XX como condições subjacentes ao raquitismo[c] Igualmente, era uma tradição quase generalizada, desde a Anti-guidade, manter os bebés enfaixados nos primeiros meses de vida,após o que as crianças eram sujeitas a uma apertada restrição de mo-vimentos de todo o género, que ainda se verificava no século XIX.15

    a b

    Apesar de proibir a ingestão de colostro ou dequalquer outro alimento pelos recém-nascidos, ede recomendar que se enfaixassem os bebés du-rante os primeiros três meses de vida,[c] Soranus in-dicava que o desmame fosse completado entre osdois e os três anos de idade, aconselhando a inclu-são progressiva de vários suplementos dietéticos(p.ex., mel fervido, mistura de mel com leite de ca-bra, e também pão amolecido em leite ou vinho)a partir dos seis meses. Estas recomendações fo-ram seguidas também em outros locais longínquos

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    BREVE HISTÓRIA DO RAQUITISMO E DA DESCOBERTA DA VITAMINA D

    sunto,24 cita um caso numa criança com dificulda-des em caminhar, observada por Zacutus Lusita-no, e casos de deformação da coluna vertebral, porAmbroise Paré, já no século XVII, que eventual-mente poderiam ser causadas por raquitismo.Também Ringe25 citou o médico alemão Reussnerque, em tese apresentada em 1582, terá sido o pri-meiro a descrever os sinais característicos do ra-quitismo.

    Porém, a primeira monografia pormenorizadasobre o raquitismo foi apresentada em 1645, tam-bém como tese de graduação em medicina, pelobritânico Daniel Whistler. O volume, com cerca dequatrocentas páginas, tinha por título «De morbopuerili Anglorum, quem patrio idiomatic indige-nae vocant the rickets».25,26 Aparentemente, aquelapublicação ter-se-á fundamentado em relatos co-nhecidos (entre 1612 e 1620) sobre aquela doençae não propriamente na experiência do seu autor.Whister atribuía a doença ao alcoolismo das mãesdas crianças afectadas.

    Grande parte desses relatos estaria relacionadacom a irrupção súbita de um grande número de ca-sos de raquitismo nas comunas inglesas de Somer-set e Dorset que, progressivamente, alastrou agrande parte do país. A situação tomou propor-ções de tal modo alarmantes que as autoridadesmédicas decidiram, em 1645, nomear uma comis-são de oito membros, entre os quais figurava Fran-cis Glisson[f] (Fig. 4), professor de anatomia emCambridge. Cinco anos mais tarde, os resultadosdessa comissão (que, juntamente com outrosmembros, contribuiu para a criação da RoyalSociety) foram publicados sob a forma de um tra-tado em latim; por decisão dos colaboradores quemais contribuíram para a obra (Bate e Regemorte-ro), Francis Glisson foi autor único.27 Este tratadosobre o raquitismo obteve o imprimatur dos Cen-sors of the College of Physicians, sob o título «De ra-chitide,sive,Morbo puerili: qui vulgo,The rickets di-citur tractatus. opera primo ac potissimum Franci-si Glissonii: adscitis in operis societatem George Bateet Ahasuero Regemortero», mais conhecido por«Tractadus de Rachitide».27 A primeira versão daobra, em Inglês («A treatise of the rickets, being adisease common to children») seria editada em1651 (Fig. 5). Glisson é também creditado por ter

    do Império Romano, como se comprova pelasobservações realizadas em esqueletos (marcadoscom os isótopos estáveis 13C e 15N) de bebés e crian-ças inumados num cemitério romano-cristão dooásis Dakhleh, referido a 250 d.C., no período daocupação romana do Egipto.16

    Por seu lado, Galeno aconselhava que a adiçãode complementos alimentares (primeiro pão, e de-pois vegetais e carne) fosse iniciada quando «nas-cessem os dentes da frente, conforme o que as mãesfazem, por terem aprendido por experiência pró-pria»;17 o desmame deveria ser gradual até termi-nar aos dois anos de idade, o que veio a ser tam-bém recomendado por Ibn Sina.13

    O tipo de alimentos, a sua preparação (p. ex., fa-rinha misturada com fitatos) e, particularmente, asrestrições alimentares que afectavam os sectoresmais pobres da população no auge do Império Ro-mano, terão contribuído para a existência do ra-quitismo nos seus territórios.18[d] A utilização queos romanos faziam do garum19[e] como condimen-to alimentar poderá ter evitado situações mais fre-quentes de desnutrição entre a população adul-ta.20 O mesmo não sucederia com as crianças. Es-tas não recebiam cuidados adequados por partedos familiares, particularmente quanto à alimen-tação após o desmame, registando-se também ele-vada proporção de abandonos e maus tratos.21 Osdefeitos microscópicos observados na estruturada dentição decídua em esqueletos de crianças dos2º e 3º séculos d.C., que viveram em Portus Romae(principal porto dos arredores de Roma, naquelaépoca) sugerem perturbações marcadas do desen-volvimento infantil.22,23

    Nos quinze séculos seguintes escasseiam as re-ferências a situações que configurem o raquitis-mo. António Gamarra, em recente revisão do as-

    [d] Foi recentemente referida a descoberta do esqueleto de uma mu-lher adulta inumada da maior necrópole da antiga Roma Imperial (sé-culos I-II d.C.), com sinais acentuados de raquitismo. Apesar de Romaser actualmente uma cidade soalheira, no tempo antigo, era muitourbanizada com edifícios elevados (insulae), pelo que as criançaspermaneciam em casa com as mães, insuficientemente expostas a ba-nhos de sol.18

    [e] O garum (conservas de peixe em pasta, preparado em salmouracom vísceras e sangue de atum ou cavala, misturados com outros pei-xes ou crustáceos , ervas aromáticas e azeite, fermentadas ao sol du-rante cerca de dois meses) era produzido principalmente no litoralhispânico e exportado para Roma e outros países da região em ânfo-ras. Edmondson afirmou num dos seus trabalhos que as (principais)indústrias da Lusitânia romana naquela época, eram a extracção mi-neira e o fabrico de garum.19 A maior parte dos vestígios ainda exis-tentes em Portugal localiza-se no litoral algarvio, sendo também co-nhecidos ao longo da costa atlântica em Tróia, Matosinhos e Póvoado Varzim.

    [f] F. Glisson (1597-1677) ficou conhecido de todos os estudantes demedicina e médicos por ter identificado o revestimentos de tecidoconjuntivo que envolve o fígado e o prolongamento interno e externodos seus principais vasos e canais, designado por cápsula de Glisson,bem como o esfíncter do canal biliar (esfíncter de Glisson).

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    J. MARTINS E SILVA

    sido o primeiro a descrever naquela obra (capítu-lo 22) o escorbuto infantil com entidade clínicaprópria, embora (como referiu) pudesse associar--se ao raquitismo.28

    Glisson, sem fazer qualquer referência ao com-patriota Whistler,[g] afirma na abertura da sua obraque está a apresentar uma nova doença «nuncadescrita por nenhum médico antigo ou moder-no».27,29 Glisson, bem como os colegas seus con-temporâneos, acreditava que o raquitismo haviaaparecido em Inglaterra (Morbum Anglorum), ondeera muito comum, em particular nas cidades me-ridionais. Talvez pelo mesmo motivo, a doença eraconhecida na época em França e Alemanha pela«doença Inglesa».27

    A palavra «rickets», que foi publicada em Ingla-terra pela primeira vez no «Bill of Mortality, 1634»,derivou da palavra «wrickden» do inglês antigo,

    que significa «torcer». Glisson também sugeriu apalavra rachitis, derivada do grego «rhakhis» (co-luna vertebral), exactamente por entender que acoluna era a primeira parte do esqueleto a ser al-terada no raquitismo[h] e, também, por se asseme-lhar aquele termo antigo.27

    O raquitismo é descrito no «Tractadus de Ra-chitide» com base na experiência clínica e nasobservações de autópsias realizadas por Glisson. Adoença foi caracterizada como uma entidade nãoinfecciosa, dissociada da sífilis, nem congénitanem hereditária. A apresentação das lesões exter-nas é bastante completa, sendo referido o maiorvolume da cabeça, grande alargamento das extre-midades dos ossos longos, nodosidades costo-ex-ternais «em rosário», coluna encurvada, torax es-treitado e «em quilha», genu valgum, abdómenprotuberante e musculatura flácida. Algumas dasconclusões clínicas sobre a doença permanecemválidas, assim como diversas técnicas terapêuti-cas recomendadas, como as massagens e as mano-bras para correcção das deformidades. Porém, aetiologia que Glisson atribui à doença ficou arrei-gada a conceitos galénicos e ideias místicas. Porexemplo, ao sugerir os conceitos de Galeno sobre

    [g] Procedendo da mesma forma que Glisson havia agido com o seuantecessor Whistler, James Primerose (1598-1659), que foi um dosmais destacados opositores ingleses à teoria da circulação do sangueproposta por William Harvey, quando se referia ao raquitismo citavaGaleno e Hipócrates sem nunca se referir aos trabalhos anteriores deGlisson.29

    [h] Raquitismo também deriva do grego rhakhitis, termo que definea mesma doença.

    Figura 4. Francis Glisson (1597-1677), natural de Dorset,foi durante quarenta anos Regius professor de medicinana Universidade de Cambridge, tendo-se distinguido pelos seus estudos em anatomia, fisiologia e patologia.Co-fundador da Royal Society of London for the Promotionof Natural Knowledge, de que foi eleito presidente em1660/61. Foi autor de vários tratados médicos importantes.(Imagem no domínio público/Courtesy of WikimediaCommons).

