Joao Feres Júnior - El Concepto de América

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    O conceito de América: conceito básico oucontra-conceito?

     por João Feres Júnior

    Abstract. – This article compares the histories of the conceptual dyad  América/ameri-canos in nine countries of the Iberian Atlantic world between 1750 and 1850. The mostimportant nding of this analytical effort is a standard pattern of semantic evolution thatapplies to all Spanish American cases and is distinct from that occurring in Brazil to alarge extent. That pattern corresponds to an initial period of low politicization, whenthe concept had mainly a geographical meaning, which was followed by a period ofrapid politicization from the end of the eighteenth to the rst decades of the nineteenthcentury, when América/americanos became a core political identity in the independenceprocesses that sprouted all over the continent. This peak was followed by a swift declinein political usage, and the term was replaced everywhere by local national identities.The concluding remarks are dedicated to reecting upon whether América/americanosshould be understood as a basic concept (Grundbegriff) or an element of asymmetricalcounterconceptual pairs, and identifying some research and theoretical questions raisedby the present analysis.

    INTRODUÇÃO

    Esse texto é produto de meu trabalho como coordenador transversaldo conceito de “América/americanos” no projeto “Iberconceptos”.Os casos usados como base para o presente estudo são: Nora Souto(Argentina),  João Feres Junior/Maria Elisa Mäder (Brasil), ClaudioJavier Barrientos (Chile), Georges Lomné (Colômbia), Iñaki IriarteLópez (Espanha), Guillermo Zermeño (México), Cristóbal Aljovín deLosada (Peru), Ana Cristina Araújo (Portugal) e Luis Ricardo Dávila(Venezuela). A tarefa do coordenador transversal de cada conceito

    dentro do projeto é ler e comentar criticamente os verbetes produzi-

    Jahrbuch für Geschichte Lateinamerikas 45 © Böhlau Verlag Köln/Weimar/Wien 2008

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    dos pelos autores de um determinado conceito em cada grupo. Devoadmitir que também informam esse texto minha experiência prévia

    de pesquisa com a história do conceito de Latin America nos EstadosUnidos1  e os vários anos de estudo das questões metodológicas quedizem respeito à historia conceitual e à história do pensamento político.

    Quero chamar a atenção aqui para algumas questões substantivasque dizem respeito à evolução semântica do conceito de “América/americanos” nesses vários países e tentar extrair alguns insights dacomparação dessas trajetórias. Os dados das narrativas de cada caso jáfornecem material de extremo interesse para a comparação. Devido àsmuitas similaridades do passado colonial, principalmente no bloco de

    língua espanhola, as diferenças adquirem maior saliência. Ademais,a comparação entre os casos da América espanhola e o único caso daAmérica portuguesa também é profícua, devido às diferenças de traje-tória e ao contexto colonial prenhe de similaridades.

    Esses exercícios comparativos também suscitam questões de ordemmais abstrata, que dizem respeito não às regularidades encontradasnas narrativas substantivas mas aos parâmetros teóricos e metodoló-gicos da história conceitual, da maneira como foram propostos porReinhart Koselleck e depois assimilados pelos artíces de sua recep-

    ção. Infelizmente, não há espaço nesse texto para também discutirmosa teoria em detalhe, de maneira que vou-me limitar a elaborar rapida-mente algumas possíveis direções da reexão teórica na conclusão.Entretanto, um aspecto importante de teoria não pode ser evitado, poistem impacto direto na metodologia da análise. Esse será rapidamentetratado na seção abaixo.

    AMÉRICA: G RUNDBEGRIFF  OU CONTRACONCEITO?

    A noção de conceito básico (Grundbegriff) foi o critério mais impor-tante de seleção de conceitos para as Geschichtliche Grundbegriffe,2 fato indicado pelo próprio título da publicação, ainda que nem todos

    1  João Feres Junior, A história do conceito de Latin America nos Estados Unidos(São Paulo 2005).

    2  Reinhart Koselleck, “Einleitung”: Geschichtliche Grundbegriffe. Historisches Lexikon zur politisch-sozialen Sprache in Deutschland, 8 tomos (Stuttgart 1972–1997),

    pp. xiii–xxvii.

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    os conceitos selecionados cumpram rigorosamente esse critério, comobem notou Melvin Richter.3 A adoção de tal critério não deve ser

    entendida como mera medida de ordem prática com vistas a limitar oobjeto de estudo – nalidade que Koselleck por vezes atribuiu à noçãode Sattelzeit 4 –, pois a noção de conceito básico tem raízes profundasna teoria da história conceitual proposta por Koselleck. Ela de fatosó pode ser entendida a partir da ligação entre semântica histórica ehistória social.5 Diferentemente de outras modalidades de teoria histó-rica, como por exemplo a Escola de Cambridge, a Begriffsgeschichte de Koselleck não adere inteiramente à virada lingüística.6 Segundoesse autor – ainda que o material textual, lingüístico, seja de suma

    importância – o historiador também deve estar atento à historia sociale aos aspectos extra-lingüísticos da condição humana.7

    Na verdade, das quatro hipóteses de trabalho apresentadas por Kosel-leck como plano para o grande léxico que dirigiu – democratização,politização, temporalização e ideologização – as duas primeiras estãodiretamente relacionadas à conexão entre semântica histórica e histó-ria social que caracteriza os conceitos básicos. A democratização tema ver diretamente com a ampliação do espaço social de uso de umdado conceito, ou seja, é uma hipótese diretamente vinculada à histo-

    ria social. E a politização corresponde à transformação de conceitosem armas de combate lingüístico entre grupos e setores sociais.8 É

    3  Melvin Richter, The History of Political and Social Concepts: A Critical Intro-duction (Nova Iorque/Oxford 1995).

    4  “Conceptual History, Memory, and Identity. An Interview with Reinhart Koselleck”: Contributions to the History of Concepts 2, 1 (2006), pp. 99–127.

    5  Esse tema é tratado em mais detalhes em Reinhart Koselleck, “Begriffsgeschichteand Social History”: idem, Futures Past: On the Semantics of Historical Time (Cam-bridge/Londres 1985), pp. 73–91.

