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Joao Daniel Rassi Doutorado 2012 Versao Completa

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crime

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  • J o o D a n i e l R a s s i

    I M P U T A O D A S A E S N E U T R A S E O D E V E R D E

    S O L I D A R I E D A D E N O D I R E I T O P E N A L B R A S I L E I R O

    FACULDADE DE DIREITO DA USP

    So Paulo

    2012

  • J o o D a n i e l R a s s i

    I M P U T A O D A S A E S N E U T R A S E O D E V E R D E

    S O L I D A R I E D A D E N O D I R E I T O P E N A L B R A S I L E I R O

    Tese sob orientao do professor titular

    Vicente Greco Filho, do Departamento de

    Direito Penal, Medicina Forense e

    Criminologia, da Faculdade de Direito da

    Universidade de So Paulo, como requisito

    parcial obteno do ttulo de Doutor em

    Direito.

    FACULDADE DE DIREITO DA USP

    So Paulo

    2012

  • B A N C A E X A M I N A D O R A

    ________________________________________

    ________________________________________

    ________________________________________

    ________________________________________

    ________________________________________

  • Ao professor Vicente Greco Filho, por tudo.

    Ao professor Paulo Jos da Costa Jr. cujas mos sensveis

    me conduziram vida acadmica

    Ao professor Antonio Luis Chaves Camargo (in memoriam)

    porque, ao democratizar o ensino do direito

    penal, acabou me ensinando tambm.

  • (...) porque nenhum segue mais leis, que as da

    convenincia prpria. Imaginar o contrrio, querer

    emendar o mundo, negar a experincia, e esperar

    impossveis (Padre Antonio Vieira. Obras inditas.

    Tomo I, Lisboa: Editores, J.M.C. Seabra & T. Q.

    Antunes, 1856, p. 21).

  • RESUMO

    A presente tese se prope a analisar os limites entre a participao criminal e a

    conduta impune, com o objetivo de enfrentar a problemtica das chamadas aes neutras,

    a partir do fundamento do injusto da participao criminal.

    Para tanto, so expostas as diversas teorias que explicam o injusto do partcipe,

    entre as quais feita opo pela mais adequada sistemtica brasileira do concurso de

    pessoas, a qual servir de base para a apresentao do prprio ponto de vista para resolver

    a questo da punibilidade das condutas a priori neutras.

    A teoria da imputao objetiva foi considerada como um instituto essencial na

    anlise da participao criminal, o que permitiu a abordagem sobre o desvalor da conduta

    do partcipe como objeto de imputao.

    O desvalor da conduta do partcipe, por sua vez, foi entendido como uma violao

    do dever de solidariedade, o que implicou no tratamento da solidariedade humana objetiva

    como elemento imprescindvel para a existncia social coesa, a partir do pensamento de

    Durkheim e Giddens.

    Por fim, aceitando o pressuposto de que nem todos so responsveis pelo

    comportamento alheio, a omisso penalmente relevante foi estudada como critrio capaz

    de limitar a responsabilidade penal no caso em que h concurso de pessoas para a prtica

    de crime, na discusso do seu limite mnimo.

    Palavras chave: limites da participao criminal aes neutras ou cotidianas dever de

    solidariedade

  • ABSTRACT

    The present work aims to analyze the boundaries between the criminal participation

    and non-punishable conducts, with the intention of addressing the question of the so-called

    neutral or daily actions, from the standpoint of the unjust of the criminal participation.

    To this effect, the work begins by exposing the numerous theories that explain the

    unjust of the criminal participation. The study is then limited to the one that best fits the

    Brazilian law regarding concerted actions, which will then be used as grounds to the

    authors point of view to address the issue of the punishment of the actions that a priori are

    daily or neutral.

    The theory of objective imputation was considered essential to the analysis of the

    criminal participation, thus allowing the study of the social disapproval of the conduct of

    the accessory as the object of criminal imputation.

    The social disapproval of the conduct of the accessory, on the other hand, was seen

    as a breach in the obligation of solidarity, which resulted in objective human solidarity

    being considered a fundamental element to a cohesive social existence, as stated by

    Durkheim and Giddens.

    Finally, according to the assumption that not everyone is responsible for other

    peoples behavior, relevant criminal omission was studied as a criteria to restrict criminal

    liability in concerted actions, when debating its minimal limit.

    Keywords: limits of criminal participation neutral or daily actions - obligation of

    solidarity

  • RIASSUNTO

    La presente tesi si propone di analizzare i limiti tra la partecipazione criminale e la

    condotta impune, con lobbiettivo di affrontare la problematica delle chiamate azioni

    neutre, a partire dal fondamento della fattispecie delittuosa della partecipazione criminale.

    A tal fine, sono esposte le diverse teorie che spiegano la fattispecie delittuosa del

    compartecipe, tra le quali si predilige, come pi confacente, la sistematica brasiliana del

    concorso di persone, la quale servir come base per proporre il proprio punto di vista, al

    fine di dirimere la questione della punibilit delle condotte a priori neutre.

    La teoria dellimputazione oggettiva stata qualificata come unun istituto

    essenziale allanalisi della partecipazione criminale, il che ha permesso di discutere circa la

    svalutazione della condotta del compartecipe come oggetto dimputazione.

    La svalutazione della condotta del compartecipe, a sua volta, stata intesa come

    una violazione del dovere di solidariet, il che ha implicato, nel trattamento della

    solidariet umana obbiettiva, come elemento imprescindibile per lesistenza sociale coesa,

    a partire dalla concezione di Durkheim e Giddens.

    Infine, accogliendo il presupposto secondo il quale non tutti sono responsabili per il

    comportamento altrui, lomissione penalmente rilevante stata considerata come criterio

    capace di limitare la responsabilit penale nel caso in cui esista un concorso di persone

    nella commissione di un reato, nelle discussione del suo limite minimo.

    Parole chiave: limiti della partecipazione criminale - azioni neutri o quotidiane - dovere di

    solidariet

  • SUMRIO

    1. CONSTELAO DE CASOS ....................................................................................... 12

    1.1. Casos da jurisprudncia brasileira ............................................................................... 13

    1.2. Casos da jurisprudncia espanhola: ............................................................................. 16

    2. INTRODUO: .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18

    2.1. Abordagem do tema: justificativa para a escolha e importncia do tema. .................. 18

    2.2. Contribuio original da tese cincia jurdica brasileira .......................................... 21

    3 . A S C O N D U T A S N E U T R A S O U L A B O R A I S . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2 2

    3.1. Colocao do problema ............................................................................................... 22

    3.2. Conceito de conduta neutra ......................................................................................... 25

    3.2.1. As aes neutras como um problema da participao criminal ........................... 28

    3.2.2. O problema das aes neutras a ttulo de autoria ................................................. 30

    3.3. Aes neutras na perspectiva criminolgica: .............................................................. 31

    3.4. Teorias clssicas .......................................................................................................... 32

    a) Adequao social ................................................................................................... 32

    b) Princpio da insignificncia ................................................................................... 35

    c) Proibio de regresso ............................................................................................ 35

    4. A PARTICIPAO DELITIVA NO DIREITO PENAL BRASILEIRO:

    FUNDAMENTOS E LIMITES ....................................................................................... 39

    4.1. Posio do problema: pressupostos tericos ............................................................... 39

    4.2. Delimitao conceitual (necessria) entre autoria e participao: o sistema legal

    brasileiro ...................................................................................................................... 43 4.2.1. Anotaes sobre os modelos de concurso de pessoas.......................................... 43

    4.2.2. O contexto legal brasileiro ................................................................................... 46

    4.2.2.1. O Cdigo Penal de 1940 ................................................................................. 46

    4.2.2.2. A reforma da parte geral de 1984: o polmico art. 29 .................................... 49

    4.2.2.3. Nossa posio.................................................................................................. 54

    4.3. O princpio da acessoriedade ....................................................................................... 57

    4.3.1. A acessoriedade e o modelo de concurso de pessoas .......................................... 57

    4.3.2. A dependncia do grau de realizao do iter criminis: acessoriedade

    quantitativa ........................................................................................................... 59

    4.3.3. A dependncia dos elementos do fato punvel: acessoriedade qualitativa........... 59

    4.3.4. O tratamento dado acessoriedade no direito brasileiro ..................................... 61

    4.3.5. Acessoriedade versus fundamento da punio da participao ........................... 63

    4.4. A participao criminal no direito brasileiro: esclarecimento terminolgico ............. 64

    4.5. Fundamento do injusto da participao: o limite mnimo da participao .................. 68

    4.5.1. A corrupo do autor como fundamento da punibilidade da participao:

    teorias ................................................................................................................... 71

    4.5.2. A fundamentao da pena do partcipe e sua contribuio a leso do bem

    jurdico ................................................................................................................. 75

    4.5.2.1. Teoria da participao independente ou teoria pura da causao (Die reine Verursachungstheorie) ......................................................................... 76

    4.5.2.1.1. A posio de Lderssen: a negao da acessoriedade .................................. 77

    4.5.2.1.2. Outras verses da teoria pura da causao ................................................... 80

    4.5.2.1.3. Consequncias prticas da compatibilidade da teoria pura da causao e

    o princpio da acessoriedade, entendido como pressuposto (e no como

    fundamento) da pena do partcipe. ............................................................... 83

    4.5.2.2. Teoria da causao orientada acessoriedade ou teoria da participao no

    injusto ou teoria da causao ou do favorecimento ........................................ 86

  • 4.5.2.2.1. A dependncia absoluta do injusto do partcipe em relao ao injusto do

    autor .............................................................................................................. 87

    4.5.2.2.2. Teoria do ataque acessrio ao bem jurdico protegido ................................. 88

    4.5.2.3. Tendncias modernas ...................................................................................... 92

    4.5.2.3.1. Solidarizao com o injusto alheio ............................................................... 92

    4.5.2.3.2. Teoria da participao no injusto referida ao resultado ................................ 95

    4.6. Teorias de autores nacionais que explicam a problemtica das aes neutras sem,

    necessariamente, se posicionarem sobre o fundamento do injusto da participao ... 100