    Figura 5. Capa do «Tractadus de Rachitide», em ediçãode 1671, em latim.(Crédito: Cortesia de Prof. Miguel Calvo, Univ. deSaragoça, [email protected])

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    BREVE HISTÓRIA DO RAQUITISMO E DA DESCOBERTA DA VITAMINA D

    a alteração de humores e temperamentos em pa-tologia, Glisson classificava o raquitismo como«Cold distemper, moist, and consisting in penury orpaucity of the spirits».26,27

    Glisson terá sido o primeiro a atribuir a causados casos de raquitismo ocorridos em Somerset eDorset às más condições de higiene ambientais evivenciais, embora sem fazer referência a carênciasalimentares específicas.28

    As descrições sobre o raquitismo legadas porGlisson viriam a ser confirmadas e expandidas pe-los médicos alemães JFL Cappel (em 1787) e R. Vir-chow (em 1853). Este último verificou que as lesõesdo raquitismo eram particularmente nítidas nasepífises dos ossos longos e nas suturas dos ossoscranianos.30

    Expansão do raquitismo e primeiras medidas de controlo

    Nos dois séculos seguintes não houve progressosrelevantes quanto a conhecimentos sobre a etiolo-gia e métodos de tratamento do raquitismo. Weick,ao rever a história do raquitismo nos Estados Uni-dos,31 revelou que, nos séculos XVII e XVIII, osdoentes com raquitismo que residiam nas coló-nias da Nova Inglaterra não eram tratados comóleo de fígado de bacalhau, exposição ao sol ouleite, como sucederia a partir do século XIX. Em al-ternativa, as mães recorriam a diversas mezinhas(ainda utilizadas no século XIX) para tratarem osfilhos com raquitismo.[i]

    A doença era, naquela época, atribuída à negli-gência na limpeza do vestuário e nas restrições deexercício ao ar livre. Entretanto, como as criançaspermaneciam junto dos familiares, por estarem fi-sicamente impossibilitadas pelas suas deforma-ções ou por se sentirem doentes e, no entanto, pa-recerem espertas, atribuía-se-lhes o alargamentodo crânio à constante companhia dos adultos.31

    A partir de finais do século XVIII e princípios doséculo XIX, em aparente coincidência com o inícioe desenvolvimento da Revolução Industrial, regis-tou-se um acentuado aumento do números de ca-sos de raquitismo na população infantil das prin-cipais cidades de Inglaterra e, depois, também, de

    outros países da Europa Ocidental e dos EstadosUnidos da América.32 Prevalecia então o conceitode que o raquitismo teria origem em ambientesdegradados e com baixa exposição solar.

    Estudos antropológicos recentes, em esqueletosde adultos que remontam aquela época, revela-ram sinais de redução acentuada da mineralizaçãoóssea, típicos da osteomalácia, em cerca de 5% daamostra populacional.33 Aquelas alterações esta-riam associadas a deficiências nas condições devida e aos elevados níveis de poluição (e baixa lu-minosidade) que então se verificava na cidade deBirmingham, que tivera um grande crescimentourbano no período imediato à Revolução Indus-trial.34 Eventualmente, as lesões de osteomaláciaregistadas em adultos assinalariam episódios an-teriores de raquitismo infantil dos seus portadores.

    Entretanto, as lesões esqueléticas característicasdo raquitismo que foram observadas em cerca de13% de esqueletos imaturos de crianças da mesmaépoca e local, apresentavam maior incidência masmenor gravidade do que as verificadas nos restosexumados de uma população rural; estas diferençasconfirmariam a influência e limitações do meio bio-cultural no desencadeamento daquela doença, e,também, a natureza das deficiências (nutricionais oude condições de vida) que estariam na sua origem.34

    O clínico francês Armand Trousseau[j] (Fig. 6)terá sido o primeiro a postular, em 1861, que o ra-quitismo em crianças (assim como a osteomalácianos adultos) resultava da falta de exposição do cor-po ao sol e de deficiências alimentares.35 Talvez in-fluenciado pelos resultados que a medicina alemãvinha divulgando desde que Scheutte verificara autilidade do óleo de fígado de bacalhau no trata-mento do raquitismo,11,24 e também baseado nasobservações do seu antigo professor e mentor Pier-re Bretonneau, nos resultados experimentais queJules Guérin obtivera em 1838 em cachorros, bemcomo pela sua própria experiência com porcos,Trousseau propôs que o raquitismo poderia ser cu-rado com óleo de fígado de bacalhau (ou qualqueroutro óleo de peixe) e pela exposição do corpo aosol.35

    Em 1872, Parry sugeriu a existência de um fac-tor desconhecido no sangue que impediria a remi-neralização óssea nos doentes com raquitismo;

    [i] Entre outras «receitas» do mesmo tipo, eram utilizadas massagenscom licor de serpente, sopas de cobra, minhocas em cervejatemperadas com ervas e especiarias, e banhos de água fria (após oque as crianças, eram aquecidas no berço até suarem, para então selhes retirar sangue dos pés).

    [j] Trousseau ficou associado ao sinal de espasmo cárpico dolorosoinduzido em situações de hipocalcémia (sinal de Trousseau), etambém ao síndroma de tromboflebite migratória que coexiste emneoplasias do estômago, pâncreas, cólon ou pulmão (síndroma deTrousseau).

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    J. MARTINS E SILVA

    quando tratados com sais de cálcio, estes compos-tos também não evidenciavam qualquer eficáciana evolução do raquitismo.36 Aproximadamente namesma época sucederam-se os estudos que pro-curavam relacionar o raquitismo com deficiênciasalimentares, de absorção de cálcio, ou de acidezgástrica, ou com a perda de fosfato.24

    John Bland-Sutton, que foi prossector do Zoo-logical Gardens de Londres desde 1881, aindacomo estudante de medicina, terá sido o primeiroa identificar, em 1884, sinais de raquitismo nos pri-matas em cativeiro;37 sugeriu, então, que aqueladoença poderia ser provocada por malnutrição,

    desmame precoce, exercício físico reduzido ou cli-ma inapropriado. Em 1888, já assistente de cirur-gia do Middlesex Hospital (mas ainda na direcçãodo Zoo e interessado em patologias comparadas),Bland-Sutton registou a observação de deficiên-cias nutricionais em algumas espécies de animaiscativos, designadamente em carnívoros de grandeporte que se alimentavam quase só de carne.38

    John Bland-Sutton associou os sinais de raquitis-mo naqueles animais ao facto de estarem alimen-tados com carne desossada. Recomendou entãoque à alimentação das crias de leões, que eviden-ciaram sinais de raquitismo, fossem adicionadosossos moídos em óleo de fígado de bacalhau. Osanimais ficaram curados da situação, pelo queBland-Sutton concluiu que o raquitismo seria cau-sado pela deficiência de uma substância de natu-reza lipídica na dieta.38

    Foi posteriormente confirmado que a carne édeficiente em cálcio; igualmente, as frutas e vege-tais, que constituem a dieta principal de primatasnão-humanos em cativeiro, têm baixo teor de pro-teínas, cálcio e vitamina D,39 o que estaria de acor-do com as observações de Sutton. A influência dadieta no desenvolvimento do raquitismo viria a serum tema retomado trinta anos mais tarde porEdward Mellanby.

    Ainda em 1889, J. Owen documentou as propor-ções da incidência e distribuição geográfica do ra-quitismo entre a população jovem do Reino Unido40

    enquanto Palm, no ano seguinte, observou uma re-lação inversa entre a distribuição geográfica do ra-quitismo e o nível de irradiação solar de cada local.41

    No último quartel do século XIX, a etiologia doraquitismo continuava por esclarecer, sendo reco-nhecido, contudo, que a doença respondia favora-velmente a dietas enriquecidas com lípidos ou óle-os de peixe, ou pela exposição do corpo à luz solar.Embora o óleo de fígado de bacalhau (e de outrospeixes) fosse um remédio popular desse tempo,utilizado com bons resultados em crianças comraquitismo e diversas outras afecções desde épocasremotas, nunca tivera grande aceitação entre osdoentes, devido ao seu cheiro e sabor serem desa-gradáveis; por seu lado, os médicos também nãolhe valorizavam as propriedades, ao consideraremque aquela substância era mais um tónico do queremédio; somente depois de ter sido demonstra-do cientificamente que o óleo de fígado de baca-lhau possuía valores elevados de vitamina A e fac-tores anti-raquitismo42 viria a alterar-se aquela po-sição clínica.43 Na mesma época havia acordo so-

    Figura 6. Armand Trousseau (1801-1867). Natural deTours, onde aprendeu com Pierre Bretonneau no hospitallocal os métodos de observação clínica. Como professorda Universidade de Paris foi encarregado de diversas missões no âmbito da saúde pública, designadamente sobre a febre amarela e a tuberculose da laringe. Foi oprimeiro médico a executar a traqueotomia em doentescom difteria, e a executar toracocenteses, tendo definidodiversas entidades clínicas e sinais de diagnóstico que permanecem com o seu nome. Já como médico-chefe doHôpital-Dieu de Paris, publica um tratado em dois volumes («Clinique-Médicale de l'Hôtel-Dieu») que tevegrande aceitação no país e no estrangeiro, em particularpela precisão das descrições clínicas, com destaque paraas infecções pediátricas, as doenças puerperais, oraquitismo e a osteomalácia (que entendia ser o mesmoque o raquitismo nas crianças).(Imagem do domínio público/Courtesy of Wikipedia).