    6  Ver Melvin Richter, “A German Version of the ‘Linguistic Turn’. Reinhart Koselleck and the History of Political and Social Concepts”: idem, The History of Political Thought  in National Context (Cambridge 2001).

    7  Ver Reinhart Koselleck, “A Response to Comments on the Geschichtliche Grund-begriffe”: The Meaning of Historical Terms and Concepts: New Studies on Begriffsge-schichte (Washington, DC 1996), pp. 59–70; e também Reinhart Koselleck/Hans-GeorgGadamer, Historia y hermenéutica (Barcelona 1977).

    8  Koselleck, “Einleitung” (nota 2). A ideologização, processo pelo qual os concei-tos se tornam mais abstratos, mais desligados da realidade imediata, e a temporaliza-ção, que ocorre quando conceitos passam a expressar horizontes de expectativa futu-ros diversos da experiência presente, pertencem mais ao âmbito da semântica histórica

    propriamente dita, pois tem a ver com desenvolvimentos da estrutura semântica dos

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    exatamente dentro dessa concepção schmittiana de política como con-ito que a noção de conceito básico deve ser entendida. É o conito entre

    interesses e projetos divergentes de mundo que gera o inchaço semân-tico, a polifonia que caracteriza os conceitos básicos. Segundo Koselleck, “diferentemente dos conceitos em geral, um conceito-chave, damaneira como é usado na Geschichtliche Grundbegriffe, é um ele-mento do vocabulário político inevitável e insubstituível”.9 Estes setornam ao mesmo tempo profundamente polissêmicos e fundamentaisao entendimento do mundo.10

    Na análise que se segue, assim como em grande parte dos verbetes“América” produzidos no projeto “Iberconceptos”, maior evidência

    foi dada ao aspecto da politização do conceito. Essa escolha se deveuem grande parte à estrutura organizacional do trabalho, mais espe-cicamente à dimensão máxima de cada verbete: em torno de dozepáginas. Dado que os autores tiveram que cobrir um período de cemanos, durante o qual ocorreram grandes mudanças de ordem social eprincipalmente política, caria difícil demonstrar a democratização douso do conceito, uma vez que para isso o teriam que examinar váriosloci de enunciação do termo em cada etapa de sua história – tarefa queconduziria necessariamente à violação do limite imposto ao tamanho

    do texto. Então podemos dizer que a democratização foi na maioriadas vezes assumida, mais do que demonstrada. Contudo, essa restri-ção de ordem prática não cancela a importância de tal hipótese, quedeve sim ser testada em trabalhos futuros. Resta dizer que, ainda quenão tenha constituído objeto precípuo das investigações, a democra-tização da linguagem política parece ter de fato ocorrido nos paísesibero-americanos durante o período, mesmo no Brasil, onde o regimemonárquico e outras estruturas do antigo regime colonial foram pre-servadas.

    Koselleck também escreveu, ainda que mais brevemente, sobreuma outra família de termos políticos: os contra-conceitos assimé-

    conceitos, ainda que esse processo se dê como reexo, ou melhor, em conversação coma dinâmica social.

    9  Kosselleck, “A Response” (nota 7), p. 64. Para um exame detalhado das caracte-rísticas dos conceitos básicos ver Richter, The History of Political and Social Concepts(nota 3); e Melvin Richter/Michaela Richter, “Introduction. Translation of ReinhartKoselleck’s ‘Krise’, in Geschichtliche Grundbegriffe”: Journal of the History of Ideas67, 2 (2006), pp. 343–356.

    10  Koselleck, “A Response” (nota 7), p. 65.

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    tricos.11 Estes são conceitos que marcam identidades coletivas e queocorrem aos pares, com um termo positivo que dene as qualidades do

    coletivo que nomeia e um termo negativo que é denido por esse cole-tivo por características que correspondem ao oposto de suas supostasqualidades. A ontologia do político como eminentemente conituosoe contrapositivo, de Carl Schmitt, parece deixar sua marca tambémnessa parte da teoria koselleckiana. Segundo o autor, “um agente polí -tico ou social é primeiramente constituido por meio de conceitos quecircunscrevem esse agente excluindo outros, ou seja, essa é a maneiracomo ele se dene”.12

    Entretanto, esse autor alemão não tratou da interação entre con-

    ceitos assimétricos e conceitos básicos. Poderia um conceito assumiros dois papéis, e ao mesmo tempo? Em que medida as característicasprincipais que denem os conceitos básicos, polissêmia e contestabi-lidade, podem ser observadas em contraconceitos assimétricos? Aindanão possamos explorar essas questões teóricas nesse nível de genera-lidade aqui, devemos perguntar ao material que se nos apresenta: teriasido América um conceito básico nos moldes koselleckianos? Teria oconceito de “América/americano” operado como um elemento, posi-tivo ou negativo, em pares de contraconceitos? Se isso tivesse ocor-

    rido, quais os conceitos que ele excluiu? A quais se contrapôs? Essasquestões servirão como guias analíticos neste ensaio.

    COMPARANDO CASOS NACIONAIS: REGULARIDADES E DISCREPÂNCIAS

    No plano mais geral da relação entre mudança conceitual e históriapolítica, todos os casos nacionais hispano-americanos em questãoapresentam basicamente a mesma trajetória, batizada aqui de narrativa

    “normal”: uma razoável estabilidade semântica por todo período colo-nial, inclusive durante a segunda metade do século XVIII, seguida deum período de politização e mudança conceitual rápida, que se deu emtorno das primeiras décadas do século XIX e que correspondeu ao mda empresa colonial, a partir de movimentos de libertação e acordospolíticos, e à fundação de novas unidades políticas formalmente autô-

    11  Reinhart Koselleck, “The Historical-Political Semantics of Asymmetric Counter-concepts”: idem, Futures Past  (nota 5), pp. 159–197.

    12  Ibidem, p. 160. Minha tradução.

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    nomas no continente, e, por m, uma também rápida decadência notocante ao uso político do termo. No contexto de alta politização, cam-

    bio social e institucional dos processos de independência, a mudançaconceitual parece ter sido intensa em todos os casos nacionais dospaíses hispano-americanos estudados. Essa constatação concorda coma teoria de Koselleck, segundo a qual o conito político é o principalmotor do inchaço semântico de um conceito, é esse processo que lhetransforma de conceito comum em conceito básico (Grundbegriff).13 Contudo, isso não signica que todos os conceitos da lista adotada naprimeira fase do projeto “Iberconceptos” tenham tido uma evoluçãosemântica similar. A díade “América/americanos”, por exemplo, apre-

    sentou um perl de evolução muito peculiar, que comentarei em maisdetalhe logo adiante.