    4.7. A participao criminal e a imputao objetiva ......................................................... 102

    4.7.1. A causalidade da contribuio delitiva do partcipe ........................................... 102

    4.7.2. A imputao objetiva do partcipe ..................................................................... 103

    4.8. A misso do direito penal e o direito penal como um sistema aberto ........................ 104

    5. DO DEVER DE SOLIDARIEDADE ............................................................................ 107

    5.1. As cincias sociais como sistema necessrio de anlise ............................................ 107

    5.2. A expanso do direito penal frente s transformaes sociais: aspectos crticos ....... 109

    5.3. O dever de solidariedade e a expanso do direito penal............................................. 111

    5.4. O conceito de solidariedade de E. Durkheim e o direito penal. ................................. 113

    5.4.1. Os fatos sociais" ................................................................................................ 114 5.4.2. A diviso de trabalho .......................................................................................... 116

    5.4.3. Conceito objetivo de solidariedade e o direito (penal) ....................................... 117

    5.4.4. A solidariedade (objetiva) mecnica e o direito penal ........................................ 118

    5.4.5. A solidariedade (objetiva) orgnica .................................................................... 120

    5.5. A. Giddens e a nova modernidade ............................................................................. 122

    5.6. A solidariedade social ................................................................................................ 128

    5.7. Sistema peritos ........................................................................................................ 129 5.8. Cultura do controle: a contribuio de D. Garland para o debate atual do direito

    penal. .......................................................................................................................... 130

    5.9. A finalidade da pena para Garland. ............................................................................ 131

    5.10. Dever de solidariedade e aes neutras ................................................................... 135

    6. CONSTRUO DO FUNDAMENTO DO INJUSTO DA

    PARTICIPAO EM SEU LIMITE MNIMO: A TESE .. . . . . . . . . . . . . . . . . . 142

    6.1. Pressupostos tericos ................................................................................................. 142

    6.2. Tipicidade substancial, a imputao das aes neutras e o dever de

    solidariedade144

    6.3. Possveis crticas ao nosso posicionamento ............................................................... 152

    a) posicionamento ad hoc .......................................................................................... 152

    b) a aplicao de uma norma de extenso construda para crimes omissivos (art.

    13 2, CP) tambm para crimes comissivos ........................................................ 152

    c) Todo interveniente neutro no fato do autor converte-se em garante de sua evitao? ............................................................................................................... 154

    7. A OMISSO PENALMENTE RELEVANTE .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 155

    7.1. Consideraes iniciais ................................................................................................ 155

    7.2. Escolas penais e a distino entre ao e omisso: observaes crticas ................... 157

    7.2.1. Causalismo .......................................................................................................... 157

    7.2.2. Neokantismo ....................................................................................................... 159

    7.2.3. Finalismo ............................................................................................................ 159

    7.3. O pensamento de Armin Kaufmann ........................................................................... 160

    7.3.1. Crticas ao pensamento de Armin Kaufmann ..................................................... 162

    7.3.2. Outras propostas de diferenciao a partir do pensamento de Armin

    Kaufmann............................................................................................................ 163

    7.4. Concluses preliminares ............................................................................................ 168

    7.5. Aproximao conceitual: delitos de omisso imprpria ............................................ 168

  • 7.6. A posio de garante: as teorias do dever jurdico e das posies de garantia .......... 171

    7.6.1. Teorias do dever jurdico: o dever de garantia.................................................... 171

    7.6.2. Crtica positivao de todas as fontes de garantia ............................................ 175

    7.6.3. Garantidor em razo de lei e do contrato ............................................................ 176

    7.6.4. De outra forma assumiu a responsabilidade de impedir o resultado .................. 180

    7.6.5. Garantidor em funo do comportamento anterior ............................................. 182

    7.6.6. Ingerncia em Gnther Jakobs ............................................................................ 182

    7.6.7. Tomada de postura .............................................................................................. 184

    7.7. A questo da participao por omisso ...................................................................... 188

    7.7.1. O problema da infrao do dever para justificar a interveno punvel ............. 188

    7.7.2. Da possibilidade de participao por omisso .................................................... 190

    7.7.3. A participao por omisso segundo a teoria do domnio do fato ...................... 191

    7.7.4. A participao por omisso segundo a teoria diferenciadora ............................. 192

    7.7.5. Requisitos para a participao por omisso ........................................................ 195

    7.7.6 Aes neutras e participao por omisso .......................................................... 200

    8. SOLUO DOS CASOS .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 203

    8.1. Julgados 1 e 2. ............................................................................................................ 203

    8.1.1. Do contexto legal da criminalizao da advocacia ............................................. 204

    8.1.2. Crime de lavagem de dinheiro ............................................................................ 205

    8.1.3. Responsabilidade Penal do Advogado e o Crime de Lavagem de Dinheiro ...... 208

    8.1.4. Responsabilidade Penal do Advogado Parecerista ............................................. 215

    8.1.5. Posicionamento ................................................................................................... 217

    8.2. Julgado 3. ................................................................................................................... 218

    8.3. Julgado 4. ................................................................................................................... 219

    8.4. Julgado 5. ................................................................................................................... 219

    8.5. Julgado 6. ................................................................................................................... 220

    8.6. Julgado 7 e 8. .............................................................................................................. 220

    8.7. Julgado 9. ................................................................................................................... 224

    8.8. Julgado 10. ................................................................................................................. 224

    8.10. Julgado 11. ............................................................................................................... 224

    8.11. Outras hipteses ....................................................................................................... 225

    8.11.1. O contador ........................................................................................................ 225

    8.12.1. Criminal compliance ............................................................................................. 226

    8.12.1.1. Esclarecimentos terminolgicos .................................................................... 226

    8.12.1.2. Compliance e outros cargos coorporativos .................................................... 227

    8.12.1.3. A exigncia tica no mbito coorporativo ..................................................... 228

    8.12.1.4. Arcabouo legal das regras ticas dos programas de compliance ................. 229

    8.12.1.5. Compliance e direito penal ............................................................................ 230

    9 . C O N C L U S E S . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2 3 2

    1 0 . R E F E R N C I A S B I B L I O G R F I C A S . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2 3 6

  • 12

    1. CONSTELAO DE CASOS

    Diversos so os exemplos de contribuio ao delito apresentados pela doutrina

    como paradigmas da dita ao neutra (cotidiana ou laboral). Em todos os estudos sobre o

    tema, proliferam exemplos doutrinrios que pretendem ilustrar o carter social ou

    profissionalmente adequado dessas contribuies ao delito perpetrado (como autor) por

    outrem.

    De outra banda, no apenas a doutrina que lida com o tema. A

    jurisprudncia estrangeira, primordialmente a alem, tambm tem enfrentado a questo

    em julgamentos, aos quais no raro oferece solues com base nos critrios de imputao

    ou de excluso da imputao preconizados pelas diversas teorias das aes neutras.

    Especialmente de relevo para o presente trabalho so os julgados brasileiros

    que, apesar de expressamente no utilizarem teorias especficas sobre a participao nas

    aes neutras, tratam do problema, que est no contexto da participao delitiva cada um

    a sua maneira, ou, como preferem alguns, com solues ad hoc.

    Exemplos desses casos jurisprudenciais, alguns emblemticos, so

    encontrados a seguir e servem como hipteses sobre a relevncia e amplitude do

    problema que se pretende enfrentar.

    Nessa seleo optou-se por indicar casos relacionados a crimes que ofendem

    bens jurdicos individuais ou coletivos, previstos no Cdigo Penal ou leis especiais

    brasileiras. Optou-se, tambm, por indicar casos da jurisprudncia espanhola, pela sua

    acessibilidade.

    Ao final da tese, apresentaremos nossa soluo a todos eles.

    Por fim, os casos aventados pela doutrina sero referidos indiretamente, a

    ttulo exemplificativo, nem sempre nos posicionando a respeito, quando tratarmos das

    teorias dos diversos autores que enfrentaram o problema.

  • 13

    1.1. Casos da jurisprudncia brasileira

    Julgado 1 : C.S.L.S., Procuradora do Municpio de Santo Andr SP, foi

    denunciada pela prtica do crime previsto no art. 90 da Lei n. 8.666/90 (fraude em

    licitao), por ter, no exerccio de sua funo, emitido pareceres opinando pela legalidade

    de aditamentos contratuais celebrados entre a empresa X e a Prefeitura de Santo Andr,

    os quais foram, posteriormente, considerados como ilegais pelo Ministrio Pblico.

    Recebida a denncia pela 2 Vara Criminal de Santo Andr, a defesa de C.S.L.S.

    impetrou habeas corpus perante o Tribunal de Justia do Estado de So Paulo,

    postulando o trancamento da ao penal por falta de justa causa, tendo em vista a

    atipicidade da conduta, por se tratar de advogada no exerccio de funo opinativa, e por

    no estar o Estado vinculado a opinio emitida pelo parecerista. A ordem, contudo, foi

    denegada; o que impulsionou a defesa da denunciada a ingressar com o remdio

    constitucional perante o Superior Tribunal de Justia, pelos mesmos argumentos.1

    Julgado 2: M.B., C F. e O. R., advogados, prestam assistncia tributria que

    consiste na elaborao de defesas e pareceres jurdicos, bem como na formulao de

    planejamento tributrio para a empresa X, de propriedade de J.P. e A.S., os quais foram

    denunciados como incursos nas penas do art. 1, II, da Lei n. 8.137/90. Em aditamento

    denncia, M.B., C F. e O. R. tambm foram denunciados pelos mesmos crimes, na forma

    prevista pelo art. 11 da mesma Lei, por entender que os advogados participaram da

    consumao dos delitos na medida em que, atravs de seu servio de consultoria fiscal,

    aconselharam os donos da empresa a adotar prticas que sabiam ser ilcitas, com vistas a

    assegurar a reduo ou supresso de impostos.2

    1 STJ, HC n. 78.553-SP, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, 6 Turma, data de julgamento:

    09/10/2007, DJ 29/10/2007. 2 Julgado trazido colao por Maria Elizabeth Queijo na obra Responsabilidade penal do advogado

    parecerista em matria tributria. In: Coord. Davi de Paiva Costa Tangerino e Denise Nunes Garcia

    (coord.). Direito penal tributrio.. So Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 274 e tambm utilizado por Matias

    Illg. Planejamento tributrio: estamos diante de uma conduta neutra? In: Alberto Silva Franco e Rafael Lira

    (coord.). Direito penal econmico questes atuais.. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 277-297.