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    BREVE HISTÓRIA DO RAQUITISMO E DA DESCOBERTA DA VITAMINA D

    bre a maior incidência do raquitismo nas cidadesmais poluídas e com reduzida luminosidade, si-tuadas mais a norte de Inglaterra41 e dos EstadosUnidos.44 Palm havia concluído que a luz solar con-feria uma relevante protecção contra o raquitis-mo, aconselhando também a exposição do corpoao sol para a cura do raquitismo.41

    O clínico austríaco Max Kassowitz evidenciou, em1897, que a incidência do raquitismo variava com asestações do ano, sendo maior nos meses de Invernoe menor no Verão e Outono.45 Porém, Kassowitz tam-bém acreditava que o raquitismo era congénito e fa-vorecia a tetania nas crianças, o que dá uma ideia donível de conhecimentos então ainda existentes so-bre a doença, em finais do século XIX.

    Em 1899, John Morse, médico do MassachusettsCharitable Eye and Ear Infirmary, detectou sinaisde raquitismo em 400 crianças com menos de doisanos de idade, que residiam em Boston ou arredo-res e frequentavam as consultas hospitalares nosmeses de Inverno.46

    O pediatra escocês Robert Hutchison, no trata-do «Lectures on the Diseases of Childhood» quepublicou em 1904, atribuía a doença a três facto-res principais: (a) dificuldades de amamentaçãopor parte das mães; (b) aumento do número demães que trabalhavam em fábricas, pelo que os fi-lhos permaneciam todo o dia em casa sem alimen-tação adequada; (c) residência em cidades popu-losas onde mais de metade das crianças observa-das nas consultas externas apresentavam sinais deraquitismo. A par de algumas recomendações ali-mentares (aumento da quantidade de leite, proteí-nas e gorduras, gema de ovo e suco de carne crua)Hutchison também sublinhava o benefício da ex-posição das crianças ao sol.47

    Antecedentes da utilização da helioterapia

    A utilização da luz solar como terapia médica (he-lioterapia) teve as suas origens na Antiguidade. Asreferências mais antigas datam do século XIV a.C.,em que os Hindus e depois também os antigosEgípcios tratavam o vitíligo cobrindo as zonas afec-tadas com extractos de plantas e depois expondo-as ao sol.48 [k],[l]

    O Sol foi deificado também pelas antigas civili-zações da Mesopotâmia, Persas, Aztecas, Incas eoutras. Na civilização Grego-Romana era realçadaa importância do sol como a origem da saúde. Osantigos gregos tinham por hábito exporem-se nus

    ao sol, com propósitos terapêuticos (heliosis), emespaços abertos (arenariae) junto do mar, enquan-to os romanos utilizavam os terraços de suas casas(solariae) para a mesma finalidade.51

    Dessa época, merece também referência o que o historiador grego Heródoto (484-426 a.C.)revelou cerca de 400 a.C., baseado em observaçõesque havia feito nos esqueletos abandonados em campos de batalha, e as conclusões a quechegou:

    «On the field where this battle was fought I sawa very wonderful thing which the natives pointedout to me. The bones of the slain lie scattered uponthe field in two lots, those of the Persians in one pla-ce by themselves, as the bodies lay at the first- tho-se of the Egyptians in another place apart fromthem. If, then, you strike the Persian skulls, evenwith a pebble, they are so weak,that you break a holein them; but the Egyptian skulls are so strong, thatyou may smite them with a stone and you will scar-cely break them in. They gave me the following re-ason for this difference, which seemed to me likelyenough:- The Egyptians (they said) from early child-hood have the head shaved, and so by the action ofthe sun the skull becomes thick and hard. The samecause prevents baldness in Egypt,where you see few-er bald men than in any other land. Such, then, isthe reason why the skulls of the Egyptians are sostrong. The Persians, on the other hand, have feebleskulls, because they keep themselves shaded fromthe first, wearing turbans upon their heads.What Ihave here mentioned I saw with my own eyes, andI observed also the like at Papremis, in the case ofthe Persians who were killed with Achaeamenes, theson of Darius, by Inarus the Libyan».52

    Pelo exposto, Heródoto foi o primeiro a atribuirum efeito benéfico às radiações solares sobre o es-queleto, neste caso o crânio; este seria tanto mais

    [k] Trinta séculos mais tarde foi constatada a modernidade daqueletratamento, quando Fahmy e Cols isolaram (em 1947/8) assubstâncias activas daqueles extractos de plantas, identificados comoderivados (5-metoxi- e 8-metoxi) do psoralen, com acção comprovadano tratamento da leucodermia.49 A administração dos derivados dopsoralen por via oral ou tópica, em associação com banhos de sol oufototerapia com radiação ultravioleta, tem sido, desde 1962, um dostratamentos preferenciais para as formas graves de psoríase.50

    [l] O faraó Akhenaton (1352-1336 a.C. ) iniciou o período monoteístado Antigo Egipto com o culto ao Sol (Ra) e à divindade Aton (ou Aten)mitologicamente associada. Akhenaton, que significa «Ele que setornou útil a Aton», alterou o seu nome original (Amenhotep IV) apóster iniciado no Egipto o culto solar a Aton-Ra, a que se atribuía a forçacriadora e da saúde.

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    forte e resistente aos traumatismos quanto maisestivesse exposto ao sol.

    Aretaeus da Capadócia (81-138 d.C.), da escolade Alexandria, que terá sido o primeiro a identifi-car uma situação actualmente conhecida pordoença bipolar, recomendava banhos de sol aos«letárgicos».53 Num dos tratados de Soranus tradu-zido por Caelius Aurelianus (que foi um dos últi-mos médicos romanos com obra escrita em finaisdo Império Romano do Ocidente, no século Vd.C.), também se afirmava que a luz e a escuridãopoderiam ser utilizadas como terapêutica (Fig.7).54[m]

    Fotobiologia e acção terapêutica da luz

    Nos estudos que realizou em 1665-1666, ainda es-tudante, Isaac Newton verificou, numa série de ex-periências engenhosas, que, ao fazer passar umfeixe de luz proveniente de um orifício de uma ja-nela através de um prisma de vidro, obtinha umaimagem de várias cores (vermelho, amarelo, verde,azul e violeta) projectada numa tela. Newton de-signou aquele conjunto de cores por espectro:[n]

    «… Obs. I. I made in a piece of Lead a small Holewith a Pin, whose breadth was the 42d part of anInch, For 21 of those Pins laid together took up thebreadth of half an Inch. Through this Hole I let intomy darken’d Chamber a beam of the Sun’s Light,and found that the Shadows of Hairs, Thred, Pins,Straws, and such like slender Substances placed inthis beam of Light, were considerably broader thanthey ought to be, if the Rays of Light passed on by the-se Bodies in right Lines …..

    Obs 2. The Shadows of all Bodies (Metals, Stones,Glass, Wood, Horn, Ice, &c.) in this Light were bor-der’d with three parallel Fringes or Bands of colour’dLight, whereof that which was contiguous to theShadow was broadest and most luminous, and thatwhich was remotest from it was narrowest, and sofaint,as not easily to be visible. It was difficult to dis-tinguish the Colours unless when the Light fell veryobliquely upon a smooth Paper, or some other smo-oth white Body, so as to make them appear muchbroader than they would otherwise do. And thenthe Colours were plainly visible in this Order: Thefirst or innermost Fringe was violet and deep bluenext the Shadow, and then light blue, green and yel-low in the middle, and … red without. The secondFringe was almost contiguous to the first, and thethird to the second, and both were blue within andyellow and red without, but their Colours were veryfaint, especially those of the third. The Colours the-refore proceeded in this order from the Shadow; vi-olet, indigo, pale blue, green, yellow, red; blue, yel-low,red; pale blue,pale yellow and red.The Shadowsmade by Scratches…» .57

    A sua primeira conclusão foi a de que a luz visí-vel (branca) era heterogénea e secundária, por ser

    J. MARTINS E SILVA

    Figura 7. Capa da edição de 1709 de «Morbis Acutis etChronicis, Libri VIII», que constitui a tradução do gregopara latim, por Caelius Aurelianus (no século V d.E.), deuma obra de Soranus (Sobre as Doenças Agudas e Crónicas), cujo original já não existe.(Imagem do domínio público/Courtesy of WikimediaCoomons).

    [m] Aquelas recomendações seriam retomadas em 1983/84 porNorman Rosenthal;55 desde então, a terapêutica com luz artificial deespectro completo é utilizada no tratamento de alterações afectivassazonais (SAD), em personalidades ciclotímicas e outros distúrbiosmentais.53

    [n] Dois séculos e meio mais tarde, Arthur Schuster utilizou pelaprimeira vez o termo «espectroscopia» (do grego skopein, olhar, e dolatim spectros, imagem) para designar a observação e análise doespectro de luz.56

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    constituída de várias cores (homogéneas e primá-rias) que teriam ângulos próprios de refracçãoquando entravam ou saíam de um plano transpa-rente. Este aspecto foi demonstrado numa expe-riência crucial, ao fazer passar somente uma dascores do feixe inicial através de um outro prisma,que se projectava num segundo painel. A cor se-leccionada do primeiro prisma permanecia inalte-rada e com ângulo idêntico de refracção depois deatravessar o segundo prisma.