    Quase todos os verbetes são unânimes em identicar o signicadogeográco dominante do termo no período colonial, e pelo menosum deles, o português, ressalta seu caráter propriamente geopolítico.Como os estudos do pós-colonialismo, principalmente a partir da obrade Edward Said14 têm mostrado, conceitos geográcos que nomeiampovos, territórios e continentes não devem ser tomados como termostécnicos neutros, isto é, destituídos de conteúdo político.15 Pelo con-

    trário, eles são as expressões que carregam o conteúdo político maisprofundo, aquele que enuncia quem pertence e quem está fora de umadada comunidade, fato que tampouco escapou a Koselleck.16  Nãopodemos deixar de notar as nuances do uso de termos geográcos nomaterial produzido para o projeto “Iberconceptos”. Por exemplo, nocaso brasileiro, a descrição mais antiga do conceito América em umdicionário17 faz referência explícita ao papel central dos portuguesesno descobrimento dessa nova parte do mundo. Outras fontes do perí -

    13  Koselleck,  Futures Past  (nota 5). Sobre o mesmo assunto ver também idem,“A Response” (nota 7); e Richter, The History of Political and Social  Concepts (nota 3).

    14  Edward W. Said, Orientalism (Nova Iorque 1978); e idem, Culture and Impe-rialism (Nova Iorque 1993).

    15  Outros exemplos de estudos do pós-colonialismo que tratam desse tema: V. Y.Mudimbe, The Idea of Africa (Bloomington 1994); Larry Wolff, Inventing Eastern

     Europe: The Map of Civilization on the Mind of the Enlightenment  (Stanford 1996);

    e Walter Mignolo, The Idea of Latin America (Malden, MA/Oxford 2005).16  Koselleck, “The Historical-Political Semantics” (nota 11), pp. 159–197.17  Raphael Bluteau, Vocabulário Portuguez & Latino, 10 vols. (Coimbra

    1712–1728).

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    odo colonial, constantes nos verbetes de México e Brasil, usam dapalavra para nomear as possessões coloniais de Espanha e Portugal,

    respectivamente – no caso português sempre em conjunto com Áfricae Ásia. Ou seja, esses usos mostram não um uso descritivo neutro,mas sim uma palavra investida de signicado político no seio do dis-curso dos impérios coloniais ibéricos.

    Talvez o dado mais importante do período colonial não seja os usosgeopolíticos do conceito, mas sim o debate que se deu em torno dacomparação entre Novo e Velho Mundo, e as supostas característicasespeciais daquele em relação a este. Alguns verbetes, notadamente osde Portugal, México, Argentina, Brasil, Colômbia e Peru, identica-

    ram a tensão que teorias como as de George Louis Leclerc, Conde deBuffon e do Abade Cornelius de Pauw, entre outros, geraram ao cir-cularem por toda a Europa e também pelas colônias. De caráter emi-nentemente comparativo, a teoria de Buffon apresentava a Américacomo um continente novo, e portanto imaturo, destituída de animaisde grande porte e habitada por animais pequenos e mal-formados, comuma natureza hostil, clima excessivamente úmido e com tipos huma-nos brutos e selvagens.18 De Pauw aplicou a tese de Buffon sobre osanimais para o nativo americano, que ele descreveu como um degene-

    rado, fraco e mal-formado. A idéia de imaturidade que Buffon atribuiuà natureza do Novo Mundo foi transformada por De Pauw em deca-dência e degenerescência.19 Essas teorias, contudo, geraram respostasque, se não invertiam completamente a hierarquia proposta, descarta-vam o diagnóstico de inferioridade, imaturidade e degenerescência.Tais respostas foram primeiro articuladas por autores europeus, e maistarde por autores que viviam no Novo Mundo, mormente nas colôniasespanholas, como José Manuel Dávalos, Manuel de Salas, FranciscoIturri, Padre Moxó, Hipólito Unánue e José Dávila Condemarín.20 

    O verbete português mostra com detalhe como as idéias de Buffone De Pauw – mas também a teoria do bom selvagem atribuída a Rous-seau – impactaram o contato dos portugueses com suas possessõesalém-mar e os povos que nelas viviam.

    18  Antonello Gerbi, The Dispute of the New World. The History of a Polemic,1750–1900 (Pittsburgh 1973), pp. 3–7.

    19  Ibidem, p. 53.20  Ibidem, pp. 291–305.

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    NARRATIVA “NORMAL”

    Em Argentina, Chile, México, Venezuela, Colômbia e Peru, a evolu-ção semântica do conceito de América seguiu uma trajetória similare muito interessante. Como já foi dito, no período colonial, “Amé-rica” tinha um signicado geográco com colorações geopolíticasque faziam referência à possessão dessa parte do mundo por parte dasmonarquias espanhola e portuguesa. O termo então sofreu uma rápidapolitização ao nal do século XVIII, ganhando contornos de identi-dade política distinta da metrópole, principalmente no caso espanhol.Durante os movimentos de libertação que se seguiram, ou seja, nas

    primeiras décadas do século XIX, o termo América se converteu emimportante bandeira de mobilização, vindo inclusive a integrar onome de algumas das comunidades políticas recentemente liberadasdo jugo colonial. Todavia, com a consolidação dos processos de liber-tação, esse conceito político identitário entrou em rápida decadênciae foi substituído por gentilícios locais por volta de meados do século.Houve algumas sobrevivências de politização, mas elas se restringi-ram ao linguajar de diplomatas e intelectuais, como citam os textos doPeru e da Venezuela, e a eventos internacionais onde certa identidade  

    continental comum era (e ainda é) celebrada, sem maiores conse-qüências políticas.