  • 14

    Julgado 3: R.A., funcionria do Banco X, prestava assessoria financeira a

    C.P., correntista daquele banco e funcionrio pblico. Ocorre que C.P., durante o

    exerccio da funo pblica, recebeu vantagens ilcitas decorrentes de desvio de recursos

    pblicos, e fez depsitos em bancos estrangeiros sem os declarar ao Banco Central do

    Brasil (Bacen) ou Secretaria da Receita Federal do Brasil (SRF). Por tais condutas, C.P.

    foi denunciado pelos crimes previstos no art. 317, 1, c/c o art. 327, 2, ambos do Cdigo

    Penal; art. 22, pargrafo nico, da Lei n. 7.492/86; art. 1, V e VII, art. 1, II, c/c art. 1,

    4, da Lei n. 9.613/98; e art. 288, do Cdigo Penal. Por ter auxiliado C.P. na lavagem de

    ativos e na manuteno de depsitos no exterior de maneira irregular, R.A. tambm foi

    denunciada como incursa nos crimes previstos no art. 22, pargrafo nico, da Lei n.

    7.492/86; no art. 1, V e VII, c/c art. 1, 4, da Lei n. 9.613/98; art. 1, 2, II, da Lei n.

    9.613/98; e art. 288 do Cdigo Penal. C.P. veio a falecer antes da prolao da sentena.

    Julgado 4: A empresa X utilizou os servios da empresa Y para comercializar

    os ttulos de capitalizao por ela emitidos. No entanto, enquanto a empresa X possua a

    devida autorizao para funcionar como sociedade de capitalizao, o mesmo no ocorria

    com a empresa Y. Por outro lado, a venda de tais ttulos, na modalidade compra

    programada, foi marcada por diversas irregularidades e acabou por lesionar inmeros

    adquirentes as quais jamais receberam de volta os valores investidos. Em decorrncia

    de tais fatos, E.D.F. e R.F.S.S. representantes legais da empresa X foram denunciados

    pela prtica dos crimes previstos nos arts. 5, caput e pargrafo nico, 7, 8 e 16, todos

    da Lei n. 7.492/1986.3

    Julgado 5: Os scios da empresa X, especializada na importao e comrcio

    de artigos de luxo, foram denunciados pela prtica dos crimes previstos nos arts. 288, 299

    e 334 do Cdigo Penal, c/c o artigo 1 da Lei 9.034/95, c/c o artigo 2, a, da Conveno

    das Naes Unidas Contra o Crime Organizado, c/c o arts. 21, pargrafo nico, e 22,

    pargrafo nico, primeira figura, da Lei n. 7.492/86, todos estes c/c os artigos 29 e 69,

    do Cdigo Penal por ter, em conjunto, e por vrias vezes, falsificado a documentao que

    instrua a Declarao de Importao de diversos bens; bem como simulado a interposio

    de importadores e exportadores fraudulentos entre os reais contratantes (fornecedor e

    3 Autos n. 2004.61.81.000329-1, 6 Vara Federal de So Paulo SP.

  • 15

    adquirente destes bens), com o fim de ocultar a identidade deste ltimo perante os

    sistemas de dados da Receita Federal e do Banco Central do Brasil relativos ao comrcio

    exterior e cmbio, visando ao subfaturamento de inmeras operaes. M.B., funcionria

    da empresa X, era encarregada de funes administrativas de pouca complexidade, e seu

    poder decisrio era bastante limitado. No entanto, era responsvel pela traduo, para o

    idioma ptrio, dos pedidos de fornecedores estrangeiros que seus chefes traziam consigo

    aps realizarem viagens ao exterior; e tinha conhecimento de que o esquema que ajudava

    a alimentar era fraudulento. Por isso, foi denunciada pelo cometimento dos mesmos

    crimes que os demais scios da empresa4.

    Julgado 6: A.A.C., motorista de txi da cidade de Palmital, conduziu X e Y

    at determinados endereos, onde estes praticaram assaltos. Aps, transportou-os de volta

    e recebeu pela corrida feita; sem, no entanto, ter cincia das atividades delituosas de seus

    passageiros. Em primeira instncia, foi condenado como coautor dos crimes praticados

    por X e Y. Inconformado, apelou.5

    Julgado 7: O.J.V., proprietrio de uma madeireira da cidade de Prudentpolis,

    emprestou trator e moto-serra para P.M.M. para que este cortasse rvores da espcie

    Araucria angustiflia, considerada de preservao permanente, sem permisso da

    autoridade competente. Em troca do emprstimo, recebeu metade da quantidade de

    madeira cortada.6

    4 Autos n. 0009015-40.2009.403.6181, em trmite perante a 6 Vara Criminal Federal de So Paulo SP.

    5 A deciso tambm foi utilizada por Lus Greco. Cumplicidade atravs de aes neutras a imputao

    objetiva da participao. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. Segue ementa do acrdo citado: CO-AUTORIA Falta de participao consciente e voluntria do acusado no crime Mera conduo do co-ru em que aquele se verificou Absolvio Inteligncia do art. 25 do CP. No basta para configurar a co-autoria o simples auxlio material, sendo necessrio demonstrar-se um acordo de vontade, no sentido de uma participao

    ciente e consciente na obteno do resultado visado pela prtica do ato ilcito. (TACr. Apelao n. 235.631, Rel. Des. Camargo Sampaio, data de julgamento 23.12.1980, JTACrSP LEX

    70, p. 199-200). 6 CRIME AMBIENTAL VIOLAO DO ARTIGO 45 DA LEI 9.605/98 CORTAR OU TRANSFORMAR

    EM CARVO MADEIRA DE LEI, EM DESACORDO COM AS DETERMINAES LEGAIS APELAO QUE COLIMA COM ABSOLVIO, A PRETEXTO DE INEXISTIR PROVA DE ENVOLVIMENTO DO

    APELANTE NO ILCITO IMPROCEDNCIA DO ARGUMENTO EM FACE DA CONDENAO ESTAR ANCORADA EM CONVINCENTE PROCA, MATERIAL E TESTEMUNHAL, ALM DE RESULTAR DE

    EXPRESSA CONFISSO. SENTENA ESCORREITA ALEGAO DE QUE TERIA SIDO A EMPRESA A FORNECER O EQUIPAMENTO DELA NO PARTICIPANDO O ACUSADO NO COMPROVAO EM RAZO DE NO TER SIDO JUNTADO O CONTRATO SOCIAL DA FIRMA AUTOAO FEITA NA PESSOA DO RU DESPROVIMENTO RECURSAL. (TJ/PR, Apelao n. 296129-5, Rel. Des. Joo Domingos Kster Puppi, data de publicao 26/01/2007).

  • 16

    Julgado 8: Indivduos no identificados cortaram quatro rvores em bosque

    protegido pela legislao ambiental, dentro de um condomnio de casas de campo.

    A.A.F., Presidente do Conselho de Administrao do condomnio, foi processado

    criminalmente e condenado pelas condutas tipificadas nos arts. 38 e 39 da Lei n.

    9.605/987.

    Julgado 9: E., esposa de A., era frequentemente agredida fisicamente por seu

    marido. Relatou este fato a seu irmo B. e seu primo C., os quais decidiram procurar

    vingana. Certa noite, quando A. j estava dormindo, B. e C. foram casa de E., armados

    com facas, e bateram porta. E., ao verificar que seu marido j estava dormindo, abriu a

    porta para seu irmo e primo, e lhes franqueou a entrada. Estes, ento, amarraram A. e o

    carregaram at um terreno baldio, onde o violentaram com facadas e o jogaram em um

    poo, no qual veio a falecer. B., C. e E. foram pronunciados e levados a jri popular, pelo

    cometimento do homicdio duplamente qualificado. O jri de E., no entanto, no se

    realizou, devido a um habeas corpus impetrado em seu favor, que acabou por anular sua

    sentena de pronncia por falta de fundamentao8.

    1.2. Casos da jurisprudncia espanhola:

    Julgado 10: Membros do grupo terrorista espanhol ETA sequestraram o

    empresrio J.C. e o mantiveram em cativeiro por quase um ano. Durante este perodo, um

    dos membros do grupo responsvel pela manuteno do cativeiro, F., levava as roupas do

    sequestrado para que sua esposa, T. a qual estava ciente das atividades ilcitas de seu

    7 HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. CRIME AMBIENTAL. ALEGAO DE INPCIA DA

    DENNCIA. INOCORRNCIA. RESPONSABILIZAO DO PRESIDENTE DO CONSELHO DE

    ADMINISTRAO. POSSIBILIDADE. ORDEM DENEGADA.

    1. Os tipos penais que descrevem as condutas tidas como ilcitas destruir ou danificar floresta considerada de preservao permanente e cortar rvores em florestas consideradas de preservao permanente (arts. 38

    e 39 da Lei 9.605/98) no impem a aplicao da sanso penal apenas quele que fisicamente executou a atividade criminosa; aquele que, na qualidade de partcipe, presta suporte moral ou material ao agente,

    concorrendo, de qualquer forma, para a realizao do ilcito penal, por bvio, tambm deve ser

    responsabilizado, nos termos do art. 29 do CPB e do art. 2 da Lei 9.605/98.

    2. A conduta omissiva no deve ser tida como irrelevante para o crime ambiental, devendo da mesma forma

    ser penalizado aquele que, na condio de diretor, administrador, membro do conselho e de rgo tcnico,

    auditor, gerente, preposto ou mandatrio da pessoa jurdica, tenha conhecimento da conduta criminosa e,

    tendo poder para impedi-la, no o fez.

    3. Ordem denegada. (STJ, HC 92822/SP, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, data de julgamento 17 de junho de 2008). 8 Autos n. 827/92, em trmite no Terceiro Tribunal do Jri de So Paulo SP.