    Uma outra conclusão foi a de que a luz seriaconstituída por feixes de partículas minúsculasque se deslocavam em linha recta, com velocida-de constante (o que fundamentaria a teoria cor-puscular da luz). Newton reuniu os seus trabalhossobre a luz e a cor num conjunto de três livros (in-titulados genericamente de «The Opticks»), cujaprimeira edição foi publicada em 1704 em línguaInglesa (Fig. 8), com reedições sucessivas, quetiveram muito impacto no desenvolvimentosubsequente da física experimental nos séculos se-guintes.58

    Cerca de um ano depois, Frederick William

    Herschel (1800) demonstrou que a luz solar conti-nha uma fracção do espectro que não era visívelpelo olho humano e gerava calor, a qual viria a serdesignada por radiação infravermelha.59 [o]

    O físico alemão Johann Wilhelm Ritter, por es-tar convicto de que a polaridade governaria os fe-nómenos da natureza, procurou identificar radia-ções solares invisíveis na extremidade oposta doespectro em que Herschel havia detectado a radia-ção infravermelha. No ano seguinte, Ritter locali-zou, efectivamente, uma segunda radiação muitoalém do violeta que, tal como a luz solar, escureciaa pele e também papel impregnado com cloreto deprata.60 [p] Este novo tipo de radiações, que Ritter de-nominou por «raios químicos», recebeu posterior-mente a designação final de luz (ou radiação) ul-travioleta.61

    Decorreram quase oitenta anos até serem de-monstrados cientificamente, pela primeira vez, osefeitos biológicos da radiação solar directa. Em1877, Arthur Downes e Thomas Blunt realizaramuma das mais importantes descobertas da foto-biologia, ao verificarem que a luz solar directa ini-bia o crescimento de diversos microorganismos;62

    irradiando durante horas tubos de ensaio tapadoscom algodão, o seu interior mantinha-se estérildurante meses. A acção bactericida dependia daintensidade, duração e comprimento de onda daradiação, além da presença de oxigénio.62

    Através de um conjunto de experiências querealizou entre 1883 e 1885, Harry Marshall Ward,que foi o mais influente micrologista e fitopatolo-gista do Reino Unido, atribuiu a maior parte dosefeitos bactericidas da luz solar directa a compo-

    BREVE HISTÓRIA DO RAQUITISMO E DA DESCOBERTA DA VITAMINA D

    Figura 8. Capa de “Opticks” (vol. I, edição em 1704), deIsaac Newton.(Imagem do domínio público/Courtesy of Wikipedia).

    [o] Porém, é atribuída, ao académico e filósofo romano Titus CarusLucretius (cerca de 60 a.C.) a formulação da possível existência deuma radiação invisível (que seria a infravermelha) ao afirmar que o«fogo parece ser acompanhado por uma radiação que aumenta a suapotência». Herschel, que foi um notável astrofísico, estava convictode que as cores que atravessavam os diversos filtros através dos quaisobservava o Sol, continham níveis diferentes de calor. Para odemonstrar Herschel dirigiu a luz solar através de um orifício, apóso que mediu a temperatura de cada uma das cores difractadasutilizando três termómetros, um para receber a radiação a medir e osoutros para servirem de controlo, afastados do espectro. À medida queprocedia à medição da luz violeta para a vermelha verificou que arespectiva temperatura era cada vez maior e superior à dos controlos.Decidiu medir a temperatura na zona seguinte ao vermelho, em queparecia não haver qualquer irradiação. Porém, foi nesta zona queobteve a maior temperatura de todo o conjunto. Estava descoberta aradiação infravermelha.[p] Na carta que escreveu ao editor de Annalen der Physik, Ritter por-menorizava as suas observações: «On February 22nd I found solarrays-discovered by means of horn silver-also on the violet side of thespectrum of colors, outside of it. They reduce even more strongly thanviolet light itself, and the field of these rays is very large…».

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    nentes próximos da radiação ultravioleta e viole-ta-azul do espectro luminoso.63

    O interesse pelos «banhos de sol» com fins tera-pêuticos reacendera-se no século XVIII, sendo di-vulgados na literatura casos de lesões ou doenças(na maioria cutâneas) que haviam melhorado ouficaram curadas pela exposição ao sol.64 No sécu-lo seguinte sucederam-se os estudos fisiológicos(no homem e em animais de experiência), em quefoi demonstrado o efeito da luz solar em diversasfunções vitais, antecipando conclusões que viriama fundamentar no século XX, a cronobiologia e osritmos circadiários.65 Adicionalmente, foram refe-ridas doenças orgânicas e mentais que melhora-vam ou, em determinados casos, pioravam com aexposição ao sol.66 Em 1845, Bonnet afirmou que aartrite tuberculosa poderia ser tratada com helio-terapia.67

    O médico e antropologista norte-americanoFrederick Cook, que acompanhara uma expediçãopor navio à Antártida, em 1898, foi o primeiro aidentificar um síndroma provocado pela privaçãoprolongada de luz solar no estado físico e emocio-nal do homem.68 Aquela observação acidental de-correu durante o longo período em que o navio ex-pedicionário «Belgica» permaneceu imobilizadoentre glaciares e placas de gelo.[q] Cook havia já re-ferido, em 1894, um sindroma semelhante entre osesquimós, numa anterior expedição realizada aoÁrctico, que então caracterizou por uma «diminui-ção das secreções e das paixões».70

    O dinamarquês Niels Ryberg Finsen (Fig. 9), foio primeiro médico a utilizar a luz solar na práticaclínica e a estudar cientificamente a sua acção.71

    Como tal, Finsen foi o precursor da fototerapia mo-derna, numa época em que se assistia também àviragem da opinião pública quanto aos benefíciospara a saúde de uma maior vivência ao ar livre ecom ampla exposição ao sol.72 Até então ainda vi-gorava um acentuado preconceito social das clas-ses superiores contra a exposição solar (em parti-cular entre as mulheres) de modo a não se confun-direm, pela coloração e maior aspereza da pele,com os trabalhadores braçais. Porém, a populari-dade e aceitação dos potenciais benefícios para asaúde da exposição ao sol viria a generalizar-se so-mente a partir da segunda década do século XX.72

    Na descrição que fez do seu próprio trabalho,Finsen (que sofria da doença de Pick, e viveu osseus últimos anos de vida numa cadeira de rodas,sujeito a frequentes paracenteses) contou que oseu estado de saúde o havia influenciado bastan-te na investigação que realizara. Por se sentir me-lhor ao sol, a partir de 1888 começara a reunir to-das as informações disponíveis sobre os animaisque procuram a luz e os locais soalheiros, o que oconvenceu dos seus potenciais benefícios embo-ra lhe desconhecesse o mecanismo de acção.71

    Tendo confirmado as observações de investiga-ções anteriores, em que as lesões cutâneas de va-ríola eram agravadas pela luz solar73 e tinham evo-lução mais favorável e com menor cicatrização

    J. MARTINS E SILVA

    [q] A libertação do navio «Belgica», bem como a sobrevivência da tri-pulação, deverá ser em grande parte atribuída a Cook, conforme o seudiário, depois publicado. A expedição à Antártida, organizada pelo te-nente da marinha belga Adrian de Gerlache, reuniu uma tripulaçãomultinacional de 19 homens, e recebeu o alto patrocínio do rei belga.Depois de demorada observação científica em Tierra del Fuego, o na-vio entrou em águas da Antártida somente nos finais de Janeiro de1898, com a estação astral já muito adiantada e o Inverno polar pró-ximo. Cerca de um mês mais tarde, depois dum percurso tempestuo-so e as primeiras perdas humanas, o navio atingiu a zona dos iceber-gues e, em 2 de Março, ficou imobilizado no «mar de Bellingshausen».A 17 de Maio começou a longa noite polar e também o racionamen-to dos alimentos. A situação piorou rapidamente entre a tripulação,gerada pelas condições físicas de isolamento, alimentação enlatada edifícil intercomunicabilidade criada por diferentes idiomas nacionais.De acordo com os registos de bordo, a tripulação começou a ser afec-tada por persistente melancolia, que evoluiu gradualmente para o de-sespero, letargia e depressão profunda, a par com deterioração do es-tado físico e comportamentos psicóticos. Foi detectado escorbuto.Procurando solucionar a situação, Cook prescreveu uma alimentaçãocom carne de foca e pinguim. O comandante, aparentemente por nãoapreciar a ementa, opôs-se e depois proibiu o seu consumo pela tri-pulação, com as piores consequências, quer para o próprio, quer paramuito dos membros que, prostrados e doentes, não saíam dos beli-ches. Quando o comando passou para o imediato Roald Amundsen,as recomendações de Cook foram seguidas. Cook acreditava que o es-

    tado de saúde da tripulação era devido mais à falta de luz do que àscarências alimentares, pelo que organizou o que apelidou de «bakingtreatment», em que os doentes psicologicamente mais afectados fica-vam de pé e nus, algumas horas por dia, junto às caldeiras. O estadode espírito e o humor daqueles doentes parece ter beneficiado signi-ficativamente do efeito do calor e da luz recebidos naquele período.Igualmente os doentes com escorbuto registaram melhorias rápidascom as refeições com carne de pinguim e foca e conservas de fruta.Cook organizou, também, com sucesso, um programa de passeios nogelo (num circuito à volta do navio, que ficou conhecido por «passeioda casa de loucos») e também de jogos de cartas para ocupar os espí-ritos e minorar o estado depressivo da tripulação. Em Agosto, com oretorno da luz solar, a esperança regressou, mas o navio permaneciabloqueado por uma espessa camada de gelo pelo que o desespero, aparanóia e a loucura tomaram conta da tripulação. Em Janeiro do anoseguinte Cook tomou a iniciativa de propor a abertura de um canalatravés do gelo, que permitisse desencalhar o navio. Após uma primei-ra tentativa (em que o canal que estava quase concluído voltou a fe-char-se para reabrir no dia seguinte), o navio começou finalmente adeslocar-se. Tinham passado quase treze meses, dos quais 68 dias de-correram em «noite polar». Em Março de 1899 a expedição atracavaem Punta Arenas, com os primeiros registos fotográficos de Antárti-da. Nunca chegou a saber-se a etiologia exacta da doença que afectoua tripulação do «Bélgica», tomando como referência expedições seme-lhantes realizadas na mesma época, em que as tripulações resistirama condições adversas semelhantes.69

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    ravam substancialmente as lesões deformantes datuberculose cutânea (lúpus vulgaris) (Fig. 10).