    Em outras palavras, olhando pela perspectiva da politização, temosuma trajetória que vai de uma situação de incipiência, passa por umrápido crescimento, seguido também de uma rápida deação, algocomo um pico de politização, que se deu nas primeiras décadas doséculo XIX, justamente no contexto da libertação. O período máximode uso político do termo foi mais ou menos extenso, dependendo docaso. Na Colômbia, o declínio foi comparativamente lento, e a conso-

    lidação do gentilício “colombiano” também o foi, pois sofria concor-rência da denominação “Nova Granada”. De qualquer forma, o uso dotermo “América” como elemento de mobilização da identidade polí -tica já na década de 1830 estava ali em franco declínio. No México,o conceito também teve importante papel de aglutinação identitáriano movimento de libertação, mas a concorrência do gentilício “mexi-cano” já se fazia sentir em 1815. Com a consolidação da independên-cia (1821–1824) os termos México e mexicano rapidamente suplantaramseus concorrentes, ainda que América continuasse a ser usada de maneira

    genérica para denominar o espírito de liberdade de todo o continente.

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    Na Argentina, o conceito preservou um alto nível de politizaçãopor um bom tempo, fato que pode ser em parte explicado pelo lento

    e conturbado processo de unicação e pela tardia consolidação daidentidade platina. Naquele país, a expressão composta “Américadel Sud” ou “Sud América” chegou a gurar como denominação danova unidade política em projetos constitucionais e na Declaração daIndependência de 1816, sendo que o nome de “República Argentina”só aparece na Constituição unitária de 1826. A constituição sancio-nada pelo Congresso em 1819 ainda declara ser seus representantes“ilustres depositarios de los derechos y del poder de la América delSud”. Mas esse uso, como o próprio autor do verbete faz questão de

    frisar, entrou em rápido declínio.Na Venezuela, também temos um caso de uso do termo no nome

    do país nascente. A Ata da Independência, de 1811, promulgada peloPrimeiro Congresso, declara que as províncias unidas passariam ase chamar Confederación Americana de Venezuela en el Continente Meridional. Mas já na linguagem da Constituição de 1830, os termosusados são nação venezuelana, venezuelanos e povo da Venezuela.Também no caso peruano, vemos a identidade americana assumindoum papel importante na retórica da libertação, mas ao mesmo tempo,

    como diz o autor, não conseguindo conquistar “o coração das instan-cias estatais e políticas depois da independência”.

    Em suma, a despeito do uso ou não do vocábulo “América” no nomedas repúblicas nascentes, os clamores pela mobilização de “nuestroshermanos americanos” parece ter sido uma constante durante a liber-tação de toda Hispano-América. Da mesma forma, a decadência douso do termo e sua substituição por gentilícios locais foi constante,ainda que com sua temporalidade variando de caso a caso. O verbeteespanhol, que de alguma forma complementa de “fora” as narrativas

    dos casos de ultramar, chega a armar que a partir desse momento,o termo americano “perde a maior parte de sua consistência polí -tica, passando a designar preferentemente um vastíssimo e variegadoespaço geográco”.

    O texto do Peru apresenta um argumento muito interessante no quediz respeito ao uso dos termos América e americano por parte dosexércitos libertadores durante o processo de independência. Segundoseu autor, tal uso permitia “conceber a guerra de emancipação no Perupor um exercito não de ocupação, mas de libertação”. De fato, a exal-

    tação da identidade comum americana era elemento crucial da retórica

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    dos libertadores, que usaram o conceito de América (ou de Américado Sul ou Meridional) como um desiderato de libertação coletiva que

    se realizava a cada conquista, ou seja, investiam o conceito com umsentido político abrangente. No verbete venezuelano temos Fran-cisco de Miranda usando a expressão “mi país la América del Sur”,ou mesmo escrevendo um “Proyecto de Constitución americana”,e Simon Bolívar, em novembro de 1814, declarando em mensagem àDivisão Militar do General Urdaneta: “Para nosotros, la patria es laAmérica”.

    Depois da deação que se seguiu aos processos de independên-cia, diretamente ligada ao crescimento do uso de gentilícios locais,

    o campo semântico do conceito não voltou a ser o mesmo da épocacolonial. Novos signicados foram incorporados, seja durante o augede sua politização, seja durante seu declínio. No primeiro caso temoso acréscimo da associação do nome América ao regime republicano,ao valor da liberdade política, ou mesmo ao projeto de unidade ame-ricana baseada em uma identidade política comum e continental.Durante o declínio da politização temos uma crescente oposição aosEUA, que se tornou, da perspectiva dos ibero-falantes, um caso cadavez mais difícil de ser integrado à idéia de unidade da experiência

    “americana”. Por um lado, esse estado de coisas foi exacerbado pelosconitos crescentes entre aquela nação e outros países do continente,

     já na primeira metade do século XIX. Por outro, a própria adoçãodo nome America, sem hifenizações, por parte dos norte-americanoscriou uma tensão irreconciliável com a concepção de América dospaíses do sul. Os EUA, assim, reclamaram para si a exclusividadeda experiência americana, ou pelo menos de sua forma mais autên-tica, e tiveram a seu favor o fato de terem sido a primeira colônia ase libertar do jugo europeu, constituindo um exemplo para os outros

    movimentos de libertação. Não é coincidência que termos hifenizadoscomo Hispano-América ou América Latina surgiram ou passaram aser empregados com mais freqüência somente à partir desse período,pois eles sintetizam duas funções: ao mesmo tempo em que armamuma identidade comum americana, se contrapõem à identidade anglo-americana. As hifenizações, que anteriormente tinham caráter emi-nentemente geográco ou geopolítico, com o termo América se com-binando aos adjetivos português, espanhol, setentrional, meridional,etc., assumiram um conteúdo cultural e, não raro, racial em meados

    do século XIX.