  • 17

    marido as lavasse. Ao final do sequestro, os sequestradores utilizaram o carro de T.

    para levar J.C. at o local combinado para sua libertao. T. foi processada e condenada

    como cmplice do delito de crcere privado e, inconformada com a sentena, apelou ao

    Tribunal Supremo espanhol9.

    Julgado 11: F.J.V.S., jornalista, escreveu e publicou, em um peridico

    espanhol, uma matria na qual fornecia dados pessoais inclusive fotografias de

    indivduos que, segundo ele, estavam envolvidos em atividades terroristas de carter

    ultradireitista, que tinham por finalidade principal combater o grupo organizado rival,

    conhecido como ETA. Aps a referida publicao, duas das pessoas nela citadas foram

    assassinadas; tendo sido o jornalista processado por participao em tais assassinatos.10

    9 N. de recurso: 773/2004 N. de resolucin: 185/2005 Tribunal Supremo

    10 Recurso de amparo n. 107/1983 Tribunal Constitucional Espanhol

  • 18

    2. INTRODUO

    Que razes de ordem especulativa e prtica podero justificar a feitura de um trabalho sobre a co-delinquncia no moderno direito penal brasileiro? No estar, acaso, o problema da participao criminosa suficientemente esclarecido

    pelos juristas, tantas so as controvrsias que suscitou, as

    doutrinas que fez nascer, to rica e variada a literatura

    especializada a que deu origem? Ser ainda oportuna e,

    principalmente, apresentar alguma utilidade uma tese versando

    matria to ventilada, debatida, praticamente esgotada?11

    2.1. Abordagem do tema: justificativa para a escolha e importncia do

    tema.

    O tema Imputao das aes neutras e o dever de solidariedade no direito

    brasileiro foi escolhido pela sua relevncia ao estudo do tema concurso de pessoas.

    Com ele se pretende estudar os limites e fundamentos da participao criminal

    por meio de casos especiais, as aes neutras, cuja caracterstica principal (ainda a

    definir) reside no fato de se tratar de aes cotidianas que de alguma forma acabam

    favorecendo a prtica de um crime. Nesses casos surge a necessidade de se esclarecer se

    tais condutas podem ser punidas a ttulo de participao ou no. No obstante, a prpria

    qualidade de uma ao neutra tambm ser um problema a ser enfrentado.

    Ao que consta, as aes neutras no mbito da participao delitiva tm sido

    um dos temas mais intensamente discutidos na doutrina jurdico-penal nos ltimos dez

    anos, principalmente na Alemanha, no sendo objeto de maiores estudos na doutrina

    penal brasileira.12

    A grande maioria dos penalistas alemes atuais tem se posicionado a

    11

    So questes levantadas em 1947 por Esther de Figueiredo Ferraz na introduo da sua obra para, na

    sequncia, responder todas as perguntas de modo a justificar a importncia do estudo do tema, que teve o

    ttulo A codelinquncia no moderno direito penal brasileiro. So Paulo: Dissertao para concurso livre-

    docncia de Direito Penal, da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo, 1947, p. 5. 12

    Exceo feita ao livro Cumplicidade atravs de aes neutras: a imputao objetiva na participao, de

    Lus Greco (Rio de Janeiro: Renovar, 2004), que tambm noticia, em prefcio da citada obra, linhas de

    Miguel Reale Jr. sobre o tema, em seu livro Instituies de direito penal (p. 322-323), e um artigo de Flvio

    Cardoso Pereira (As aes cotidianas no mbito da participao delitiva. Revista Sntese de Direito Penal e Processual Penal, n. 16, out. nov. de 2002, p. 37-41, out./nov. 2002). Recentemente foi publicado um livro

    especfico, fruto de mestrado, por Jos Danilo Tavares Lobato enfrentando a temtica (Teoria geral da

    participao criminal e aes neutras: uma questo nica de imputao objetiva. Curitiba: Juru, 2009).

  • 19

    respeito.13

    tambm identificada como o tema da moda na discusso da participao

    delitiva.14

    No que o tema seja novo, no . Na verdade, o debate foi reacendido diante

    do chamado direito penal econmico em que se passou a questionar a punio de agentes

    participantes da atividade empresarial, cuja caracterstica nos dias de hoje a

    complexidade da diviso funcional do trabalho.

    O problema das aes neutras e sua possvel punio quanto formas de

    cumplicidade sero estudados no seu aspecto doutrinrio em duas etapas: primeiramente

    analisando as teorias apontadas pela doutrina que, de algum modo, tradicionalmente

    apresentavam sua soluo e, depois, as teorias modernas que tem cuidado

    especificamente sobre o tema.

    Como o ponto nuclear de qualquer debate a respeito dos limites da

    participao mximos e mnimos, incluindo nesses ltimos o problema das aes

    neutras o estudo do seu fundamento de punio, dedicaremos um captulo especfico a

    respeito.

    Assim, quando determinado autor alm de defender sua teoria moderna sobre

    as aes neutras, tambm se posicionar sobre o fundamento da participao, os dois

    assuntos sero tratados conjuntamente, j que o primeiro corolrio do segundo. Os

    demais casos, as teorias sero tratadas em um tpico prprio e separado.

    De qualquer forma, o referido estudo terico desenvolvido servir de pano de

    fundo para se demonstrar que as solues esto longe de serem uniformes, muitas vezes

    apresentando frmulas esquemticas ad hoc para resolver somente a questo das aes

    neutras e, algumas vezes, casos concretos de aes neutras, e no da imputao da

    participao, da qual ela se insere.

    Tambm foram feitos comentrios por Paulo Queiroz em seu Direito penal: parte geral, 5 ed., Rio de

    Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 256-257, e por Renato Jorge da Silveira, em sua tese a concurso de Professor

    Titular da Fadusp, publicada como Fundamentos da adequao social em direito penal. So Paulo: Quartier

    Latin, 2010, p. 345-352, alm de esparsos artigos especficos sobre a incriminao do exerccio da advocacia

    pela lavagem de dinheiro e por crime tributrio. 13

    Conforme afirma Ricardo Robles Planas. La participacin en el delito: fundamento y lmites. Madrid:

    Marcial Pons, 2006, p. 15. 14

    Por autores como Claus Roxin, Wolfgang Frisch etc., conforme lembra Jos Antonio Caro John.

    Normativismo e imputacin jurdico-penal: estudios de derecho penal funcionalista. Lima: Ara, 2010, p. 190,

    nota de rodap 3.

  • 20

    Segundo alguns autores, tal postura acaba atingindo a uniformidade do

    sistema do direito penal. Para ns, a soluo ser especfica sem, contudo, estar

    desassociada do fundamento do injusto da participao.

    Ligada diretamente ao problema est a questo do concurso de pessoas,

    previsto, na legislao brasileira, no art. 29 do Cdigo Penal brasileiro. Necessrio se faz,

    dessa forma, realizar uma releitura das diversas formas de participao, inclusive com

    opo terminolgica, dada a discrepncia em que tratada pela doutrina.

    A tipicidade ser estudada como o fundamento terico no qual se buscar a

    afirmao de critrios jurdicos penais propostos para resolver o problema de

    cumplicidade. Em outras palavras, numa tentativa de solucionar o problema, dever ser

    investigado de quais pressupostos de que se deve partir para deixar de declarar tpicas (ou

    antijurdicas; ou culpveis) aquelas aes no manifestamente punveis.15

    Nesse sentido, partir o trabalho da aplicao da teoria da imputao objetiva

    aos casos de participao criminal.

    Questo de complexidade, antecedente a qualquer proposta, porm, saber o

    fundamento ou a razo que justifica excluir a punio dessas aes que, a sua maneira,

    contribuem para o resultado criminoso. o contedo do injusto punvel. Nesse sentido,

    acompanhando as modernas tendncias do direito penal em consider-lo um sistema

    aberto, suscetvel a influncias de outras cincias, buscaremos na sociologia, no

    pensamento formulado por mile Durkheim sobre o dever de solidariedade, o substrato

    terico para soluo encontrada.

    Fornecer uma soluo ao fenmeno da imputao das aes neutras na

    participao criminal , em outras palavras, assumir um instrumento terico sistemtico

    capaz de fixar os limites da punio da participao criminal.

    Assim, o presente trabalho ter por principal objetivo apresentar uma soluo

    sistemtica para enfrentar a questo das aes neutras no mbito da participao,

    apontando um critrio sistemtico previsto no prprio Cdigo Penal brasileiro,

    considerando-a como um problema de imputao, a partir de um fundamento sociolgico.

    15

    V. Lus Greco, Op. Cit., p. 113-114.

  • 21

    2.2. Contribuio original da tese cincia jurdica brasileira

    O objetivo da presente tese analisar, de forma indita na literatura jurdica

    brasileira, a temtica das condutas neutras no mbito da participao criminal luz da

    tenso entre os deveres especiais de garantia extrapenais, inferidos da omisso

    penalmente relevante (art. 13, 2, Cdigo Penal brasileiro), e o dever genrico de

    solidariedade.

    Igualmente de forma inovadora, buscar-se- um fundamento sociolgico do

    dever de solidariedade em mile Durkheim para se identificar a legitimidade da punio

    ou no no mbito da participao no direito brasileiro.

    A contribuio ser, portanto, a apresentao de um novo critrio limitador da

    participao, de fundamento sistemtico, com base nas cincias sociais.

  • 22

    3 . A S C O N D U T A S N E U T R A S O U L A B O R A I S

    Parece, primeira vista, que o melhor caminho o da definio precisa at porque uma das crticas que mais comumente se formulam a qualquer construo o fato de ser

    vaga, de modo que vaguez, impreciso, nunca podem ser tidas

    como virtudes, mxime em direito penal, onde a segurana

    jurdica de tamanha importncia. Uma anlise mais detida,

    porm, far com que hesitemos, mostrar que a situao no

    simples assim. Porque se por um lado verdade que, em

    princpio, a preciso melhor do que a vaguez, tal nem sempre

    precisa ser o caso. Tudo depende de qual a funo da definio

    no sistema da teoria.16

    3.1. Colocao do problema

    A maior interao e diviso de tarefas entre os cidados no desempenho de

    suas atividades cotidianas acabam por permitir que aes lcitas e juridicamente

    orientadas passem a integrar o desenvolvimento do delito, com ou sem o conhecimento

    daquele que desempenha a atividade.