    Em 1896 Finsen afirmava o seguinte:

    «If it is thought that my statements about the ef-fect of this treatment are too definite, consideringthat I have only studied 11 cases, my commentwould be that this would be quite right had a me-dicine given internally been studied, an injection orsimilar, where a systemic effect is expected. But herethe treatment is purely local, spot by spot is treatedand, for example, in one and the same patient onecan observe the same effect ten times or more. In(assessing) systemic treatments, each patient cancontribute only once (to an evaluation)».76

    Pelo mérito do seu trabalho no tratamento datuberculose cutânea, Finsen foi galardoado em1903 com o prémio Nobel da Medicina. Na ceri-mónia de apresentação dos trabalhos de Finsen(ausente por doença), foi referido que, nos pri-meiros seis anos, haviam sido tratados 800 casos,de lúpus vulgaris, dos quais 50% foram curados e45% dos restantes consideravelmente melhora-dos.77 Para o efeito, Finsen desenvolvera dois pro-cessos de fototerapia (com luz solar ou com luz deuma lâmpada eléctrica de arco de carbono queinventou e ficou conhecida por «lâmpada de Fin-sen»); em qualquer dos processos, a luz filtrada(ao atravessar uma lente biconvexa que continhano interior uma solução amoniacal de sulfato decobre, que absorvia as radiações amarela, verme-lha e infravermelha) era concentrada num feixeestreito que se fazia projectar (durante uma horapor dia) numa pequena zona da superfície a irra-

    BREVE HISTÓRIA DO RAQUITISMO E DA DESCOBERTA DA VITAMINA D

    quando os doentes permaneciam em aposentosescurecidos,74,75 Finsen optou, em 1893, por utili-zar (com êxito) a radiação infravermelha para fa-cilitar a cura das lesões cutâneas e evitar a forma-ção de cicatrizes. Dois anos mais tarde Finsen apre-sentou os primeiros e mais importantes resultadosda sua investigação, em que demonstrou que a luzsolar e a radiação ultravioleta curavam ou melho-

    Figura 9. Dr. Niels Ryberg Finsen (1860-1904), naturaldas Ilhas Faroe, sob soberania dinamarquesa, concluiu a licenciatura em medicina em Copenhaga, em 1890, ondeviria a residir. Foi docente de anatomia na Universidade local durante três anos, deixando aquelas funções para sededicar à investigação dos efeitos terapêuticos da luz, oque veio a realizar até ao fim da sua vida.Ainda antes deconcluir o curso havia tratado a adinamia e a anemia queo afectavam com a exposição prolongada do corpo ao sol.Os seus métodos terapêuticos tornaram-se prática corrente, que lhe granjearam fama e relevantes apoios filantrópicos e públicos. Em 1896 pôde inaugurar o Instituto Finsen de Fototerapia, em Copenhaga. Nesta instituição foi desenvolvida a investigação biológica eforam prestados cuidados médicos com base nos resultados obtidos pela fototerapia, de que Finsen foi o reconhecido fundador. Em 1898 foi-lhe atribuído o título de professor.(Imagem do domínio público/Courtesy of the ClendeningHistory of Medicine Library, University of Kansas MedicalCenter).

    Figura 10. Comparação das lesões da face, antes e depoisda fototerapia, pelo método de Finsen.(Crédito: Cortesia de Prof. José Fresquet,[email protected])

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    diar (Fig. 11). A fototerapia com luz ultravioleta revelou-se be-

    néfica em diversas outras doenças com repercus-são cutânea, vindo a adquirir larga aceitação clíni-ca nas décadas seguintes, com indicação em gran-de diversidade de situações.79 A melhoria entretan-to verificada nas características das lâmpadastornaram a fototerapia mais económica, mais se-lectiva quanto ao tipo de irradiação seleccionadae com utilização prática facilitada.80

    Entretanto, também começaram a ser referidosdiversos inconvenientes da luz solar e das lâmpa-das de fototerapia, designadamente a cegueira eoutras lesões oculares, queimaduras, queratiniza-ção e cancro da pele.81,82 Porém, a divulgação da-queles inconvenientes passou quase despercebidaou foi desvalorizada pela generalidade dos clínicosda época, sendo também praticamente desconhe-cida do público em geral.83 Em 1929 ainda era res-

    pondido no «JAMA», a uma pergunta de um clíni-co de Pittsburgh, não haver evidência de que a ex-posição solar predispusesse para a epitelioma dapele.84

    Naquele contexto, em que prevalecia a convic-ção de que a exposição solar era uma prática sau-dável, não surpreende o grande desenvolvimentoe adesão que tiveram os diferentes métodos da fo-toterapia nas primeiras décadas do século XX,apoiadas por resultados clínicos positivos em di-versas situações críticas, para as quais era desco-nhecida outra terapêutica, como sucedia com atuberculose, raquitismo, feridas ou úlceras cróni-cas.79,83

    O suíço Oskar Bernhard iniciou em 1902 a apli-cação local da helioterapia no tratamento da tuber-culose extra-pulmonar e também em feridas e úl-ceras da perna,85 o que se tornou prática correnteem diversos países. Na 1ª Grande Guerra (1914--1918) as úlceras de perna que afectavam os solda-dos nas trincheiras eram tratadas com banhos desol e também por fototerapia com lâmpadas dequartzo, em instalações sanitárias e estâncias bal-neares especialmente criadas pelas autoridadesmilitares dos países beligerantes.86 Idênticas medi-das foram seguidas na guerra de 1939-1945, aindaque progressivamente substituídas, no final, pelosantibióticos.50,85

    Apesar do êxito e reconhecimento que Bernhardalcançou com a helioterapia, foi o seu colega ecompatriota August Rollier quem difundiu a utili-zação daquela terapêutica na tuberculose.

    Rollier inaugurou em 1903, em Leysin (nos Al-pes Vaudoises), a sua primeira clínica (conhecidapor Le Challet) para o tratamento de doentes comtuberculose (extra-pulmonar e também pulmo-nar).85 Enquanto Bernhard restringia a irradiaçãosolar aos tecidos afectados, Rollier advogava a ex-posição progressiva de todo o corpo (a começar pe-los pés e deixando o abdómen e o tórax para o fim),de modo que ao fim de duas a três semanas cadaindivíduo permaneceria completamente expostoao sol durante três a seis horas. Rollier entendiaque os banhos de sol deveriam decorrer entre as 6e as 9h da manhã, a temperaturas não superioresa 18ºC, sendo os pormenores técnicos, como aadaptação progressiva dos doentes ao tratamento,rigorosamente cumpridos.64

    Em 1923, a revista «Time» publicou uma notíciaelogiosa sobre a elevada perfeição dos tratamentode Rollier e do seu colaborador Rosselet, na clíni-ca de Leysin:

    J. MARTINS E SILVA

    Figura 11. Métodos de tratamento de lupus vulgaris,desenvolvidos por NR Finsen: (a) exposição à irradiaçãosolar no pátio do Finsen Institute of Phototherapy; (b) fototerapia por irradiação ultravioleta, em gabinete.(Crédito: Cortesia de Prof. José Fresquet,[email protected])

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    the capillaries activates the circulation and may in-duce a continuous tonic action on the sensory ner-ve terminals in the skin, thus restoring tone to mus-cles and promoting physiologic processes throug-hout the body. This is the probable explanation ofthe increased metabolism of the body, of the impro-vement in general health and of the increased resis-tance to disease».65

    A caracterização clínica do raquitismo tambémevoluíra. Na mesma data, Parsons definia aqueladoença como uma «disfunção metabólica e nutri-cional que se repercutia em todo o organismo; o ra-quitismo poderia ser detectado de início por sinto-matologia própria dos diversos sintomas e não ne-cessariamente por alterações do esqueleto, emboraestas estivessem sempre presentes».90

    Embora houvesse uma forte evidência de que aexposição solar poderia evitar e também curar o ra-quitismo, é um facto que aquela possibilidade te-rapêutica era admitida com relutância pela gene-ralidade dos clínicos da época. A posição médicacomeçou somente a mudar quando Kurt Hulds-chinsky, em 1919, revelou que crianças com raqui-tismo melhoravam depois de expostas à luz solare também à iluminação artificial (a qual reproduziaa luz ultravioleta através de lâmpadas de quartzo--mercúrio).91 O tratamento com lâmpadas de quar-tzo ou de arco de carbono, constituído por sessõesde fototerapia (com a duração de uma hora, trêsvezes por semana, durante dois meses) conduziaà obtenção de grandes melhorias na mineralização

    BREVE HISTÓRIA DO RAQUITISMO E DA DESCOBERTA DA VITAMINA D

    «besides the sun (cure for tuberculosis and under-nourished children… a recognized part of moderntreatment for these conditions), occupational the-rapy, exercise and a diet of oils and fats, are therule».87

    Os métodos de Rollier com a helioterapia (e de-pois também com a fototerapia), para o tratamen-to da tuberculose e também para o das úlceras deperna, tiveram repercussão positiva, sendo segui-dos em outros centros internacionais[r] (Fig. 12).Com o advento da estreptomicina, em 1946, a uti-lização terapêutica da fototerapia na tuberculosefoi perdendo influência, até cessar.50 Ficaram comotestemunho dessa época os «sanatórios» distribuí-dos por montanhas e locais altos e arejados.[s]