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    A diferença semântica entre o período colonial e o período de con-solidação nacional parece corroborar em parte a tese de Koselleck de

    que a experiência histórica tende a se acumular no campo semânticodos conceitos.21 Em outras palavras, não seria possível um retornointegral ao passado. Entretanto, se assumimos como premissa outratese koselleckiana, de que o aumento da politização correspondenecessariamente a um inchaço semântico, somos levados a perguntarse o processo de deação não corresponderia necessariamente a umaperda semântica. Essa é uma questão de sumo interesse e parcamenteexaminada pela teoria da história conceitual. Em verdade, muito foidito acerca dos processos de expansão semântica de conceitos bási-

    cos, mas quase nada a respeito de sua decadência. Seria o acúmulosemântico automático ou universal? Se o acumulo semântico não éautomático, quais os critérios que o regulam? Há alguma teoria que dêconta de explicar a sobrevivência e o apagamento de signicados? Nocaso da díade América/americanos, como se deram estes processos desobrevivência e supressão? Ainda que não haja espaço para elaboraressas questões teóricas, os dados empíricos dos casos estudados apon-tam para a conrmação do acumulo semântico, ou seja, os signica-dos acrescidos durante o período de politização (república, liberdade

    política, federalismo, igualdade, etc.) continuaram presentes mesmoapós a deação, mesmo que agora restritos à retórica dos diplomatase de intelectuais cosmopolitas, não raro vivendo em exílio na Europa.Em suma, tal desenvolvimento sugere que mesmo que a tese da cres-cente politização como causa do inchaço semântico esteja correta, seuoposto provavelmente não é verdadeiro. Mas aqui podemos somenteespecular sobre essa suposta regularidade.

    AMERICANOS: EUROPEUS, ÍNDIOS E NEGROS

    Uma das facetas mais interessantes do conceito de americano – queestá ainda pouco explorada no conjunto de verbetes, com a exceçãode Espanha, Portugal e Argentina – é sua relação com o vocabuláriousado na época para designar os tipos humanos das sociedades doNovo Mundo. Aqui temos um perl de evolução semântica que, porrazões óbvias, é colado àquele da politização do termo América, dis-

    21  Koselleck, “A Response” (nota 7), p. 66.

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    cutida logo acima. No período colonial, temos algumas referências aouso de americano para designar exclusivamente os indígenas. Con-

    tudo, já em 1730 aparece a expressão “espanhol americano”, usadaa partir daí para denominar os lhos de espanhóis nascidos no NovoMundo. Ao nal do período colonial, ou seja na segunda metade doséculo XVIII e primeiras décadas do XIX, o gentilício americanopassa por uma rápida expansão semântica, vindo a ser usado paradesignar indígenas, mestiços, crioulos e os habitantes das ex-colô-nias britânicas. Como disse José María Morelos em 1809: “[...] comexceção dos europeus, todos os demais habitantes não se denominamíndios, mulatos, nem por nomes de outras castas, mas simplesmente

    ‘americanos’”. Essa expansão não signicou a erradicação do uso dosoutros conceitos nem o aparecimento de expressões compostas, comoatesta o verbete mexicano ao identicar no nal do século XVIII o usocorrente da tríade índios americanos, espanhóis americanos e espan-hóis europeus.

    A politização crescente do conceito de americano durante o séculoXVIII parece ter sido um dos elementos da resposta dos crioulos àcentralização política promovida pelos monarcas Bourbons na Es-panha, particularmente Carlos III. Entre outras coisas, a nova política

    bourbonista limitava o acesso dos crioulos aos cargos eclesiásticos ecivis, vedando-lhes os políticos – essa distinção só viria ser abolidaformalmente pela Constitução da Monarquia espanhola de outubro de1812. A política bourbonista suscitou demandas por igualdade entreeuropeus e americanos em vários centros coloniais, como atesta overbete colombiano no caso da rebelião “Del Común” de 1781. Ouseja, de mera designação de local de nascimento, americano passoua ser uma identidade política que diferenciava os espanhóis euro-peus daqueles nascidos no Novo Mundo. Tal deslocamento redundou

    inclusive na perda de importância relativa do termo “crioulo” comoidentidade política principal. Este exemplo histórico aponta para umaquestão teórica importante, que é a capacidade que instituições têm demudar a cultura política, redenindo seus conceitos básicos. Ou seja,as limitações determinadas pelas normas jurídicas se impuseram nessecaso sobre a construção cultural da identidade política.

    Com a agitação política crescente, a identidade de “americano” seestendia em alguns casos, como no Projeto Constitucional de Fran-cisco de Miranda de 1801, a toda população, tornando-se a princi-

    pal identidade política, em oposição frontal ao conceito de espanhol e 

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    europeu. A citação de Humboldt, de 1808, ainda que anedótica,é muito esclarecedora do processo de rápida mudança semântica que o 

    conceito de americano estava experimentando:“A la denominación de criollos, estos nativos preeren la de Americanos. Desde lapaz de Versalles, y sobre todo desde el año de 1789, a menudo se les oye decir consoberbia. ‘No soy español, soy americano’”.22

    Frente à ameaça napoleônica, houve um movimento por parte daEspanha de se sinalizar a equiparação entre espanhóis europeus eaqueles de ultramar, que inclusive foi expresso nos textos das Juntasde Bayona, Junta Central e Cortes de Cadiz. Contudo, como lembra o

    verbete espanhol, essa retórica nunca logrou a verdadeira equiparação,pois os mesmos textos mantinham termos como “metrópole” e “colô-nia”. Tal vocabulário assimétrico também estava presente nas OrdensReais de 1809 ao Cabildo de Santafé. Ademais, naquele momentotal tentativa de reunicação de identidades políticas era por demaistardia: novas identidades já haviam sido forjadas e não poderiam sereliminadas por decreto.

    No verbete argentino vemos no clímax do movimento de libertação autilização do indígena, principalmente o Inca, como exemplo heróico

    daquilo que é propriamente americano. Na Colômbia se registra agura da “amazona americana” nas moedas cunhadas pelas provínciasrevoltosas, inclusive no caso de Cundinamarca, em associação com afrase “Liberdade Americana”. Contudo, em ambos os casos, esse tipode apelo tinha um caráter eminentemente simbólico e não redundouna prática no reconhecimento político dos próprios índios.

    Já no período posterior, com a consolidação da independência,houve em alguns casos, como na Argentina com Juan Bautista Alberdi,uma re-europeização da identidade política crioula ao custo do ali-

     jamento de índios e negros. Essa re-identicação da América com aEuropa e a Espanha serviu entre outras coisas para justicar políticasde incentivo à imigração de europeus. Junte-se a isso o fato de quedurante o século XVIII, como lembra o verbete espanhol, circulavaminúmeros estereótipos negativos associados aos indígenas americanos:traiçoeiros, estúpidos, sujos, cruéis e covardes.23

    22  Alexandre de Humboldt, Essai politique sur le Royaume de la Nouvelle-Espagnedu Mexique, 2 vols. (Thizy 1997, reed. da 2a ed. de 1811), t. 1, p. 146.