    Para estes casos de interveno que, ainda que, embora indiretamente, acabam

    favorecendo o cometimento de crimes, no h uma soluo doutrinria formada. As

    teorias tradicionais de participao e autoria, como ser visto a seguir, no so

    suficientemente explicativas para lidar com este tipo de participao mais sutil, em que

    no h o envolvimento direto do interveniente no planejamento ou execuo do delito.

    Isto porque o contexto histrico e social em que foram formuladas diverge, em muito,

    daquele em que se aplica o direito penal contemporneo.

    Fez-se necessrio, assim, que a doutrina passasse a reavaliar os critrios de

    imputao de responsabilidade de todos aqueles que intervm no curso de delito, os

    fundamentos da punio do partcipe, e a delimitar com critrios mais precisos a

    possibilidade de punio daquelas condutas cotidianas que, por facilitarem ou

    contriburem indiretamente para a execuo do crime, sejam ou no merecedoras de pena.

    16

    Lus Greco. Cumplicidade atravs das aes neutras: a imputao objetiva na participao. Rio de

    Janeiro: Renovar, 2004, p. 108.

  • 23

    neste contexto que surgem as primeiras discusses acerca das condutas

    neutras. Trata-se ainda de uma teoria embrionria,17

    que aporta contribuies

    especialmente de estudiosos alemes e espanhis.

    As condutas neutras podem ser identificadas como aquele grupo de casos em

    que ocorre uma ao en s no equvocamente delictiva, que acaba favoreciendo

    conscientemente un delito, mediante aportaciones social o profesionalmente adecuadas,

    estndar, o en fin, conforme al desempeo de actividades o negocios normales de la vida

    cotidiana.18 Trata-se de condutas de eventual cumplicidade no delito.

    O objetivo do estudo de tais aes mostra-se relevante para a delimitao das

    condutas de interveno, com vistas a fornecer parmetros garantistas e legais para

    orientao do tratamento destas aes, especialmente pela jurisprudncia, que ainda no

    conta com um arcabouo terico desenvolvido sobre o tema.

    As condutas neutras de cumplicidade so observadas especialmente na

    realizao de atividades profissionais cotidianas, por isso se trata al parecer de un

    problema principalmente de delimitacin de algunos supuestos lmites que por

    desarrollarse como contribuciones en el marco de la actividad laboral, cotidiana,

    habitual, suscitan dudas sobre su calificacin en el caso concreto como cooperacin

    punible.19

    A discusso sobre as condutas neutras torna-se ainda mais importante nos dias

    atuais, em virtude dos crimes econmicos, pois como indicado no grupo de casos,20

    estas

    so as atividades laborais em que se exige intenso dever de cuidado, chegando a doutrina

    a mencionar inclusive a possibilidade de punio dos agentes financeiros (bancrios,

    fiscais, funcionrios do mercado de capitais etc.) por omisso deste dever especial de

    cautela.

    17

    Como afirma Landa Gorostiza, nos encontramos, en trminos dramticos, en el ojo del huracn y en un estadio de confusin e inflacin de contribuciones doctrinales con alusin a problemas tan diversos y de tanto

    calado (alcance, criterios y funcin de la imputacin objetiva; conveniencia de ampliar las posiciones de

    garanta; concepcin del dolo y su relacin con el aspecto subjetivo, relacin entre las conductas de

    complicidad y los delitos de peligro abstracto, teoras de la participacin, lmites y fundamentos da

    accesoriedad (La complicidad delictiva en la actividad laboral cotidiana: contribucin al lmite mnimo de la participacin frente a los actos neutros. Granada: Comares, 2002, p. 4). 18

    Ricardo Robles Planas. La participacin en el delito: fundamento y lmites. Madrid: Marcial Pons, 2006, p.

    15. 19

    Jon-Mirena Lana Gorostiza. Op. Cit., p. 56. 20

    Conforme captulo anterior.

  • 24

    Esta possibilidade de imputao de pena, como veremos, mostra-se altamente

    problemtica diante da falta de delimitao dos limites da punibilidade nestes casos de

    aes cotidianas: la irrupcin en la moderna dogmtica de la criminalidad econmica ha

    comportado que, en muchos casos, las reglas de imputacin construidas sobre la base de

    los delitos contra la vida condujeran a castigar conductas de dudoso merecimiento de

    pena.21

    Dentro da seara dos crimes econmicos, as aes cotidianas que podem gerar

    responsabilidade pelo crime podem ser resultado de dois tipos de interao laboral:

    interao vertical e horizontal.22

    Na primeira (interao vertical), a responsabilidade pode

    decorrer da organizao hierrquica das competncias, repartio de funes (em

    empresas, na administrao pblica, ou em uma organizao criminosa).

    Os principais problemas relacionados interveno no delito, nesta forma de

    interao profissional, decorrem de irregularidades na delegao de funes, tomada de

    decises que favoream um delito, ou da no evitao de resultados pelos subordinados.

    Estes configuram os casos mais frequentes de responsabilidade do agente por comisso

    por omisso, como indicamos acima, ou tambm pela considerao de autoria mediata.

    Conforme indica Robles Planas: Es en el terreno de la interaccin vertical

    donde con mayor frecuencia tienen lugar los casos de intervencin actuando en el marco

    de las competencias atribuidas a un individuo (conductas neutras o profesionalmente

    adecuadas`). [] La cuestin se plantea con especial intensidad en los casos en que el

    sujeto se comporta de acuerdo a su mbito de competencia en el seno de la estructura

    organizada y llega a conocer de forma completamente ajena a esa competencia (p.e.,

    casualmente) las intenciones delictivas de terceros.23

    No segundo grupo, as intervenes no delito podem ser originadas em

    relaes de interao horizontal, quando a associao de sujeitos se d no mesmo nvel

    hierrquico, dentro da esfera de diviso do trabalho. Muitos desses casos so imputados,

    hoje, como delitos imprudentes, em caso de desdobramento da ao em ilcito penal.

    Sob outra perspectiva, como abordaremos no captulo 5, o que passou por

    transformao algo muito mais amplo e fundamental do que as relaes laborais. a

    prpria organizao contempornea da sociedade que coloca em evidncia a problemtica

    21

    Ricardo Robles Planas. Op. Cit., p. 16. 22

    Idem, Ibidem, pp. 27 e ss. 23

    Idem, Ibidem, p. 27.

  • 25

    das aes neutras (predomnio da solidariedade orgnica como o previsto por Durkheim e

    centralidade dos sistemas peritos como apreendido por Giddens).

    Anlise dessas hipteses e utilizao de um instrumento de imputao o que

    se pretende com o presente trabalho, no sem antes identificar exatamente o que significa

    ao neutra.

    3.2. Conceito de conduta neutra

    A definio prvia do objeto de estudo apesar das dificuldades de abstrao

    e simplificao se faz necessria para a compreenso da teoria que se apresenta, e que

    ser problematizada ao longo desta pesquisa.

    A coletnea de casos apresentados no incio tambm tem como meta a melhor

    abordagem das aes neutras, mediante a aceitao de que se trata de um problema

    emprico, independente da elaborao doutrinria que se pretenda construir. O objetivo

    desta definio , portanto, buscar um denominador comum a permear todas as atividades

    cotidianas que possam integrar o delito.24

    Por meio de alguns conceitos, j elaborados pela doutrina, pode-se aos poucos

    assentar as bases para a indicao deste mnimo comum caracterstico s intervenes no

    delito, atravs das condutas neutras, ou atividades cotidianas.25

    Hassemer, por exemplo,

    denomina neutras as condutas que desde la perspectiva de un observador imparcial no

    tienen ninguna tendencia objetiva hacia el injusto, aunque pueden llegar a recibir esa

    tendencia mediante informaciones adicionales especialmente sobre el lado interno del

    que presta la ayuda.26

    Wohlleben, por sua vez, define aes neutras como aquelas que quien las

    ejecuta las hubiera realizado frente a todo e que se hallara en la situacin del autor,

    porque l, con su accin, persigue fines propios jurdicamente no desaprobados que son

    24

    O problema da definio para Robles Planas que todo intento de definicin de conductas neutrales debe relativizarse si de lo que se trata es nicamente de delimitar un grupo de casos sin que aquella definicin

    prejuzgue la solucin a la que deba llegarse. Por lo acertado es buscar el mnimo comn denominador de este

    grupo de supuestos y analizar su relevancia penal (Idem, Ibidem, p. 41). 25

    Autores nos quais a nica obra seja na lngua alem, usaremos as referncias indicadas na doutrina

    espanhola. 26

    Apud Ricardo Robles Planas. Op. Cit., p. 33.

  • 26

    independientes del hecho del autor.27 Wohlleben baseia a sua concepo de aes

    neutras na necessidade de conhecimentos especiais por parte do interveniente,

    conhecimentos estes relacionados inteno delitiva do autor, ou ao menos quando o

    desdobramento de sua ao em um delito for altamente previsvel.28

    Um conceito mais acabado para as aes neutras nos fornecido por Robles

    Planas: son conductas en s lcitas e intercambiables (conforme a un estndar) realizadas

    por un primer sujeto con el conocimiento de que un segundo sujeto (autor) les dar una

    aplicacin delictiva, de manera que revelan al mismo tiempo una apariencia delictiva y

    no delictiva. () Por un lado, externamente se presentan como inocuas e

    intercambiables, lo que fundamenta su apariencia de legalidad, pero, por otro lado, en la

    existencia del conocimiento de la posterior utilizacin delictiva tambin se argumenta su

    apariencia de antijuridicidad.29

    possvel identificar a presena de alguns elementos em comum nas

    definies acima, de carter objetivo, enquanto condutas realizadas de maneira adequada

    a um padro, e subjetivo, pelo conhecimento por parte do agente neutro de que a sua ao

    pode direta ou indiretamente produzir um resultado lesivo.