    Cerca de 1920 encontrava-se definida e esclare-cida a existência, propriedades e relação da radia-ção ultra-violeta com a luz solar, e era tambémbem aceite a influência positiva da helioterapia eda fototerapia na saúde humana. Quanto a esta in-fluência Laurens postulava em 1928 que o efeito daradiação ultravioleta no organismo não se exerciadirectamente nos seus órgãos, antes resultava daformação na pele de uma substância fotoquímicaque era rapidamente transportada pela correntesanguínea ao restantes sectores do organismo. Osol exercia o seu efeito tonificante «…by dilating

    [r] Quando Rollier apresentou os seus primeiros resultados em Paris,em 1905, toda a audiência terá abandonado a sala.50 Quarenta anosdepois de ter aberto Le Challet, Rollier utilizava a helioterapia emtrinta e seis centros clínicos, num total de mil camas.85

    [s] O primeiro sanatório constituído em território Português para tra-tamento da tuberculose pulmonar (a «tísica») por helioterapia foi odo Funchal, em 1862. Em 1881 Sousa Martins promoveu, através daSociedade de Geografia, uma expedição científica à Serra da Estrela,visando o estudo das condições necessárias para o funcionamentode tratamento local de doentes com tuberculose pulmonar,88 após oque resumiu o que pensava sobre o efeito do clima na tuberculose:«Para uma determinada temperatura média, a localidade em que asvariações diurnas, semanais, mensais e anuais, forem menos amplas,será a menos propícia para o desenvolvimento da tuberculose... nãosó porque a defeciência do oxigénio em pressão e em massa é nociva àvida de alguns microorganismos que… colaboram na destruição dopulmão e na infecção do organismo, mas também porque a amplia-ção do thorax e a completa expansão pulmonar produzem a um tem-po o robustecimento do aparelho respiratório e o desalojamento dosseus microorganismos destruidores». Com o patrocínio da rainha D.Amélia, foi criada em 1899 uma fundação privada destinada a finan-ciar a luta anti-tuberculose, que agrupava sanatórios, dispensários epreventórios, a qual em 1946 deu lugar a uma instituição pública(Liga Nacional Contra a Tuberculose).89 Os sanatórios foram constru-ídos junto ao mar (p.ex., Outão em 1900, Carcavelos em 1902) ou emlocais elevados (p.ex., Guarda, em 1907, Portalegre, 1909). O Hospi-tal Escolar de Santa Maria em Lisboa, inaugurado em 1953 (segundoum modelo arquitectónico alemão da década de 30), também pos-suía um vasto solário cuja utilidade, em termos práticos, foi ultrapas-sada pelo bons resultados da estreptomicina.

    Figura 12. Sessões de helioterapia para doentes com tuberculose pulmonar em Texas Building of the Jewish Consumptives' Relief Society.(Crédito: Courtesy of Beck Archives Special Collectionsand Archives, Penrose Library, University of Denver).

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    do esqueleto (em particular na extremidade dosossos longos) comprovada por exame radiológico.Pelo contrário, nos grupos de controlo, represen-tado por crianças que não haviam recebido foto-terapia, não notava qualquer melhoria mas so-mente sinais discretos de recuperação pelo que,na opinião de Huldschinsky, a irradiação ultravio-leta seria um remédio «infalível» em todos os tiposde raquitismo infantil. O estudo de Viena indicaraque as crianças eram particularmente suceptíveisao raquitismo durante os primeiros seis meses devida.93

    Três anos mais tarde, Harriette Chick, que haviasido enviada pelo Lister Institute de Londres, de-pois da 1ª Guerra Mundial para liderar a investiga-ção do raquitismo em crianças de Viena com acen-tuados sinais de desnutrição, demonstrou queaquela doença podia ser curada pela exposição(progressiva) à luz solar e pela adição de suple-mentos alimentares de óleo de fígado de bacalhau,ou leite completo.93

    Aproximadamente na mesma data, Martha Eliotiniciara um programa clínico de detecção, preven-ção e tratamento do raquitismo que abrangia 216crianças de uma comunidade norte-americana deNew Haven. Ao fim de três anos comprovou que ascrianças com sinais radiológicos de raquitismo(89%) manifestavam franca melhoria a partir da 3ªsemana de tratamento diário com óleo de fígadode bacalhau e exposição ao sol.94 Na sequência da-quela observação Eliot abriu caminho à definiçãodas necessidades diárias de cada criança em vita-mina D, (entretanto limitada à administração deóleo de fígado de bacalhau), as quais seriam defi-nidas na década seguinte sob a forma de concen-trados de ergosterol irradiado, adicionados ao lei-te de vaca ou como suplemento à amamentaçãomaterna.95

    Em 1917 Alfred Hess e Lester Unger haviam de-monstrado que o óleo de fígado de bacalhau nadose de 1/2 a 6 colheres de chá diárias, evitava quebebés da comunidade negra residente em NewYork, com susceptibilidade para o raquitismo, de-senvolvessem a doença.96 Na sequência deste su-cesso Hess tentou convencer as autoridades sani-tárias da cidade a fornecerem gratuitamente aque-le óleo às crianças do mesmo escalão etário. A pro-posta foi recusada, com a justificação de que aeficácia do óleo de fígado de bacalhau derivava doseu conteúdo em gordura, sendo dada preferênciaao leite. Em resposta, Hess informou que o leite(humano ou de vaca) não tinha propriedades anti-

    raquitismo e a dieta normal também não.97 Em1922, Hess e Lundagemn demonstraram que oconteúdo em fósforo do leite de vaca era cerca decinco vezes inferior ao humano, o que explicaria aocorrência muito mais elevada de raquitismo emcrianças alimentadas a biberão;98 dos 250 bebésque haviam observado durante 4 anos, todos osque haviam sido alimentados a biberão com leitede vaca tinham sofrido de raquitismo; afirmou ain-da que a incidência da doença aumentava do Ve-rão até à Primavera seguinte, o que sucedia tam-bém em bebés alimentados ao peito. Diversos ou-tros estudos confirmaram, nos anos seguintes, queo raquitismo poderia ocorrer em bebés alimenta-dos ao peito, o que de certo modo punha em cau-sa a influência das carências dietéticas como cau-sa do raquitismo.32

    Entretanto, Hess e Unger informaram que setecrianças com raquitismo haviam sido curadas(com demonstração radiológica de epífises calci-ficadas) pela exposição diária à luz solar duranteperíodos variáveis, no telhado de um hospital deNew York.99

    Raquitismo experimental e nutrição

    Na década de 1920, muitos pediatras conceituadosainda não consideravam que o óleo de fígado debacalhau tivesse efeitos anti-raquitismo superiorao de outros lípidos.32 Todavia, nessa mesma déca-da, as propriedades anti-raquitismo e a eficácia doóleo de fígado de bacalhau seriam finalmente de-monstradas. A situação viria a complicar-se algunsanos mais tarde, quando Wyman e Weymaller re-velaram que cerca de 98% das 36 crianças a quemhavia sido administrado óleo de fígado de baca-lhau apresentavam sinais de raquitismo.100 Estaobservação causou grande perplexidade até ser es-clarecido, entre as possíveis causas, que o produ-to que estava a ser administrado continha poucaou nenhuma potência anti-raquitismo. O sucedi-do acentuou a necessidade de se promover a ca-racterização do(s) factor(es) anti-raquitismo e adefinição das doses terapêuticas a administrar.31

    Entretanto, haviam sido dados os primeiros pas-sos no desenvolvimento do raquitismo experimen-tal, por manipulação do conteúdo em cálcio e fós-foro. Na primeira década do século XX, F. Hopkins,que analisara aspectos químicos e fisiológicos daalimentação, postulou que o escorbuto e o raqui-tismo seriam devidos à deficiência de determina-

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    do nutriente ainda desconhecido.101[t] O primeiroestudo experimental sobre o assunto, em confir-mação do que Hopkins havia presumido 12 anosantes, veio a ser realizado somente em 1919 porEdward Mellanby, que induziu o raquitismo emcachorros alimentados com um de quatro tipos deração, todos à base de papas de aveia.102 Todas asdietas induziram raquitismo acentuado ao fim dealgumas semanas. Se as dietas fossem enriqueci-das com manteiga, leite completo ou, preferenci-almente, com óleo de fígado de bacalhau, o raqui-tismo era evitado. Atendendo a que aqueles suple-mentos alimentares tinham elevado conteúdo emvitamina A, Mellanby admitiu que a doença seriadevido à carência daquele factor nas dietas indu-toras de raquitismo, embora deixasse em aberto aintervenção de outra substância lipossolúvel:

    «It therefore seems probable that the cause of ri-ckets is a diminished intake of an antirachitic fac-tor which is fat-soluble, or has somewhat similardistribution to fat-soluble A».

    Porém, além de Mellanby ter mantido os ani-mais com privação da luz solar (o que seria umasegunda causa potencial do raquitismo), tambémutilizara dietas relativamente deficientes em cál-cio.[u] Um ano depois daquelas primeiras observa-ções de Mellanby, o pediatra escocês Paton verifi-cou uma relação entre o desenvolvimento do ra-quitismo e o ambiente, ao constatar que os cachor-ros que tinham muita actividade ao ar livre eramsaudáveis, ao contrário de um outro grupo quepermanecia no laboratório, alimentados com amesma ração, e que revelavam raquitismo.104 Estesresultados marcaram o início da controvérsia en-tre os defensores da carência de um factor dietéti-co como causa do raquitismo e os que a relaciona-vam com restrições de exercício e ar livre e não po-luído.