    23  Ironicamente, esses mesmos adjetivos pejorativos foram usados por outras nações

    européias durante toda a idade moderna para denegrir os espanhóis, naquilo que se con-

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    Os conceitos de América e de americanos foram ainda mais imper-meáveis aos africanos e seus descendentes durante o período estudado.

    Não há referências palpáveis à sua inclusão, ainda que as repúblicasde fala espanhola tenham abolido imediatamente a escravidão logoapós a libertação e os mestiços tenham sido incluídos, pelo menosnominalmente, tanto no conceito de americano quanto nos gentilíciosnacionais que passaram a vigorar depois de sua decadência. Fato é queos negros foram alijados do processo histórico de formação de novasidentidades políticas, ainda que o trabalho escravo dos africanos e deseus descendentes tivesse sido crucial para a produção colonial oumesmo, como no caso do Brasil, continuasse sendo a principal fonte

    de mão de obra da nova nação independente por década a o.Bolívar parece ter remado na contra-corrente da história ao tentar

    ao mesmo tempo preservar a identidade americana, como uma iden-tidade política continental, e denir o americano como uma “espéciemédia entre o aborígine e o espanhol” – formulação que alude à valo-rização da mestiçagem. Entretanto, é temerário tomar o vocabuláriod’El Libertador como normalidade semântica do período. Ademais,o fracasso de seus planos de unicação continental, marcado entreoutras coisas pelo Congresso do Panamá de 1826, sinaliza o declínio

    do conceito de América como instrumento de mobilização política.A consolidação nacional correspondeu também à decadência polí -

    tica do conceito de América e ao estabelecimento de gentilícios locaiscomo forma hegemônica de identicação. Muitos desses gentilíciosforam utilizados no período colonial para denominar os indígenaslocais. Com sua ascensão ao status de identidade principal dos novospaíses independentes, esses termos passaram a denominar, em muitoscasos, todos os habitantes do país, ainda que, na prática, o eurocen-trismo mais ou menos acentuado das elites crioulas acabou por per-

    petuar a exclusão de indígenas, mestiços e negros, mesmo que essestenham sido frequentemente usados em reconstruções românticas do“genuinamente nacional” que não raro valorizavam suas contribuiçõesculturais ao “caráter nacional”, a despeito de sua exclusão da plena

    vencionou chamar Legenda Negra. Ver Joseph P. Sánchez, The Spanish  Black Legend:Origins of Anti-Hispanic Stereotypes (Albuquerque, NM 1990); Charles Gibson, The

     Black Legend. Anti-Spanish Attitudes in the Old World and the  New (Nova Iorque 1971);e William S. Maltby, The Black Legend in England. The  Development of Anti-SpanishSentiment, 1558–1660 (Durham 1971).

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    cidadania,24 tanto na América hispânica quanto no Brasil. Mas esseassunto começa a extrapolar o escopo do presente trabalho.

    EUA E AMÉRICA

    O uso do termo América como sinônimo de Estados Unidos foi bas-tante raro. No verbete espanhol se faz menção do emprego do gentilí -cio americano ao nal do século XVIII para denominar os habitantesdas ex-colônias britânicas no Novo Mundo. Mas o caso mais signi-cativo de tal uso parece ter sido o México, onde essa prática deve se

    explicar pela proximidade e maior contato com os falantes da línguainglesa no continente, os quais empregavam o termo com esse signi-cado. Tanto no Chile, na Argentina e no Brasil, recorria-se à expressãocomposta “América do Norte” para se designar os EUA.

    Mais profícuo é examinar como aspectos da experiência dos EUAforam considerados como exemplo para a identidade comum ameri-cana. De modo geral, os EUA foram exemplares tanto por ter ado-tado o regime republicano quanto pelo seu federalismo, esse aindamais excepcional, pois para o republicanismo havia a concorrência

    do exemplo francês, muito inuente nos países de língua espanholae portuguesa. Note-se que mesmo no Brasil – onde a penetração deidéias federalistas e republicanas foi no início fraca, e cou mais res-trita a movimentos de autonomistas de algumas províncias nas últimasdécadas do período colonial e primeiras da independência –, os EUAtambém eram tomados como exemplo de federalismo.25 Na Argen-tina, por exemplo, forças políticas locais empregaram o exemplo dosEUA para defender uma solução federalista para os conitos centrí -fugos que se manifestaram desde a independência. A despeito disso,

    no Prata – ao contrário do México, que também foi um país de incli-nações federalistas – não encontramos o uso do termo América comosinônimo de EUA.

    24  Para a representação do índio no movimento romântico brasileiro de meadosdo século XIX ver Ana Beatriz Demarchi Barel, Um romantismo a oeste: modelo 

     francês, identidade nacional (São Paulo 2002); Antônio Cândido, O romantismo no  Brasil  (São Paulo 2004); e Bernardo Ricupero, O romantismo e a idéia de nação no  Brasil, 1830–1870 (São Paulo 2004).

    25  Evaldo Cabral de Mello, A outra independência: o federalismo pernambucano de 1817 a 1824 (São Paulo 2004).

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    Simon Bolívar também, às vezes, fez uso indistinto do termo naçãoamericana e americano para denominar tanto os habitantes do Novo

    Mundo como um todo como os Estados Unidos da América e seushabitantes, como relata o autor da Venezuela. Contudo, dado que otermo foi central nos projetos políticos de Bolívar, precisamos sempreestar atentos para o conteúdo ideológico26 de seus diferentes usos –procedimento que não cabe aplicar aqui neste trabalho.