    Trata-se de condutas lcitas, realizadas conforme ao direito: a venda de um

    bem, a prestao de informaes profissionais, auxlio na diviso do trabalho, pagamento

    de uma dvida etc. So normalmente condutas altamente reguladas, nas quais os

    indivduos agem de acordo com um padro ou esteretipo, e que no acarretam nenhuma

    infrao jurdica.30

    Conforme indica Blanco Cordero, a estas aes les falta un sentido

    delictivo indudable, puesto que quien las realiza no tiene como objetivo principal el

    favorecimiento de un delito ajeno, pese a que reconoce como efecto secundario de su

    accin dirigida a sus propios intereses que contribuye al hecho antijurdico del

    autor31.

    27

    Idem, ibidem. 28

    Isidoro Blanco Cordero. Lmites de la participacin delictiva: las acciones neutrales y la cooperacin en

    el delito. Granada: Comares, 2008, p. 93. 29

    Ricardo Robles Planas. Op. Cit., p. 38. 30

    esta intercambialidad observa claramente en los mbitos socioeconmicos en los que se producen habitualmente las conductas neutrales. Se trata siempre de transacciones, compra-ventas, prestaciones

    profesionales, obligaciones civiles o laborales, etc. () Idem, Ibidem, p. 34. 31

    Op. Cit., p. 3.

  • 27

    Greco define as condutas neutras como aquelas contribuies a fato ilcito

    alheio que, primeira vista, paream completamente normais []. Contribuies a fato

    ilcito alheio no manifestamente punveis.32

    Para ns, conduta neutra pode ser entendida como uma ao rotineira prpria

    do exerccio profissional ou funcional, dentro do risco permitido, e que seja utilizada para

    a prtica de infrao penal alheia.

    Outro trao caracterstico das aes neutras a sua ubiquidade: so aes que

    acontecem a qualquer hora, em qualquer lugar, praticadas por qualquer pessoa. O que

    diferencia uma ao neutra o conhecimento, pelo agente, de que a sua ao cotidiana

    poder levar a um resultado tido como crime. O que lhes confere aparncia de

    antijuridicidade o elemento subjetivo, como afirma Landa Gorostiza: La frontera entre

    la contribucin neutra y a complicidad punible exige, con otra palabras, una toma en

    consideracin de todas las circunstancias del caso y un reajuste permanente de juicio de

    peligrosidad que no puede ser sustituido aunque s facilitado por otros criterios a un

    nivel de abstraccin superior.33

    A doutrina tem focado o estudo das aes neutras no campo de causao

    indireta de um resultado lesivo", observando as condutas neutras de cumplicidade ou de

    participao, de pessoas que facilitam as condutas delitivas. Entretanto, seu estudo no

    pode dispensar a lembrana de que a ao neutra s contribuir para um resultado lesivo

    quando o autor efetivamente der incio ao delito, ou seja, ser sempre dependente da

    destinao que o autor conferir contribuio (por meio do fornecimento de mercadorias

    ou prestao de servios).

    Assim, la presencia de un segundo sujeto autorresponsable,34 de cuya

    decisin, en ltima instancia, depender la realizacin del peligro. Tal circunstancia

    deber ser tenida esencialmente en cuenta a la hora de decidir sobre la prohibicin penal

    de la conducta del primer sujeto .35

    O contexto atual de elevado grau de interao entre os sujeitos, conforme

    indicamos acima e explicaremos melhor no captulo do dever de solidariedade, exige

    32

    Lus Greco. Cumplicidade atravs das aes neutras: a imputao objetiva na participao. Rio de

    Janeiro: Renovar, 2004, p. 110. 33

    Gorostiza. Op. cit., p. 45. 34

    A noo de autorresponsabilidade cunhada por Schumman, conforme noticia Greco, e pode ser

    sucintamente descrita como: a ideia e que cada qual , em princpio, responsvel por suas prprias aes, e no pelo que feito pelos demais. Greco, Op. Cit., p. 42. 35

    Ricardo Robles Planas. Op. Cit., p. 39.

  • 28

    nova compreenso das teorias de autoria e participao, pois a teoria da participao foi

    pensada tendo-se por base o autor individual, que realiza sozinho o ncleo do tipo, o que

    no se adapta mais sociedade contempornea.

    Nos casos em que o interveniente conhece as intenes do autor do delito, e

    compactua com este, h suficiente discusso doutrinria a respeito do tema. Passamos a

    nos deparar com insuficincia hermenutica. No entanto, como indica Robles Planas, a

    produo mais escassa quando se trata de causao direta do resultado, como no caso de

    um funcionrio que abre as comportas da indstria para lanar poluentes no rio. Este est

    realizando uma ao cotidiana (abrir as comportas da indstria), decorrente da diviso do

    trabalho dentro da empresa, mas a cada vez que o faz, est diretamente praticando um

    crime ambiental.36

    3.2.1. As aes neutras como um problema da participao criminal

    Conforme indicado acima, no estudo dos grupos de casos de condutas neutras,

    h a possibilidade de se deparar com condutas diretamente causadoras do resultado

    (como o funcionrio que abre as comportas), ou que indiretamente favoream o plano do

    autor.

    Para o estudo destas aes, relevante demarcar em que medida estas

    condutas constituiriam ou no uma participao no delito e, por concluso, quais

    caracteres mnimos devem possuir para caracterizar a culpabilidade punvel.

    O Cdigo Penal brasileiro prev, em seu artigo 29, assim como os Cdigos

    penais espanhol e alemo, possibilidades de participao muito amplas, que permitem

    responsabilizar de forma abrangente todos os que cooperam, direta ou indiretamente para

    a execuo do delito, o que, em tese, inclui tambm as aes neutras. No existen

    limitaciones ni en la forma, ni en los medios en que se debe prestarse la colaboracin para

    ser tpica.37

    36

    Como afirma Robles Planas: si las notas distintivas de toda conducta neutral son, por un lado, la configuracin externa que obedece a un estndar de conducta (inocua e intercambiavel) y, por otro, desde el

    lado interno, el conocimiento de su idoneidad para producir un delicto, entonces no parece haber obstculos

    para construir grupos de casos en los que exista una conducta neutral que directamente causa un resultado

    lesivo (Idem, Ibidem, p. 40). 37

    Ricardo Robles Planas. Op. Cit., p. 43.

  • 29

    O citado artigo, da mesma forma, no estabelece limitao temporal para

    interromper-se o nexo da participao, e por estas razes, dada a amplitude da norma, a

    doutrina interpreta que esta tem de adotar intensidade tal que sem ela o delito no teria

    sido executado.38

    justamente por esta amplitude interpretativa permitida pelo artigo em

    comento que a doutrina comeou a buscar princpios ou critrios para fundamentar a no

    incriminao dos intervenientes (ainda que no o consiga fazer na totalidade dos casos),

    pois muitas vezes a sua punio pode se mostrar desarrazoada.39

    No faltam crticas, no entanto, formulao das aes neutras como limite

    para a punibilidade do interveniente. Parte da doutrina sustenta que a legislao no

    limita a participao por determinados meios, e tudo o que contribuir para a realizao do

    delito pode ser considerado cumplicidade, a no ser que a ao no tenha absolutamente

    colocado em risco o bem jurdico. Nesse sentido, se uma conduta foi capaz de facilitar o

    cometimento do crime, ento ela no seria neutra, mas configuraria uma leso objetiva,

    ainda que acessria, ao bem jurdico. Esta , por exemplo, a posio de Roxin, para

    quem:

    Ante todo no existen acciones cotidianas per se, sino que el carcter de una

    accin se determina por la finalidad a que sirve. As, por ejemplo, explicar o

    funcionamiento de una arma de fuego es una accin cotidiana neutral si ella le sigue la

    prctica de deporte en un club de tiro; por el contrario, es complicidad en el homicidio si

    con ello se ayuda al autor a hacer blanco en la vctima.40

    Na posio de Robles Planas, no se trata de desenvolver critrios distintos de

    imputao para os casos de participao mediante condutas neutras, mas de precisamente

    estabelecer uma fronteira daquilo que objetivamente imputvel a ttulo de participao,

    pois entende que una eventual exclusin de la imputacin no slo tiene como

    38

    Conforme indica Nilo Batista: 1 deve-se prescindir da considerao do que teria ocorrido sem a colaborao em exame, 2 toma-se como princpio orientador, e nada mais (face insegurana do enunciado) que a colaborao deva ter especial importncia, 3 tambm na linguagem do leigo, da vida cotidiana, fala-se em prestaes de servios ou coisas sem as quais no se teria podido fazer isso ou aquilo. (Concurso de agentes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 187). 39

    Nesse sentido sugere Batista que se estabelea, na sentena condenatria, a diferena dos diversos graus de

    participao (autoria direta, co-autoria, autoria mediata, instigao ou cumplicidade) e que se valore as penas

    com critrios atenuantes mais abrangentes. Op. cit., p. 188-9. 40

    Was istBeihilfe?,p. 515, apud Ricardo Robles Planas. Op cit., p. 43.

  • 30

    fundamento el mero dato del contexto en el que se enmarca, sino la creacin de un riesgo

    tpicamente relevante.41

    3.2.2. O problema das aes neutras a ttulo de autoria

    A doutrina aponta que o problema das aes neutras tambm de autoria

    de determinados crimes (causao direta do resultado), e no somente aos tipos de

    participao criminal (causao indireta do resultado),42

    apesar da questo no se colocar

    com a mesma intensidade no primeiro caso.43

    Nos casos em que a relevncia penal das aes neutras so analisados sob

    a perspectiva da participao criminal onde a doutrina em regra tem limitado seu estudo

    a problemtica reside na investigao da responsabilidade do interveniente, geralmente

    sobre a base da realizao de sua contribuio na fase prvia ao incio da tentativa, que

    facilita a execuo de um crime alheio mediante uma conduta neutral.44

    Assim, a responsabilidade da conduta cotidiana avaliada desde o ponto

    de vista externo ou objetivo e interno ou subjetivo. Sob o aspecto objetivo, as condutas

    neutras so consideradas em si incuas e intercambiveis. Incuas porque se executam

    seguindo um padro ou esteretipo de negcios normais da vida cotidiana e, quando se

    trata de uma indireta causao do resultado, entre esta e a produo do resultado, se

    interpe um segundo sujeito que transforma a contribuio at o crime, circunstncia

    particular essencial destas hipteses.45

    Sob o ponto de vista interno, caracterstica da

    conduta neutral o conhecimento do uso posterior delitivo que o terceiro far da

    contribuio.46

    Por outro lado, como afirma Robles Planas, se a nota distintiva de toda

    conduta neutra , por um lado, a configurao externa que obedece a um padro de

    comportamento (incuo e intercambivel) e, por outro, o conhecimento de sua idoneidade

    41

    Ricardo Robles Planas. Op. cit., p. 45. 42

    Isidoro Blanco Cordero. Lmites a la participacin delictiva Las acciones neutrales y la cooperacin en el delito. Granada: Comares, 2001, p. 9. 43

    Ricardo Robles Planas. Op. Cit., p. 40. 44

    Ricardo Robles Planas. Op. Cit., p. 39. 45

    Idem, Ibidem. 46

    Idem, Ibidem, p. 39-40.