    A importância da dieta e também da exposiçãoà luz no controlo do raquitismo experimental foidestacada nos estudos que Alwin Pappenheimer eCols publicaram em 1921 (Fig. 13); as rações enri-

    quecidas com cálcio e com baixo teor de fósforo in-duziam o raquitismo em ratos; se os animais fos-sem expostos ao sol durante 15 a 30 minutos pordia não desenvolviam sinais da doença, ao contrá-rio do grupo de controlo, que era mantido em es-curidão. A adição de fosfato à ração também evi-tava o desenvolvimento do raquitismo. Esta expe-riência veio chamar a atenção para a necessidadede controlar todas as variáveis experimentais nosestudos de raquitismo.105

    Elmer McCollum, que havia descoberto em 1913o factor lipossolúvel («lipin») depois designado porvitamina A,42 estava também envolvido nessa datana investigação do raquitismo, em colaboraçãocom colegas pediatras e especialistas em histopa-tologia óssea do Johns Hopkins University. McCol-

    BREVE HISTÓRIA DO RAQUITISMO E DA DESCOBERTA DA VITAMINA D

    [t] Frederick Hopkins partilhou em 1929, com Christiaan Eijkman, oprémio Nobel em Medicina «pelas suas descobertas sobre as vitami-nas estimuladoras do crescimento».[u] Em 1949 Mellanby esclareceu o assunto, ao atribuir a descalcifi-cação (induzida pela dieta que utilizara nos seus primeiros estudos)à existência de substâncias anticalcificantes (p.ex., fitatos) nos cereais,as quais interfeririam na absorção intestinal ou no metabolismo docálcio.103

    Figura 13. Junções condrocostais de ratos alimentadoscom ração nº 84 (indutora de raquitismo) durante 34 dias:(a) evidência de raquitismo grave; (b) ausência de sinais deraquitismo no caso de um rato da mesma ninhada e idên-ticas características que recebeu irradiação solar. In: Hess,Unger and Pappenheimer: Experimental rickets in rats. III,JBC 1922; 50:77-82.(Crédito: Courtesy of Journal of Biological Chemistry –ASBMB).

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    lum adquirira experiência em estudos de nutriçãoanimal enquanto docente da Universidade de Wis-consin. Dos primeiros estudos em que participa-ra (em que grupos de novilhos eram alimentadoscom rações diferentes), McCollum concluiu que oproblema mais importante era descobrir o que fal-tava em cada dieta. Para dar seguimento à ideia,McCollum deu preferência a estudos com animaismais pequenos e com menor longevidade. Os pri-meiros trabalhos foram realizados em ratos selva-gens que ele próprio capturava mas, devido aosresultados serem inconclusivos, foi autorizado aadquirir (a expensas próprias) 12 ratos albinos paraexperimentação.106 Deste modo McCollum foi pio-neiro nas experiências de nutrição em ratos, nosquais, em colaboração com Margueritte Davis,procurou estabelecer um modelo de estudo apli-cável ao ser humano.107

    Em 1917, ao aceitar o convite para professor edirector do Department of Chemical Hygiene darecém-formada School of Hygiene and PublicHealth de Johns Hopkins University, McCollum erajá um respeitado investigador no campo da nutri-ção e dos seus factores essenciais, em que se des-tacava a descoberta da vitamina A. Na sua novaposição McCollum desenvolveu diversos estudosde desnutrição em ratos, variando a composiçãodas respectivas rações. Quando John Howland (en-tão director do Serviço de Pediatria da mesma Uni-versidade) lhe perguntou (em 1918) se seria possí-vel desenvolver o raquitismo em ratos, McCollummostrou-lhe alguns dos animais das suas expe-riências, em que era visível a deformação torácicae a nodulação da grelha costal, junto com outrosque, tendo recebido dietas idênticas mas a que ha-via adicionado determinados suplementos, nãoevidenciavam quaisquer daquelas alterações (in-terpretadas como sinais de raquitismo). A colabo-ração interdisciplinar que daí resultou (entre o gru-po de bioquímicos de McCollum e o de pediatrasliderados por John Howland) conferiu um impul-so extraordinário aos estudos subsequentes sobrea etiologia do raquitismo e à influência que a com-posição da dieta exercia no desenvolvimento ós-seo; adicionalmente, aqueles estudos foram acom-panhados pela observação radiológica das lesõesósseas do raquitismo e das suas modificações coma variação da composição dietética.

    Em 1921, McCollum e Cols obtiveram lesõesconsistentes em ratos, semelhantes às observadasem crianças afectadas com raquitismo, quandoutilizavam rações alimentares deficientes em vita-

    mina A e cálcio (Fig. 14). Então admitiram, comosucedera a Mellanby, que a causa da doença pode-ria ser uma deficiência em vitamina A ou de cálciona alimentação, ou a consequência de uma altera-ção do respectivo metabolismo.108 A adição de óleode fígado de bacalhau à dieta induzia, em poucosdias, sinais de regeneração (óssea e cartilaginosa)proporcional à duração do tratamento.109 Por acçãodaquele suplemento assistia-se à deposição do cál-cio em camadas lineares, particularmente nas car-tilagens. Esta característica da calcificação passoua ser utilizada como marcador biológico (designa-do line test) da quantidade de substâncias anti-ra-quíticas nos alimentos.

    McCollum presumiu, perspicazmente, que ofactor anti-raquitismo seria distinto da vitamina A.Para demonstrar aquela hipótese procedeu à inac-tivação (por oxidação por aquecimento prolonga-do a 100oC)[v] da vitamina A existente no óleo de fí-gado de bacalhau. Aquele óleo (bem como outrosóleos de peixe, óleos vegetais e manteiga oxidada),perdera as propriedades anti-xeroftálmicas depoisda oxidação, mas mantivera as propriedades anti--raquitismo, pelo que estimulava selectivamente adeposição de cálcio nos ossos. McCollum e Cols

    J. MARTINS E SILVA

    Figura 14. Efeito da alimentação de ratos com rações indutoras de raquitismo.(1) Comparação de um animal normal (N) com outrocom raquitismo (R), com igual idade (210 e 204 dias,respectivamente) e sexo. O animal raquítico pesava 100g,enquanto o normal tinha 295g. (2) Superfície pleural dotórax de um rato com raquitismo experimental grave, emque é evidenciado o acentuado alongamento das junçõescostocondrais (cc). In: McCollum, Simmonds, Parsons,Shipley and Park: Studies on experimental rickets. JBC1921; 45:333-341.(Crédito: Courtesy of Journal of Biological Chemistry –ASBMB).

    [v] Conforme havia sido demonstrado por Hopkins.101

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    concluiram que o factor anti-raquitismo seria umaoutra substância lipofílica diferente da vitamina A,presente na fracção termoestável:

    «... demonstrates that the power of certain fats toinitiate the healing of rickets depends on the presen-ce of a substance which is distinct from fat solubleA. These experiments clearly demonstrate the exis-tence of a fourth vitamin whose specific property, asfar as we can tell at present, is to regulate the meta-bolism of the bones».110[w]

    Em 1921, Shiphey e Cols haviam confirmado aeficácia do óleo de fígado de bacalhau e da luz ul-travioleta no tratamento do raquitismo experi-mental induzido em ratos.111 Dois anos mais tarde,Harry Golblatt e Katherine Soames demonstraramque ratos em que havia sido induzido raquitismoficavam curados quando ingeriam, na ração, fíga-do de outros ratos previamente irradiados com luzultravioleta.112 Na sequência destes estudos foiadmitido que o fígado (de rato irradiado) tinha acapacidade de promover o crescimento, o que nãosucedia com o de animais não irradiados. Foi en-tão constatado por Harry Steenbock que amostrasde tecido muscular extraídas de rato e rapidamen-te sujeitas a irradiação ultravioleta também evi-denciavam propriedades anti-raquitismo e indu-ziam o crescimento dos animais sendo o mesmoefeito referido para as rações alimentares depois deirradiadas.113

    Em 1923, duas investigadoras de Londres, Eleanor Hume e Hannah Smith, haviam comuni-cado que ratos com raquitismo induzido por die-tas hipofosfatadas melhoravam não só depois deexpostos à radiação ultravioleta mas também de-pois dos recipientes em que se encontravam (jar-ras de vidro cilíndricas, de que haviam sido entre-tanto removidos e depois realojados) serem irradi-adas.114 Aquele presumível efeito do «ar irradiado»(atribuído à ionização do ar pela radiação ultravi-oleta) seria apoiado pela observação de que, de-pois de o substituírem imediatamente por atmos-fera comum, antes de reinstalarem os animais, es-tes não evidenciam nenhuma melhoria do raqui-tismo depois de recolocados nas respectivas jarras.