    Mais para o nal do período estudado, há uma certa convergênciaentre os casos para uma conceituação dos EUA em oposição à Amé-rica de fala espanhola e ao Brasil. Como arma o verbete peruano,essa comparação com os EUA poderia ser feita tanto no sentido posi-

    tivo – como modo de enaltecer as novas repúblicas –, como nega-tivo – como crítica à sua política e sociedade. Nos casos de México,Argentina e Chile ca claro que por volta de meados do século XIX,os EUA adquiriram uma conotação negativa, de ameaça à autonomiae integridade das jovens nações do sul. Não por acaso, é somente aíque começavam a surgir termos como América Hispânica e AméricaLatina, cuja autoria o verbete chileno atribui a Francisco Bilbao.27 Como bem nota o autor chileno, esse novo contexto de oposição entrediferentes experiências americanas é de natureza cultural. É nele que

    vão se articular idéias como identidade latina, hispânica, católica,em oposição à América anglo-saxônica e protestante. Não podemosesquecer, contudo, que essa é a mesma época do orescimento dodiscurso racial no ocidente, e que esses termos de distinção, em seu

    26  O termo “ideológico” é aqui usado no sentido que Reinhart Koselleck lhe atribui:conceitos que projetam expectativas diversas da experiência vivida presente. Ou seja,

    como tal, ele é destituído do sentido pejorativo de ocultação da realidade para ns deopressão de classe, que a interpretação marxista mais vulgar dá ao termo, ainda que osdois signicados guardem semelhanças óbvias.

    27  Há uma polêmica sobre a autoria original do termo, que alguns atribuem a Bilbaoe outros ao bogotano José Maria Torres de Caicedo. As evidências até agora publicadasparecem apontar para Torres de Caicedo, que o utilizou pela primeira vez no poema“Las Dos Américas”, publicado em 1856: José Maria Torres de Caicedo, “Las DosAméricas”: Arturo Ardao (ed.), Genesis de la idea y el nombre de América Latina (Caracas 1980); e John Leddy Phelan, “Pan-latinism, French Intervention in Mexico,1861–1867, and the Genesis of the Idea of Latin America”: Juan Antonio Ortega yMedina (ed.), Conciencia y autenticidad históricas. Escritos en homenaje a EdmundoO’Gorman (México, D. F. 1968).

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    nascedouro, estavam já carregados de conotações e sistemas hierár-quicos de classicação raciais.28

    O CONCEITO DE AMÉRICA E A EXPERIÊNCIA LUSO-BRASILEIRA

    Em primeiro lugar, é preciso observar a assimetria das representaçõesmútuas no tocante à construção do conceito de América. Do ponto devista da América de fala espanhola, a América portuguesa e o Bra-sil sequer faziam do escopo de aplicação do conceito. Os signica-dos de América no contexto hispânico variavam entre os seguintes

    conteúdos: exclusivamente as repúblicas de fala castelhana, todo ocontinente (Novo Mundo), e mais raramente os Estados Unidos. Asconcepções continentais, contudo, não fazem referência à experiêncialuso-brasileira. Para se ter uma idéia mais concreta desse fato, nossete verbetes dos países de fala espanhola há somente uma referênciaà América portuguesa, que provem de um texto espanhol do períodocolonial (século XVIII), e uma referência a D. Pedro I, como inimigoda liberdade do Novo Mundo.

    Já no verbete brasileiro nota-se uma razoável abundância de refe-

    rências à América espanhola, particularmente às suas repúblicas. Con-tudo, aqui as referências são em grande maioria negativas, ou seja,com a experiência republicana da América espanhola sendo usadacomo exemplo de que o regime republicano é de fato deletério à liber-dade, estabilidade e segurança. Tais argumentos se zeram ouvir abun-dantemente já a partir da década de 1840 e por toda a segunda metadedo século XIX, e foram muito utilizados pelo mainstream da políticabrasileira, que congregava forças políticas adeptas à monarquia cons-titucional. Os entusiastas do republicanismo, seja no incipiente partido

    da capital ou nos movimentos insurrecionais das províncias, perderama luta política para os defensores da centralização administrativa, anti-federalistas e anti-republicanos.

    Do ponto de vista da comparação de processos históricos, a per-gunta mais signicativa a se fazer perante os casos das Américas espa-nhola e portuguesa é porque o processo de independência conduziu auma fragmentação política na primeira enquanto a segunda constituiuuma unidade política ainda maior que a do período colonial. As razões

    28  Feres Júnior, A história do conceito de Latin America (nota 1).

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    que podem ser aduzidas são várias: os padrões de colonização dife-rentes adotados por cada metrópole européia, o maior espalhamento

    e heterogeneidade geográca das possessões coloniais espanholascomparadas às portuguesas, o advento sui generis da realocação dacorte lusitana para o Rio de Janeiro em 1808, as diferentes aliançaspolíticas das duas metrópoles na Europa, as formas de governo dis-tintas adotadas por cada uma, etc. A lista pode ser bastante estendida,e não há espaço aqui para discutirmos tema tão complexo. Contudo,é interessante notar que essa questão da fragmentação – ou não – estárelacionada às diferentes apropriações e usos políticos dos conceitosde América e americanos em cada um dos contextos.

    Enquanto que na América espanhola temos o padrão de evoluçãodescrito acima, apelidado de narrativa “normal”, no Brasil o conceitonão assumiu papel central no processo de libertação. Houve sim umaevolução semântica, mas América não chegou a adquirir o status deconceito-chave, da maneira denida por Koselleck. Como o verbetebrasileiro indica, naquele país também houve um processo de politiza-ção do termo América, mas essa politização foi mais atenuada e comelementos positivos e negativos. Pelo lado positivo tivemos a associa-ção do conceito de América com liberdade e constitucionalismo, nomainstream monarquista; e com liberdade, republicanismo e, às vezes,federalismo, nos movimentos regionais autonomistas ou de resistên-cia à monarquia. Contudo, o conceito também foi usado, como já foicomentado acima, para denir a experiência hispano-americana comoviciosa em oposição à virtude da brasileira, de um modo semelhanteà contraconceituação assimétrica, descrita também por Koselleck.29 Ainda que houvesse alguma instabilidade conceitual quanto à ado-ção do gentilício da nova nação quando da independência,30 as opçõesmais comuns, brasílico, brasileiro e brasiliense, eram todas derivadas

    da mesma raiz, bem diversa de América. Por m, depois da indepen-

    29  Para o conceito de oposição assimétrica ver Koselleck, “The Historical-PoliticalSemantics” (nota 11), pp. 159–197, João Feres Júnior, “The Semantics of AsymmetricCounterconcepts. The Case of ‘Latin America’ in the US”:  Anales of the Iberoameri-kanska Institutet  7/8 (2005), pp. 83–106; e idem, “Building a Typology of Forms ofMisrecognition. Beyond the Republican-Hegelian Paradigm”: Contemporary PoliticalTheory 5, 3 (2006), pp. 259–277.