  • 31

    para produzir o delito, no parece haver obstculos para construir grupos de casos em

    que exista uma conduta neutral que diretamente cause um resultado lesivo.47

    Assim, por exemplo, o caso do empregado de uma indstria, cuja misso

    unicamente abrir e fechar as comportas que permitem o envio dos resduos at o rio,

    sem ter que verificar a composio dos resduos, tarefa de seu companheiro de produo.

    No entanto, se sabendo que os resduos contm produtos txicos poluidores meio

    ambiente nos termos da legislao e, mesmo assim, abre as comportas como sempre faz,

    a aparncia externa da licitude se une a aparncia interna da antijuridicidade, tratando-se

    de uma conduta neutra de causao direta ao resultado.48

    3.3. Aes neutras na perspectiva criminolgica:

    A este ponto, faz-se relevante uma considerao de ordem criminolgica. Isto

    porque, dada a abertura dos tipos de participao nos cdigos penais, e a consequente

    possibilidade de imposio de pena por aes cotidianas fossem punidas, ento

    encontraramos na jurisprudncia uma grande quantidade de casos, exemplificativo do

    desvalor das aes neutras. No entanto, no o que se observa.

    Apesar do grande nmero de transaes comerciais de objetos que podem ser

    utilizados para cometer crimes, da prestao de servios que pode contribuir para a ao

    delitiva, no so muitos os casos de taxistas condenados por levar o autor ao local do

    delito etc. Um argumento para a escassez destes casos poderia ser a dificuldade

    probatria, devido ao necessrio elemento subjetivo.

    Uma explicao interessante dada por Robles Planas para a pouca incidncia

    de condenaes por aes neutras o prprio trmite processual pelo qual passa o fato at

    que possa ser julgado, desde a comunicao do fato pela vtima, a investigao

    processual, oferecimento da denncia, juntando-se a isso o fato de que muitas pessoas,

    por meio de aes neutras ou no, tomam contato com o autor no curso da realizao do

    delito, de forma que, ao longo do processo investigatrio, a relevncia das participaes

    vai sendo depurada, at que restem somente aquelas aes fundamentais para a realizao

    do crime.

    47

    Idem, Ibidem, p. 40 48

    Idem, Ibidem, p. 40.

  • 32

    H um processo de seleo das aes que merecem a persecuo penal. Para

    Robles Planas las conductas neutrales, cotidianas o socialmente adecuadas son en su

    gran mayora filtradas antes de llegar al nivel judicial porque no contribuyen a la

    explicacin social-comunicativa del hecho delictivo49

    Por fim, de considerar, tambm, que as condutas cotidianas no fazem parte

    da explicao habitual do delito, por isso a sua investigao muitas vezes no

    necessria, j que todas as aes para a realizao do tipo penal foram integralmente

    praticadas pelo autor, como veremos no estudo acerca da teoria da proibio do regresso.

    3.4. Teorias clssicas

    A problemtica das aes neutras est presente h tempos na doutrina, ainda

    que no tenha sido trazida sob esta denominao.50

    Sendo assim, j foram tratadas pela doutrina tradicional do delito solues

    para os casos de participao na forma das aes cotidianas, cada qual com pontos de

    vista e fundamentao distintos, mas com aplicaes prticas prximas, visando construir

    critrios limitadores da incidncia da norma penal.

    a) Adequao social

    A adequao social apresentada como uma primeira soluo lgica ou

    natural resolver o problema das aes neutras, por serem condutas integradas na vida

    comunitria,51

    sendo muito utilizada neste contexto.52

    A idealizao da teoria da adequao social atribuda a Welzel pela primeira

    vez em 1939, sofrendo reformulaes nas edies seguintes de seu Manual.53

    Na ideia

    49

    Ricardo Robles Planas. Op. Cit., p. 48. 50

    Segundo Greco, a discusso tornou-se um dos temas centrais, significa dizer debatida de forma autnoma,

    somente na dcada de 90. Antes, era tratado mais ou menos en passant, no marco das teorias mais conhecidas

    (Lus Greco. Op. Cit., p. 20) 51

    Cf. Lus Greco. Op. Cit., p. 21 e Jos Danilo Tavares Lobato. Teoria geral da participao criminal e

    aes neutras uma questo nica de imputao objetiva. Curitiba: Juru, 2009, p. 33. 52

    Ricardo Robles Blancas. Las condutas neutrales em direito penal. La discussin sobre los lmites de la cumplicidade punible. Revista Brasileira de Cincias Criminais, ano: 2008, vol. 16, num. 70, p. 197.

  • 33

    original, propunha sua teoria a no incidncia de tipicidade a certas condutas assim

    consideradas como aceitveis dentro da perspectiva social-histrica desenvolvida por

    uma comunidade.54

    Do contrrio, o comportamento constituiria um injusto penal.55

    Para desenvolver seu conceito, Welzel partiu de duas consideraes

    fundamentais: por um lado criticou a concepo naturalista-causal da ao e do bem

    jurdico por partir de uma realidade prpria das cincias naturais, sendo por esta razo

    inadequada para abarcar o objeto do direito penal; por outro lado, afirmou que os tipos

    penais so tipificaes de comportamentos antijurdicos.56

    Assim, da sua crtica ao dogma

    causal, ideia de leso o bem jurdico e a absolutizao do desvalor o resultado, Welzel

    conclui que no podero ser tpicas certas condutas que, apesar de causais para a

    destruio de um bem jurdico, realizam a verdadeira vocao deste, sua funo na vida

    social.57

    Como alguns exemplos comumente citados por Welzel de casos de aes

    socialmente adequadas so bem prximos dos casos das aes neutras, como o da venda

    de bebida alcolica a um motorista pelo taberneiro, houve quem, para resolver os casos

    destas ltimas aes, utilizou-se dessa teoria.58

    53

    V., a respeito, entre outros: Maria Paula Bonifcio Ribeiro Faria. A adequao social da conduta no direito

    penal ou o valor dos sentidos sociais na interpretao da lei penal. Porto: Publicaes Universidade Catlica, 2005, p. 31 e s.; e Silveira, lembrando que certo que a teoria da adequao social traduz a noo

    geral de adequao, essa ltima de origem anterior e no necessariamente vinculada ideia Welzeliana, se

    remontando prpria noo do problema causal em direito penal (Renato de Mello Jorge da Silveira.

    Fundamentos da adequao social em direito penal. So Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 89). 54

    Cf. Maria Paula Bonifcio Ribeiro Faria. A adequao social da conduta no direito penal ou o valor dos sentidos sociais na interpretao da lei penal. Porto: Publicaes Universidade Catlica, 2005, p. 31 e s. e

    Renato de Mello Jorge da Silveira. Fundamentos da adequao social em direito penal. So Paulo: Quartier

    Latin, 2010, p. 24 e s. 55

    Manuel Cancio Meli. La teora de la adecuacin social en Welzel. Anuario de derecho penal y ciencias

    penales, Madrid, Centro de Publicaciones, Tomo XLVI, fascculo II, maio/agosto de 1993, p. 697. 56

    Idem, Ibidem, p. 700. 57

    Na concluso de Lus Greco. Imputao objetiva: uma introduo. In: Roxin, Funcionalismo e imputao objetiva. Rio de Janeiro: Renovar 2001, p. 31-32. 58

    Lus Greco. Op. Cit., p. 22. Como lembra John, uma primeira repercusso da proposta de Welzel foi na

    jurisprudncia, quando o Tribunal Federal Supremo mudou sua soluo doutrinria jurisprudencial na

    soluo dos casos de venda de lcool em restaurantes. Tradicionalmente, mantinha o entendimento de que o

    dono do restaurante que servisse bebida alcolica a motorista causador de acidente tambm deveria ser

    condenado pelo evento. Assim decidiu ao condenar um dono de restaurante que vendeu bebida alcolica a

    um caminhoneiro que, conduzindo seu veculo embriagado, causou a morde um pedestre e leses a outro.

    Igualmente, condenou um dono de restaurante por homicdio e leses culposas por no haver impedido um

    cantoneiro a conduo de um veculo. Anos depois, experimentou a Corte uma mudana de posio ao

    absolver, em hiptese semelhante, o dono de restaurante por ter vendido lcool a trs pessoas que depois de

    embriagadas, deixaram o estabelecimento e perderam a conduo do veculo sofrendo leses corporais

    culposas, sob o argumento de que a venda de bebidas alcolicas nos restaurantes pertencem de um modo geral as formas de atividades reconhecidas como socialmente cotidianas (Jos Antonio Caro John. La

  • 34

    o caso de Rueda Martin, na Espanha, que apostou pelo uso deste critrio, em

    sua verso mais tipicamente welzeliana,59 para explicitamente resolver a questo de

    quando a prestao de uma ajuda em uma ao dolosa de um terceiro supe uma forma

    de conduta tipicamente desaprovada.60

    Assim, segundo a autora, para determinar a

    adequao social de uma conduta com carter geral ou em particular das aes cotidianas,

    leva-se em jogo uma sria de consideraes, como a utilidade da conduta em virtude da

    qual se toleram esses comportamentos.61

    Vrios so os pontos negativos apontados pela doutrina para rechaar a

    utilizao da adequao social como teoria apta para resolver os casos de imputao das

    aes neutras. O primeiro surge como crtica a prpria teoria da adequao social, em

    geral, e no particularmente no caso dela no ser apta ao aplicar-se as aes neutras.