    Os resultados da experiência anterior não fo-ram confirmados por Thomas Webster e LeonardHill.115 Posteriormente, Hume e Smith esclarece-

    ram que o efeito anti-raquitismo do «ar irradiado»derivara da irradiação das rações que haviam fica-do nas gaiolas e haviam sido depois consumidaspelos animais.116 Click e Tazelaar, que a pedido da-quele grupo haviam testado a eventual influênciada ionização do ar nas condições experimentaisutilizadas e nos resultados verificados, concluíramque a ionização era temporária e não induzia qual-quer efeito anti-raquitismo.117

    Numa outra série de experiências, realizada namesma data, Steenbock e Cols haviam tambémobservado um efeito estranho: ratos irradiadosmisturados na mesma gaiola com ratos não ir-radiados induziam o crescimento destes últi-mos.118,119 Porém, quando os ratos com raquitismo,que não haviam sido irradiados, eram mantidosseparados em gaiolas diferentes dos irradiados,não evidenciavam qualquer melhoria.120

    Para clarificar aqueles resultados, o mesmo gru-po de investigadores norte-americanos repetiu asexperiências de Hume e Smith, tendo porém o cui-dado de instalar os ratos em jarras com uma redeinferior, através da qual passavam as fezes dos ani-mais. Tal como nas experiências anteriores, os ra-tos com raquitismo que não haviam sido irradia-dos, depois de instalados numa daquelas jarras,começavam a melhorar; porém, se a rede (cons-purcada) fosse substituída por uma nova, aquelesanimais não evidenciavam qualquer alteração.121

    Aparentemente, a melhoria dos animais comraquitismo que não haviam sido irradiados deriva-ra do seu contacto com substâncias produzidaspelos ratos irradiados (p.ex., excreções, secreçõesaderentes nos filtros ou do próprio pêlo). Este as-sunto foi esclarecido por Steenbock e Cols, numaexperiência em que utilizaram pares de gaiolas so-brepostas, de modo que as fezes das que ficavampor cima caíam na gaiola inferior. Quando os ra-tos com raquitismo, que haviam sido irradiados, fi-cavam na gaiola superior, os animais da inferior re-gistavam também melhoria; quando as posiçõeseram trocadas, os animais não irradiados na gaio-la de cima não evidenciavam qualquer melhoria.Destes resultados foi concluído que os animais ir-radiados produziam substâncias com efeitos anti--raquitismo; por outro lado, foi excluída a hipóte-se de os efeitos da irradiação poderem ser trans-mitidos somente pelo ar.121

    Admitindo ainda que a melhoria do raquitismodos ratos não irradiados pudesse estar relaciona-da com os resíduos de rações irradiadas que os ani-mais tivessem ingerido, Steenbock e Cols promo-

    BREVE HISTÓRIA DO RAQUITISMO E DA DESCOBERTA DA VITAMINA D

    [w] Este novo factor seria a quarta vitamina, que McCollum e Cols de-signaram por vitamina D, por ordem de denominação das vitaminaA, B (factores hidrossolúveis) e C (factor anti-escorbútico).

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    veram outras experiências, em que lotes de ani-mais com raquitismo tinham acesso a rações cujosconstituintes purificados haviam sido previamen-te irradiados. Os animais alimentados com estetipo de ração evidenciaram crescimento superior,comparativamente aos que haviam ingeridorações não irradiadas.119, 122 Concluiu-se do expos-to que as rações indutoras de raquitismo no ratoadquiriam propriedades anti-raquitismo depois

    de expostas à luz ultravioleta (Fig. 15). O mesmosucederia com a irradiação de lípidos incluídos naração, que revelavam propriedades anti-raquíticasanteriormente inexistentes.123 Desta sequência deestudos foi concebida a possibilidade de irradicaro raquitismo humano através do consumo de ali-mentos previamente irradiados.

    Sabia-se naquela data que outros alimentos ougorduras animais (p. ex., a manteiga e os óleos depeixe) não precisavam de ser irradiados para ori-ginarem idênticos resultados. Igualmente, era pon-to assente que a irradiação contínua melhorava oucurava o raquitismo humano ou experimental. Po-rém, ambas as questões eram difíceis de conciliarpelos conhecimentos da época. De facto, quer oóleo de fígado de bacalhau (utilizado como suple-mento alimentar), bem como o consumo de ra-ções pré-irradiadas ou a irradiação directa dos ani-mais, produziam efeitos anti-raquíticos equivalen-tes.123

    Identificação do factor anti-raquitismo

    Utilizando uma banda mais estreita do espectro ul-travioleta, inferior a 314nm, Alfred Hess e MildredWeinstock demonstraram, em ratos alimentadoscom ração indutora de raquitismo, que a irradiaçãopor luz solar evitava o desenvolvimento da doen-ça.124 Adicionalmente, Hess e Cols comprovaramque os constituintes alimentares que eram activa-dos pela luz ultravioleta (nos quais se incluíam gor-duras animais e óleos vegetais) tinham a constitui-ção de esteróis.105, 125 Foi então admitido que os es-teróis de qualquer origem (animal, vegetal ou defungos) constituiriam uma protecção anti-raqui-tismo, após serem irradiados por luz ultravioletacom comprimento de onda de 253 e 302 nm.126

    A adição de fitosterol (isolado do óleo da semen-te de algodão) ou colesterol (isolado do cérebro derato e recristalizado), depois de irradiados, às ra-ções indutoras de raquitismo, protegia os animaisde desenvolvimento da doença.126 Foi sugeridoque, pelo facto de existir nas camadas profundasda epiderme em quantidades relevantes, o coles-terol (que depois se verificou ser o seu precursor7-desidrocolesterol) poderia ser um intervenientenatural nos mecanismos anti-raquitismo, uma vezactivado pela irradiação ultravioleta ou radiaçãosemelhante; os ésteres de colesterol acetato evi-denciaram propriedades idênticas.126,127

    Pouco depois, dois grupos de outros investiga-

    J. MARTINS E SILVA

    Figura 15. Efeito calcificante em extremidades distaisósseas induzidas pela ingestão de ração irradiada, duranteperíodos variáveis, em ratos com raquitismo. (1): Ração irradiada durante 3 dias; (2) 7 dias de irradiação; (3) 10 dias de irradiação; (4) 21 dias de irradiação.In: Steenbock and Nelson, Fat-solube vitamins. XIX, JBC1924; 62:209-216(Crédito: Courtesy of Journal of Biological Chemistry ASBMB)

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    tectável pelos processos de purificação químicahabituais (Fig. 16).

    A identificação química daquele eventualcontaminante (e potencial pré-vitamina) gerouum momento de colaboração internacional ímparentre os laboratórios de Hess (em Nova Iorque),Windaus (em Gottinger) e de Rosenheim (em Lon-dres).

    O colesterol (purificado com brometo e recris-talizado) não evidenciava propriedades anti-ra-quíticas depois de irradiado por luz ultravioleta,128

    o que foi confirmado por Windaus e Hess,130 quetambém isolaram um contaminante do colesterolnão purificado. Esta substância contaminante, quese verificou ser quimicamente relacionada com oergosterol, apresentava grande actividade anti-ra-quítica em soluções muito diluídas. Após analisa-rem cerca de três dezenas de esteroides extraídosde várias fontes vegetais, Windaus e Hess conclu-íram que o ergosterol era a substância contami-nante (presente em fungos) das amostras de coles-terol que conferia potência anti-raquitismo aos ali-mentos irradiados com luz ultravioleta.

    A revelação por Heilbron e Cols, em 1927, deque o espectro de absorção do «colesterol» apre-sentava picos que não correspondiam aos daque-le composto, confirmou as suspeitas sobre a exis-tência de uma substância desconhecida que lheestaria associada como contaminante, de que re-sultava o efeito anti-raquitismo.131 No mesmo anoRosenheim e Webster confirmaram que o ergoste-rol era a provitamina D, depois convertida na for-ma activa por irradiação.132

    Finalmente, em 1931, Askew e Cols,133 Reerink eVan Wijk134 e Windaus135 isolaram, purificaram, cris-talizaram, identificaram e deduziram a estruturado ergosterol irradiado, depois denominada vita-mina D2 (ou calciferol), cuja estrutura veio a serestabelecida por Windaus e Thiele em 1936.135[x]

    Primeiros ensaios terapêuticos com suplementos dietéticos

    Na sequência da observação por Steenbock de queas rações para rato, irradiadas pela luz solar ou ul-travioleta, evitavam o desenvolvimento do raqui-tismo ou induziam a melhoria nos animais afecta-

    BREVE HISTÓRIA DO RAQUITISMO E DA DESCOBERTA DA VITAMINA D

    dores128, 129 isolaram uma substância com acçãoanti-raquitismo a partir da activação do ergosterolou do colesterol. Foi então sugerido que o percur-sor da vitamina D não seria o colesterol, por si, masuma substância que lhe estaria associada, inde-

    Figura 16. Protecção anti-raquítica do colesterolirradiado, do óleo de fígado de bacalhau e de umaprecipitado do colesterol com digitonina (separado docolesterol “activado”), administrados diariamente comosuplementos de ração a ratos com raquitismo(previamente induzido por uma dieta desprovida delípidos e deficiente em fosfato). O diagnóstico eacompanhamento da acção calcificante foramdeterminados por radiografia da grelha costal e da junçãoepifisária dos joelhos dos animais observados. Emcomparação com os controlos (1 e 5), a administração docolesterol não irradiado (2) não induziu acção calcificante.Pelo contrário, o colesterol irradiado (3), precipitado docolesterol irradiado (4) e o óleo de fígado de bacalhau (6)evidenciaram acção anti-raquitica.(Créditos: Reproduced with permission from Rosenheimand Webster, 1926; Biochem J. 20:537-544;È the Biochemical Society).

    [x] Adolf Otto Reinhold Windaus foi galardoado em 1928 com o prémioNobel da Química «pela contribuição que deu à investigação sobre aconstituição dos esteróis e respectiva conexão com as vitaminas».

  • ÓRGÃO OF IC IAL DA SOC IEDADE PORTUGUESA DE REUMATOLOGIA - ACTA REUM PORT. 2007;32:205-229

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    dos,113, 119[y] veio a ter grande repercussão clínica nasdécadas seguintes. A suplementação dietética como ergosterol irradiado ou a sua incorporação em al-guns alimentos (como cereais e pão) era fácil, eco-nómica e, como tal, tornou-se prática corrente nadécada de 1920 e terá contribuído para uma acen-tuada redução no raquitismo infantil.

    A descoberta dos efeitos anti-raquitismo do er-gosterol irradiado obteve larga aceitação na épo-ca, sendo aquela substância patenteada sob a de-signação comercial de «Viosterol» e, como tal, uti-lizada frequentemente na clínica.139,140 Esta opçãofoi, em larga medida, facilitada pelos potenciaisinconvenientes da utilização terapêutica da radia-ção ultravioleta, designadamente, os