    30  Ver por exemplo Hipólito José da Costa, Correio braziliense, ou, Armazémliterário (Brasília 2001, original 1808–1822), v. 28.

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    dência, os termos Brasil e brasileiro consolidaram-se rapidamente,31 cando América como uma referência continental muito genérica,

    e americano como um conceito que ainda mais raramente se aplicavaao brasileiro.

    CONCLUSÃO

    Essa conclusão tem menos a função de resumir os achados, já expli-citados acima, do que de apontar para questões suscitadas por essetrabalho.

    O primeiro grupo de questões de ordem teórica que esse tipo detrabalho levanta diz respeito a seu lugar de enunciação. A história dosconceitos foi concebida (qua  Begriffsgeschichte) como uma históriafeita de dentro, ou seja, como reexão acerca da história dos con-ceitos-chave (Grundbegriffe) de uma nação escrita na língua daquelacomunidade nacional. Nos últimos anos apareceram alguns estudoscomparados de casos nacionais,32 mas até agora a história conceitualainda tem sido feita, em grande medida, seguindo o mesmo padrãocentrado na unidade língua–nação, ou seja, a partir de perspectivas

    nacionais. Isso é verdade para Finlância, Holanda e Espanha, paísesonde essa abordagem está mais bem difundida, além da Alemanha,é claro. A questão fundamental que se coloca para análise transver-sal aqui em pauta é, portanto: qual seu lugar próprio de enunciação?A resposta para essa questão, penso eu, só pode ser dada por meio dedois movimentos: 1) concebendo a análise transversal como um textoanalítico dotado de uma lógica diferente de um ensaio substantivo dehistória conceitual e 2) não renunciando completamente à revelaçãodo locus de enunciação.

    O segundo grupo de questões, esse ainda mais interessante, diz res-peito à noção de conceito-chave e seus possíveis caminhos evolutivos.O conceito de América, pelo menos na matriz de língua espanhola,apresenta uma trajetória peculiar que levanta questões ainda não explo-

    31  Ronaldo Vainfas,  Dicionário do Brasil imperial, 1822–1889 (Rio de Janeiro2002).

    32  Ver por exemplo Jörn Leonhard, Liberalismus: Zur historischen Semantik  eineseuropäischen Deutungsmusters (Munique 2001); e Pasi Ihalainen, Protestant   Nations

     Redened: Changing Perceptions of National Identity in the Rhetoric of the  English, Dutch, and Swedish Public Churches, 1685–1772 (Leiden/Boston 2005).

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    radas pelo projeto koselleckiano, particularmente aquelas relacionadasà decadência de um conceito-chave. Será que existem lições teóricas a

    serem aprendidas a respeito da decadência de um conceito-chave, paraalém das explicações particulares de cada caso? Tal pergunta é difícilde responder a partir da análise de um caso somente, mas, como pre-tendo ter apontado na análise substantiva acima, o exame da históriado conceito de “América/americanos” conduz a insights interessantesa respeito do peso e importância relativa da história social e da semân-tica estrutural na dinâmica de mutação do conceito. As perguntas quedevemos tentar responder aqui são: por que o conceito de Américaentrou em declínio?; dado o padrão comum identicado nos casos da

    Hispano-Ameríca, será que isso se deu por razões exógenas às pro-venientes da dinâmica social e política de cada caso? Portanto, deve-mos também examinar a hipótese desse declínio ter se dado por razõesinternas ao conceito, próprias de sua estrutura semântica.

    Por m temos também um conjunto de questões que advém dire-tamente da avaliação do status desse conceito nos casos estudados.Teria ele sido um conceito básico? Teria sido um elemento em umpar ou em pares de contra-conceitos assimétricos? Seriam essas duascondições auto-excludentes?

    A resposta à primeira pergunta é positiva, e podemos constatar issoexaminando rapidamente a história do conceito usando as hipótesede Koselleck. Como já foi mostrado, houve um franco processo depolitização, assim como alguma democratização. Também pode senotar ideologização na identicação da América com valores abstratoscomo a liberdade e mesmo, em menor medida, a igualdade, e tambémse verica um processo de temporalização na projeção de horizontesde expectativa que apontavam para o m do jugo colonial e a unica-ção continental no futuro. Entretanto, os verbetes mostram uma poli-

    tização do conceito que é diferente daquela prescrita por Koselleck.O campo semântico do conceito de fato foi alargado, e bastante, masa contestabilidade não é uma tônica nos textos. Não se verica umagrande polifonia, ou melhor, dissonância em relação a seu signicado.Pelo contrário, a cada passo de sua evolução as narrativas apresentamum certo grau de consenso por parte dos agentes políticos quanto aossignicados de América. Isso não deve ser considerado surpreendenteuma vez que os processos de independência corresponderam à expul-são daqueles que tinham maior interesse em lhe contestar os desígnios

    ideológicos e temporais: os colonizadores europeus. Esses não mais

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    tiveram acesso ao debate político. Ou seja, a resposta para a segundapergunta também é positiva. América de fato se tornou o elemento

    positivo de pares contraconceituais cujo elemento negativo forameuropeu, espanhol ou português.

    De fato, contraconceitos assimétricos, particularmente seu pólopositivo, parecem gozar de maior consenso e estabilidade semânticado que conceitos básicos em geral. Isso não os impede de comparti-lhar vários aspectos de sua evolução semântica com conceitos bási-cos. O estudo de contraconceitos assimétricos ainda está muito menosdesenvolvido que o de conceitos básicos. Nossas expectativas são deque num futuro próximo uma maior variedade de casos sejam exa-

    minados e novas hipóteses teóricas possam ser lançadas acerca dessaimportante categoria de conceitos políticos.

    Como esse curto ensaio deixa antever, estamos diante de um mate-rial riquíssimo que só pode ser tocado em sua superfície. Contudo,é importante apontar as direções de pesquisa e os temas novos suscita-dos por empreitada tão instigante.

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