    Acusa-se que o criador da teoria mudou vrias vezes de posicionamento tanto no que se

    refere funo do conceito de adequao social, como problema de tipo ou de

    antijuridicidade, como no que toca a seu contedo, enquanto verdadeira causa de

    excluso (seja do tipo ou da antijuridicidade) ou como mero princpio de interpretao,

    mximo status lhe concedido pela doutrina amplamente majoritria de hoje.62

    Nesse sentido, considera-se a teoria da adequao social imprecisa ou vaga,

    uma vez que no permite saber ao certo o que socialmente adequado,63

    e nem o que

    impunidad de las conductas neutrales. A la vez, sobre el deber de solidaridad mnima en el derecho penal. Nueva doctrina penal, 2005, Buenos Aires: Editores del Puerto, p. 433-434). 59

    A qualificao da postura da citada autora de Robles Planas (Op. Cit., 94). 60

    Mara ngeles Rueda Martn. Cumplicidad a travs de las denominadas acciones cotidianas. Derecho

    penal contemporneo Revista Internacional, Bogot: Legis, abril-junho de 2003, p. 104. 61

    Idem, Ibidem, p. 114. Na Alemanha Greco revela que, ainda recorrendo-se da teoria da adequao social,

    os autores como Philipowski ou Lohmar utilizam deste princpio para resolver o problema da contribuio

    prestada por funcionrios de banco a delitos de sonegao fiscal (Lus Greco. Op. Cit., p. 21-22). A principal

    crtica a postura de Rueda Martn, afora aquelas de ordem geral prpria teoria de adequao social que

    adiante sero mencionadas, que acaba a autora utilizando-se do critrio subjetivo para modificar o

    significado social das condutas (Ricardo Robles Planas. Op. Cit., p. 96). 62

    Tudo conforme Lus Greco. Op. Cit., p. 22; e Cezar Roberto Bitencourt. Teoria geral do delito uma viso panormica da dogmtica penal brasileira. Coimbra: Almedina, 2007, p. 186. 63

    Na viso de Greco, o erro fundamental desta teoria no deixar claro se ela se trata de uma descrio ou

    de uma prescrio, noutras palavras, se ela deve ser compreendida em sentido sociolgico-descritivo

    (referindo-se quilo que socialmente adequado, quilo que realmente se faz em determinada sociedade) ou

    em sentido tico-normativo (referindo-se quilo que socialmente adequado, quilo que, em determinada

    sociedade, se considera correto fazer). A teoria no pode ser compreendida no primeiro sentido, porque seno

    se veria obrigada a declarar certas prticas habituais absolutamente inaceitveis, como, p. ex., a tortura de

    presos por policiais, ou a execuo de X-9s pelo crime organizado, algo permitido, atpico. Mas se a

    compreendermos em sentido normativo, ento ela se torna vazia, porque ser necessrio um parmetro para

    descobrir o que tido por correto em determinada sociedade (Lus Greco. Op. Cit, p. 22-23).

  • 35

    constitua uma conduta tipicamente desaprovada, ou seja, sob quais condies pode-se

    afirmar que uma ao est dentro das valoraes sociais positivas.64

    Outro motivo apontado para o abandono ou no utilizao da adequao social

    como critrio de imputao que a doutrina j dispe de teorias mais apropriadas e

    abrangentes para resolver outros problemas que no s aqueles que motivaram a teoria da

    adequao, segundo sustenta Greco, citando como teorias alternativas, em primeiro lugar,

    a imputao objetiva; e, sem segundo lugar, o princpio da insignificncia.65

    No obstante, digno de nota que a teoria da adequao social, em que pese

    suas vacilaes e estar hoje reduzida, quando adotada, a um princpio geral de

    interpretao, certo que a partir dela outras teorias foram desenvolvidas para aplicao

    nas aes neutras. o caso da teoria da adequao profissional.

    b) Princpio da insignificncia

    Considerado pela doutrina como mxima geral de interpretao, o princpio da

    insignificncia afasta a tipicidade na media em que, apesar da conduta, sob o ponto de

    vista formal, apresentar adequao tpica, no apresenta ela relevncia material quando a

    ofensa ao bem jurdico, ou ao grau de sua intensidade, isto , pela extenso da leso

    produzida66

    .

    Referido critrio de interpretao tem sido rechaado para resolver o problema

    das aes neutras por pelo menos dois motivos. Primeiro pela sua impreciso, depois

    porque no pode ser aplicado para os casos em que, p.ex., em que a relevncia do bem

    jurdico ntida como no caso de conduta dolosa contra a vida67

    .

    c) Proibio de regresso

    64

    Ricardo Robles Planas. Op. Cit., p. 95-96. 65

    Lus Greco. Op. Cit., p. 23-24. 66

    BITENCOURT, Cezar Roberto. Teoria geral do delito uma viso panormica da dogmtica penal brasileira. Coimbra: Almedina, p. 187-189. 67

    Lus Greco. Op. Cit., p. 30-32.

  • 36

    A ideia tradicional da proibio do regresso indicava, em linhas gerais, que

    poderia haver uma conduta culpvel anterior ao delito, seguida de uma ao dolosamente

    voltada para o resultado, executada de forma exauriente, de modo que restaria sem

    sentido a punio da conduta precedente, de muito menor relevncia. De acordo com esta

    teoria tradicional da proibio do regresso, haveria uma conduta dolosa precedida de uma

    conduta culposa, que restaria impunvel pelo fato de a nova ao dolosa provocar a

    interrupo do nexo causal, e o recomeo do delito.68

    Atualmente esta teoria foi reformulada por Jakobs, no mbito da imputao

    objetiva, abandonando-se a ideia de interrupo do nexo causal. Assim, a proibio do

    regresso trata de contribuciones dolosas o imprudentes al hecho de otro que

    objetivamente realizan el tipo penal, pero que tiene un carcter incuo y cotidiano.69 Ou

    seja, algumas aes cotidianas, que podem ser consideradas incuas, proporcionam o

    incio de uma cadeia delitiva que ser realizada pelo autor direto do delito, como o caso

    de um devedor que paga a sua dvida, e este dinheiro usado pelo credor para cometer

    um crime.

    A diferenciao entre uma conduta de pequeno potencial lesivo, incua, e a

    interveno punvel no delito se d, segundo Crdoba, quando el comportamiento

    tambin es razonable sin la accin del ejecutor.70

    A atuao deste terceiro interveniente pode se dar, ento, de duas formas,

    segundo Jakobs: procedendo independentemente da vontade do autor, sem a conscincia

    de que este incluir sua ao na execuo do delito, ou ento agindo conjuntamente ele

    (vendendo regularmente uma arma, ou po que poder ser envenenado), no desempenho

    habitual de suas funes, sem que haja auxlio proativo para o delito, ao fornecer uma

    informao ou um objeto. Isto pois, por se tratar de um servio cotidiano, compreende-se

    que o autor poderia obt-lo de qualquer outra pessoa, de forma que o interveniente no

    cria ou incrementa nenhum risco proibido:

    En un primer conjunto de supuestos niega que

    la actuacin comn pueda configurarse por pura arbitrariedad

    (conjuncin arbitraria): esto es, habr prohibicin de regreso si el

    autor se liga arbitrariamente a un comportamiento de un tercero

    68

    Idem, Ibidem, p. 25. 69

    Isidoro Blanco Cordero. Op. Cit., p. 42 (itlico nosso). 70

    Idem, Ibidem, p. 44.

  • 37

    que sea estereotpicamente adecuado desde un punto de vista

    social. [] tambin niega Jakobs la responsabilidad penal en

    casos de actuacin en comn pero en las que la conjuncin

    parcial no tiene por objetivo especfico la realizacin

    delictiva.71

    Sendo assim, s haver punio do interveniente, neste ltimo caso, que a

    ao praticada for perigosa em si, como no caso de venda de arma a pessoa no

    autorizada72

    .

    Segundo Greco,73

    no entanto, o principio da proibio do regresso no

    adequado para a interpretao das aes neutras, pois este trata da iseno da

    responsabilidade daquele que age com culpa anteriormente ao dolosa posterior de

    outro sujeito ativo, e no caso das aes neutras a interveno no delito nunca se d de

    forma culposa, visto que o interveniente age sempre dolosamente.

    Outros doutrinadores, como Roxin, tambm tecem crticas formulao de

    Jakobs, por entenderem que a ao do interveniente, quando conhece os objetivos para os

    quais o autor adquire seus prstimos, no pode ser considerada neutra, mesmo quando se

    tratar de uma ao cotidiana, acessvel em qualquer lugar, obtida de qualquer

    profissional,74

    pois, na viso do autor, o interveniente que age consciente da inteno

    criminosa do autor aumenta o risco da ocorrncia de um fato antijurdico, toma o delito

    tambm como seu, e passa a ser responsvel tambm pelo resultado, no podendo negar

    seu dolo na participao

    Puppe entende que a proibio do regresso, da forma como modernamente

    elaborada por Jakobs, no tem o condo de romper o nexo de imputao, mas to-

    somente de melhor delimitar o dever de cuidado. Em sua interpretao, alguns servios

    especficos, por possurem um risco intrnseco (como a venda de armas, remdios, ou de

    venenos) precisam ser revestidas de um dever especial de cuidado e de regulamentao75

    .

    71

    Jon-Mirena Landa Gorostiza. Op. Cit., p. 91. As menes a Jakobs so retiradas da referencia indicada pois

    a obra original est disponvel somente em alemo. 72

    Idem, Ibidem, p. 46. 73

    Op. Cit., p. 26. 74

    Como dice Roxin, se recurre aqu de forma inadmissible a um curso causal hipottico (el hecho que osiblemente tambin se puede adquirir um destorillador em outro lugar) para lenar la complicidad . Isidoro Blanco Cordero. Op. Cit., p. 49. 75

    Grec